sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 8


VIII

O CASTELO D’IF




A
o atravessar a antecâmara, o comissário de polícia fez sinal a dois guardas, os quais se colocaram um à direita e o outro à esquerda da Dantés. Abriu-se uma porta que punha em comunicação os aposentos do Procurador Régio com o Palácio da Justiça e seguiram durante algum tempo por um desses grandes corredores sombrios que arrepiam aqueles que os percorrem, mesmo quando não têm nenhum motivo para se arrepiar.
Assim como os aposentos de Villefort comunicavam com o Palácio da Justiça, também o Palácio da Justiça comunicava com a prisão, edifício sombrio contíguo ao palácio e que olhava curiosamente, com todas as suas aberturas medonhas, o Campanário dos Accouies que se erguia diante dele.
Depois de várias voltas, Dantés viu o corredor por onde seguia desembocar numa porta com um postigo de ferro. O comissário de polícia bateu com uma aldrava de ferro três pancadas que soaram para Dantés como se fossem desferidas no seu próprio coração. A porta abriu-se e os dois guardas empurraram levemente o prisioneiro, que hesitou novamente. Dantés transpôs o temível limiar e a porta tornou a fechar-se atrás dele. Respirava-se ali outro ar, um ar mefítico e pesado: estava numa prisão.
Conduziram-no a um quarto bastante limpo, mas gradeado e aferrolhado. No entanto, o aspecto do alojamento não o assustou. Aliás, as palavras do Substituto do Procurador Régio, proferidas numa voz que parecera a Dantés tão cheia de interesse, ecoavam-lhe aos ouvidos como uma suave promessa de esperança.
Eram já quatro horas quando Dantés fora conduzido à sua cela. Estava-se, como já dissemos, em 1 de Março.
O prisioneiro não tardou a encontrar-se às escuras.
Então o sentido do ouvido substituiu nele o sentido da vista, que acabava de perder. Ao menor ruído que chegava até ele, convencido de que o vinham pôr em liberdade, levantava-se vivamente e dava um passo para a porta; mas em breve o ruído ia morrendo noutra direção e Dantés tornava a deixar-se cair no banco.
Por fim, cerca das dez horas da noite, quanto Dantés começava a perder a esperança, ouviu-se novo ruído que lhe pareceu dirigir-se para a sua cela. Com efeito, soaram passos no corredor que se detiveram diante da sua porta. Uma chave girou na fechadura, os ferrolhos rangeram e a maciça barreira de carvalho abriu-se e deixou entrar de súbito na cela a luz deslumbrante de dois archotes. Ao clarão desses dois archotes, Dantés viu brilhar os sabres e os mosquetões de quatro guardas. Dera dois passos em frente, mas ficou imóvel no seu lugar ao ver aquele aumento de forças.
— Vêm buscar-me? — perguntou Dantés.
— Viemos — respondeu um dos guardas.
— Da parte do Sr. Substituto do Procurador Régio?
— Creio que sim.
— Bom, estou pronto a acompanhá-los — declarou Dantés.
A convicção de que vinham buscá-lo da parte do Sr. de Villefort tirava todo o receio do infeliz rapaz. Avançou, pois, de espírito calmo e andar desembaraçado e colocou-se ele próprio no meio da escolta.
À porta esperava uma carruagem com o cocheiro no seu lugar e um policial sentado ao lado do cocheiro.
— É para mim que esta carruagem está aqui? — perguntou Dantés.
— É para você — respondeu um dos guardas — Suba.
Dantés quis fazer algumas observações, mas a portinhola abriu-se e sentiu-se empurrado. Não havia possibilidade nem sequer intenção de opor resistência, pelo que se encontrou num instante sentado ao fundo da carruagem, entre dois guardas. Os outros dois sentaram-se no banquinho fronteiro e o pesado veiculo começou a rodar com um ruído sinistro.
O prisioneiro olhou para as janelas; eram gradeadas. Mudara apenas de prisão. A única diferença era aquele rodar e transportá-lo para destino ignorado. Através dos varões apertados a ponto de mal poder passar a mão entre eles, Dantés reconheceu, no entanto, que percorriam a Rua Caisserie e que pela Rua Tamaris desciam para o cais. Em breve distinguiu através das suas grades e das do monumento junto do qual se encontrava as luzes da Consigne.
