segunda-feira, 11 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 18


XVIII

O TESOURO




Q
uando Dantés regressou no dia seguinte de manhã à cela do seu companheiro de cativeiro encontrou Faria sentado, com ar calmo. Debaixo do raio de sol que se insinuava através da janela estreita da cela, segurava aberto na mão esquerda — a única, recordamos, cujo uso lhe restava — um bocado de papel ao qual o hábito de ser enrolado num delgado volume imprimira a forma de um cilindro rebelde a estender-se.
O abade mostrou sem dizer nada o papel a Dantés.
— Que é isto? — perguntou o rapaz.
— Veja bem — disse o abade, sorrindo.
— Por mais que olhe — perguntou Dantés — Vejo apenas um papel semi-queimado em que estão traçados caracteres góticos com uma tinta estranha.
— Este papel, meu amigo — disse Faria — Posso agora confessar-lhe tudo, porque já o pus à prova, este papel é o meu tesouro, do qual a partir de hoje lhe pertence metade.
Um suor frio cobriu a testa de Dantés. Até àquele dia e durante muito tempo evitara falar com Faria a respeito daquele tesouro, origem da acusação de loucura que pesava sobre o pobre abade. Com a sua delicadeza instintiva, Edmond preferira não tocar nessa corda dolorosamente vibrante, e pela sua parte Faria calara-se.
O rapaz tomara o silêncio do velho por um regresso à razão, mas agora, aquelas poucas palavras escapadas a Faria depois de uma crise tão penosa pareciam anunciar uma grave recaída de alienação mental.
— O seu tesouro? — balbuciou Dantés.
Faria sorriu.
— Sim — respondeu — De todos os pontos de vista você é um nobre coração, Edmond, e compreendo pela sua palidez e pelo seu estremecimento o que se passa em si neste momento. Não, sossegue, não estou louco. O tesouro existe, Dantés, e se não me foi dado possuí-lo, você o terá. Ninguém quis ouvir nem acreditar porque me julgavam louco; mas você, que deve saber que não estou, ouça-me e acredite-me depois se quiser.
“Valha-me Deus”, disse Edmond para consigo, “Recaiu! Só me faltava esta desgraça”.
E depois, em voz alta:
— Meu amigo — disse a Faria — O seu ataque talvez o tenha fatigado; não quer descansar um bocadinho? Amanhã, se quiser, ouvirei a sua história, mas hoje só desejo tratar de si. Aliás — continuou sorrindo — Temos assim tanta pressa de um tesouro?
— Muita, Edmond! — respondeu o velho — Quem sabe se amanhã ou depois de amanhã, talvez, não terei o terceiro ataque? Lembre-se de que então tudo estaria acabado! Sim, é verdade, tenho pensado muitas vezes com um prazer amargo nessas riquezas que fariam a fortuna de dez famílias e perdidas para esses homens que me perseguiram. Esta idéia servia-me de vingança e eu a saboreava lentamente, de noite, na minha masmorra, e no desespero do meu cativeiro. Mas agora que perdoei ao mundo graças a você, agora que o vejo jovem e cheio de futuro, agora que penso em tudo o que pode resultar para si de felicidade depois de semelhante revelação, receio qualquer demora e temo não ter tempo de assegurar a um proprietário tão digno como você a posse de tantas riquezas ocultas.
Edmond virou a cabeça suspirando.
— Persiste na sua incredulidade, Edmond — prosseguiu Faria — A minha voz não o convenceu? Vejo que quer provas. Pois bem, leia este papel que ainda não mostrei a ninguém.
— Amanhã, meu amigo — respondeu Edmond, a quem repugnava prestar-se à loucura do velho — Julguei que tínhamos combinado só falar disso amanhã.
— Falaremos amanhã, mas leia este papel hoje.
“É melhor não irritá-lo”, pensou Edmond.
E pegando o papel, a que faltava metade, sem dúvida consumida pelo fogo em qualquer acidente, leu:

