quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 21


XXI

A ILHA DE TIBOULEN




A
pesar de aturdido e quase asfixiado, Dantés teve, no entanto a presença de espírito de conter a respiração, e como segurava na mão direita, visto como já dissemos estar preparado para todas as eventualidades, a faca que herdara de Faria, esventrou rapidamente o saco e tirou um braço e depois a cabeça. No entanto, apesar dos seus movimentos para levantar o pelouro, continuou a sentir-se arrastado. Então, curvou-se, procurou a corda que lhe amarrava as pernas e, num esforço supremo, cortou-a precisamente no momento em que sufocava. Em seguida, com um vigoroso golpe de pés, subiu livre à superfície do mar, enquanto o pelouro arrastava para profundezas desconhecidas o tecido grosseiro que por pouco não se transformara na sua mortalha.
Dantés demorou-se na superfície apenas o tempo indispensável para respirar antes de mergulhar uma segunda vez. Porque a primeira precaução que devia tomar era evitar que o vissem.
Quando reapareceu pela segunda vez encontrava-se já a cinqüenta passos, pelo menos do local da queda. Viu por cima da cabeça um céu negro e tempestuoso, à superfície do qual o vento varria algumas nuvens rápidas. Por vezes descobria uma pontinha de azul realçada por uma estrela. Diante de si estendia-se a superfície sombria e murmurante, cujas vagas começavam a aumentar como à aproximação de uma tempestade, ao passo que atrás de si, mais negro do que o mar, mais negro do que o céu, se erguia como um fantasma ameaçador o gigante de granito, cuja extremidade sombria parecia um braço estendido para voltar a agarrar a sua presa. Na rocha mais alta estava uma lanterna que iluminava duas sombras.
Pareceu-lhe que essas duas sombras se inclinavam para o mar com inquietação. De fato, aqueles estranhos fogueiros deviam ter ouvido o grito que soltara ao atravessar o espaço. Dantés voltou, portanto a mergulhar e fez um trajeto bastante longo entre duas águas. Esta manobra era-lhe outrora familiar e atraia habitualmente à sua volta, na enseada do Pharo, numerosos admiradores, os quais o tinham proclamado muitas vezes o mais hábil nadador de Marselha, quando tornou à superfície do mar, a lanterna desaparecera.
Precisava se orientar. De todas as ilhas que rodeavam o Castelo d’If , Ratonneau e Pommêgue eram as mais próximas. Mas Ratonneau e Pommêgue eram habitadas e o mesmo acontecia com a ilhazinha de Daume. As ilhas mais seguras eram, portanto as de Tiboulen e Lemaire, mas as ilhas de Tibouien e Lemaire ficavam a uma légua do Castelo d’If . Dantés nem por isso desistiu de alcançar uma dessas ilhas. Mas como encontrá-las no meio da noite que se adensava a cada instante à sua volta?
Nesse momento, viu brilhar como uma estrela o farol de Planier.
Dirigindo-se em linha reta para o farol, deixaria a Ilha de Tiboulen um pouco à esquerda; derivando, portanto um bocadinho para a esquerda, deveria encontrar essa ilha no seu caminho. Mas, como já dissemos, ia pelo menos uma légua do Castelo d’If a Tiboulen.
Muitas vezes, na prisão, Faria repetia ao rapaz, ao vê-lo abatido e preguiçoso: “Dantés, não se entregue a esse amolecimento. Se afogará se tentar fugir e não tiver os músculos bem treinados”.
Através das ondas pesadas e salgadas estas palavras vieram soar aos ouvidos de Dantés. Apressara-se então a vir à superfície e a fender as vagas para ver se efetivamente não perdera as forças. Verificou com alegria que a sua inação forçada lhe não roubara nada da sua pujança e da sua agilidade e sentiu que continuava a dominar o elemento onde toda a infância brincara.
