domingo, 10 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 17


XVII

A CELA DO ABADE




D
epois de passar curvado, mas mesmo assim com bastante facilidade, pela passagem subterrânea, Dantés chegou à extremidade oposta da galeria que dava para a cela do abade. Aí, a passagem estreitava e oferecia apenas o espaço suficiente para um homem poder deslizar rastejando. A cela do abade era lajeada. Fora levantando uma das lajes colocadas no canto mais escuro que ele começara a laboriosa operação de que Dantés vira o fim.
Mal entrou e se pôs de pé, o jovem examinou a cela com grande atenção. À primeira vista, não apresentava nada de especial.
— Bom — disse o abade — É apenas meio-dia e um quarto e ainda temos aí umas horas diante de nós.
Dantés olhou à sua volta à procura do relógio em que o abade pudera ver as horas de forma tão precisa.
— Veja esse raio de luz que entra pela minha janela — disse o abade — E veja depois as linhas que tracei na parede. Graças a essas linhas, que se combinam com o duplo movimento da Terra e a elipse que ela descreve à volta do Sol, sei mais exatamente a hora do que se tivesse um relógio, porque um relógio desacerta-se, ao passo que o Sol e a Terra nunca se desacertam.
Dantés nada compreendera desta explicação, pois sempre julgara, ao ver o Sol levantar-se detrás das montanhas e pôr-se no Mediterrâneo, que era ele que andava e não a Terra. O duplo movimento do Globo onde morava e de que, no entanto se não apercebia parecia-lhe quase impossível. Em cada palavra do seu interlocutor via mistérios da ciência tão interessantes de aprofundar como as minas de ouro e diamantes que visitara numa viagem que fizera ainda quase criança a Guzarate e a Golconda.
— Vamos — disse ao abade — Tenho pressa de examinar os seus tesouros.
O abade dirigiu-se para a chaminé, deslocou com o formão, que continuava a trazer na mão, a pedra que formava antes a lareira e que ocultava uma cavidade bastante profunda. Era nessa cavidade que se encontravam guardados todos os objetos de que falara a Dantés.
— Que quer ver primeiro? — perguntou-lhe.
— Mostre-me a sua grande obra sobre a monarquia na Itália.
Faria tirou do precioso esconderijo três ou quatro rolos de pano, enrolados como folhas de papiro. Eram tiras de pano com cerca de quatro polegadas de largura e dezoito de cumprimento. Essas tiras, numeradas, estavam cobertas de uma escrita que Dantés pôde ler, pois fora traçada na língua materna do abade, isto é, o italiano, idioma que, na sua qualidade de provençal, Dantés compreendia perfeitamente.
— Veja — disse-lhe ele — Está tudo aqui. Há mais ou menos oito dias que escrevi a palavra “fim” no fundo da sexagésima oitava tira. Para as fazer rasguei duas das minhas camisas e todos os lenços que possuía. Se algum dia voltar a ser livre e houver em toda a Itália um editor que se atreva a editá-la a minha reputação está feita.
— Claro, bem vejo — respondeu Dantés — E agora mostre-me, peço-lhe, as penas com que escreveu esta obra.
— Veja — disse Faria.
E mostrou ao jovem uma hastezinha de seis polegadas de comprimento e da grossura do cabo de um pincel, na extremidade e à volta do qual se encontrava ligada por uma linha uma das tais cartilagens, ainda suja de tinta, de que o abade falara a Dantés. Era alongada em bico e tendida como uma pena vulgar. Dantés examinou-a e procurou com a vista o instrumento com que pudera ser talhada tão corretamente.
— Ah, sim! — disse Faria — O canivete, não é verdade? É a minha obra-prima. Fi-lo, assim como esta faca, de um velho castiçal de ferro.
O canivete cortava como uma navalha de barba. Quanto à faca, tinha a vantagem de poder servir ao mesmo tempo de faca e punhal.
Dantés examinou os diversos objetos com a mesma atenção com que nas lojas de curiosidades de Marselha examinara noutros tempos, vezes, instrumentos executados por selvagens e trazidos dos mares do Sul pelos comandantes de longo curso.
— Quanto à tinta — disse Faria — Já sabe como procedo. Faço-a à medida que preciso dela.
— Agora há ainda uma coisa que me admira — declarou Dantés — Que os dias lhe tenham chegado para fazer tudo isso.
— Também tinha as noites — respondeu Faria.
— As noites? Não me diga que é da natureza dos gatos e vê claro durante a noite!
— Não, mas Deus deu, ao homem a inteligência para o compensar da pobreza dos sentidos. Arranjei luz.
— Como?
— Retiro a gordura da carne que me dão, derreto-a e obtenho assim uma espécie de óleo grosso. Olhe, aqui tem a minha vela.
E o abade mostrou a Dantés uma espécie de lampião semelhante aos da iluminação pública.
— Mas o lume?
— Aqui tem duas pedras e pano queimado.
— E as acendalhas?