“Este tesouro, que pode ascender a dois...
...de escudos romanos, no canto mais es...
...da segunda abertura, o qual...
...lego e cedo em prop...
...deiro.
25 de abril de 1498”

— Então? — perguntou Faria quando o rapaz terminou a leitura.
— Mas — respondeu Dantés — Só vejo aqui linhas truncadas, palavras sem sentido. Os caracteres estão interrompidos pela ação do tempo e são ininteligíveis.
— Para você, meu amigo, que os lê pela primeira vez, mas não para mim que matei a cabeça a estudá-los durante muitas noites, reconstituí cada frase e completei cada pensamento.
— E acredita ter descoberto esse sentido interrompido?
— Estou certo disso, como você mesmo verificará. Mas primeiro ouça a história deste papel.
— Silêncio! — exclamou Dantés — Passos! Aproximam-se... vou-me embora... Adeus!
E Dantés, feliz por escapar da história e da explicação que só serviriam para lhe confirmar a desgraça do amigo, deslizou como uma cobra pela estreita galeria, enquanto Faria, a quem o terror restituíra uma espécie de atividade, empurrava com o pé a laje e a cobria com uma esteira, a fim de ocultar à vista a solução de continuidade que não tivera tempo de fazer desaparecer.
Era o governador que, tendo sabido pelo carcereiro do acidente de Faria, vinha assegurar-se pessoalmente da sua gravidade. Faria recebeu-o sentado, evitou qualquer gesto comprometedor e conseguiu ocultar ao governador a paralisia que já ferira de morte metade da sua pessoa. O seu receio era que o governador, compadecido dele, o quisesse meter numa cela mais saudável e o separasse assim do seu jovem companheiro. Felizmente isso não aconteceu e o governador retirou-se convencido de que o seu pobre louco, pelo qual experimentava no fundo do coração certa simpatia, tivera apenas uma ligeira indisposição.
Entretanto, sentado na cama com a cabeça entre as mãos, Edmond procurava ordenar os seus pensamentos. Em Faria era tudo tão racional, tão grande e tão lógico desde que o conhecia que não podia compreender tão suprema sensatez sob todos os aspectos aliada ao desatino sob um único. Era Faria que estava enganado acerca do seu tesouro ou era toda a gente que estava enganada acerca de Faria?
Dantés permaneceu na sua cela durante todo o dia, sem ousar voltar à do amigo. Procurava adiar assim o momento em que adquiriria a certeza de que o abade estava louco. Tal convicção seria horrível para ele.
Mas para a noite, depois da hora da visita rotineira, Faria, não vendo aparecer o rapaz, tentou transpor o espaço que o separava dele. Edmond estremeceu ao ouvir os esforços dolorosos que fazia o velho para se arrastar: a perna estava inerte e só se podia ajudar com o braço. Edmond viu-se obrigado a puxá-lo para si, porque de contrário jamais poderia sair sozinho pela estreita abertura que desembocava na cela de Dantés.
— Estou aqui, impiedosamente encarniçado na sua perseguição — declarou com um sorriso radiante de benevolência — Julgou que podia escapar à minha magnificência, mas enganou-se. Ora ouça.
Edmond viu que não podia recuar. Ajudou o velho a sentar-se na cama e colocou-se junto dele no banquinho.
— Como sabe — principiou o abade — Eu era o secretário, o familiar, o amigo do Cardeal Spada, o último dos príncipes deste nome. Devo a esse digno fidalgo toda a felicidade que tive nesta vida. Não era rico, embora as riquezas da sua família fossem proverbiais e eu tenha ouvido dizer: “Rico como um Spada”. Mas ele, como a voz pública, não tinha nada em que basear essa fama de opulência. O seu palácio foi o seu paraíso. Eduquei-lhe os sobrinhos, que morreram, e quando ficou só no mundo restituí-lhe, por meio de uma submissão absoluta aos seus desejos, tudo o que fizera por mim havia dez anos. A casa do cardeal em breve deixou de ter segredos para mim. Vi muitas vezes Sua Eminência trabalhar, compulsar livros antigos e remexer avidamente na poeira dos manuscritos de família. Um dia, quando lhe censurava as suas vigílias inúteis e a espécie de abatimento que se lhes seguia, olhou-me sorrindo amargamente e abriu-me um livro com a história da cidade de Roma. Aí, no vigésimo capítulo, que tratava da vida do Papa Alexandre VI, havia as seguintes linhas que nunca mais pude esquecer:
“As grandes guerras da Romanha estavam terminadas. César Bórgia, que concluíra a sua conquista, necessitava de dinheiro para comprar a Itália toda inteira. O Papa necessitava igualmente de dinheiro para acabar com Luís XII, rei de França, ainda terrível apesar dos seus últimos reveses. Impunha-se, portanto fazer uma boa especulação, o que era difícil nesta pobre Itália enfraquecida.
“Sua Santidade teve então uma idéia: resolveu nomear dois cardeais. Escolhendo duas das grandes personagens de Roma, dois ricos, sobretudo, eis o que lucrava o Santo Padre com a especulação: antes de mais nada, podia vender os altos cargos e os empregos magníficos que os dois cardeais possuíssem; além disso, podia contar vender por preço vantajosíssimo os dois chapéus. A especulação tinha ainda uma terceira parte, que em breve aparecerá. O Papa e César Bórgia arranjaram primeiro os dois futuros cardeais: Jean Rospigliosi, que só por si detinha quatro das mais altas dignidades da Santa Sé, e César Spada, um dos mais nobres e ricos romanos. Tanto um como outro pressentiam o preço de semelhante favor do Papa, mas eram ambiciosos... arranjados os cardeais, César não tardou a encontrar compradores para os seus cargos. Daí resultou que Rospigliosi e Spada pagaram para ser cardeais e que outros oito pagaram para ser o que eram anteriormente os dois novos cardeais. Deste modo, entraram oitocentos mil escudos nos cofres dos especuladores.
“Passemos à última parte da especulação, que já é tempo. Depois de cumular de lisonjas Rospigliosi e Spada e de lhes conferir as insígnias do cardinalato, o papa, certo de que para liquidarem a dívida não fictícia do seu reconhecimento deviam ter reunido e realizado a sua fortuna para se fixarem em Roma, o Papa e César Bórgia convidaram para jantar os dois cardeais.
“O caso deu origem a um debate entre o Santo Padre e o filho. César achava que se podia utilizar um dos meios que tinha sempre à disposição dos seus amigos íntimos, a saber: em primeiro lugar a famosa chave com a qual se pedia a certas pessoas que abrissem determinado armário. A chave tinha uma pontinha de ferro, negligência do operário. Quando se fazia força para abrir o armário, cuja fechadura estava emperrada, a pessoa picava-se nessa pontinha e morria no dia seguinte. Havia também o anel de cabeça de leão que César metia no dedo quando dava certos apertos de mão. O leão mordia a epiderme dessas mãos distinguidas e a mordedura era mortal ao cabo de vinte e quatro horas.
“César propôs, portanto ao pai quer que mandassem os cardeais abrir o armário, quer que dessem a cada um, um cordial aperto de mão, mas Alexandre VI respondeu-lhe: Não olhemos a um jantar tratando-se desses excelentes cardeais Spada e Rospipliosi. Qualquer coisa me diz que recuperaremos esse dinheiro. Aliás, esqueceis, César, que uma indigestão se declara imediatamente, enquanto que uma picada ou uma mordedura só resultam passado um dia ou dois.
César rendeu-se a este raciocínio e por isso os cardeais foram convidados para Jantar. Puseram a mesa na vinha que o Papa possuía perto de S. Pedro de Liens, encantadora habitação que os cardeais conheciam bem devido à sua fama. Rospigliosi, deslumbrado com a sua nova dignidade, preparou o estômago e compôs a sua melhor expressão. Spada, homem prudente e que amava apenas o sobrinho, jovem capitão diante de quem se abria um futuro risonho, pegou em papel e numa pena e fez o seu testamento. Em seguida mandou dizer ao sobrinho que o esperasse nas imediações da vinha, mas parece que o criado o não encontrou.
“Spada conhecia o hábito dos convites. Desde que o cristianismo, eminentemente civilizador, trouxera os seus progressos até Roma, já não era um centurião que vinha da parte do tirano dizer: César quer que morras, mas sim um legado a latere que, de boca sorridente, vinha comunicar da parte do papa: Sua Santidade deseja que janteis com ele. Spada partiu por volta das duas horas para a vinha de S. Pedro de Liens. O Papa já o esperava. A primeira pessoa que Spada viu foi o sobrinho, ricamente vestido, muito gracioso, ao qual César Bórgia prodigalizava lisonjas. Spada empalideceu, e César, que lhe deitou um olhar cheio de ironia, deixou transparecer que tudo previra, que a cilada estava bem armada.