A carruagem parou e o policial desceu e aproximou-se da casa da guarda. Saiu uma dúzia de soldados que formaram alas. Ao clarão dos candeeiros do cais, Dantés viu reluzirem-lhes as espingardas.
“Será por minha causa que se exibe semelhante força militar?”, perguntou Dantés a si mesmo.
Ao abrir a portinhola fechada à chave, o policial respondeu a esta interrogação, embora sem pronunciar uma única palavra, pois Dantés viu entre as duas alas de soldados um caminho aberto para ele, da carruagem ao porto.
Os dois guardas que estavam sentados no banco da frente foram os primeiros a descer, depois fizeram-no descer a ele e por fim seguiram-no os que se sentavam a seu lado. Encaminharam-se para um escaler que um marinheiro da alfândega mantinha junto do cais, seguro por uma corrente. Os soldados viram passar Dantés com ar de curiosidade aparvalhada. Instalaram-no num instante à popa do barco, sempre no meio de quatro guardas, enquanto o policial se mantinha à proa. Um empurrão violento afastou o barco da muralha e quatro remadores remaram vigorosamente na direção de Pilon. A um grito soltado do barco a corrente que fechava o porto desceu e Dantés encontrou-se no chamado Frioul, isto é, fora do porto.
O primeiro impulso do prisioneiro ao ver-se ao ar livre fora um impulso de alegria. O ar era quase a liberdade. Respirou, pois, a plenos pulmões aquela brisa fresca, que trazia nas asas todos os aromas desconhecidos da noite e do mar. Não tardou, porém, a soltar um suspiro ao passar diante da Réserve, onde fora tão feliz naquela mesma manhã, durante a hora que precedera a sua prisão. Através de duas janelas abertas chegava até ele o barulho alegre de um baile.
Dantés juntou as mãos, ergueu os olhos ao céu e rezou.
O escaler continuava a sua rota. Ultrapassara a Caveira e estava defronte da enseada do Pharo. Ia contornar a bateria, o que era uma manobra incompreensível para Dantés.
— Para onde me levam? — perguntou a um dos guardas.
— Em breve saberá.
— Mas então...
— Estamos proibidos de lhe dar qualquer explicação.
Dantés era meio soldado. Interrogar subordinados aos quais fora proibido responder pareceu-lhe uma coisa absurda e por isso calou-se.
Então, acudiram-lhe ao espírito os pensamentos mais estranhos. Como se não podia fazer grande viagem em semelhante barco e não havia nenhum navio ancorado do lado para onde se dirigiam, pensou que o iam desembarcar num ponto afastado da costa e dizer-lhe que estava livre. Não se encontrava amarrado nem tinham feito qualquer tentativa para o algemar, o que lhe parecia de bom augúrio. Aliás, não lhe dissera o Substituto, que tão bom fora para ele, que contanto que não pronunciasse o nome fatal de Noirtier nada tinha a temer? Não destruíra Villefort, na sua presença, aquela carta perigosa, única prova existente contra ele?
Esperou, pois, mudo e pensativo, procurando devassar com os olhos de marinheiro conhecedor das trevas e habituado ao espaço a escuridão da noite.
Tinham deixado à direita a Ilha Ratonneau, onde ardia um farol, e, seguindo quase ao longo da costa, haviam chegado à altura da enseada dos Catalães. Ali, os olhares do prisioneiro tornaram-se mais perscrutadores, era ali que estava Mercedes, e parecia-lhe a cada instante ver desenhar-se na margem sombria a forma vaga e indecisa de uma mulher. Porque não diria um pressentimento a Mercedes que o seu apaixonado passava a trezentos passos dela?
Brilhava uma única luz nos Catalães. Observando a posição dessa luz, Dantés reconheceu que ela iluminava o quarto da noiva. Mercedes era a única que velava em toda a coloniazinha. Se gritasse com força, o jovem poderia fazer-se ouvir pela noiva.
Uma vergonha injustificada conteve-o. Que diriam os homens que o olhavam se o ouvissem gritar como um insensato? Ficou, portanto mudo e com os olhos cravados naquela luz.