— Simulei uma doença de pele e pedi enxofre, que me deram.
Dantés pousou os objetos que tinha na mão em cima da mesa e baixou a cabeça, esmagado pela perseverança e pela força daquele espírito.
— Mas isto não é tudo — continuou Faria — Não devemos guardar todos os nossos tesouros num único esconderijo. Fechemos este.
Empurraram a laje para o seu lugar. O abade espalhou um pouco de pó por cima dela e depois passou o pé para fazer desaparecer qualquer vestígio de solução de continuidade, dirigiu-se para a cama e afastou-a. Atrás da cabeceira, oculto por uma pedra que o fechava com uma hermeticidade quase perfeita, havia um buraco, e nesse buraco uma escada de corda de vinte e cinco a trinta pés de comprimento.
Dantés examinou-a. Era de uma solidez a toda a prova.
— Quem lhe forneceu a corda necessária a este trabalho maravilhoso? — perguntou Dantés.
— Primeiro, utilizei algumas camisas que possuía; depois, os lençóis da minha cama, que desfiei durante os três anos de cativeiro em Fenestrelle. Quando me transferiram para o Castelo d’If encontrei maneira de trazer comigo esses fios e continuei aqui o trabalho.
— E nunca descobriram que os lençóis da sua cama não tinham bainha?
— Voltava a fazê-la.
— Com quê?
— Com esta agulha.
E o abade abriu um farrapo do seu vestuário e mostrou a Dantés uma haste comprida, aguçada e ainda enfiada, que trazia consigo.
— Sim — continuou Faria — Primeiro pensei em descravar esses varões e fugir pela janela, que é um bocadinho mais larga do que a sua, como vê, e que teria alargado mais no momento da minha evasão. Mas descobri que a janela dava para o pátio interior e renunciei ao meu projeto por ser demasiado arriscado. No entanto, conservei a escada para uma circunstância imprevista, para uma dessas evasões de que lhe falei e que o acaso proporciona.
Embora parecesse examinar a escada, Dantés pensava desta vez em outra coisa. Atravessara-lhe o espírito uma idéia.
Aquele homem tão inteligente, tão engenhoso, tão profundo, talvez visse claro nas trevas da sua própria desgraça, onde ele mesmo nunca conseguira distinguir fosse o que fosse.
— Em que pensa? — perguntou-lhe o abade sorrindo e tomando o absorvimento de Dantés por uma admiração levada ao mais alto grau.
— Antes de mais nada, penso numa coisa: na soma enorme de inteligência que teve de despender para atingir o fim que se propusera. Que não faria, portanto, livre?
— Nada, talvez. Esse extravasamento do meu cérebro se evaporaria em futilidades. É necessário sermos tocados pela desgraça para escavarmos certas minas misteriosas ocultas na inteligência humana; é necessário haver pressão para fazer explodir a pólvora. O cativeiro concentrou num só ponto todas as minhas faculdades que pairavam por aqui e por aí. Entrechocaram-se num espaço acanhado e, como sabe, de choque das nuvens resulta a eletricidade da eletricidade o relâmpago e do relâmpago a luz.
— Não, não sei nada — disse Dantés, abatido pela sua ignorância — Parte das palavras que profere são para mim palavras vazias de sentido. Não calcula como é feliz por ser assim tão sábio!
O abade sorriu.
— Pensava em duas coisas, não era o que dizia há pouco?
— Era.
— E deu-me a conhecer a primeira. Qual é a segunda?
— A segunda é que o senhor me contou a sua vida e não sabe nada a respeito da minha.
— A sua vida, rapaz, é muito curta para encerrar acontecimentos de qualquer importância.
— Encerra uma enorme desgraça — declarou Dantés — Uma desgraça que eu não merecia. E desejaria, para não voltar a blasfemar contra Deus como fiz algumas vezes, poder atribuir aos homens a minha desgraça.
— Diz que está inocente do crime que lhe imputam?
— Completamente inocente, juro sobre a cabeça das duas únicas pessoas que me são queridas: sobre a cabeça de meu pai e sobre a cabeça de Mercedes.
— Vejamos — declarou o abade, fechando o esconderijo e empurrando a cama para o seu lugar — Conte-me a sua história.
Dantés contou então o que chamava de a sua história e que se limitava a uma viagem à Índia e a duas ou três viagens ao Levante. Finalmente chegou à sua última travessia, à morte do Comandante Leclére, ao embrulho entregue por ele para o grande marechal, ao encontro com este, à carta entregue por ele e dirigida ao Sr. Noirtier e finalmente à sua chegada a Marselha, à sua festa de noivado, à sua prisão, o seu interrogatório, à sua detenção provisória no Palácio da Justiça e por último à sua prisão definitiva no Castelo d’If. Chegado a este ponto, Dantés não sabia mais nada, nem mesmo o tempo a que já estava preso.
Terminado o relato, o abade refletiu profundamente.