“Jantaram. Spada só pudera perguntar ao sobrinho: ‘Recebestes o meu recado?’ O sobrinho respondeu que não e compreendeu perfeitamente o valor da pergunta. Mas era demasiado tarde, pois acabava de beber um copo de excelente vinho que lhe servira o copeiro do Papa. Spada viu no mesmo instante aproximar-se outra garrafa, de que lhe oferecerem liberalmente. Uma hora mais tarde, um médico declarava ambos envenenados por cogumelos venenosos. Spada morreu no limiar da vinha e o sobrinho expirou à sua porta fazendo um sinal que a mulher não compreendeu.
“César e o Papa apressaram-se a devassar a herança, a pretexto de procurarem os documentos dos defuntos. Mas a herança consistia nisto: um bocado de papel em que Spada escrevera: ‘Lego ao meu sobrinho bem-amado as minhas arcas e os meus livros, entre os quais o meu belo breviário de cantos de ouro, desejando que guarde essa recordação do seu tio afetuoso’.
“Os herdeiros procuraram por toda a parte, admiraram o breviário, fizeram mão baixa nos móveis e admiraram-se que Spada, homem rico, fosse efetivamente o mais miserável dos tios. Tesouros, nenhum, exceto os tesouros de ciência encerrados na biblioteca e nos laboratórios. Mais nada. César e o pai procuraram, remexeram e espionaram, mas não encontraram nada, ou pelo menos encontraram muito pouca coisa: talvez um milhar de escudos, peças de ourivesaria e aproximadamente outro tanto de dinheiro em prata. Mas o sobrinho tivera tempo de dizer à mulher, ao chegar: ‘Procura entre os papéis do meu tio; há um testamento autêntico’.
“Procuraram talvez ainda mais ativamente do que os augustos herdeiros, mas em vão. Tudo se resumia a dois palácios e uma vinha atrás do Palatino. Mas naquela época os bens imóveis possuíam um valor medíocre e por isso os dois palácios e a vinha ficaram na posse da família como indignos da capacidade do Papa e do filho. Os meses e os anos passaram, Alexandre VI morreu envenenado, como sabe, por engano; César, envenenado ao mesmo tempo que ele, mudou apenas de pele como uma serpente, e na nova o veneno deixou malhas semelhantes às que se vêem na pele dos tigres. Finalmente, obrigado a deixar Roma, viria a morrer obscuramente numa escaramuça noturna e quase esquecida da História.
“Depois da morte do Papa e do exílio do filho, todos esperavam ver a família retomar a vida principesca que levava no tempo do Cardeal Spada; mas não foi assim. Os Spada’s mantiveram-se numa abastança duvidosa, um mistério eterno caiu sobre o sombrio caso e a opinião pública declarou que César, melhor político do que o pai, empalmara ao Papa a fortuna dos dois cardeais. Digo dos dois porque o Cardeal Rospigliosi, que não tomara qualquer precaução, foi completamente espoliado.
Faria interrompeu-se, sorrindo, e observou:
— Até agora, isto não parece ter-lhe interessado muito, não é verdade?
— Oh, meu amigo, parece-me, pelo contrário, que leio uma crônica cheia de interesse! — respondeu Dantés — Continue, peço-lhe.
— É o que vou fazer. A família habituou-se à obscuridade. Os anos passaram. Dos descendentes, uns foram soldados, outros diplomatas; estes sacerdotes, aqueles banqueiros; uns enriqueceram, outros acabaram de se arruinar. Chego ao último da família, àquele de quem fui secretário, ao Conde de Spada.
“Ouvira-o lamentar-se muitas vezes da desproporção da sua fortuna com a sua categoria e aconselhara-o a colocar os poucos bens que lhe restavam em rendas vitalícias. Ele seguiu o meu conselho e duplicou assim os seus rendimentos. O famoso breviário permanecera na família e era o Conde de Spada quem o possuía. Tinham-no conservado de pais para filhos, pois a cláusula estranha do único testamento encontrado transformara-o numa autêntica relíquia guardada em supersticiosa veneração na família. Era um livro iluminado com as mais belas figuras góticas, e tão pesado, de ouro, que um criado é que o levava sempre diante do cardeal nos dias de grande solenidade.