Entretanto, o barco continuava a sua rota. Mas o prisioneiro não pensava no escaler, pensava em Mercedes. Um acidente de terreno fez desaparecer a luz. Dantés virou-se e verificou que o barco se dirigia para o largo.
Enquanto olhava, absorto nos seus próprios pensamentos, tinham substituído os remos por velas e o barco avançava agora impelido pelo vento.
Apesar da repugnância que Dantés experimentava em dirigir ao guarda novas perguntas, aproximou-se dele e disse-lhe, pegando-lhe na mão:
— Camarada, em nome da sua consciência e da sua qualidade de soldado peço-lhe que tenha compaixão de mim e me responda. Sou o Comandante Dantés, bom e leal francês, apesar de acusado de não sei que traição. Para onde me levam? Diga-me e, palavra de marinheiro, cumprirei o meu dever e resignar-me-ei com a minha sorte.
O guarda coçou a orelha e olhou para o seu camarada. Este fez um gesto que significava pouco mais ou menos: “Parece-me que no ponto em que estamos não há inconveniente”. O outro virou-se então para Dantés e disse-lhe:
— O senhor é marselhês e marinheiro e ainda nos pergunta para onde vamos?
— Pergunto porque, pela minha honra, ignoro-o.
— Nem, desconfia?
— De modo nenhum.
— Não é possível.
— Juro-lhe pelo que tenho de mais sagrado no mundo. Responda-me, por piedade!
— Mas as ordens?
— As ordens não o proíbem de me informar do que saberei dentro de dez minutos, de meia hora ou talvez de uma hora. Apenas me poupará, entretanto, séculos de incerteza. Peço-lhe como se fosse meu amigo. Repare, não pretendo revoltar-me nem fugir. De resto, não posso. Para onde vamos?
— A menos que tenha uma venda nos olhos ou que nunca tenha saído do porto de Marselha, deve, no entanto, adivinhar para onde vai.
— Não.
— Nesse caso, olhe à sua volta.
Dantés levantou-se, olhou naturalmente para o ponto para onde parecia dirigir-se o barco e, cem toesas à sua frente, viu erguer-se a rocha negra e escarpada em que se elevava, com uma superfetação do sílex, o sombrio Castelo d’If .
Aquela forma estranha, aquela prisão envolta em tão profundo terror, aquela fortaleza que havia trezentos anos impunha as suas lúgubres tradições a Marselha, aparecendo assim de repente a Dantés, que não pensava nela, produziu-lhe o efeito que produz ao condenado à morte o aspecto do cadafalso.
— Ah, meu Deus, o Castelo d’If ! — exclamou — E que vamos fazer lá?
O guarda sorriu.
— Vão-me encarcerar lá? — continuou Dantés — Mas o Castelo d’If é uma prisão de Estado destinada apenas aos grandes criminosos políticos. Ora, eu não cometi nenhum crime. No Castelo d’If existem, porventura, juízes de instrução ou quaisquer outros magistrados?
— Suponho que só existe um governador, carcereiros, uma guarnição e bons muros. Vamos, vamos, amigo, não mostre tanto espanto; porque na verdade me faria supor que retribui a minha condescendência troçando de mim.
Dantés apertou a mão do guarda como se lha quisesse partir.
— Pretende — insistiu — Que me conduzem ao Castelo d’If para me encerrar?
— É provável — respondeu o guarda — Seja como for, camarada, é inútil apertar-me a mão com tanta força.
— Sem mais investigações, sem mais formalidades? — perguntou o jovem.
— As formalidades estão preenchidas e as investigações concluídas.
— Assim, apesar da promessa do Sr. de Villefort?...
— Não sei se o Sr. de Villefort lhe fez alguma promessa — perguntou o guarda — Mas o que sei é que vamos para o Castelo d’If. Eh, lá, que está fazendo?! A mim, camaradas, a mim!
Num gesto rápido como um relâmpago, mas que, no entanto fora previsto pelo olhar experiente do guarda, Dantés quisera lançar-se ao mar. Mas quatro mãos vigorosas seguraram-no no momento em que os seus pés deixavam o fundo do barco e fizeram-no cair dentro dele bramindo de raiva.
