sábado, 2 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 9


IX

A FESTA DE NOIVADO




C
omo dissemos, Villefort retomara o caminho da praça Grand-Cours e quando entrou em casa da Sra. de Saint-Méran encontrou os convivas, que deixara à mesa, tomando o café na sala. Renée esperava-o com uma impaciência que era compartilhada por todo o resto da sociedade. Foi, pois, acolhido com uma exclamação geral.
— Então, cortador de cabeças, sustentáculo do Estado, Bruto monárquico, que aconteceu? — perguntou um — Vamos, diga!
— Estamos ameaçados por um novo regime de Terror? — indagou outro.
— O Papão da Córsega saiu da sua caverna? — inquiriu terceiro.
— Sra. Marquesa — disse Villefort, aproximando-se da sua futura sogra — Suplico-lhe, me desculpe de ser obrigado a deixá-la assim... Sr. Marquês, poderei ter a honra de lhe dizer duas palavras em particular?
— Oh! Quer dizer que o caso é realmente grave? — perguntou a marquesa, notando a sombra que obscurecia a testa de Villefort.
— Tão grave que sou obrigado a pedir-lhes licença para me ausentar uns dias. Por aqui podem ver — continuou, virando-se para Renée — Se o caso é ou não grave.
— Parte, senhor? — perguntou Renée, incapaz de ocultar o abalo que lhe causava aquela noticia inesperada.
— Infelizmente, menina — respondeu Villefort — É preciso.
— E aonde vai? — perguntou a marquesa.
— É segredo de justiça, minha senhora. No entanto, se alguém aqui tem alguma coisa para Paris, um dos meus amigos partirá esta noite e se encarregará disso com prazer.
Todos se entreolharam.
— Pediu-me que o ouvisse por um momento? — lembrou o Marquês.
— Pedi. Passemos ao seu gabinete, por favor.
O Marquês tomou o braço de Villefort e saiu com ele.
— Então, que se passa? — perguntou quando chegaram ao gabinete — Vamos, fale.
— Coisas que creio da mais alta gravidade e que exigem a minha partida neste instante para Paris. Agora, Marquês, desculpe a indiscreta brutalidade da pergunta: possui títulos do Estado?
— Toda a minha fortuna está em títulos da dívida pública; seiscentos a setecentos mil francos, pouco mais ou menos.
— Venda-os Marquês. Venda-os ou ficará arruinado.
— Mas como quer que os venda daqui?
— Tem um corretor, não tem?
— Tenho.
— Dê-me uma carta para ele, e que venda sem perda de um minuto, sem perda de um segundo. Poderei chegar até demasiado tarde.
— Demônio, nesse caso não percamos tempo! — exclamou o Marquês.
Sentou-se à mesa e escreveu uma carta ao seu corretor na qual lhe ordenava que vendesse a todo o custo.
— Agora que tenho esta carta — disse Villefort, guardando-a cuidadosamente na carteira — Preciso de outra.
— Para quem?
— Para o rei.
— Para o rei?
— Sim.
— Mas não me atrevo a escrever assim a Sua Majestade.
— Por isso, não é ao senhor que a peço, mas encarrego-o de a pedir ao Sr. de Salvieux. É necessário que me dê uma carta com o auxílio da qual possa penetrar até junto de Sua Majestade sem ser submetido a todas as formalidades de pedido de audiência que me podem fazer perder um tempo precioso.
— Mas não tem o Ministro da Justiça, que entra quando quer nas Tulherias e por intermédio do qual poderá, de dia e de noite, chegar junto do rei?
— Tenho, sem dúvida, mas para quê partilhar com outro o mérito da notícia de que sou portador? Compreende o que quero dizer? O ministro me relegaria muito naturalmente para segundo plano e me privaria de todo o proveito no caso. Só lhe digo uma coisa, Marquês: a minha carreira estará assegurada se conseguir ser o primeiro a chegar às Tulherias, porque prestarei ao rei um serviço que lhe não será permitido esquecer.
— Nesse caso, meu caro, vá fazer as malas. Entretanto, chamarei Salvieux e lhe pedirei que escreva a carta que deverá servir-lhe de salvo-conduto.
— Bom, não perca tempo, pois dentro de um quarto de hora tenho de tomar a sege de posta.
— Mande parar a carruagem diante da porta.
— Sem dúvida nenhuma... desculpar-me-á junto da Marquesa, não é verdade? E também junto de Mademoiselle de Saint-Méran, que deixo num dia como este com bem profundo pesar.
— Encontrará ambas no meu gabinete e poderá despedir-se delas.
— Mil vezes obrigado. Trate da minha carta.
O Marquês tocou. Apareceu um lacaio.
