segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 29



XXIX

A CASA MORREL




Q
uem tivesse deixado Marselha alguns anos antes e conhecesse o interior da casa Morrel, teria encontrado uma grande mudança se regressasse e a visse na época a que chegamos. Em vez do ar de vida, abastança e felicidade que se exala, por assim dizer, de uma casa próspera; em vez de caras alegres mostrando-se por detrás das cortinas das janelas e de escriturários atarefados atravessando os corredores de pena atrás da orelha; em vez do pátio a abarrotar de fardos e cheio de gritos e risos dos carregadores, encontraria à primeira vista não sei quê de triste e de morto.
No corredor deserto e no pátio vazio, dos numerosos empregados que outrora enchiam os escritórios, só dois restavam: um era um rapaz de vinte e três ou vinte e quatro anos, chamado Emmanuel Raymond, que estava apaixonado pela filha de Morrel e que ficara e ficaria na casa fizessem o que fizessem os pais para o tirar de lá; o outro era um velho cobrador zarolho chamado Coclés, alcunha que lhe tinham posto os rapazes que povoavam outrora aquela grande colméia zumbidora, hoje quase desabitada, e que substituíra tão bem e tão completamente o seu verdadeiro nome que havia todas as probabilidades de nem sequer se virar se alguém o chamasse atualmente por esse nome.
Coclés permanecera ao serviço do Sr. Morrel, embora se tivesse verificado na situação do excelente homem uma mudança singular: subira ao mesmo tempo ao posto de tesoureiro e descera à categoria de criado. Mas nem por isso deixara de ser o mesmo Coclés, bom, paciente e dedicado, embora inflexível a respeito da aritmética, o único ponto em que não recearia enfrentar o mundo inteiro, mesmo o Sr. Morrel. Só conhecia a sua tábua de Pitágoras, que sabia na ponta da unha, fosse qual fosse a forma como lha virassem e o erro em que tentassem fazê-lo cair.
No meio da tristeza geral que invadira a casa Morrel, Coclés era o único que permanecia impassível. Mas que ninguém se engane a tal respeito: essa impassibilidade não era conseqüência de falta de amizade, mas sim, pelo contrário, de uma convicção inquebrantável. Como os ratos que, segundo dizem, abandonam pouco a pouco o navio antecipadamente, condenado pelo destino a perecer no mar, de maneira que esses hóspedes egoístas já o deixaram por completo no momento em que levanta ferro, também, como dissemos, toda a multidão de escriturários e empregados que ganhavam a vida em casa do armador tinham pouco a pouco abandonado o escritório e o armazém.
Ora, Coclés vira-os afastarem-se todos sem pensar sequer em averiguar o motivo da sua partida. Como dissemos, para Coclés tudo se resumia numa questão de números, e como, nos vinte anos que tinha de casa, sempre vira os pagamentos efetuarem-se pontualmente e com toda a regularidade, não admitia que essa regularidade se pudesse interromper e esses pagamentos suspender, tal como um moleiro que possui uma azenha alimentada pelas águas de uma ribeira caudalosa não admite que essa ribeira possa deixar de correr. Com efeito, até ali nada viera ainda desmentir a convicção de Coclés. No último fim de mês, os pagamentos tinham-se efetuado com rigorosa pontualidade. Coclés descobrira um erro de setenta cêntimos cometido pelo Sr. Morrel em seu prejuízo, e no mesmo dia restituíra os catorze soldos excedentes ao Sr. Morrel que, com um sorriso melancólico, os recebera e deixara cair numa gaveta quase vazia, dizendo:
— Obrigado, Coclés. Você é a pérola dos tesoureiros.
E Coclés retirara-se satisfeitíssimo, porque um elogio do Sr. Morrel, a pérola das pessoas honestas de Marselha, lisonjeava mais Coclés do que a gratificação de cinqüenta escudos.