— Ora aí está! — exclamou o guarda, pondo-lhe um joelho no peito — Ora aí está como cumpre a sua palavra de marinheiro. Isso é o que recebemos por acreditar em gente de fala mansa... pois agora, meu caro amigo, se fizer um movimento, um só, meto-lhe uma bala na cabeça. Não cumpri a minha primeira ordem, mas garanto-lhe que cumprirei a segunda.
E baixou efetivamente a carabina na direção de Dantés, que sentiu encostar-lhe a ponta do cano à têmpora.
Por um instante sentiu a tentação de fazer o movimento proibido e de acabar assim, violentamente, com a desgraça inesperada que se abatera sobre ele e o tomara de súbito nas suas garras de abutre. Mas precisamente por essa desgraça ser inesperada, Dantés pensou que não podia ser duradoura. Depois, acudiram-lhe ao espírito as promessas do Sr. de Villefort; por último, forçoso é dizê-lo, a morte no fundo de um barco, dada pela mão de um guarda, pareceu-lhe indecorosa e indigna.
Deixou-se cair no fundo do barco, soltando um bramido de raiva e mordendo as mãos com furor. Quase no mesmo instante um choque violento sacudiu o escaler. Um barqueiro saltou para a rocha que a proa da embarcação acabava de tocar, uma corda chiou ao desenrolar-se à volta de um moitão e Dantés compreendeu que tinham chegado e amarravam o barco.
Com efeito, os guardas, que o seguravam ao mesmo tempo pelos braços e pela gola da veste, obrigaram-no a levantar-se e a desembarcar e arrastaram-no para os degraus que subiam até à porta da cidadela, enquanto o policial, armado com um mosquetão de baioneta calada, seguia atrás dele.
Aliás, Dantés não esboçou sequer uma resistência que seria inútil: a sua lentidão devia-se mais à inércia do que à oposição. Estava aturdido e cambaleava como um ébrio. Viu de novo os soldados escalonarem-se nos taludes íngremes, sentiu os degraus obrigarem-no a levantar os pés e notou que transpunha uma porta e que essa porta se fechava atrás de si, mas tudo isto maquinalmente, como que através de um nevoeiro, sem nada distinguir de positivo. Nem sequer via o mar, essa dor imensa dos prisioneiros, que olham o espaço com o sentimento terrível de que são impotentes para o transpor.
Houve um breve alto, durante o qual procurou concentrar idéias. Olhou à sua volta: estava num pátio quadrado, formado por quatro altas muralhas. Ouvia-se o passo lento e regular das sentinelas e todas as vezes que passavam diante dos dois ou três reflexos que projetavam nas muralhas o clarão de duas ou três luzes que brilhavam no interior do castelo via-se cintilar o cano das suas espingardas.
Esperaram ali dez minutos, pouco mais ou menos. Certos de que Dantés já não podia fugir, os guardas tinham-no largado. Pareciam esperar ordens. Essas ordens chegaram.
— Onde está o prisioneiro? — perguntou uma voz.
— Está aqui — responderam os guardas.
— Que venha comigo; vou conduzi-lo ao seu alojamento.
— Vá — disseram os guardas, empurrando Dantés.
O prisioneiro seguiu o indivíduo, que o conduziu efetivamente a uma sala quase subterrânea cujas paredes nuas e suadas pareciam impregnadas de um vapor de lágrimas. Uma espécie de lampião pousado num banco e cuja mecha nadava numa gordura fétida iluminava as paredes luzidias da horrível sala e mostrava a Dantés o seu acompanhante, espécie de carcereiro subalterno, mal vestido e de cara desagradável.
— Aqui tem o seu quarto para esta noite — informou — É tarde e o Sr. Governador está deitado. Amanhã, quando acordar e tomar conhecimento das ordens que lhe dizem respeito, talvez o mude de instalação. Entretanto, aqui tem pão. Há água naquela bilha e palha ali no canto. É tudo o que um prisioneiro pode desejar. Boa noite!
E antes de Dantés pensar em abrir a boca para lhe responder, antes de ver onde o carcereiro pousava o pão, antes de se dar conta do lugar onde estava a bilha e antes de volver os olhos para o canto onde se encontrava a palha destinada a servir-lhe de cama, o carcereiro pegou no lampião, saiu, fechou a porta e privou o prisioneiro da luz baça que lhe mostrara como que ao clarão de um relâmpago as paredes encharcadas da sua prisão.
