quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 32


XXXII

DESPERTAR




Q
uando Franz voltou a si, os objetos exteriores pareciam a segunda parte do seu sonho. Julgou-se num sepulcro onde apenas penetrava, como um olhar de compaixão, um raio de sol. Estendeu a mão e sentiu pedra. Sentou-se e verificou que estivera deitado na sua capa, num leito de urzes secas, muito macio e odorífero. Desaparecera por completo qualquer visão e, como se as estátuas não tivessem passado de sombras saídas dos seus túmulos enquanto ele sonhava, tinham fugido ao vê-lo despertar.
Deu alguns passos na direção de onde vinha a luz. A toda a agitação do sonho sucedia a calma da realidade. Viu-se numa gruta, dirigiu-se para o lado da abertura e através da porta abobadada distinguiu um céu azul e um mar igualmente azul. O ar e a água resplandeciam batidos pelos raios do sol da manhã.
Os marinheiros estavam sentados à beira-mar, conversando e rindo, e a dez passos, mar adentro, a barca balouçava-se graciosamente presa à âncora.
Durante algum tempo saboreou a brisa fresca que lhe batia na testa, escutou o barulho abafado das vagas que se desfaziam na margem e deixavam nas rochas uma renda de espuma branca como prata e entregou-se sem refletir, sem pensar, ao encanto divino que existe nas coisas da natureza e que descobrimos sobretudo quando saímos de um sonho fantástico. Depois, pouco a pouco, a vida exterior, tão calma, tão pura, tão grande, recordou-lhe a inverosimilhança do seu sono e as recordações começaram a voltar-lhe à memória.
Lembrou-se da sua chegada à ilha, da sua apresentação a um chefe de contrabandistas, de um palácio subterrâneo cheio de esplendores, de uma ceia excelente e de uma colher de haxixe.
Simplesmente, perante a realidade da luz do dia, parecia-lhe haver pelo menos um ano que todas essas coisas tinham acontecido, de tal forma o sonho que sonhara estava vivo no seu pensamento e era importante para o seu espírito. Por isso, de vez em quando a sua imaginação fazia sentar no meio dos marinheiros ou atravessar um rochedo, ou balançar-se na barca, uma das sombras que lhe tinham estrelado a noite com os seus beijos. Fora isso, tinha a cabeça perfeitamente desanuviada e o corpo perfeitamente repousado. Nenhum peso no cérebro, mas pelo contrário um certo bem-estar geral, uma faculdade de absorver o ar e o sol maior do que nunca.
Aproximou-se alegremente dos marinheiros. Assim que o viram, levantaram-se e o patrão aproximou-se dele.
— O Sr. Simbad — disse-lhe — Encarregou-nos de apresentarmos os seus cumprimentos a Vossa Excelência e de lhe exprimirmos o seu pesar por não lhe poder apresentar as suas despedidas. Mas espera que o desculpe quando souber que um assunto urgentíssimo o chamou a Málaga.
— Ora ainda bem, meu caro Caetano — disse Franz — Que tudo isto é realmente verdade. Existe de fato um homem que me recebeu nesta ilha, me concedeu uma hospitalidade régia e partiu enquanto eu dormia?
— Tanto existe que ainda se vê o seu iatezinho afastar-se, com todas as velas içadas, e se Vossa Excelência pegar no seu óculo de longo alcance reconhecerá, muito provavelmente, o seu anfitrião no meio dos seus tripulantes.
Ao dizer estas palavras, Caetano estendia o braço na direção de um naviozinho que navegava na direção da ponta meridional da Córsega.
Franz pegou o óculo, regulou-o e apontou-o para o local indicado.
Caetano não se enganara. À ré do navio, o misterioso estrangeiro recortava-se de pé, virado para o lado de Franz, e tendo como este um óculo na mão. Envergava ainda a indumentária com que aparecera na véspera ao seu conviva e agitava o lenço em sinal de despedida.
Franz retribuiu-lhe a saudação tirando por sua vez o lenço da algibeira e agitando-o como ele agitava o seu. Passado um segundo, formou-se à popa do navio uma leve nuvem de fumo, que se afastou graciosamente da ré e subiu lentamente para o céu. Em seguida chegou aos ouvidos de Franz uma fraca detonação.
— Veja, ouça! — exclamou Caetano — Está dizendo-lhe adeus!
O jovem pegou na carabina e descarregou-a no ar, mas sem esperança de que os estampidos conseguissem transpor a distância que separava o iate da costa.
— Que ordena Vossa Excelência? — perguntou Caetano.
— Primeiro, que me acenda um archote.