— Diga ao Conde Salvieux que o espero... vá agora — continuou o Marquês dirigindo-se a Villefort.
— Bom, é só o tempo de ir e vir.
E Villefort saiu correndo. Mas à porta pensou que um Substituto do Procurador Régio que fosse visto caminhando em passos precipitados se arriscaria a perturbar o repouso de toda a cidade. Retomou, portanto o seu passo normal já dono de si, sua porta distinguiu na sombra como que um branco fantasma que o esperasse de pé e imóvel.
Era a bela moça catalã que, não tendo notícias de Edmond, esgueirara-se ao cair da noite do Pharo para vir saber pessoalmente o motivo da prisão do seu amado.
Ao aproximar-se Villefort, afastou-se da parede a que se encostava e veio cortar-lhe o caminho. Dantés falara da noiva ao substituto e Mercedes não teve necessidade de se apresentar para que Villefort a reconhecesse. Ficou surpreendido com a dignidade daquela mulher e quando ela lhe perguntou que era feito do seu amado pareceu-lhe ser ele o acusado e ela o juiz.
— O homem a que se refere — declarou Villefort, bruscamente — É um grande criminoso e não posso fazer nada por ele, menina.
Mercedes deixou escapar um soluço e como Villefort procurasse seguir o seu caminho ela deteve-o segunda vez.
— Mas ao menos onde está, para que me possa informar se se encontra morto ou vivo? — perguntou.
— Não sei, já me não pertence — respondeu Villefort.
E perturbado por aquele olhar meigo e por aquela atitude suplicante, afastou Mercedes, entrou e fechou rapidamente a porta, como que para deixar do lado de fora aquela dor que lhe traziam.
Mas a dor não se deixou repelir assim. Como o dado mortal de que fala Virgílio, o homem ferido levou-a consigo. Villefort entrou, fechou a porta, mas quando chegou à sala as pernas fraquejaram-lhe por seu turno. Soltou um suspiro que parecia um soluço e deixou-se cair numa poltrona.
Então, no fundo daquele coração doente nasceu o primeiro germe de uma úlcera mortal. Aquele homem que sacrificava à sua ambição, aquele inocente que pagava pelo seu pai culpado, apareceu-lhe pálido e ameaçador, dando a mão à noiva, pálida como ele, e arrastando atrás de si o remorso, não o que faz saltar o doente como os furiosos da fatalidade antiga, mas sim esse tinido abafado e doloroso que em certos momentos atinge o coração e o deixa contuso, ao recordar uma ação passada, contusão cujas dores lancinantes cavam um mal que se vai aprofundando até à morte.
Então, houve na alma daquele homem ainda um instante de hesitação. Já diversas vezes pedira, e isso sem outra emoção do que a da luta do juiz com o acusado, a pena de morte contra os réus, e esses réus, executados graças à eloqüência avassaladora com que dominara os juízes ou o júri, nem sequer lhe tinham deixado uma sombra na fronte, porque eram culpados, ou pelo menos Villefort assim os considerava.
Mas desta vez o caso era muito diferente: acabava de aplicar a um inocente uma pena de prisão perpétua, a um inocente que ia ser feliz e a quem roubava não só a liberdade, mas também a felicidade. Desta vez já não era juiz, era carrasco.
Pensando nisto, sentia a palpitação abafada que descrevemos, e que até ali desconhecera, ecoar-lhe no fundo do coração e encher-lhe o peito de vagas apreensões. É assim, através do violento sofrimento instintivo, que o ferido é avisado e jamais aproxima sem tremer o dedo da ferida aberta e sangrenta antes de ela fechar.
Mas a ferida que recebera Villefort era daquelas que não fecham, ou que só fecham para reabrir mais sangrentas e dolorosas do que anteriormente.
Se naquele momento a suave voz de Renée lhe tivesse soado aos ouvidos pedindo-lhe compaixão, se a bela Mercedes tivesse entrado e lhe tivesse dito: “Em nome de Deus que nos vê e nos julga, restitua-me o meu noivo”; sim, aquela fronte que as circunstâncias inclinavam até meio teria se curvado por completo e as mãos geladas daquele homem teriam sem dúvida, com risco de tudo o que daí pudesse resultar para ele, assinado o mandado de soltura de Dantés. Mas nenhuma voz murmurou no silêncio e a porta só se abriu para entrar o criado de quarto de Villefort, que veio dizer que os cavalos de posta já estavam atrelados à cabeça de viagem.