De resto o medo, esse rápido perseguidor, duplicava o vigor de Dantés. Inclinado sobre a crista das ondas, escutava se algum rumor lhe chegava aos ouvidos. Todas as vezes que se erguia na extremidade de uma vaga, o seu olhar rápido abarcava o horizonte visível e procurava penetrar na espessa escuridão. Cada onda um pouco mais alta do que as outras parecia-lhe um barco em sua perseguição, e então redobrava de esforços, que o afastavam sem dúvida, mas cuja repetição rapidamente lhe esgotaria as forças.
Continuava, porém, a nadar, embora o castelo terrível estivesse já um pouco diluído no vapor noturno. Porque apesar de o não distinguir, não deixava de senti-lo constantemente.
Passou-se uma hora durante a qual Dantés, exaltado pelo sentimento da liberdade que invadira toda a sua pessoa, continuou a fender as vagas na direção que se marcara.
“Vejamos”, dizia para consigo, “Há perto de uma hora que nado, mas como o vento me é contrário devo ter perdido um quarto da minha rapidez. No entanto, a menos que me tenha enganado no rumo, já não devo estar longe de Tiboulen... mas se me enganei?”
Um arrepio percorreu todo o corpo do nadador. Tentou deitar-se de prancha para descansar; mas o mar era cada vez mais forte e não tardou a compreender que esse meio de recuperar forças, com o qual contara, era impossível.
“Pronto, seja!”, pensou. “Irei até ao fim, até os meus braços se cansarem, até às cãibras me invadirem o corpo, e depois me deixarei ir ao fundo!”
E desatou a nadar com a energia e a velocidade do desespero.
De súbito, pareceu-lhe que o céu, já de si tão escuro, se tornava ainda mais negro, que uma nuvem espessa, pesada, compacta, descia na sua direção. Ao mesmo tempo sentiu uma dor violenta num joelho. A imaginação, com a sua incalculável velocidade, disse-lhe então que se tratava do choque de uma bala e que ia ouvir imediatamente a explosão do tiro de espingarda. Mas a explosão não soou. Dantés estendeu a mão e sentiu uma resistência, encolheu a outra perna e tocou em terra. Descobriu então qual era o objeto que tomara por uma nuvem.
A vinte passos de si erguia-se uma massa de rochedos estranhos, que se tomaria por uma lareira imensa petrificada no momento da sua mais ardente combustão: era a Ilha de Tiboulen.
Dantés levantou-se, deu alguns passos em frente e deitou-se, agradecendo a Deus, naquelas pontas de granito que lhe pareceram naquela altura mais macias do que jamais lhe parecera o leito mais macio. Depois, apesar do vento, apesar da tempestade, apesar da chuva que principiava a cair, quebrado de fadiga como estava, adormeceu, mergulhou nesse sono delicioso do homem que tem o corpo entorpecido, mas cuja alma vela com a consciência de uma felicidade inesperada.
Uma hora depois, Dantés acordou ao som de um enorme trovão. A tempestade desencadeara-se no espaço e fustigava o ar com o seu chicote deslumbrante. De vez em quando, um relâmpago descia do céu como uma serpente de fogo e iluminava as vagas e as nuvens que rolavam ao encontro umas das outras como as vagas de um imenso caos.
Com o seu olho de marinheiro, Dantés não se enganara: abordara a primeira das duas ilhas, que era efetivamente a de Tiboulen. Sabia que era escalvada, deserta e sem possibilidade de oferecer o mais pequeno asilo; mas quando a tempestade se acalmasse voltaria a fazer-se ao mar e alcançaria a nado a Ilha de Lemaire, também árida, mas mais ampla, e conseqüentemente mais hospitaleira.
Uma rocha inclinada ofereceu-lhe abrigo momentâneo. Dantés refugiou-se debaixo dela e quase imediatamente a tempestade rebentou em todo o seu furor.
Edmond sentia tremer a rocha sob a qual se abrigava. As vagas quebravam-se contra a base da gigantesca pirâmide e ricocheteavam até ele. Por mais em segurança que estivesse, encontrava-se no centro daquele ruído profundo, no meio daqueles deslumbramentos fulgurantes, dominado por uma espécie de vertigem. Afigurava-se-lhe que a ilha tremia debaixo dele e que de um momento para o outro, como um navio ancorado, quebraria as amarras e seria arrastada para o meio do imenso turbilhão.