“Perante documentos de todos os gêneros — títulos, contratos, pergaminhos, etc. — guardados nos arquivos da família e todos provenientes do cardeal envenenado, pus-me por meu turno, como vinte servidores, vinte intendentes e vinte secretários que me tinham precedido, a compulsar os maços formidáveis constituídos por essa papelada. Mas, apesar da atividade e do cuidado com que me dedicava às minhas pesquisas, não encontrava absolutamente nada. No entanto. Lera e até escrevera uma história exata e quase efemerídica da família dos Bórgia, com a única finalidade de me assegurar se a fortuna desses príncipes aumentara à data da morte do meu Cardeal César Spada, mas apenas notei a adição dos bens do Cardeal Rospijoíiosi, seu companheiro de infortúnio.
“Estava, portanto quase certo de que a herança não aproveitara nem aos Bórgia nem a família, mas sim ficara sem dono, como esses tesouros dos contos árabes que dormem no seio da terra sob a guarda de um gênio. Espiolhei, conferi e calculei milhares e milhares de vezes os rendimentos e as despesas da família durante trezentos anos. Tudo foi inútil: eu fiquei na minha e o Conde de Spada na sua miséria. O meu patrão morreu. Da sua renda vitalícia excetuara os seus documentos de família, a sua biblioteca constituída por cinco mil volumes e o seu famoso breviário. Legou-me tudo isso, juntamente com um milhar de escudos romanos que possuía em dinheiro, com a condição de mandar dizer missas anuais e de organizar uma árvore genealógica e uma história da sua casa, o que fiz escrupulosamente...
— Tranqüilize-se, meu caro Edmond, aproximamo-nos do fim.
“Em 1807, um mês antes da minha prisão e quinze dias depois da morte do Conde de Spada, em 25 de Dezembro, já vai compreender por que motivo esse dia memorável me ficou na memória, relia pela milésima vez aqueles papéis, que arrumava, pois o palácio pertencia então a um estrangeiro e eu ia deixar Roma para me instalar em Florença, levando comigo uma dúzia de milhares de libras que possuía, a minha biblioteca e o meu famoso breviário, quando, cansado daquele estudo assíduo, maldisposto devido a um almoço bastante pesado que comera, deixei cair a cabeça nos braços e adormeci. Eram três horas da tarde.
“Acordei quando o relógio deu seis horas. Ergui a cabeça e vi-me mergulhado na escuridão mais profunda. Toquei para que me trouxessem luz, mas ninguém apareceu. Resolvi então servir-me a mim mesmo. Seria, de resto, um hábito de filósofo que acabaria por adquirir. Segurei com uma das mãos uma vela já preparada e com outra procurei, à falta de fósforos que não havia na caixa, um papel que contava acender num resto de chama que dançava na lareira. Hesitava, porém receando, nas trevas pegar num papel precioso em vez de num papel inútil, quando me lembrei de ter visto no famoso breviário, que estava pousado na mesa a meu lado, um papel velho todo amarelecido da parte de cima, que parecia servir de sinal, e que atravessara os séculos conservado no seu lugar pela veneração dos herdeiros. Procurei às apalpadelas essa folha inútil, encontrei-a, torci-a e, chegando-a à chama mortiça, acendi-a.
“Mas como que por magia, à medida que o fogo subia debaixo dos meus dedos, vi saírem do papel branco e aparecerem na folha caracteres amarelados. Então, o terror apoderou-se de mim. Apertei o papel nas mãos, abafei o fogo, acendi a vela diretamente na lareira, reabri com indizível emoção a carta amarrotada e reconheci que uma tinta misteriosa e simpática traçara aquelas letras, somente visíveis ao contato com o calor forte. Pouco mais de um terço do papel fora consumido pela chama. Era o papel que você lera esta manhã. Releia-o, Dantés. Depois de o reler, completarei as frases interrompidas e o sentido incompleto.
Faria calou-se e estendeu o papel a Dantés, que desta vez releu avidamente as seguintes palavras traçadas com uma tinta ruça, semelhante à ferrugem:

Hoje, 25 de Abril de 1498, tem
Alexandre VI, e receando que, não
deseje herdar de mim e me re
e Bentivoglio, mortos envenenados,
meu herdeiro universal, que es
por o ter visitado comigo, isto é nas
Ilha de Monte Cristo, tudo o que pos
drarias, diamantes e jóias; que só
pode ascender a dois mil
encontrar levantando a vigésima roch
enseadazinha do leste, em linha reta. Foram praticadas
nessas grutas; o tesouro está no canto mais a
o qual tesouro lhe lego e cedo em prop
único herdeiro.
25 de Abril de 1498.

CES

— Agora — prosseguiu o abade — Leia este outro papel.
E apresentou a Dantés segunda folha com outros fragmentos de linhas.
Dantés pegou-lhe e leu:

do sido convidado para jantar por Sua Santidade
contente com ter-me obrigado a pagar o chapéu,
serve o destino dos cardeais Crapara
declaro ao meu sobrinho Guido Spada,
condi num lugar que conhece
grutas da pequena
suo em lingotes ouro amoedado, pe
eu conheço a existência desse tesouro, que
hões de escudos romanos aproximadamente, e que
a a partir da
duas aberturas
fastado da segunda,
riedade plena como meu

AR SPADA.

Faria não despregava dele o olhar ardente.
— E agora — declarou quando ouviu que Dantés chegara a última linha — Junte os dois fragmentos e julgue por si mesmo.
Dantés obedeceu. Uma vez juntos, os dois fragmentos davam o seguinte conjunto:


Hoje, 25 de Abril de 1498 tendo sido convidado para jantar por Sua Santidade  Alexandre VI e receando que não contente com ter-me obrigado a pagar o chapéu deseje herdar de mim e me reserve o destino dos cardeais Crapara e Bentivoglio, mortos envenenados, declaro ao meu sobrinho Guido Spada, meu herdeiro universal que escondi num lugar que conhece, por o ter visitado comigo, isto é nas, grutas da pequena Ilha de Monte Cristo tudo o que possuo em lingotes ouro amoedado, pedrarias, diamantes e jóias; que só eu conheço a existência desse tesouro que pode ascender a dois milhões de escudos romanos aproximadamente, e que encontrará levantando a vigésima rocha a partir da enseadazinha do leste, em linha reta. Foram praticadas duas aberturas nessas grutas: o tesouro está no canto mais afastado da segunda, o qual tesouro lhe lego e cedo em propriedade plena como meu único herdeiro.