Mas depois daquele fim de mês tão vitoriosamente concluído, o Sr. Morrel passara por momentos cruéis. Para fazer face a esse fim de mês, reunira todos os seus recursos, e ele próprio, temendo que a notícia da sua penúria se espalhasse em Marselha se o vissem recorrer a semelhantes extremos, fizera uma viagem à feira de Beaucaire para vender algumas jóias pertencentes à mulher e à filha e parte das suas pratas. Graças a esse sacrifício, tudo se passara ainda dessa vez com a maior honra para a Casa Morrel. Mas a caixa ficara completamente vazia. O crédito, assustado pelos boatos que corriam, retirara-se com seu egoísmo habitual, e para fazer face aos cem mil francos a reembolsar em 15 do mês corrente ao Sr. de Boville, bem como aos outros cem mil francos vencíveis em 15 do mês seguinte, o Sr. Morrel só podia contar, na realidade, com a esperança do regresso do Pharaon, de cuja partida soubera por um navio que levantara ferro ao mesmo tempo que ele chegara a bom porto.
Mas esse navio, vindo como o Pharaon de Calcutá, já chegara havia quinze dias, ao passo que do Pharaon não havia nenhuma notícia.
Foi neste estado de coisas que no dia seguinte àquele em que fechara com o Sr. de Boville o importante negócio a que nos referimos o enviado da Casa Thomson & French, de Roma, se apresentou em casa do Sr. Morrel.
Foi Emmanuel quem o recebeu. O rapaz, a quem cada novo rosto assustava, porque cada rosto novo anunciava um novo credor que, na sua preocupação, vinha atormentar o patrão, o rapaz, dizíamos, quis poupar a esse mesmo patrão os incômodos daquela visita e perguntou ao visitante o que pretendia. Mas o visitante declarou que não tinha nada a dizer ao Sr. Emmanuel e que era com o Sr. Morrel em pessoa que desejava falar. Emmanuel chamou, suspirando, Coclés. Coclés apareceu e o rapaz ordenou-lhe que acompanhasse o estrangeiro ao Sr. Morrel.
Coclés foi à frente e o estrangeiro seguiu-o.
Na escada encontraram-se com uma bonita moça de dezesseis a dezessete anos, que olhou o estrangeiro com inquietação. Coclés não notou tal expressão do rosto da jovem, que, no entanto pareceu não ter escapado ao estrangeiro.
— O Sr. Morrel está no seu gabinete, não está, Mademoiselle Julie? — perguntou o tesoureiro.
— Está... pelo menos creio que está — respondeu a moça, hesitando — Veja primeiro, Coclés, e se o meu pai lá estiver anuncie esse senhor.
— Anunciar-me seria inútil, menina — respondeu o inglês — O Sr. Morrel não conhece o meu nome. Este bom homem tem de dizer apenas que sou o chefe de escritório da firma Thomson & French, de Roma, com a qual a casa do senhor seu pai mantém relações.
A jovem empalideceu e continuou a descer, enquanto Coclés e o estrangeiro continuavam a subir. Ela entrou no escritório onde se encontrava Emmanuel e Coclés puxou de uma chave de que era possuidor, o que denotava a confiança que o patrão depositava nele, abriu a porta situada no canto do patamar do segundo andar, introduziu o estrangeiro numa antecâmara, abriu segunda porta que fechou atrás de si e, depois de ter deixado por um instante sozinho o enviado da Casa Thomson & French reapareceu e fez-lhe sinal de que podia entrar.
O inglês entrou. Encontrou o Sr. Morrel sentado a uma mesa, pálido perante as colunas assustadoras do registro onde estava inscrito o seu passivo.
Ao ver o estrangeiro, o Sr. Morrel fechou o registro, levantou-se e puxou uma cadeira. Depois, quando viu o estrangeiro sentar-se, sentou-se também.
Catorze anos tinham modificado muito o digno negociante, o qual contava trinta e seis anos no início desta história e estava agora prestes a chegar aos cinqüenta. Os cabelos tinham-lhe embranquecido e a sua testa estava sulcada de rugas de preocupação. Por último, o seu olhar, outrora tão firme e decidido, tornara-se vago e irresoluto e parecia recear constantemente ser forçado a deter-se numa idéia ou num homem.
O inglês olhou-o com um sentimento de curiosidade evidentemente laivada de interesse.
— Senhor — disse Morrel, a quem tal exame pareceu aumentar o mal-estar — Pediu para me falar?
— Pedi, senhor. Já sabe da parte de quem venho, não é verdade?
— Da parte da Casa Thomson & French. Foi pelo menos o que me disse o meu tesoureiro.