Lembrou-se então que não comia havia vinte e quatro horas: tinha fome e sede.
Dantés estendeu as mãos e a cabeça e bebeu a água da tempestade na cavidade de uma rocha. Quando ia se levantar, um relâmpago que pareceu fender o céu até junto do trono deslumbrante de Deus iluminou o espaço.
A luz desse relâmpago, entre a Ilha de Lemaire e o cabo Croisille, a um quarto de légua de distância, Dantés viu aparecer, como um espectro deslizando do alto de uma vaga para o abismo, um barquito de pesca arrastado simultaneamente pela tempestade e pelas ondas. Um segundo mais tarde, na crista doutra vaga, o fantasma reapareceu e aproximou-se com assustadora rapidez. Dantés; quis gritar, procurou qualquer trapo que pudesse agitar no ar para lhes avisar que iam se despedaçar, mas eles próprios viam-no perfeitamente. À luz doutro relâmpago o rapaz viu quatro homens agarrados aos mastros e aos estais; um quinto mantinha-se agarrado à barra do leme quebrado. Aqueles homens que via e que o viam, sem dúvida, soltavam gritos desesperados, trazidos pelo vento sibilante, que lhe ferira o ouvido. No cimo do mastro, torcido como uma cana, batia no ar, em pancadas precipitadas, uma vela em farrapos. De súbito, as cordas que ainda a prendiam quebraram-se e ela desapareceu, arrebatada para as sombrias profundezas do céu, semelhante a essas grandes aves brancas que se desenham sobre nuvens negras.
Ao mesmo tempo, ouviu-se um estalido medonho e gritos de agonia chegaram até Dantés. Agarrado como uma esfinge ao seu rochedo, donde mergulhava no abismo, um novo relâmpago mostrou-se o barquito quebrado e no meio dos destroços cabeças de rostos desesperados e braços estendidos para o céu.
Depois, tudo desapareceu na noite; o terrível espetáculo tivera a duração de um relâmpago.
Dantés precipitou-se pelo declive deslizante dos rochedos, com risco de cair ele próprio ao mar. Olhou e escutou, mas não ouviu nem viu mais nada; tinham acabado os gritos e os esforços humanos. Só a tempestade, essa grande obra de Deus, continuava a rugir com os ventos e a espumar com as vagas.
Pouco a pouco o vento amainou e o céu cobriu-se para ocidente de grossas nuvens cinzentas e por assim dizer, desbotadas pela tempestade. O azul reapareceu com as estrelas mais cintilantes do que nunca. Em breve, para as bandas do leste, uma comprida faixa avermelhada desenhou no horizonte ondulações de um azul-escuro. As vagas saltaram, uma claridade súbita percorreu-lhes as cristas e transformou as suas franjas espumosas em crinas de ouro.
Nascia o dia.
Dantés ficou imóvel e mudo diante do grandioso espetáculo, como se o visse pela primeira vez. De fato esquecera-o desde que entrara no Castelo d’If . Virou-se para a fortaleza e interrogou simultaneamente com um longo olhar circular a terra e o mar.
O sombrio edifício saia do seio das vagas com a majestade imponente das coisas horríveis, que parecem ao mesmo tempo vigiar e comandar.
Deviam ser cinco horas da manhã. O mar continuava a acalmar-se.
“Dentro de duas ou três horas”, pensou Edmond, “O carcereiro entrará na minha cela, encontrará o cadáver do meu pobre amigo, o reconhecerá, me procurará em vão e dará o alarme. Então, descobrirão o buraco, a galeria. Interrogarão os homens que me lançaram ao mar e que devem ter ouvido o grito que soltei. Ato contínuo, barcos cheios de soldados armados correrão atrás do pobre fugitivo, que se sabe perfeitamente não estar longe. O canhão avisará toda a costa de que ninguém deve dar asilo a um homem que seja encontrado a vaguear, nu e faminto. Os espiões e os alguazis de Marselha serão prevenidos e baterão a costa enquanto o governador do Castelo d’If mandará bater o mar. Então, perseguido no mar e cercado por terra, que farei? Tenho fome, tenho frio, perdi até a faca salvadora, que abandonei porque me incomodava para nadar. Estou à mercê do primeiro camponês que queira ganhar vinte francos entregando-me. Não tenho mais forças, nem idéias, nem resolução. Oh meu Deus, meu Deus, vede se já sofri o bastante e se podeis fazer por mim mais do que eu posso fazer por mim próprio!”