Encontrou-se então sozinho no meio das trevas e do silêncio, tão mudo e tão sombrio como as abóbadas cujo frio glacial sentia descer sobre a testa escaldante.
Quando os primeiros raios da alvorada trouxeram um pouco de claridade àquele antro, o carcereiro voltou com a ordem de deixar o prisioneiro onde se encontrava. Dantés nem sequer mudara de lugar. Uma mão de ferro parecia tê-lo pregado no mesmo local onde na véspera se detivera. Apenas o seu olhar profundo se ocultava debaixo de um inchaço causado pelo vapor úmido das suas lágrimas. Estava imóvel e olhava para o chão.
Passara assim toda a noite de pé e sem dormir um só instante. O carcereiro aproximou-se dele, andou à sua volta, mas Dantés não pareceu vê-lo. Bateu-lhe no ombro, Dantés estremeceu e abanou a cabeça.
— Não dormiu? — perguntou-lhe o carcereiro.
— Não sei — respondeu Dantés.
O carcereiro olhou-o com espanto.
— Não tem fome? — continuou.
— Não sei — respondeu novamente Dantés.
— Quer alguma coisa?
— Queria ver o governador.
O carcereiro encolheu os ombros e saiu.
Dantés seguiu-o com a vista, estendeu as mãos para a porta entreaberta, mas a porta fechou-se.
Então o peito pareceu rasgar-se-lhe num longo soluço. As lágrimas que lhe enchiam o peito brotaram como dois riachos. Ajoelhou-se, encostou a testa ao chão e rezou durante muito tempo. Repassou no espírito toda a sua vida passada e perguntou a si mesmo que crime cometera na vida, tão jovem ainda, que merecesse tão cruel punição.
O dia passou-se assim. Comeu apenas alguns nacos de pão e bebeu alguns goles de água. Tão depressa ficava sentado e absorto nos seus pensamentos como caminhava a toda a volta da prisão, qual fera encerrada numa jaula de ferro.
Havia, sobretudo um pensamento que o punha fora de si: o de que durante a travessia, onde, na ignorância do local para onde o conduziam, permanecera tão calmo e tranqüilo, poderia ter-se dez vezes deitado ao mar e, uma vez na água, graças à sua perícia de nadador, graças ao hábito que o tornara um dos mais hábeis mergulhadores de Marselha, desaparecer debaixo d’água, fugir dos guardas, alcançar a costa, escapar, esconder-se em qualquer enseada deserta, esperar um navio genovês ou catalão, alcançar a Itália ou a Espanha, e de lá escrever a Mercedes para que se juntasse a ele. Quanto à sua vida em qualquer país era coisa que não o preocupava. Em toda a parte os marinheiros eram raros e falava italiano como um toscano e espanhol como um natural de Castela-a-Velha. Viveria livre e feliz com Mercedes e com o pai, pois o pai também iria ter com ele, ao passo que assim estava prisioneiro, encerrado no Castelo d’If, naquela prisão intransponível, sem saber o que era feito do pai nem de Mercedes, e tudo isso porque acreditara na palavra de Villefort.
Era de enlouquecer.
Por isso, Dantés rebolava-se furioso na palha fresca que lhe trouxera o carcereiro.
No dia seguinte, à mesma hora, o carcereiro voltou.
— Então, está hoje mais razoável do que ontem? — perguntou-lhe.
Dantés não respondeu.
— Que diabo, um pouco de coragem! — insistiu o carcereiro — Deseja alguma coisa que esteja ao meu alcance? Vamos, diga.
— Desejo falar com o governador.
— O quê? Já lhe disse que é impossível — perguntou o carcereiro com impaciência.
— Impossível por quê?
— Porque pelos regulamentos da prisão não é permitido aos prisioneiros pedir isso.
— Então, que é permitido aqui? — perguntou Dantés.
— Melhor alimentação, pagando, passear e às vezes livros.
— Não preciso de livros, não tenho nenhuma vontade de passear e acho a minha alimentação boa. Portanto, só quero uma coisa: ver o governador.
— Se continua a repetir-me sempre a mesma coisa, não lhe trago mais de comer — ameaçou-o o carcereiro.
— Se não me trouxeres mais de comer — respondeu Dantés — Morrerei de fome e pronto!
