sexta-feira, 29 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 33



XXXIII

BANDIDOS ROMANOS




N
o dia seguinte; Franz foi o primeiro a acordar, e assim que acordou tocou. O tinido da campainha ainda vibrava quando mestre Pastrini entrou em pessoa.
— Pronto — disse o hoteleiro triunfante e sem sequer esperar que Franz o interrogasse — Razão tinha eu ontem, Excelência, em não querer prometer nada. Decidiram-se demasiado tarde e já não há um único coche em Roma... para os três últimos dias, claro.
— Claro — repetiu Franz — Isto é, para aqueles em que é absolutamente necessária.
— Que se passa? Não há coche? — perguntou Albert, entrando.
— Exatamente; meu caro amigo — respondeu Franz — Adivinhou logo de primeira.
— Sim, senhor, saiu-me uma bonita cidade a vossa cidade eterna!...
— O que quero dizer, Excelência — interveio mestre Pastrini, que desejava que a capital do mundo cristão mantivesse certa dignidade aos olhos dos seus hóspedes — O que quero dizer é que já não há coches a partir de Domingo de manhã e até terça-feira à noite, mas daqui até Domingo arranjarão cinqüenta, se quiserem.
— Já é alguma coisa — observou Albert — Hoje é quinta-feira; quem sabe o que poderá acontecer daqui até Domingo?...
— Chegarão dez a doze mil pessoas — respondeu Franz — Que tornarão as dificuldades ainda maiores.
— Meu amigo — sentenciou Morcerf — Gozemos o presente e não agouremos o futuro.
— Poderemos ao menos ter uma janela? — perguntou Franz.
— Para onde?
— Para a Rua do Corso, com a breca!
— Claro, uma janela!... — exclamou mestre Pastrini — Impossível, absolutamente impossível! Não resta nem uma mesmo no quinto andar do Palácio Dória. A que havia foi alugada a um príncipe russo por vinte sequins por dia.
Os dois jovens entreolharam-se com ar estupefato.
— Bom, meu caro — disse Franz a Albert — Sabe que há de melhor a fazer? É irmos passar o carnaval em Veneza. Ao menos lá, se não arranjarmos carruagens, arranjaremos gôndolas.
— Ah, isso não! — exclamou Albert — Decidi que veria o carnaval em Roma e o verei, nem que seja a pé.
— Ora aí está uma excelente idéia, sobretudo para apagar os moccoletti! Mascaramo-nos de polichinelos-vampiros ou de habitantes das Landes e teremos um êxito louco.
— Suas Excelências ainda querem a carruagem até Domingo?
— Com a breca, julga que vamos correr a pé as ruas de Roma como praticantes de meirinho? — perguntou Albert.
— Vou cumprir imediatamente as ordens de Vossas Excelências — disse mestre Pastrini — Mas previno-os de que a carruagem lhos custará seis piastras por dia.
— E eu, meu caro Sr. Pastrini — disse Franz — Eu, que não sou o nosso vizinho milionário, previno-o pela minha parte de que, atendendo a que é a quarta vez que venho a Roma, sei o preço dos coches nos dias vulgares, nos Domingos e nos feriados. Lhe daremos doze piastras por hoje, amanhã e depois de amanhã e ainda terá um belíssimo, lucro.
— Mas, Excelência... — começou mestre Pastrini, tentando rebelar-se.
— Vamos, meu caro anfitrião, vamos, ou vou eu próprio combinar o preço com o seu affettatore, que é também o meu — atalhou Franz — Trata-se de um velho amigo que já me roubou bastante dinheiro na sua vida e que, na esperança de me roubar ainda mais, me fará um preço mais baixo do que o que lhe ofereço. Perderá, portanto a diferença e a culpa será sua.
— Não se incomode, Excelência — disse mestre Pastrini, com o sorriso do especulador italiano que se dá por vencido — Farei o melhor que puder e espero que fique contente.
— Ótimo! Ora aí está o que se chama falar.
— Quando querem a carruagem?
— Dentro de uma hora.
— Daqui a uma hora estará à porta.
Efetivamente, uma hora depois a carruagem esperava os dois jovens. Tratava-se de um modesto fiacre que, atendendo à solenidade da circunstância, fora elevado à categoria de coche. Mas, por mais medíocre que fosse o seu aspecto, os dois rapazes teriam, considerado muito felizes se pudessem dispor de um veículo assim nos três últimos dias.
— Excelência! — gritou o cicerone, vendo Franz chegar à janela — Posso mandar aproximar o coche do palácio?