— Há — disse ao cabo de um instante — Um axioma de direito de uma grande profundidade. Voltando ao que lhe dizia há pouco, a menos que os meus pensamentos provenham de uma organização falseada, à natureza humana repugna o crime. Contudo, a civilização moderna deu-nos necessidades, vícios, apetites fictícios, etc., que por vezes conseguem abafar os nossos bons instintos e conduzir-nos ao mal. Daí esta máxima: “Se quereis descobrir o culpado, começai por procurar aquele a quem o crime cometido possa ser útil!” A quem poderia ser útil o seu desaparecimento?
— A ninguém, meu Deus! Eu era tão insignificante.
— Não responda assim, porque à resposta falta ao mesmo tempo lógica e filosofia. Tudo é relativo, meu caro amigo, desde o rei que incomoda o seu futuro sucessor até ao empregado que incomoda o supranumerário. Se o rei morre, o sucessor herda uma coroa; se o empregado morre, o supranumerário herda mil e duzentas libras de ordenado. As mil e duzentas libras de ordenado são a sua lista civil e são-lhe tão necessárias para viver como os doze milhões de um rei. Cada indivíduo, desde o mais baixo ao mais alto grau da escala social, reúne à sua volta um pequeno mundo de interesses, com os seus turbilhões e os seus tomos recurvos, como os mundos de Descartes. Simplesmente, esses mundos vão sempre aumentando à medida que sobem. Trata-se de uma espiral invertida que se sustenta na ponta devido a um jogo de equilíbrio. Mas voltemos ao seu mundo. Ia ser nomeado comandante do Pharaon, não ia?
— Ia.
— Ia casar com uma bonita moça, não ia?
— Ia.
— Alguém tinha interesse em que se não tomasse comandante do Pharaon? Alguém tinha interesse em que não casasse com Mercedes? Responda primeiro à primeira pergunta; a ordem é a chave de todos os problemas. Alguém tinha interesse em que se não tornasse comandante do Pharaon?
— Não. Todos gostavam muito de mim a bordo. Se os marinheiros pudessem escolher um chefe, estou certo de que escolheriam a mim. Apenas um homem tinha um motivo para me querer mal; tempos antes discutira com ele e desafiara-o para um duelo que ele recusara.
— Ora aí está! Como se chamava esse homem?
— Danglars.
— Que era a bordo?
— Guarda-livros.
— Se tivesse se tornado comandante o conservaria no seu lugar?
— Não, se isso dependesse de mim, pois julgara notar algumas incorreções nas suas contas.
— Muito bem. Agora outra pergunta: alguém assistiu à sua última conversa com o Comandante Leclére?
— Não, estivemos sós.
— Mas alguém poderia ouvir a conversa?
— Podia, porque a porta estava aberta. E até... espere... sim, sim, Danglars passou precisamente no momento em que o Comandante Leclére me entregava o embrulho destinado ao grande marechal.
— Bom, estamos no bom caminho — declarou o abade — Levou alguém a terra consigo quando aportou à Ilha de Elba?
— Ninguém.
— Entregaram-lhe uma carta?
— Entregaram, o grande marechal.
— Que fez dessa carta?
— Meti-a na carteira.
— Tinha portanto a carteira consigo? Como é que o marinheiro podia trazer no bolso uma carteira destinada a guardar uma carta oficial?
— Tem razão, a carteira estava a bordo.
— Portanto, foi só a bordo que meteu a carta na carteira?
— Foi.
— De Porto Ferraio a bordo, como levou a carta?
— Na mão.
— Quando subiu a bordo do Pharaon todos viram que levava uma carta?
— Sim.
— Danglars como os outros?
— Danglars como os outros.
— Agora escute bem, reúna todas as suas recordações: lembra-se dos termos em que estava redigida a denúncia?
— Oh, perfeitamente! Reli-a três vezes e todas as palavras me ficaram na memória.
— Repita-ma.
Dantés concentrou-se um instante.
— Ei-la textualmente:
  

“O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris. Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon”.


O abade encolheu os ombros.
— É claro como a água — observou — Só um homem dotado de um coração muito ingênuo e muito bom, como você, não adivinharia imediatamente a tramóia.
— Acha? — perguntou Dantés — Oh, seria uma grande infâmia!
— Como era a letra habitual de Danglars?
— Uma bonita letra cursiva.
— E a da carta anônima?
— Inclinada para trás.
O abade sorriu.
— Disfarçada, não é verdade?
— Muito perfeita para ser disfarçada.
— Um momento.
Pegou na pena, ou antes, no que chamava assim, molhou-a na tinta e escreveu com a mão esquerda, num pano preparado para o efeito, as duas ou três primeiras linhas da denúncia.
Dantés recuou e olhou quase com terror o abade.
— Oh, é espantoso como essa letra se parece com a outra! — exclamou.
— Porque a denúncia foi escrita com a mão esquerda. Observei uma coisa — continuou o abade.
— Qual?
— Todas as letras traçadas com a mão direita são diferentes, todas as letras traçadas com a mão esquerda assemelham-se.