O tom em que Dantés proferiu estas palavras provou ao carcereiro que o seu prisioneiro se daria por feliz se morresse. Por isso, como qualquer prisioneiro rendia, bem feitas as contas, cerca de dez soldos por dia ao seu carcereiro, o de Dantés avaliou o prejuízo que lhe acarretaria tal morte e insistiu em tom mais ameno:
— Ouça, o que deseja é impossível. Portanto, não insista, pois não há exemplo de, a pedido de um prisioneiro, o governador ir à sua cela. Mas se o senhor se portar bem lhe permitirão o passeio e é possível que um dia, enquanto passeia, o governador passe... então, poderá dirigir-lhe a palavra e se ele lhe quiser responder é lá com ele.
— Mas quanto tempo posso esperar assim sem que esse acaso se verifique? — perguntou Dantés.
— Sei lá! — respondeu o carcereiro — Um mês, três meses, seis meses, talvez um ano...
— É demasiado — perguntou Dantés — Quero vê-lo imediatamente.
— Bom, o melhor é não se entregar assim a um único desejo impossível, ou antes de quinze dias estará louco.
— Acha? — perguntou Dantés.
— Sim, louco. É sempre assim que começa a loucura; temos aqui um exemplo disso. Foi por estar constantemente a oferecer um milhão ao governador, se o pusesse em liberdade, que o cérebro do abade que esteve nesta cela antes do senhor se avariou.
— E há quanto tempo deixou esta cela?
— Dois anos.
— Puseram-no em liberdade?
— Não, meteram-no numa masmorra.
— Escute — disse Dantés — Não sou um abade nem sou um louco. Talvez venha a ser, mas infelizmente, neste momento, ainda estou em meu perfeito juízo. Vou fazer-te outra proposta.
— Qual?
— Não te oferecerei um milhão, porque não poderia lhe dar; mas te oferecerei cem escudos se quiser, na primeira vez que for a Marselha, descer até aos Catalães e entregar uma carta a uma moça chamada Mercedes. Nem sequer uma carta, apenas duas linhas.
— Se levasse essas duas linhas e fosse descoberto, perderia o meu lugar, que é de mil libras por ano, sem contar com os extraordinários e com a alimentação. Como vê, seria um grande imbecil se me arriscasse a perder mil libras para ganhar trezentas.
— Nesse caso, escuta e toma bem nota disto — disse Dantés — Se recusa levar duas linhas a Mercedes ou pelo menos preveni-la de que estou aqui, um dia te esperarei escondido atrás da minha porta e quando entrar te quebrarei a cabeça com este banco.
— Ameaças!... — exclamou o carcereiro, dando um passo atrás e pondo-se na defensiva — Decididamente, não está bom da cabeça. O abade começou como o senhor e dentro de três dias o senhor estará doido varrido como ele. Felizmente não faltam masmorras no Castelo d’If.
Dantés pegou no banco e fê-lo girar à volta da cabeça.
— Está bem, está bem! — disse o carcereiro — Pronto, uma vez que insiste, vou prevenir o governador.
— Depressa! — perguntou Dantés, voltando a pousar o banco no chão e sentando-se nele, de cabeça baixa e olhos esgazeados, como se realmente tivesse enlouquecido.
O carcereiro saiu e regressou pouco depois com quatro soldados e um cabo.
— Por ordem do governador — disse — Desçam o prisioneiro para o andar por baixo deste.
— Para as masmorras, então — observou o cabo.
— Sim, para as masmorras. Devem pôr-se os loucos junto dos loucos.
Os quatro soldados agarraram Dantés, que caiu numa espécie de atonia e os acompanhou sem resistência. Fizeram-no descer quinze degraus e abriram a porta de uma masmorra na qual entrou murmurando:
— Tem razão, devem pôr-se os loucos junto dos loucos.
A porta voltou a fechar-se e Dantés caminhou em frente com as mãos estendidas até tocar na parede. Então, sentou-se num canto e ficou imóvel, enquanto os seus olhos se habituavam pouco a pouco à obscuridade e começavam a distinguir os objetos.
O carcereiro tinha razão: faltava muito pouco para que Dantés enlouquecesse.





 continua...





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