— E disse-lhe a verdade, senhor. A Casa Thomson & French tem de pagar na França, durante o corrente mês e no próximo, trezentos ou quatrocentos mil francos e, conhecedora da rigorosa pontualidade da Casa Morrel, reuniu todo o papel que encontrou com a sua assinatura e encarregou-me de, à medida que esse papel se vencer, o cobrar e dar destino a tais fundos.
Morrel soltou um profundo suspiro e passou a mão pela testa coberta de suor.
— Portanto, senhor, possui letras assinadas por mim? — perguntou Morrel.
— É verdade, senhor, e de montante bastante considerável.
— Quanto? — perguntou Morrel em voz que procurara tornar firme.
— Vejamos primeiro — atalhou o inglês, tirando um maço de papéis da algibeira — Uma transferência de duzentos mil francos feita para a nossa casa pelo Sr. de Boville, o inspetor das prisões. Reconhece dever esta importância ao Sr. de Boville?
— Reconheço, senhor. Trata-se de um investimento feito por ele em minha casa, a quatro e meio por cento, vai para cinco anos.
— E que o senhor deve reembolsar...
— Metade em 15 deste mês e metade em 15 do mês próximo.
— Exato. Depois temos aqui trinta e dois mil e quinhentos francos, a liquidar em fins do mês corrente. Trata-se de letras assinadas pelo senhor e endossadas à nossa ordem por terceiros portadores.
— Também reconheço esses débitos — declarou Morrel, a quem o rubor da vergonha subia à cara ao pensar que pela primeira vez na sua vida talvez não pudesse honrar a sua assinatura — É tudo?
— Não, senhor. Tenho ainda para o fim do mês próximo estes valores que nos foram cedidos pelas casas Pascal e Wild & Turner, de Marselha, no montante de cerca de cinqüenta e cinco mil francos. Ao todo, duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos.
É impossível de descrever o que sofria o pobre Morrel durante esta enumeração.
— Duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos — repetiu maquinalmente.
— Sim, senhor — respondeu o inglês — Ora — continuou depois de um momento de silêncio — Não lhe ocultarei, Sr. Morrel, que sem deixar de ter em conta a sua probidade, até agora sem mácula, é voz pública em Marselha que o senhor não está em condições de satisfazer os seus compromissos.
Perante esta declaração quase brutal, Morrel empalideceu horrivelmente.
— Senhor — perguntou — Até agora, e há mais de vinte e quatro anos que recebi esta casa das mãos do meu pai, que ele próprio geriu durante trinta e cinco anos, até agora nenhuma letra assinada por Morrel & Filhos foi apresentada à cobrança sem ser paga.
— Sim, sei isso — respondeu o inglês — Mas fale francamente, de homem de honra para homem de honra: pagaria estas com a mesma pontualidade?
Morrel estremeceu e olhou aquele que lhe falava, assim, com mais convicção do que ele.
— As perguntas feitas com essa franqueza deve-se dar uma resposta franca. Sim, senhor, pagarei se, como espero, o meu navio chegar a bom porto, pois a sua chegada proporcionar-me o crédito que os sucessivos acidentes de que tenho sido vítima me privaram. Mas se por desgraça o Pharaon, o último recurso com que conto, não chegar...
As lágrimas subiram aos olhos do pobre armador.
— Se esse último recurso lhe faltasse...? — insistiu o seu interlocutor.
— Bom — continuou Morrel — É cruel dizê-lo, senhor... mas como já estou habituado à desgraça, é mister que me habitue também à vergonha. Nesse caso, creio que seria obrigado a suspender os meus pagamentos.
— Não tem amigos que o possam ajudar nessa circunstância?
Morrel sorriu tristemente.
— Nos negócios não há amigos, senhor, bem sabe, há apenas correspondentes.
— É verdade — murmurou o inglês — Portanto, é essa a sua única esperança?
— A única.
— A derradeira?
— A derradeira.
— De forma que se essa esperança falhar...
— Estarei perdido, senhor, completamente perdido.
— Quando vinha para cá havia um navio a entrar no porto.
— Bem sei, senhor. Um rapaz que permaneceu fiel à minha pouca sorte passa parte do seu tempo num mirante situado no cimo da casa, na esperança de me vir anunciar em primeira mão uma boa notícia. Soube por ele da entrada desse navio.
— E não é o seu?
— Não, é um navio bordelês, a Gironde. Também vem da Índia, mas não é o meu.
— Talvez tenha avistado o Pharaon e lhe traga alguma notícia.