— Portanto, já viu tudo, já adivinhou tudo?
— Continuamos?
— Oh, sim, sim!
— Passemos à segunda pergunta.
— Às ordens.
— Alguém estava interessado em que você não casasse com Mercedes?
— Sim! Um rapaz que a amava: Fernand.
— Não é um nome espanhol?
— Ele era catalão.
— Acha que ele era capaz de escrever a carta?
— Não! Esse se limitaria a dar-me uma facada.
— Claro, está na natureza espanhola: um assassínio, sim; uma covardia, não.
— De resto — continuou Dantés — Ignorava todos os pormenores consignados na denúncia.
— Você não os revelou a ninguém?
— A ninguém.
— Nem mesmo à sua amante?
— Nem mesmo à minha noiva.
— Foi Danglars.
— Oh, agora tenho certeza disso!
— Espere... Danglars conhecia Fernand?
— Não... sim... recordo-me...
— De quê?
— Na antevéspera do meu casamento viu-os sentados juntos em uma mesa debaixo do caramachão do Tio Pamphile. Danglars estava com ar amistoso e brincalhão e Fernand pálido e nervoso.
— Estavam sozinhos?
— Não, tinham consigo um terceiro companheiro, muito meu conhecido, que sem dúvida se juntara a eles, um alfaiate chamado Caderousse. Mas este estava já bêbado. Espere... espere... como não me lembrei disto? Junto da mesa onde bebiam encontrava-se um tinteiro, papel e penas...
Dantés levou a mão à testa e exclamou:
— Oh, os infames, os infames!
— Quer saber mais alguma coisa? — perguntou o abade rindo.
— Quero, claro que quero! Uma vez que o senhor aprofunda tudo, vê claro em todas as coisas, quero saber por que motivo só fui interrogado uma vez, porque não me deram juízes e como fui condenado sem julgamento.
— Oh, isso é um pouco mais grave! — exclamou o abade — A justiça tem escaninhos sombrios e misteriosos em que é difícil penetrar. O que fizemos até aqui relativamente aos seus dois amigos não passou de uma brincadeira de crianças. A esse respeito, terá de me dar indicações mais precisas.
— Pronto, interrogue-me, pois na verdade o senhor vê mais claro na minha vida do que eu próprio.
— Quem o interrogou? Foi o procurador régio, o substituto ou o juiz de instrução?
— Foi o substituto.
— Era novo ou velho?
— Novo: vinte e sete ou vinte e oito anos.
— Bom, ainda não corrompido, mas já ambicioso — comentou o abade — Quais foram as suas maneiras para consigo?
— Mais afáveis do que severas.
— Contou-lhe tudo?
— Tudo.
— E as suas maneiras mudaram no decurso do interrogatório?
— Alteraram-se apenas por um instante, quando leu a carta que me comprometia. Pareceu acabrunhado com a minha desgraça.
— Com a sua desgraça?
— Sim.
— Tem certeza de que era a sua desgraça que o preocupava?
— Pelo menos deu-me uma grande prova da sua simpatia.
— Qual?
— Queimou a única peça que me podia comprometer.
— Qual? A denúncia?
— Não, a carta.
— Tem a certeza?
— O fez diante de mim.
— Estranho... esse homem poderia ser maior celerado do que você imagina.
— Palavra de honra que está me assustando! — exclamou Dantés — Estará o mundo povoado de tigres e crocodilos?
— Está. Simplesmente os tigres e os crocodilos de dois pés são mais perigosos do que os outros.
— Continuemos, continuemos.
— Com muito gosto. Queimou a carta, diz você?
— Sim, dizendo-me: “Como vê, só existe esta prova contra você e eu destruo-a”
— Essa conduta é demasiado sublime para ser natural.
— Parece-lhe?
— Tenho certeza. A quem era endereçada a carta?
— Ao Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, nº. 13, em Paris.
— Pode presumir que o seu substituto tivesse algum interesse em que a carta desaparecesse?
— Talvez: porque me fez prometer duas ou três vezes, no meu interesse, dizia ele, não falar a ninguém na carta, e obrigou-me a jurar que não pronunciaria o nome inscrito no endereço.
— Noirtier... — repetiu o abade — Noirtier... conheci um Noirtier na corte da antiga rainha da Etrúria, um Noirtier que fora girondino durante a Revolução. Como se chamava o seu substituto?
— Villefort.
O abade desatou a r ir.
Dantés olhou-o estupefato.
— Que tem o senhor? — perguntou.
— Vê esse raio de luz? — inquiriu o abade.
— Vejo.
— Pois bem, agora é tudo mais claro para mim do que esse raio transparente e luminoso. Pobre criança, pobre rapaz! E esse magistrado foi bom para você?
— Foi.
— Esse digno substituto queimou, destruiu a carta?
— Sim.
— Esse honesto fornecedor do carrasco obrigou-o a jurar que nunca mais pronunciaria o nome de Noirtier?
— Obrigou.
— Esse Noirtier, pobre cego, sabe quem era esse Noirtier? Esse Noirtier era o pai dele!