— Ah, sim, compreendo! — exclamou o patrão — Quer procurar a entrada do palácio encantado. À vontade, Excelência. Se isso o diverte, vou dar-lhe o archote que pretende. Eu também já fui dominado por essa idéia e tentei três ou quatro vezes, mas acabei por desistir. Giovanni — acrescentou — Acende um archote e traga-o a Sua Excelência.
Giovanni obedeceu. Franz pegou o archote e entrou no subterrando, seguido de Caetano. Reconheceu o lugar onde acordara, no seu leito de urzes ainda todo pisado; mas em vão passeou o archote por toda a superfície exterior da gruta: não viu nada, exceto vestígios de fumo de outros que antes dele já tinham tentado inutilmente a mesma investigação.
Contudo, não deixou um pé daquela muralha granítica, impenetrável como o futuro, por examinar. Não viu uma fenda onde não introduzisse a lâmina da sua faca de caça; não notou um ponto saliente em que não carregasse, na esperança de que cedesse, mas tudo foi inútil e perdeu sem nenhum resultado duas horas de buscas.
Ao fim desse tempo desistiu. Caetano estava triunfante.
Quando Franz regressou à praia o iate não era mais do que um pontinho branco no horizonte. Recorreu ao óculo, mas mesmo com ele foi-lhe impossível distinguir qualquer coisa.
Caetano lembrou-lhe que viera para caçar cabras, o que esquecera por completo. Pegou a espingarda e pôs-se a percorrer a ilha com o ar de um homem que cumpre mais um dever do que se proporciona um prazer, e passado um quarto de hora matara uma cabra e dois cabritos. Mas as cabras, apesar de bravas e ariscas como camurças, pareciam-se demasiado com as nossas cabras domésticas e Franz não as olhava como caça.
Além disso, idéias muito mais absorventes dominavam-lhe o espírito. Desde a véspera que era realmente o herói de um conto das Mil e Uma Noites, e sentia-se irresistivelmente atraído para a gruta.
Então, apesar da inutilidade da primeira busca, recomeçou segunda, depois de dizer a Caetano que mandasse assar um dos dois cabritos. A segunda busca durou bastante mais tempo, pois quando regressou o cabrito estava assado e o pequeno-almoço pronto.
Franz sentou-se no lugar onde na véspera o tinham vindo convidar para cear da parte do seu misterioso anfitrião, e descortinou ainda, como uma gaivota embalada na crista de uma vaga, o iatezinho, que continuava a navegar para a Córsega.
— Mas — observou a Caetano — Você disse-me que o Sr. Simbad ia para Málaga e a mim parece me que se dirige diretamente para Porto-Vecchio.
— Já não se lembra — respondeu o patrão — Que entre a sua tripulação lhe disse haver de momento dois bandidos corsos?
— É verdade! E vai desembarcá-los na costa? — perguntou Franz.
— Justamente. Oh, é um homem que, segundo se diz, não teme nem Deus nem o Diabo e que é capaz de se desviar cinqüenta léguas da sua rota para ser prestável a um pobre diabo!
— Mas esse gênero de favores poderá muito bem acarretar-lhe dissabores com as autoridades do país onde exerce semelhante filantropia — observou Franz.
— Bom — perguntou Caetano, rindo — Que podem as autoridades contra ele? Está-se nas tintas para elas! Que tentem persegui-lo. Primeiro, o seu iate não é um navio vulgar, é uma ave, e ele daria três nós de avanço em doze a uma fragata, e depois lhe bastaria desembarcar na costa para encontrar amigos por toda a parte.
O que havia de mais claro em tudo aquilo é que o Sr. Simbad, anfitrião de Franz, tinha a honra de manter relações com os contrabandistas e os bandidos de todas as costas do Mediterrâneo, o que não deixava de o colocar numa posição bastante estranha.
Quanto a Franz, já nada o retinha em Monte Cristo. Como já perdera toda a esperança de descobrir o segredo da gruta, apressou o pequeno almoço e ordenou aos seus homens que tivessem a embarcação pronta quando acabasse de comer.
Meia-hora depois estava a bordo.
Deitou um último olhar ao iate; estava prestes a desaparecer no golfo de Porto-Vecchio. Deu o sinal de partida. No momento em que a embarcação se pôs em movimento, o iate desapareceu. Com ele esfumava-se a derradeira realidade da noite anterior. Para Franz, ceia, Simbad, haxixe e estátuas tudo começava a misturar-se no mesmo sonho.
A embarcação navegou todo o dia e toda a noite, e no dia seguinte, quando o Sol nasceu, desaparecera por sua vez a Ilha de Monte Cristo.