No momento em que Edmond, numa espécie de delírio ocasionado pelo esgotamento das suas energias e pelo vazio do seu cérebro, proferia, ansiosamente virado para o Castelo d’If, esta prece ardente, viu aparecer na extremidade da Ilha de Pommégue, com a sua vela latina desenhada no horizonte e semelhante a uma gaivota que voa rasando a água, um naviozinho que o olhar de um marinheiro só podia reconhecer como uma tartana genovesa na linha ainda pouco clara do mar.
A embarcação vinha do porto de Marselha e dirigia-se para o largo impelindo a espuma cintilante diante da proa aguda que abria caminho mais fácil aos seus flancos arredondados.
— Oh! — exclamou Edmond — E dizer que dentro de meia-hora alcançaria aquele navio se não receasse ser interrogado, reconhecido como fugitivo e reconduzido a Marselha! Que fazer? Que dizer? Que história inventar que possa iludi-los? Estes homens são todos contrabandistas, meio piratas. A pretexto de fazerem cabotagem, saqueiam a costa. Prefeririam vender-me a praticar uma boa ação estéril.
“Esperemos”.
— Mas esperar é impossível! Morro de fome; dentro de poucas horas as fracas energias que me restam terão desaparecido. De resto, a hora da visita aproxima-se. O alarme ainda não foi dado talvez por não desconfiarem de nada. Posso fazer-me passar por um dos tripulantes do barquito que naufragou esta noite. A história não deixará de ter a sua verosimilhança. Ninguém vir contradizer-me, pois afogaram-se todos. Vamos.
Depois destas palavras, Dantés olhou para o local onde o barquito naufragara e estremeceu. O barrete frígio de um dos náufragos ficara preso na aresta de um rochedo e pertíssimo dali flutuavam alguns destroços da quilha, traves inertes que o mar impelia contra a base da ilha, onde batiam como impotentes aríetes.
Dantés decidiu-se num instante. Deitou-se ao mar, nadou para o barrete, colocou-o na cabeça, agarrou numa das traves e nadou de forma a cortar a linha de rumo que devia seguir o navio.
— Agora, estou salvo — murmurou.
E esta convicção deu-lhe forças.
Não tardou a ver a tartana que, com o vento quase de proa, bolinava entre o Castelo d’If e a torre de Planier. Por instantes, Dantés receou que, em vez de passar perto da costa, o naviozinho ganhasse ao largo, como faria se, por exemplo, o seu destino fosse a Córsega ou a Sardenha. Mas da forma que manobrava o nadador não tardou a descobrir que desejava passar, como era hábito dos navios que demandavam a Itália, entre a ilha de Jaros e a Ilha de Calaseraigne.
Entretanto, o navio e o nadador aproximavam-se insensivelmente um do outro. Numa das suas bordadas, a embarcação aproximou-se mesmo cerca de um quarto de légua de Dantés. Este ergueu-se então na água e agitou o barrete em sinal de quem pede socorro. Mas ninguém o viu do navio, que virou de bordo e recomeçou a bolinar. Dantés pensou em chamar, mas calculou a olho a distância e compreendeu que a sua voz não chegaria ao navio: primeiro seria levada e abafada pela brisa do mar e pelo ruído das ondas.
Foi então que se felicitou pela precaução que tomara de se estender numa trave. Enfraquecido como estava, talvez não conseguisse agüentar-se à tona da água até alcançar a tartana. E, com toda a certeza, se a tartana, o que era possível, passasse sem o ver, não teria forças para regressar à costa.