— Confesso-lhe, senhor, que receio quase tanto ter noticias do meu três mastros como permanecer na incerteza. A incerteza ainda é esperança.
Depois, o Sr. Morrel acrescentou com voz abalada:
— Este atraso não é natural. O Pharaon partiu de Calcutá em 5 de Fevereiro; há mais de um mês que deveria estar aqui.
— Que é isto? — perguntou o inglês, apurando o ouvido — Que significa este barulho?
— Oh, meu Deus, meu Deus! — exclamou Morrel, empalidecendo — Que mais haverá ainda?
De fato, ouvia-se um grande barulho na escada: idas e vindas e até se ouviu um grito de dor. Morrel levantou-se para ir abrir a porta, mas as forças faltaram-lhe e voltou a cair na poltrona. Os dois homens ficaram diante um do outro. Morrel tremendo como vara verde, o estrangeiro olhando-o com expressão de profunda compaixão. O barulho cessara, mas se diria que Morrel esperava qualquer coisa. Aquele baralho tinha uma causa e devia ter um efeito. Pareceu ao estrangeiro que alguém subia suavemente a escada e que os passos de várias pessoas se detinham no patamar. Foi introduzida uma chave na fechadura da primeira porta e ouviu-se essa porta chiar nos gonzos.
— Só duas pessoas têm a chave daquela porta — murmurou Morrel — Coclés e Julie.
Ao mesmo tempo a segunda porta abriu-se e viu-se aparecer a moça, pálida e lavada em lágrimas. Morrel ergueu-se muito trêmulo e apoiou-se no braço da poltrona, pois de contrário não conseguiria ter-se de pé. Queria interrogar, mas não tinha voz.
— Oh, meu pai! — exclamou a jovem, juntando as mãos — Perdoe à sua filha ser a portadora de uma má notícia!
Morrel empalideceu horrivelmente. Julie lançou-se-lhe nos braços.
— Oh, meu pai, meu pai, coragem!
— Assim, o Pharaon naufragou? — perguntou Morrel em voz estrangulada.
A moça não respondeu, mas fez um sinal afirmativo com a cabeça encostada ao peito do pai.
— E a tripulação? — indagou Morrel.
— Salva — respondeu a jovem — Foi salva pelo navio bordelês que acaba de entrar no porto.
Morrel levantou ambas as mãos ao céu com uma expressão de resignação e reconhecimento sublime.
— Obrigado, meu Deus! — disse Morrel — Ao menos só a mim feris.
Por mais fleumático que fosse o inglês, nem por isso uma lágrima deixou de lhe umedecer as pálpebras.
— Entrem — disse Morrel — Entrem, pois presumo que estão todos à porta.
Com efeito, mal pronunciou estas palavras, a Sra. Morrel entrou soluçando. Emmanuel seguia-a. Ao fundo da antecâmara viam-se as figuras rudes de sete ou oito marinheiros seminus. Ao ver aqueles homens, o inglês estremeceu. Deu um passo em frente como que para se lhos dirigir, mas conteve-se e ocultou-se, pelo contrário, no canto mais escuro e afastado do gabinete.
A Sra. Morrel foi sentar-se na poltrona e tomou uma das mãos do marido nas suas, enquanto Julie continuava encostada ao peito do pai. Emmanuel ficara a meio caminho do gabinete e parecia servir de ligação entre o grupo da família Morrel e os marinheiros que se encontravam à porta.
— Como foi que aconteceu? — perguntou Morrel.
— Aproxime-se, Penelon — disse o rapaz — E conte como as coisas se passaram.
Um velho marinheiro bronzeado pelo sol do equador, adiantou-se rodando nas mãos os restos de um chapéu.
— Bom dia, Sr. Morrel — disse, como se tivesse saído de Marselha na véspera e chegasse de Aix ou Toulon.
— Bom dia, meu amigo — respondeu o armador, sem poder deixar de sorrir apesar das lágrimas — Mas onde está o comandante?
— O comandante, Sr. Morrel, ficou doente em Palma. Mas se Deus quiser não será nada e o verá chegar um dia destes de tão boa saúde como o senhor ou eu.
— Está bem... agora fale, Penelon — pediu o Sr. Morrel.