Um raio que tivesse caído aos pés de Dantés e cavado um abismo no fundo do qual se abrisse o Inferno, teria produzido efeito menos rápido, menos elétrico, menos esmagador, do que aquelas palavras inesperadas. Levantou-se e agarrou a cabeça com as mãos, como se quisesse impedi-la de rebentar.
— Seu pai! Seu pai! — gritou.
— Sim, seu pai, que se chama Noirtier de Villefort — acrescentou o abade.
Então uma luz fulgurante atravessou o cérebro do prisioneiro e tudo o que até ali lhe parecera obscuro foi de súbito iluminado por uma claridade deslumbrante. As perguntas de Villefort durante o interrogatório, a carta destruída, o juramento exigido, a voz quase suplicante do magistrado que, em vez de ameaçar, parecia implorar, tudo lhe veio à memória. Soltou um grito e cambaleou um instante como um homem ébrio. Depois, correu para a abertura que conduzia da cela do abade à sua dizendo:
— Oh, preciso estar só para pensar em tudo isso!
Mal chegou à sua masmorra atirou-se para cima da cama, onde o carcereiro o encontrou à tardinha, sentado, de olhos fixos e as feições contraídas, imóvel e mudo como uma estátua.
Durante as horas de meditação que, entretanto tinham passado como segundos, tomara uma terrível resolução e fizera um formidável juramento.
Uma voz arrancou Dantés ao seu devaneio; a do Abade Faria que, tendo recebido por sua vez a visita do carcereiro, vinha convidar Dantés para jantar com ele. A sua qualidade de louco reconhecido e, sobretudo de louco divertido valia ao velho prisioneiro alguns privilégios, como o de receber pão um pouco mais branco e uma garrafinha de vinho no Domingo. Ora era justamente Domingo e o abade vinha convidar o seu jovem companheiro a compartilhar o seu pão e o seu vinho.
Dantés seguiu-o. Todas as linhas do seu rosto se tinham recomposto e retomado o seu lugar habitual, mas com uma rigidez e uma firmeza, se assim se pode dizer, que denotavam ter tomado uma resolução. O abade olhou-o fixamente.
— Estou aborrecido por tê-lo ajudado nas suas investigações e por ter dito o que disse — confessou.
— Por quê? — perguntou Dantés.
— Porque lhe infiltrei no coração um sentimento que lá não havia: a vingança.
Dantés sorriu.
— Falemos de outra coisa — pediu.
O abade olhou-o mais um instante e abanou tristemente a cabeça. Depois, como lhe pedira Dantés falou de outra coisa. O velho prisioneiro era um desses homens cuja conversação, como a das pessoas que muito sofreram, continha numerosos ensinamentos e encerrava sempre um interesse sempre renovado. Mas como não era egoísta, aquele infeliz nunca falava das suas desgraças.
Dantés escutava todas as suas palavras com admiração. Umas correspondiam a idéias que já possuía e a conhecimentos que faziam parte da sua condição de marinheiro, mas outras referiam-se a coisas desconhecidas e, como as auroras boreais que iluminam os navegadores nas latitudes austrais, mostravam ao jovem paisagens e horizontes novos iluminados por clarões fantásticos. Dantés compreendeu o prazer que experimentaria uma pessoa inteligente em acompanhar aquele espírito elevado nas alturas morais, filosóficas ou sociais em que tinha o hábito de se lançar.
— Devia ensinar-me um bocadinho do que sabe — declarou Dantés — Quanto mais não fosse para não se aborrecer comigo. Parece-me agora que deve preferir o isolamento a um companheiro sem educação nem cultura como eu. Se concordar com o que lhe peço, comprometo-me a nunca mais lhe falar de fugir.
O abade sorriu.
— Infelizmente, meu filho, a ciência humana é muito limitada e depois de lhe ensinar as matemáticas, a física, a História e as três ou quatro línguas vivas que falo, saberia tanto como eu. Ora toda esta ciência não levaria mais de dois anos a passar do meu espírito para o seu.
— Dois anos! — exclamou Dantés — Acha que poderia aprender todas essas coisas em dois anos?
— Na sua aplicação, não; nos seus princípios, sim. Aprender não é saber. Há os sabichões e os sábios. Uns são fruto da memória, os outros da filosofia.
— Mas não se pode aprender a filosofia?
— A filosofia não se aprende; a filosofia é a reunião das ciências adquiridas com o talento que as aplica. A filosofia é a nuvem deslumbrante em que Cristo pousou o pé para subir ao Céu.
— Vejamos, o que me ensinará primeiro? — perguntou Dantés — Tenho pressa de começar, sede de ciência.
— Tudo! — respondeu o abade.