25 de Abril de 1498

CESAR SPADA.


— Então compreende agora? — perguntou Faria.
— Era a declaração do cardeal Spada e o testamento procurado havia tanto tempo? — inquiriu Edmond, ainda incrédulo.
— Sim, mil vezes sim!
— Quem o reconstituiu desta maneira?
— Eu, que, com o auxílio do fragmento restante, adivinhei o resto calculando o comprimento das linhas pelo do papel e penetrando no sentido oculto por meio do sentido visível, tal como nos orientamos num subterrâneo por um raio de luz vindo de cima.
— E que fez quando julgou ter adquirido essa convicção?
— Quis partir e parti imediatamente, levando comigo o princípio da minha grande obra sobre a unidade de um reino de Itália. Mas havia muito tempo que a Polícia Imperial me trazia debaixo de olho, pois nesse tempo, ao contrário do que pretendeu depois, quando lhe nasceu um filho, Napoleão queria a divisão das províncias. Por isso, a minha partida precipitada, por motivos que a Polícia estava longe de adivinhar quais fossem, despertou as suas suspeitas e prenderam-me no momento em que embarcava para Piombino. Agora — continuou Faria, olhando Dantés com expressão quase paternal — Agora, meu amigo, sabe tanto como eu a este respeito. Se alguma vez fugirmos juntos, metade do meu tesouro é seu; se eu morrer aqui e você conseguir fugir sozinho, pertence-lhe na totalidade.
— Mas — objetou Dantés, hesitante — Esse tesouro não terá neste mundo algum possuidor mais legítimo do que nós?
— Não, não, sossegue; a família extinguiu-se por completo. De resto, o último Conde de Spada nomeou-me seu herdeiro. Legando-me o breviário simbólico, legou-me o que ele continha. Não, não, sossegue: se conseguirmos deitar a mão a essa fortuna, poderemos gozá-la sem remorsos.
— E o senhor diz que o tesouro vale...
— Dois milhões de escudos romanos, mais ou menos treze milhões na nossa moeda.
— Impossível! — exclamou Dantés, assustado com a enormidade da verba.
— Impossível por quê? — prosseguiu o velho — A família Spada era uma das mais antigas e poderosas famílias do século XV. De resto nesse tempo, em que não havia qualquer espécie de especulação ou indústria, as acumulações de ouro e jóias não eram raras, e ainda hoje há famílias romanas que morreram de fome ao pé de um milhão de diamantes e pedrarias transmitidos vinculativamente, por não lhe poderem tocar.
Edmond julgava sonhar; pairava entre a incredulidade e a alegria.
— Guardei durante tanto tempo este segredo para consigo — continuou Faria — Primeiro para o experimentar e depois para o surpreender. Se nos tivéssemos evadido antes do meu ataque de catalepsia, lê-lo-ia conduzido a Monte Cristo. Agora — acrescentou com um suspiro — Será você quem lá me levará. Então, Dantés, não me agradece?
— Esse tesouro pertence-lhe, meu amigo — declarou Dantés — Pertence-lhe só a si, e eu não tenho nenhum direito a ele. Não sou seu parente.
— Você é meu filho, Dantés! — gritou o velho — Você é o filho do meu cativeiro, pois o meu estado condena-me ao celibato. Deus o enviou para confortar ao mesmo tempo o homem que não podia ser pai e o prisioneiro que não podia ser livre.
E Faria estendeu o braço que lhe restava ao rapaz, que se lhe agarrou ao pescoço chorando.




  
 continua...



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