Por mais habituado que Franz estivesse à ênfase italiana, o seu primeiro impulso foi olhar à sua volta. Mas era mesmo a ele próprio que aquelas palavras se dirigiam. Franz era a Excelência; o coche era o fiacre; o palácio era o Hotel de Londres.
Todo o engenho laudatório da nação estava contido naquela simples frase.
Franz e Albert desceram. O coche aproximou-se do palácio. Suas Excelências estenderam as pernas sobre os bancos fronteiros e o cicerone saltou para o assento de trás.
— Aonde querem Suas Excelências que os leve?
— Primeiro a São Pedro e depois ao Coliseu — respondeu Albert, como autêntico parisiense que era.
Mas Albert não sabia uma coisa: que é preciso um dia para ver São Pedro e um mês para o estudar. O dia passou-se, portanto apenas a visitar São Pedro.
De súbito, ambos notaram que entardecia.
Franz puxou o relógio e verificou que eram quatro e meia. Puseram-se imediatamente a caminho do hotel. À porta, Franz ordenou ao cocheiro que estivesse pronto às oito horas. Queria que Albert visse o Coliseu ao luar, tal como lhe mostrara São Pedro à luz do dia. Quando se mostra a um amigo uma cidade já conhecida, põe-se nisso a mesma presunção que se usa para mostrar uma mulher de que se foi amante.
Nesta conformidade, Franz traçou ao cocheiro o itinerário: devia sair pela Porta del Popolo, seguir ao longo da muralha exterior e reentrar pela Porta de San-Giovanni. Assim, o Coliseu lhe apareceria sem qualquer preparação e sem que o Capitólio, o Fórum, o Arco de Séptimo Severo, o Templo de Antonino e Faustina e a Via Sacra servissem de degraus colocados no caminho para o encurtar.
Sentaram-se à mesa. Mestre Pastrini prometera aos seus hóspedes uma boa refeição. Deu-lhes um jantar razoável. Não havia nada a dizer. Ele próprio apareceu no fim do jantar. Franz julgou a princípio que fosse para receber os seus cumprimentos e preparava-se para lhos dirigir quando ele o interrompeu às primeiras palavras.
— Excelência, estou lisonjeado com a sua aprovação, mas não foi para isso que vim...
— Foi para nos dizer que arranjou uma carruagem? — perguntou Albert, acendendo um charuto.
— Ainda menos, e até é Excelência, faria bem em não pensar mais nisso e tirar do caso o melhor partido. Em Roma, as coisas podem ou não se podem. Quando nos dizem que se não podem, acabou-se.
— Em Paris é mais cômodo: quando se não pode, paga-se o dobro e tem-se imediatamente o que se pretende.
— Tenho ouvido dizer isso de todos os franceses — disse mestre Pastrini um bocadinho irritado — O que me leva a não compreender porque motivo viajam.
— A verdade — disse Albert, expelindo fleumaticamente o fumo para o teto, inclinando-se para trás e balouçando-se nas duas pernas de trás do cadeirão — É que são os loucos e os parvos como nós que viajam. As pessoas sensatas não saem do seu palácio da Rua do Helder, do Bulevar de Gand e do Café de Paris.
Escusado ser dizer que Albert residia na rua citada, dava todos os dias o seu passeio de bom-tom e jantava diariamente no único café onde se janta quando se está bem relacionado com os criados.
Mestre Pastrini ficou um instante silencioso. Era evidente que meditava a resposta, que sem dúvida não lhe parecia perfeitamente clara.
— Mas enfim — disse Franz por seu turno, interrompendo as reflexões geográficas do seu hoteleiro — Veio com qualquer finalidade. Quer expor-nos o objeto da sua visita?
— Tem razão. Ei-lo: mandaram vir a coche às oito horas?
— Exatamente.
— Tencionam visitar il Colosseo?
— Quer dizer o Coliseu?
— É precisamente a mesma coisa.
— Seja.
— Disseram ao cocheiro para sair pela Porta del Popolo, dar a volta às muralhas e reentrar pela Porta de San-Giovanni?
— Foram essas as minhas próprias palavras.
— Pois bem, esse itinerário é impossível.
— Impossível?...
— Ou pelo menos perigosíssimo.
— Perigosíssimo... e porquê?
— Por causa do famoso Luigi Vampa.
— Antes de mais nada, meu caro hoteleiro, quem é o famoso Luigi Vampa? — perguntou Albert — Pode ser famosíssimo em Roma, mas previno-o de que é ignorado em Paris.
— Como, não o conhecem?!
— Não tenho essa honra.