Assim que pôs pé em terra, Franz esqueceu, pelo menos momentaneamente, os acontecimentos que acabara de viver, para terminar os seus compromissos de prazer e cortesia em Florença e ir juntar-se ao amigo que o esperava em Roma.
Partiu, portanto e chegou à Praça da Alfândega, na diligência, no sábado à noite.
Como dissemos, o quarto fora reservado com antecedência e tudo o que tinha a fazer era dirigir-se para o hotel de mestre Pastrini, o que não era coisa muito fácil, pois a multidão enchia as ruas e Roma era já presa desse rumor abafado e febril que precede os grandes acontecimentos.
Ora em Roma há quatro grandes acontecimentos por ano: o Carnaval, a Semana Santa, a Festa do Corpo de Deus e o S. Pedro. Durante todo o resto do ano a cidade recai na sua triste apatia, estado intermediário entre a vida e a morte, que a torna semelhante a uma espécie de estação entre este mundo e o outro, estação sublime, paragem cheia de poesia e caráter que Franz já experimentara cinco ou seis vezes e que de cada vez achara ainda mais maravilhosa e fantástica.
Por fim, conseguiu atravessar a multidão, cada vez mais densa e agitada, e alcançou o hotel. À sua primeira pergunta responderam-lhe, com a impertinência característica dos cocheiros de fiacre reservados e dos hoteleiros com a lotação esgotada, que já não havia lugar para ele no Hotel de Londres. Então mandou o seu cartão a mestre Pastrini e exigiu a presença de Albert de Morcerf. O processo resultou e mestre Pastrini acorreu pessoalmente, desculpando-se por ter feito esperar Sua Excelência, desatou a ralhar com os empregados, tirou o castiçal da mão do cicerone que já se assenhoreara do viajante e preparava-se para o acompanhar junto de Albert quando este veio ao seu encontro.
Os aposentos reservados compunham-se de dois quartinhos e de um gabinete. Os dois quartos davam para a rua, circunstância que mestre Pastrini fez valer como se lhos acrescentasse mérito apreciável. O resto do andar estava alugado a uma personagem riquíssima, tida por siciliana ou maltesa. O hoteleiro não foi capaz de dizer ao certo de qual das duas nacionalidades era o viajante.
— Está tudo bem, mestre Pastrini — disse Franz — Mas precisamos imediatamente de uma ceia para esta noite e de uma coche para amanhã e para os dias seguintes.
— Quanto à ceia — respondeu o hoteleiro — Serão servidos neste mesmo instante; mas quanto à coche...
— Como, quanto à coche?! — protestou Albert — Um momento, um momento! Deixemo-nos de brincadeiras, mestre Pastrini... precisamos de uma coche!
— Senhor, faremos tudo o que pudermos para lhes arranjar uma — respondeu o hoteleiro — É tudo o que lhes posso prometer.
— E quando teremos a resposta? — perguntou Franz.
— Amanhã de manhã — respondeu o hoteleiro.
— Que diabo, nós a pagaremos mais cara e pronto! — interveio Albert — Sabemos como isso é: no Drake ou no Aaron, vinte e cinco francos nos dias vulgares e trinta ou trinta e cinco francos nos Domingos e dias festivos. Ponha-lhe mais cinco francos por dia de corretagem, o que dar quarenta, e não se fala mais nisso.
— Receio muito, meus senhores, que mesmo oferecendo o dobro a não consigam arranjar.
— Então que atrelem cavalos à minha. Está um bocado deteriorada da viagem, mas não faz mal.
— Não se arranjarão cavalos.
Albert olhou para Franz como um homem a quem tivessem dado uma resposta que lhe parecesse incompreensível.
— Compreende isto, Franz? Não há cavalos! Mas cavalos de posta, não se poderão arranjar?
— Estão todos alugados há quinze dias e só restam os absolutamente necessários ao serviço.
— Que diz você a isto, Albert? — perguntou Franz.
— Digo que quando uma coisa excede a minha inteligência, tenho o hábito de não insistir nessa coisa e passar a outra. A ceia está pronta, mestre Pastrini?
— Está, sim, Excelência.
— Então ceemos primeiro.
— Mas a coche e os cavalos? — insistiu Franz.
— Esteja tranqüilo, caro amigo, que eles aparecerão É tudo uma questão de preço.
E Morcerf, com essa filosofia admirável que não considera nada impossível, desde que se sinta a bolsa recheada ou a carteira bem fornecida, ceou, deitou-se, dormiu a sono solto e sonhou que brincava o carnaval num coche puxado por seis cavalos.






continua...



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