Embora estivesse mais ou menos certo da rota que seguia o navio, Dantés acompanhou-o com a vista com certa ansiedade até ao momento em que o viu mudar, de rumo e dirigir-se ao seu encontro. Então, lançou-se também ao encontro do navio. Mas antes de se alcançarem mutuamente, a embarcação começou a virar de bordo.
Num esforço supremo, Dantés ergueu-se imediatamente quase de pé na água, agitou o barrete e soltou um desses gritos arrepiantes como os dos marinheiros em perigo e que parecem lamentos de qualquer gênio do mar.
Desta vez viram-no e ouviram-no. A tartana interrompeu a sua manobra e aproou para o seu lado. Ao mesmo tempo, Dantés viu que se preparavam para lançar uma chalupa ao mar. Pouco depois a chalupa, tripulada por dois homens, dirigiu-se ao seu encontro, batendo o mar com o seu remo duplo. Dantés deixou então deslizar a trave, de que pensava já não necessitar, e nadou vigorosamente para poupar metade do caminho aos que vinham ao seu encontro.
O nadador contara, porém com forças quase esgotadas. Foi então que teve consciência de como lhe fora útil o bocado de madeira que flutuava já, inerte, a cem passos de si. Os braços começavam a ficar-lhe dormentes e as pernas tinham perdido a flexibilidade. Os seus movimentos eram rígidos e sacudidos e tinha o peito arquejante. Soltou um grande grito, os dois remadores redobraram de energia e um deles gritou-lhe em italiano:
— Coragem!
A palavra chegou-lhe aos ouvidos no momento em que uma vaga que já não tivera força para transpor lhe passava por cima da cabeça e o cobria de espuma.
Reapareceu batendo o mar com os movimentos desencontrados e desesperados de um homem prestes a afogar-se, soltou terceiro grito e sentiu-se mergulhar no mar como se ainda tivesse agarrado aos pés o pelouro mortal.
A água passou-lhe por cima da cabeça e através dela viu o céu lívido com manchas negras. Um esforço violento trouxe-o à superfície. Pareceu-lhe então que o agarravam pelos cabelos.
Depois, não viu nem ouviu mais nada; desmaiara. Quando reabriu os olhos, Dantés encontrou-se na coberta da tartana, que continuava a sua rota. O seu primeiro olhar foi para verificar que direção seguia: continuava a afastar-se do Castelo d’If .
Dantés estava tão exausto que a exclamação de alegria que soltou foi tomada por um gemido de dor.
Como dissemos, estava deitado na coberta e um marinheiro esfregava-lhe os membros com um cobertor de lã. Outro, que reconheceu ser o que lhe gritara “Coragem!”, introduzia-lhe o gargalo de uma garrafa empalhada na boca. Um terceiro, velho marinheiro que era ao mesmo tempo o piloto e o patrão, olhava-o com o sentimento de compaixão egoísta que experimentam em geral os homens acerca de um infortúnio a que escaparam na véspera e que os pode atingir no dia seguinte.
Algumas gotas do rum que continha a garrafa reanimaram o coração desfalecido do jovem ao mesmo tempo que as fricções que o marinheiro, de joelhos diante dele, continuava a prodigalizar-lhe com o cobertor de lã lhe restituíam a elasticidade aos membros.
— Quem é você? — perguntou-lhe em mau francês o patrão.
— Sou um marinheiro maltês — respondeu-lhe Dantés em mau italiano — Vínhamos de Siracusa, carregados de vinho e panolina. A borrasca desta noite surpreendeu-nos no cabo Morgion e despedaçamo-nos contra aqueles rochedos que vê ali adiante.
— De onde veio?
— Desses rochedos, onde tive a sorte de me agarrar, enquanto o nosso pobre comandante quebrava neles a cabeça. Os nossos três outros companheiros afogaram-se. Creio que sou o único sobrevivente. Vi o seu navio e receando ter de esperar muito tempo naquela ilha isolada e deserta arrisquei-me num destroço do nosso navio a tentar chegar até aqui. Obrigado — continuou Dantés — Salvaram-me a vida. Estava perdido quando um dos seus marinheiros me agarrou pelos cabelos.