Villefort levantou-se, ou antes, saltou como um homem que vence uma luta íntima, correu para a mesa, meteu nas algibeiras todo o ouro que se encontrava numa gaveta, andou um instante sobressaltado, pelo aposento, com a mão na testa e proferindo palavras sem sentido, e por fim, sentindo que o criado acabava de lhe pôr a capa pelos ombros, saiu, meteu-se na carruagem e ordenou com voz breve ao cocheiro que seguisse para a Rua do Grand-Cours, para casa do Sr. de Saint-Méran.
O pobre Dantés estava condenado.
Como o Sr. de Saint-Méran lhe prometera, Villefort encontrou a marquesa e Renée no gabinete. Ao ver Renée, o jovem estremeceu, pois julgou que ela lhe fosse pedir de novo a liberdade de Dantés. Mas, ai de nós, devemos confessá-lo para vergonha do nosso egoísmo, a linda moça estava preocupada com uma coisa: a partida de Villefort. Amava Villefort e Villefort partia no momento de se tornar seu marido. Villefort não podia dizer quando voltaria e Renée, em vez de lamentar Dantés, amaldiçoou o homem que devido ao seu crime a separava do amado.
E Mercedes?
A pobre Mercedes encontrara Fernand, que a seguira, à esquina da Rua de Loge, regressara aos Catalães e, com a morte na alma, desesperada, atirara-se para cima da cama. Fernand ajoelhara diante dessa cama e, apertando a mão gelada de Mercedes, que esta não se lembrava de retirar, cobria-lha de beijos ardentes que Mercedes nem sequer sentia. A jovem passou a noite assim. O candeeiro apagou-se quando o azeite se acabou, mas Mercedes não deu mais pela obscuridade do que dera pela luz e o dia voltou sem que desse por ele. A dor pusera-lhe diante dos olhos uma venda que só a deixava ver Edmond.
— Ah, está aí!... — disse por fim, virando-se para o lado de Fernand.
— Desde ontem que te não deixo — respondeu Fernand, com um suspiro doloroso.
O Sr. Morrel dera-se por vencido. Soubera que depois do seu interrogatório Dantés fora levado para a prisão. Correra então a casa de todos os seus amigos, apresentara-se em casa das pessoas de Marselha susceptíveis de possuírem influência, mas já se espalhara o boato de que o rapaz fora preso como agente bonapartista, e como nessa época os mais otimistas consideravam um sonho insensato qualquer tentativa de Napoleão para recuperar o trono, só encontrara por toda a parte frieza, medo ou repúdio e regressara a casa desesperado e reconhecendo que a situação era grave e ninguém podia fazer nada.
Pela sua parte, Caderousse estava deveras inquieto e atormentado. Em vez de sair, como fizera o Sr. Morrel, em vez de tentar qualquer coisa a favor de Dantés, embora, aliás, nada pudesse fazer por ele, fechara-se em casa com duas garrafas de cássis e procurara afogar a inquietação na embriaguez. Mas no estado de espírito em que se encontrava duas garrafas eram pouquíssimo para o porem inconsciente. Ficara, portanto, demasiado ébrio para ir buscar mais vinho e insuficientemente embriagado para que a embriaguez lhe extinguisse as recordações, apoiado nos cotovelos diante das duas garrafas vazias postas em cima de uma mesa coxa e vendo dançar, à luz da vela de pavio comprido, todos os espectros que Hoffmann[1] espalhou pelos seus manuscritos úmidos de ponche como uma poalha negra e fantástica.

[1] E.T.A. Hoffmann (1776-1822), foi um escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão. É um dos maiores nomes da literatura fantástica mundial.

Só Danglars não estava atormentado nem inquieto. Danglars estava até alegre, pois vingara-se de um inimigo e assegurara a bordo do Pharaon o lugar que temia perder. Danglars era um desses homens calculistas que nascem com uma pena atrás da orelha e um tinteiro no lugar do coração. Neste mundo tudo era para ele subtração ou multiplicação, e um número parecia-lhe muito mais precioso do que um homem, quando esse número podia aumentar o total que o homem podia diminuir. Portanto, Danglars deitara-se à hora habitual e dormia tranquilamente.
Depois de receber a carta do Sr. Salvieux, beijar Renée nas duas faces, beijar a mão da Sra. de Saint-Méran e apertar a do marquês, Villefort corria pela Estrada de Aix.
O velho Dantés morria de dor e inquietação.
Quanto a Edmond, sabemos o que lhe aconteceu.





continua...




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