Com efeito, logo naquela noite os dois prisioneiros estabeleceram um plano de educação que começaram a executar no dia seguinte. Dantés possuía uma memória prodigiosa e uma facilidade de concepção extrema. A disposição matemática do seu espírito habilitava-o a compreender tudo através do cálculo, enquanto a poesia do marinheiro corrigia tudo o que pudesse haver de excessivamente material na demonstração, reduzida à secura dos números ou à retidão das linhas. Sabia já, aliás, o italiano e um bocadinho de grego moderno, que aprendera nas suas viagens ao Oriente. Com estas duas línguas, não tardou a compreender sem demora o mecanismo de todas as outras, e ao cabo de seis meses começava a falar espanhol, inglês e alemão.
Como dissera ao Abade Faria. Quer porque a distração que lhe proporcionava o estudo substituísse nele a ânsia da liberdade, quer porque fosse, como já vimos rígido observador da sua palavra, nunca falava de fugir e os dias passavam para ele rápidos e instrutivos. Passado um ano, era outro homem.
Quanto ao Abade Faria, Dantés notava que, apesar da distração que a sua presença trouxera ao seu cativeiro, entristecia de dia para dia. Uma idéia pertinaz e constante parecia assediar-lhe o espírito. Caía em profundos alheamentos, suspirava involuntariamente, levantava-se de súbito, cruzava os braços e passeava sombrio à volta da cela.
Um dia parou de repente no meio de um desses passeios centenas de vezes repetidos que fazia à roda da cela e exclamou:
— Ah, se não houvesse sentinela!...
— Só haverá sentinela se o senhor quiser — observou Dantés, que lhe seguira o pensamento através da caixa craniana como através de um cristal.
— Já lhe disse que me repugna um assassínio.
— E, no entanto esse assassínio, se fosse cometido, sê-lo-ia pelo instinto da nossa conservação, por um sentimento de defesa pessoal.
— Não importa, não o cometeria.
— Mas em todo o caso pensa nele?
— Sem cessar, sem cessar — murmurou o abade.
— E descobriu um meio, não descobriu? — disse vivamente Dantés.
— Descobri, se fosse possível pôr na galeria uma sentinela cega e surda.
— Será cega e surda! — respondeu o rapaz, num tom resoluto que assustou o abade.
— Não, não! — gritou — Impossível.
Dantés quis levá-lo a falar mais a tal respeito, mas o abade abanou a cabeça e recusou.
Passaram três meses.
— Você é forte? — perguntou um dia o abade a Dantés.
Sem responder, Dantés pegou no formão, torceu-o como uma ferradura e endireitou-o.
— Seria capaz de se comprometer a só matar a sentinela em último caso?
— Seria, palavra de honra.
— Então — disse o abade — Poderemos executar o nosso projeto.
— De quanto tempo precisaremos para o pôr em prática?
— De um ano, pelo menos.
— Quando começamos a trabalhar?
— Imediatamente.
— Está vendo? Com isso tudo já perdemos um ano! — exclamou Dantés.
— Acha que o perdemos? — perguntou o abade.
— Oh, perdão, perdão! — desculpou-se Edmond, corando.
— Caluda! — atalhou o abade — O homem nunca passa de um homem, e você é ainda um dos melhores que conheci. Veja, aqui está o meu plano.
O abade mostrou então a Dantés um desenho que fizera: era a planta da sua cela, da cela de Dantés e da galeria que ligava uma à outra. Ao meio da galeria abrira uma passagem estreita semelhante às que se usavam nas minas. Essa passagem serviria para os dois prisioneiros se deslocarem debaixo da galeria onde passeava a sentinela. Uma vez chegados aí, praticariam uma grande escavação e soltariam uma das lajes que formavam o pavimento da galeria. Em dado momento, a laje se abateria debaixo do peso do soldado, que desapareceria engolido pela escavação. Dantés se precipitaria sobre ele no momento em que, ainda aturdido da queda, o soldado não poderia se defender, o amarraria, amordaçaria, então ambos passariam por uma das janelas da galeria, desceriam ao longo da muralha exterior com o auxílio da escada de corda e fugiriam.
Dantés bateu palmas e os seus olhos cintilaram de alegria. O plano era tão simples que devia dar certo.
Os mineiros deitaram mãos à obra no mesmo dia, com tanto mais ardor quanto é certo o trabalho suceder a um longo repouso e, segundo todas as probabilidades, não ser mais do que a continuação do pensamento íntimo e secreto de cada um.
Nada os interrompia exceto a hora a que ambos eram forçados a regressar às suas celas para receber a visita do carcereiro. Aliás, tinham adquirido o hábito de distinguir, pelo ruído imperceptível dos passos, o momento em que o homem descia e nunca nem um, nem outro fora apanhado de surpresa. A terra que extraíam da nova galeria, e que acabaria por encher a antiga, deitavam-na pouco a pouco e com inauditas precauções por uma ou outra das duas janelas da cela de Dantés ou da cela de Faria. Pulverizam-na com cuidado e o vento da noite levava-a para longe sem deixar vestígios.