Penelon passou o tabaco de mascar do lado direito para o lado esquerdo da boca, pôs a mão diante desta, virou-se, lançou na antecâmara um longo jato de saliva negra, adiantou um pé e disse, gingando-se:
— No momento, Sr. Morrel, encontrávamo-nos qualquer coisa como entre o cabo Branco e o cabo Bojador, navegando com uma linda brisa de sul-sudoeste, depois de oito dias de calmaria, quando o comandante Gaumard se aproximou de mim, que ia ao leme, e me disse:
“— Tio Penelon, que lhe parecem aquelas nuvens que se erguem lá adiante no horizonte?
— Eu estava precisamente naquele momento a olhar para elas.
“— Que me parecem, comandante? Parece-me que sobem um bocado mais depressa do que têm direito e que são mais negras do que conviria a nuvens que não tivessem más intenções.
“— É também a minha opinião — disse o comandante — E vou já tomar as minhas precauções. Temos demasiadas velas para o vento que não tarda a soprar... Oh? Eh? Preparar para ferrar os sobrejoanetes e içar baixo a giba!
— Era tempo. Ainda a ordem não estava cumprida e já o vento estava sobre nós e o navio ficava de querena.
“— Demônio, ainda temos demasiado pano! — disse o comandante — Preparar para ferrar a vela grande.
— Cinco minutos depois a vela grande estava ferrada e navegamos com a mezena, as gáveas e os joanetes.
“— Que é isso, Tio Penelon, porque está a abanar a cabeça — perguntou-me o comandante.
“— No seu lugar não ficaria por aí...
“— Creio que tem razão, velho, vamos ter vendaval — disse ele.
“— Com a breca, comandante — respondi-lhe eu — Quem comprasse o que se passa lá adiante por um vendaval faria um rico negócio? Trata-se de uma tempestade de se lhe tirar o chapéu ou eu já não percebo nada disto!
— Quer dizer, via-se vir o vento como se vê vir a poeira em Montredon. Felizmente tinha diante de si um homem que o conhecia.
“— Preparar para colocar dois rizes nas gáveas! — gritou o comandante — Largar bolinas, bracear ao vento, amainar as gáveas e carregar as talhas sobre as vergas!
— Isso não era o suficiente nessas paragens — interveio o inglês — Eu teria colocado quatro rizes e ter-me—ia desembaraçado da mezena.
Esta voz firme, sonora e inesperada fez estremecer toda a gente. Penelon pôs a mão em pala sobre os olhos e olhou aquele que criticava com tanta arrogância a manobra do seu comandante.
— Fizemos ainda melhor do que isso, senhor — perguntou o velho marinheiro com certo respeito — Ferramos a brigantina e metemos o leme ao vento para correr diante da tempestade. Dez minutos depois, ferramos as gáveas; e deixamo-nos ir em árvore seca.
— O navio era muito velho para arriscar isso — observou o inglês.
— Exatamente! Foi o que nos perdeu. Depois de sermos sacudidos durante doze horas como se o Diabo tivesse tomado conta de nós, o navio abriu água.
“— Penelon — disse-me o comandante — Parece-me que nos afundamos, meu velho. Dê-me o leme e desce ao porão.
— Dei-lhe o leme e desci. Havia já três pés de água. Tornei a subir, gritando: “As bombas! As bombas!”. Mas era já demasiado tarde. Mesmo assim deitamos mãos à obra, mas creio que quanto mais água tirávamos mais água havia.
“— Com a breca — disse ao cabo de quatro horas de trabalho — Já que nos afundamos deixemo-nos afundar, pois só se morre uma vez!
“— É assim que dá o exemplo, mestre Penelon? — disse o comandante — Pois já vai ver...
E foi buscar um par de pistolas no meu camarote.
“— Estouro os miolos do primeiro que largar a bomba! — gritou.
— Muito bem — disse o inglês.
— Não há nada para dar coragem como as boas razões — continuou o marinheiro — Tanto mais que entretanto o tempo melhorara e o vento amainara. Mas também não era menos verdade que a água continuava a subir, não muito, talvez duas polegadas por hora, mas enfim, subia. Duas polegadas por hora, veja o senhor, parece coisa de nada, mas em doze horas são pelo menos vinte e quatro polegadas e vinte e quatro polegadas são dois pés... com mais dois ou três pés que já tínhamos, eram cinco. Ora quando um navio tem cinco pés de água no ventre, pode passar por hidrópico.