— Fui eu — disse um marinheiro de rosto franco e aberto, emoldurado por longas suíças pretas — E foi mesmo a tempo, pois você já ia para o fundo.
— É verdade — reconheceu Dantés, estendendo-lhe a mão — É verdade, meu amigo, e agradeço-lhe pela segunda vez.
— Confesso que quase hesitei — declarou o marinheiro — Com essa barba de seis polegadas de comprimento e esses cabelos de um pé, tinha mais o ar de um bandido do que um homem honesto.
Dantés recordou-se efetivamente de que desde que entrara no Castelo d’If nunca mais cortara o cabelo nem fizera a barba.
— Tem razão, mas trata-se de uma promessa que fiz a Nossa Senhora del Pie de la Grotta, num momento de perigo, de passar dez anos sem cortar o cabelo nem a barba. Hoje que expirava a promessa é que estive quase a morrer afogado. Que rico aniversário!
— E agora, que vamos fazer de você? — perguntou o patrão.
— Bom, o que quiser! — respondeu Dantés — O falucho em que andava embarcado naufragou e o comandante morreu. Como vê, escapei à mesma sorte, mas completamente nu. O que vale é que sou bom marinheiro. Deixe-me no primeiro porto em que tocar e arranjarei maneira de embarcar num navio mercante.
— Conhece o Mediterrâneo?
— Navego nele desde a infância.
— E os bons ancoradouros?
— Há poucos portos, mesmos os mais difíceis, em que não possa entrar e sair de olhos fechados.
— Nesse caso, patrão, se o camarada diz a verdade, que o impede de ficar conosco? — perguntou o marinheiro que gritara “Coragem!” a Dantés.
— Sim, se diz a verdade... — respondeu o patrão, com ar de dúvida — Mas no estado em que se encontra o pobre diabo, todos prometem muito na mira de obter o que puder.
— Darei mais do que prometo — perguntou Dantés.
— Oh, oh! — exclamou o patrão, rindo — Veremos isso.
— Quando quiser — acrescentou Dantés, levantando-se — Para onde vão?
— Para Liorne.
— Bom, nesse caso, em vez de andarem aos esses, o que lhes faz perder um tempo precioso, por que não cerram simplesmente o vento de bolina?
— Porque iríamos cair direitinhos na Ilha de Rion.
— Passariam, pelo contrário, a mais de vinte braças...
— Sendo assim — disse o patrão — Pegue no leme e mostre-nos a sua ciência.
O jovem foi sentar-se ao leme e assegurou-se por meio de uma leve pressão que o navio era obediente. E vendo que sem ser de primeira categoria não se recusava, comandou:
— Aos braços e às escotas!
Os quatro marinheiros que formavam a tripulação correram para os seus postos, enquanto o patrão os observava.
— Icem! — continuou Dantés.
Os marinheiros obedeceram com bastante precisão.
— E agora, amarrem bem!
Esta ordem foi executada como as duas primeiras e o naviozinho, em vez de continuar a bolinar, começou a rumar para a Ilha de Rion, junto da qual passou, como predissera Dantés, deixando-a a estibordo, a uma vintena de braças.
— Bravo! — gritou o patrão.
— Bravo! — repetiram os marinheiros.
E todos olharam com admiração para aquele homem cujo olhar recuperara a inteligência e o corpo um vigor que se estaria longe de supor nele.
— Como vê — disse Dantés, largando o leme — Poderei ser-lhes de alguma utilidade, pelo menos durante a viagem. Se não quiserem mais nada comigo em Liorne, pois bem, deixe-me lá. Prometo com os meus primeiros meses de soldo reembolsá-los da minha alimentação até lá e das roupas que me cederem.
— Está bem, está bem — disse o patrão — Poderemos entender-nos se for razoável.
— Um homem vale um homem — declarou Dantés — Dê-me o mesmo que dá aos camaradas e não se fala mais nisso.
— Não é justo — objetou o marinheiro que tirara Dantés do mar — Você sabe mais do que nós.
— Por que diabo se mete nisto? Diz-te porventura respeito, Jacopo? — ralhou o patrão — Cada um é livre de se contratar pelo salário que lhe convém.