Dedicaram mais de um ano a este trabalho executado com um escopo, uma faca e uma alavanca de madeira como únicos instrumentos. Durante esse ano, e sem deixarem de trabalhar, Faria continuou a instruir Dantés, falando-lhe ora numa língua ora noutra, ensinando-lhe a história das nações e dos grandes homens que deixavam de vez em quando atrás de si um desses rastros luminosos chamados glória. O abade, homem do mundo e da alta sociedade, tinha, além disso, nas suas maneiras, uma espécie de majestade melancólica de que Dantés, graças ao espírito de assimilação de que a natureza o dotara, soube extrair a polidez elegante que lhe faltava e os modos aristocráticos que habitualmente só se adquirem no convívio com as classes elevadas ou no contato com homens superiores.
Ao cabo de quinze meses o buraco estava aberto. A escavação era feita por baixo da galeria. Ouvia-se passar e repassar a sentinela, e os dois trabalhadores, forçados a esperar uma noite escura e sem luar para tomar a evasão ainda mais segura, só tinham um receio: que o chão, demasiado delgado, abatesse por si mesmo debaixo dos pés do soldado. Obviou-se a esse inconveniente colocando como suporte uma espécie de vipazinha encontrada nos alicerces. Dantés estava ocupado a colocá-la quando ouviu de súbito o Abade Faria, que ficara na cela do rapaz, onde se ocupava por seu turno a aguçar uma cavilha destinada a segurar a escada de corda, chamá-lo em tom angustiado.
Dantés regressou rapidamente e deu com o abade de pé no meio da cela, pálido, com a testa coberta de suor e as mãos crispadas.
— Oh, meu Deus! — gritou Dantés — Que aconteceu, que tem o senhor?
— Depressa, depressa! — atalhou o abade — Escute.
Dantés olhou o rosto lívido de Faria, os seus olhos rodeados por um círculo azulado, os seus lábios brancos e os seus cabelos eriçados, e ficou tão impressionado que deixou cair no chão o escopo que tinha na mão.
— Mas que se passa? — gritou Edmond.
— Estou perdido! — respondeu o abade — Ouça-me. Vou ser atacado por um mal terrível, talvez mortal. O acesso aproxima-se, sinto-o. Já uma vez me atacou no ano anterior à minha prisão. Para este mal só há um remédio, o que lhe vou dizer. Corra depressa à minha cela e retire o pé da cama. O pé é oco e encontrará dentro dele um frasquinho de cristal meio cheio de um licor vermelho. Traga-o. Ou antes, não, não poderia ser surpreendido aqui. Ajude-me a regressar à minha cela enquanto disponho ainda de algumas forças. Quem sabe o que acontecerá durante o tempo que durar o acesso?
Sem perder a cabeça, apesar de ser enorme a desgraça que o atingia, Dantés desceu a galeria arrastando o seu infeliz companheiro atrás de si e conduziu-o, com infinita mágoa, até à extremidade oposta. Logo que entrou na cela do abade deitou-o na cama.
— Obrigado — agradeceu o abade, tremendo tanto como se acabasse de sair de água gelada — O mal aproxima-se e vou cair em catalepsia. É possível que não faça nenhum movimento, que não solte nem um gemido, mas também é possível que espume, me retese e grite. Procure que não ouçam os meus gritos. Isso é importante, pois nesse caso talvez me mudassem de cela e ficaríamos separados para sempre. Quando me vir imóvel, frio e morto, assim dizer, somente nesse instante, note bem, me descerrar os dentes com a faca e deitar na boca oito a dez gotas desse licor. Talvez depois volte a mim.
— Talvez?! — gritou dolorosamente Dantés.
— Socorro! Acudam-me! — gritou o abade — Estou morrendo...
O acesso foi tão súbito e tão violento que o pobre prisioneiro nem sequer teve tempo de acabar a frase começada. Passou-lhe uma nuvem pela testa, rápida e escura como as das tempestades no mar, a crise dilatou-lhe os olhos, torceu-lhe a boca e congestionou-lhe as faces. Agitou-se, espumou, gritou. Mas tal como ele próprio recomendara, Dantés abafou-lhe os gritos debaixo do cobertor. O ataque durou duas horas. Então, mais inerte do que uma massa, mais pálido e frio do que o mármore, mais quebrado do que uma cana calcada aos pés, caiu, retesou-se ainda numa derradeira convulsão e ficou lívido.
Edmond esperou que a morte aparente invadisse o corpo e gelasse até ao coração. Nessa altura; pegou na faca, introduziu a lâmina entre os dentes do abade, descerrou com infinito cuidado os maxilares contraídos, contou uma após outra dez gotas do licor vermelho e esperou.
Passou uma hora sem que o velhote fizesse o mais pequeno movimento. Dantés receava ter agido demasiado tarde e olhava-o, com as mãos enterradas no cabelo. Por fim, surgiu uma leve coloração nas faces do abade, os seus olhos, que tinham permanecido constantemente abertos e átonos, recuperaram a expressão, saiu-lhe da boca um suspiro fraco e tez um movimento.
— Salvo! Salvo! — gritou Dantés.