“— Pronto já basta — disse o comandante — O Sr. Morrel não terá nada a censurar-nos; fizemos o que pudemos para salvar o navio. Agora é preciso tentar salvar os homens. Para a lancha, rapazes, e mais depressa do que nunca!
— Escute, Sr. Morrel — continuou Penelon — Nós gostávamos muito do Pharaon; mas por muito que um marinheiro goste do seu navio, gosta ainda mais da sua pele. Por isso, não esperamos que o comandante nos desse a ordem duas vezes. Mesmo assim, veja o senhor, o navio gemia e parecia dizer-nos: “Andem, Vão-se embora! Vão-se embora!” E tinha razão, o pobre Pharaon, pois sentíamo-lo literalmente afundando debaixo dos pés. Num abrir e fechar de olhos a lancha estava no mar e nós oito dentro dela. O comandante foi o último a descer, ou antes, não, não desceu, porque não queria deixar o navio. Eu é que o agarrei pela cintura e o atirei aos camaradas, e em seguida saltei. Era tempo. Mal acabei de saltar a coberta partiu-se com um barulho que parecia a bordada de um navio de guerra de quarenta e oito. Dez minutos depois, mergulhou de proa, em seguida de popa e depois pôs-se a girar sobre si mesmo como um cão a correr atrás do rabo. E por fim, acabou-se. Pronto, está tudo dito, acabou-se o Pharaon! Quanto a nós, passamos três dias sem comer nem beber, e já falávamos em tirar à sorte quem alimentaria os outros quando vimos a Gironde. Fizemos-lhe sinais, ela viu-nos, aproou a nós, mandou-nos a sua lancha e recolheu-nos. Aqui tem o que se passou, Sr. Morrel, palavra de honra! Palavra de marinheiro! Não é verdade, rapazes?
Um murmúrio geral de aprovação indicou que o narrador conquistara todos os sufrágios pela veracidade do fundo e pelo pitoresco dos pormenores.
— Bom, meus amigos — disse o Sr. Morrel — Todos vocês são homens honrados e eu sabia antecipadamente que na desgraça que me atingia só havia um culpado: o meu destino. Trata-se da vontade de Deus e não de culpa dos homens. Respeitemos a vontade de Deus. Agora, quanto lhes é devido de soldo?
— Ora, não falemos disso, Sr. Morrel!
— Pelo contrário, falemos — perguntou o armador, com um sorriso triste.
— Bom, devem-no três meses... — disse Penelon.
— Coclés, pague duzentos francos a cada um destes dignos homens. Noutra época, meus amigos — continuou Morrel — acrescentaria: “E dê a cada um duzentos francos de gratificação”. Mas os tempos estão maus, meus amigos, e o pouco dinheiro que me resta já não me pertence. Desculpem-me, portanto e não sejam menos meus amigos por isso.
Penelon fez uma careta de comoção, virou-se para os companheiros, trocou algumas palavras com eles e voltou-se de novo:
— Quanto a isso, Sr. Morrel — disse passando o tabaco de mascar de um lado para o outro da boca e lançando na antecâmara segundo jato de saliva que foi emparelhar com o primeiro — Quanto a isso...
— Quanto a isso o quê?
— Do dinheiro...
— Sim...
— Bom, Sr. Morrel, os camaradas dizem que de momento lhes chega cinqüenta francos a cada um e que esperarão pelo resto.
— Obrigado, meus amigos, obrigado! — exclamou o Sr. Morrel, profundamente comovido — Têm todos excelente coração. Mas recebam, recebam, e se arranjarem um bom lugar aproveitem-no, pois estão livres.
Esta última parte da frase produziu efeito prodigioso sobre os dignos marinheiros, que se entreolharam com ar desorientado. Penelon, que ficara sem fôlego, quase engoliu o rolo de tabaco. Felizmente, levou a tempo a mão à garganta.
— Como, Sr. Morrel? — disse com voz estrangulada — Como, o senhor despede-nos?! Isso quer dizer que não está satisfeito conosco?
— Não, meus filhos — respondeu o armador — Não estou descontente com vocês, muito pelo contrário, nem os despeço. Mas que querem, já não tenho navios e, portanto já não necessito de marinheiros.
— Como é que já não tem navios? — replicou Penelon — Pois mandará construir outros e nós esperaremos! Graças a Deus, sabemos o que é navegar de bolina.