— É justo — concordou Jacopo — Foi uma simples observação da minha parte.
— De acordo, mas faria muito melhor se emprestasse a este valente rapaz, que está todo nu, umas calças e uma blusa, se ainda tem algumas de reserva.
— Não — respondeu Jacopo — Mas tenho uma camisa e umas calças.
— É tudo de que preciso — declarou Dantés — Obrigado, amigo.
Jacopo deixou-se escorregar pela escotilha e voltou a subir pouco depois com as duas peças de roupa, que Dantés vestiu com indizível prazer.
— E agora, não precisa de mais nada? — perguntou o patrão.
— Um naco de pão e segunda golada desse excelente rum que já provei. Porque há muito tempo que não como nada.
Com efeito, havia quarenta e oito horas, aproximadamente. Trouxeram a Dantés um naco de pão e Jacopo estendeu-lhe a garrafa empalhada.
— Leme a bombordo! — gritou o patrão, virando-se para o timoneiro.
Dantés deitou uma olhadela para o mesmo lado, levando a garrafa à boca, mas a garrafa ficou a meio caminho.
— Olhem! — exclamou o patrão — Que se passa no Castelo d’If?
Com efeito, uma nuvenzinha branca, nuvem que já atraíra a atenção de Dantés, acabava de aparecer coroando as ameias do bastião sul do Castelo d’If. Um segundo mais tarde, o estampido de uma explosão longínqua veio morrer a bordo da tartana.
Os marinheiros ergueram a cabeça e entreolharam-se.
— Que significa aquilo? — perguntou o patrão.
— Deve ter fugido algum prisioneiro esta noite — informou Dantés — Por isso disparam o canhão de alarme.
O patrão deitou uma olhadela ao rapaz, que ao mesmo tempo que dizia estas palavras levava a garrafa à boca. Viu-o, porém, a saborear o licor que ela continha com tanta calma e satisfação que, se teve qualquer suspeita, essa suspeita apenas lhe atravessou o espírito e morreu imediatamente.
— Irra, este rum é tremendamente forte! — exclamou Dantés, enxugando com a manga da camisa a testa coberta de suor.
— Seja como for — murmurou o patrão olhando-o — Se é ele, tanto melhor, pois adquiri um excelente homem.
A pretexto de estar cansado, Dantés pediu que o deixassem sentar-se ao leme. O timoneiro, encantado por ser substituído nas suas funções, consultou o patrão com a vista, o qual lhe acenou com a cabeça que podia entregar o leme ao novo companheiro.
Assim colocado, Dantés pode ficar de olhos lixos para o lado de Marselha.
— A quantos do mês estamos hoje? — perguntou Dantés a Jacopo, que viera sentar-se junto dele, perdendo de vista o Castelo d’If .
— A 28 de Fevereiro — respondeu o interrogado.
— De que ano? — perguntou ainda Dantés.
— Como, de que ano?! Pergunta de que ano?
— Pergunto — insistiu o rapaz — Pergunto de que ano.
— Esqueceu-se do ano em que estamos?
— Que quer, apanhei tamanho susto esta noite que quase perdi a cabeça e fiquei com a memória toda embaralhada! Por isso lhe pergunto em 28 de Fevereiro de que ano estamos.
— Do ano de 1829 — respondeu Jacopo.
Havia catorze anos dia a dia, que Dantés fora preso. Entrara com dezenove anos no Castelo d’If e saíra com trinta e três. Passou-lhe pelos lábios um sorriso doloroso. Perguntou a si mesmo que teria sido feito de Mercedes durante aquele tempo, em que decerto o considerara morto.
Depois, brilhou-lhe nos olhos um relâmpago de ódio ao pensar nos três homens a quem devia tão longo e cruel cativeiro.
E renovou contra Danglars, Fernand e Villefort o juramento de implacável vingança que já pronunciara na prisão. E esse juramento já não era uma ameaça vã, pois naquele momento o melhor veleiro do Mediterrâneo não conseguiria apanhar a pequena tartana que singrava a todo o pano para Liorne.





 continua...



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