O doente ainda não podia falar, mas estendeu com visível ansiedade a mão para a porta. Dantés escutou e ouviu os passos do carcereiro.
Eram sete horas e Dantés nem tivera oportunidade de calcular o tempo.
O rapaz saltou para a abertura, introduziu-se nela, recolocou a laje por cima da cabeça e regressou à sua cela. Um instante depois a porta abriu-se e o carcereiro encontrou, como de costume, o prisioneiro sentado na cama.
Mas assim que ele virou costas, assim que o ruído dos seus passos desapareceu na galeria, Dantés, devorado pela inquietação, retomou, sem pensar em comer, o caminho que acabara de percorrer e, levantando a laje com a cabeça voltou a entrar na cela do abade. Este recuperara os sentidos, mas continuava estendido, inerte e sem forças, na cama.
— Não esperava tornar a vê-lo — disse a Dantés.
— Por quê? — perguntou o rapaz — Pensou que eu morreria?
— Não, mas como está tudo pronto para a fuga contava que fugisse.
O rubor da indignação coloriu as faces de Dantés.
— Sem o senhor?! — gritou — Julgou-me realmente capaz disso?
— Agora verifico que me enganei — declarou o doente — Ah, estou muito fraco, muito quebrado, completamente exausto!
— Coragem, as suas forças voltarão — animou-o Dantés, sentando-se junto da cama de Faria e pegando-lhe nas mãos.
O abade abanou a cabeça.
— Da última vez — disse — O ataque durou meia hora e depois dele tive fome e levantei-me sozinho. Hoje, não consigo mexer a perna nem o braço e tenho a cabeça nublada, o que prova um derramamento cerebral. À terceira vez ficarei inteiramente paralítico ou morrerei. Ato contínuo.
— Não, não, sossegue que não morrerá. Esse terceiro ataque, se o tiver, o encontrará livre. Nós o salvaremos como desta vez, e melhor do que desta vez, pois teremos todos os meios necessários para isso.
— Meu amigo — perguntou o velho — Não se iluda. A crise que acaba de me atacar condenou-me a prisão perpétua: para fugir é necessário poder andar.
— Pois bem, esperaremos oito dias, um mês, dois meses se for preciso. Entretanto, as suas forças voltarão. Está tudo preparado para a nossa fuga e temos a liberdade de poder escolher a hora e o momento. No dia em que se sentir com forças suficientes para nadar, nesse dia poremos o nosso projeto em prática.
— Nunca mais nadarei — perguntou Faria — Este braço está paralisado, não por um dia, mas sim para sempre. Levante-o você mesmo e veja o que pesa.
O rapaz levantou o braço, que voltou a cair, insensível, e soltou um suspiro.
— Está agora convencido, não é verdade, Edmond? — perguntou Faria — Acredite que sei o que digo. Desde o meu primeiro ataque deste mal que não tenho deixado de refletir. Esperava-o, trata-se de uma herança de família: o meu pai morreu na terceira crise e o meu avô também. O médico que me preparou este licor, nem mais nem menos do que o famoso Cabanis, predisse-me o mesmo destino.
— O médico enganou-se! — contrapôs Dantés — Quanto à sua paralisia, não me preocupa: colocarei-o nas costas e nadarei segurando-o.
— Criança — disse o abade — É marinheiro, é nadador, deve, portanto saber que um homem carregado com semelhante fardo não daria cinqüenta braçadas no mar. Deixe de se iludir com besteiras que num sequer enganam o seu excelente coração. Ficarei aqui até soar a hora da minha libertação, que só pode ser agora a da morte. Quanto a si, fuja, parta! É novo, desembaraçado e forte. Não se preocupe comigo, restituo-lhe a sua palavra.
— Está bem — declarou Dantés — Está bem. Nesse caso, também ficarei.
Em seguida, levantou-se e estendeu solenemente a mão por cima do velho.
— Pelo sangue de Cristo, juro só o deixar depois da sua morte.
Faria observou aquele jovem tão nobre, tão simples e tão digno e leu-lhe no rosto, animado pela expressão da mais pura dedicação, a sinceridade do seu afeto e a lealdade do seu juramento.
— Seja — disse o doente — Aceito, obrigado.
Depois, segurando-lhe na mão:
— É possível que seja recompensado por essa dedicação tão desinteressada — disse-lhe — Agora, como eu não posso e você não quer fugir, devemos tapar o subterrâneo aberto por baixo da galeria. O soldado pode descobrir ao marchar, pela sonoridade dos seus passos, que o lugar está minado, chamar a atenção de um inspetor e então seríamos descobertos e separados. Encarregue-se dessa tarefa, em que infelizmente não posso ajudá-lo. Trabalhe toda a noite, se for preciso, e só volte amanhã de manhã depois da visita do carcereiro. Terei uma coisa importante para lhe dizer.
Dantés pegou na mão do abade, que o tranqüilizou com um sorriso, e saiu com a obediência e o respeito que votava ao seu velho amigo.





 continua...



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