— Já não tenho dinheiro para mandar construir navios, Penelon — confessou o armador com um sorriso triste — Não posso, portanto aceitar essa resposta, por mais generosa que seja.
— Pois bem, se não tem dinheiro escusa de nos pagar. Faremos como o pobre Pharaon, correremos em árvore seca e pronto!
— Basta, basta, meus amigos — pediu Morrel, sufocado de emoção — Vão, peço-lhes. Voltaremos a encontrar-nos em tempos melhores. Emmanuel — acrescentou o armador — Acompanhe-os e providencie para que os meus desejos sejam satisfeitos.
— Pelo menos até breve, não é verdade, Sr. Morrel? — disse Penelon.
— Sim, meus amigos. Pelo menos assim espero. Vão.
E fez um sinal a Coclés, que saiu à frente. Os marinheiros seguiram o tesoureiro e Emmanuel seguiu os marinheiros.
— Agora — disse o armador à mulher e à filha — Deixem-me só um instante. Tenho de conversar com este senhor.
E indicou com os olhos o mandatário da Casa de Thomson & French, que permanecera de pé e imóvel no seu canto durante toda a cena, na qual apenas participara com as poucas palavras que reproduzimos. As duas mulheres ergueram os olhos para o estrangeiro, que tinham esquecido por completo, e retiraram-se. Mas ao sair a jovem lançou ao visitante um sublime olhar de súplica a que ele respondeu com um sorriso que um observador frio se admiraria de ver desabrochar naquele rosto de gelo.
Os dois homens ficaram sós.
— Pronto, senhor! — disse Morrel, voltando a deixar-se cair na poltrona — Viu tudo, ouviu tudo, não tenho mais nada a dizer-lhe.
— Vi, senhor — perguntou o inglês — Que foi vítima de uma nova desgraça, tão imerecida como as outras, e isso reforçou o desejo que já tinha de lhe ser agradável.
— Oh, senhor! — exclamou Morrel.
— Vejamos — continuou o estrangeiro — Sou um dos seus principais credores, não é verdade?
— É pelo menos o que possui os valores a mais curto prazo.
— Deseja um prazo para me pagar?
— Um adiamento poderia salvar-me a honra e conseqüentemente a vida.
— Que prazo deseja?
Morrel hesitou.
— Dois meses — respondeu.
— Bom — disse o estrangeiro — Concedo-lhe três.
— Mas acha que a Casa Thomson & French...
— Esteja tranqüilo, senhor. Responsabilizo-me por tudo. Estamos hoje a 5 de Junho.
— É verdade.
— Portanto, reformemos todas estas letras para 5 de Setembro. E no dia 5 de Setembro, às onze horas da manhã — o relógio da sala marcava onze horas precisamente naquele momento — Me apresentarei em sua casa.
— Eu o esperarei, senhor — disse Morrel — E será pago ou estarei morto.
Estas últimas palavras foram pronunciadas tão baixo que o estrangeiro as não pode ouvir. As letras foram reformadas, rasgaram-se as antigas e o pobre armador encontrou-se pelo menos com três meses à sua frente para reunir os seus últimos recursos.
O inglês recebeu os seus agradecimentos com a fleuma característica da sua nação e despediu-se de Morrel, que o acompanhou, manifestando-lhe a sua gratidão, até à porta. Na escada, o inglês voltou a encontrar Julie. A moça simulava descer, mas na realidade esperava-o.
— Oh, senhor! — exclamou, juntando as mãos.
— Menina — disse-lhe o estrangeiro — Um dia receberá uma carta assinada por Simbad, o Marinheiro... faça ponto por ponto, o que lhe disser essa carta, por mais estranha que lhe pareça a recomendação.
— Sim, senhor — respondeu Julie.
— Promete-me que o fará?
— Juro-lhe.
— Muito bem! Adeus, menina. Seja sempre uma boa e santa filha, como é, e tenho muita esperança de que Deus a recompensará dando-lhe Emmanuel por marido.
Julie soltou um gritinho, corou como uma cereja e agarrou-se ao corrimão para não cair. O estrangeiro continuou o seu caminho depois de lhe fazer um aceno de adeus.
No pátio encontrou Penelon com um maço de notas no valor de cem francos em cada mão, que parecia não poder decidir-se a guardar.
— Venha, meu amigo — disse-lhe — Preciso de falar contigo.



  
 continua...



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