— Nunca ouviu pronunciar o seu nome?
— Nunca.
— Bom, trata-se de um bandido comparado com o qual os Deseraris e os Gasparoni não passam de uma espécie de meninos de coro.
— Atenção, Albert, aí está finalmente um bandido! — exclamou Franz.
— Previno-o, meu caro hoteleiro, de que não acreditarei numa só palavra do que nos vai dizer. É ponto assente entre nós. Mas diga o que lhe apetecer que sou todo ouvidos. “Era uma vez...” Vá, comece!
Mestre Pastrini virou-se para Franz, que lhe parecia o mais razoável dos dois rapazes. Deve-se fazer justiça ao excelente homem: hospedara muitos franceses na sua vida, mas nunca compreendera certa faceta do seu espírito.
— Excelência — disse muito gravemente dirigindo-se, como se disse, a Franz — Se me considera um mentiroso, é inútil dizer-lhe o que tencionava dizer-lhe. Posso, no entanto afirmar-lhes que era no interesse de Vossas Excelências.
— Albert não lhe disse que era um mentiroso, meu caro Sr. Pastrini — perguntou Franz — Disse-lhe que não o acreditaria e mais nada. Mas eu acreditarei, esteja descansado. Fale.
— Contudo, Excelência, compreende muito bem que se põe em dúvida a veracidade das minhas palavras...
— Meu caro — observou Franz — O senhor é mais susceptível do que Cassandra, que no entanto era profetisa e que ninguém escutava, ao passo que você está seguro, pelo menos, de metade do seu auditório. Vejamos, sente-se e diga-nos: quem é o Sr. Vampa?
— Já lhe disse, Excelência: é um bandido como ainda não vimos nenhum desde o famoso Mastrilla.
— De acordo. Mas que relação tem esse bandido com a ordem que dei ao cocheiro de sair pela Porta del Popolo e entrar pela Porta de San-Giovanni?
— Tem — respondeu mestre Pastrini — Que podem muito bem sair por uma, mas duvido que entrem pela outra.
— Por quê? — perguntou Franz.
— Porque assim que anoitece não se está seguro a cinqüenta passos das portas.
— Palavra de honra? — troçou Albert.
— Sr. Visconde — volveu-lhe mestre Pastrini, ainda ferido até ao fundo do coração pela dúvida manifestada por Albert acerca da veracidade das suas palavras — Não digo isto por Vossa Excelência, digo-o pelo seu companheiro de viagem, que conhece Roma e sabe que se não brinca com estas coisas.
— Meu caro — disse Albert dirigindo-se a Franz — Aí está uma aventura admirável e natural: carregamos o nosso coche de pistolas, bacamartes e espingardas de dois tiros. Luigi Vampa vem para nos prender, mas nós é que o prendemos. Trazemo-lo para Roma, em homenagem a Sua Santidade, que nos pergunta o que pode fazer para recompensar tão grande serviço. Então, pedimos pura e simplesmente um coche e dois cavalos das suas cavalariças e assistimos ao carnaval de carruagem. Sem contar que provavelmente o povo romano, reconhecido, nos coroará no Capitólio e nos proclamará, como Cúrcio e Horácio Cocles, salvadores da pátria.
Enquanto Albert proferia estas palavras, mestre Pastrini fazia um rosto que em vão tentaríamos descrever.
— Antes de mais nada, onde arranjaria as pistolas, os bacamartes e as espingardas de dois tiros para encher a carruagem? — perguntou Franz a Albert.
— Garanto-lhe que não será no meu arsenal, porque em Terracina tiraram-me até a minha faca-punhal. E a você?
— A mim fizeram-me o mesmo em Aqua-Pendente.
— Aqui tem, meu caro hoteleiro! — exclamou Albert, acendendo segundo charuto na ponta do primeiro — Sabe que é muito cômoda para os ladrões essa medida, que para mim tem todo o ar de ter sido tomada contas a meias com eles?
Mestre Pastrini achou sem dúvida o gracejo comprometedor, pois só respondeu em parte, e mesmo assim dirigindo a palavra a Franz, como se este fosse a única pessoa sensata com quem se pudesse entender convenientemente.
— Vossa Excelência sabe que não é hábito as pessoas defenderem-se quando são atacadas por bandidos.
— Como?! — exclamou Albert, cuja coragem se revoltava à idéia de se deixar roubar sem dizer nada — Como? Não é hábito?...
— Não! Porque toda a defesa seria inútil. Que quer fazer contra uma dúzia de bandidos que saem de um fosso, de um pardieiro ou de um aqueduto e que o visam todos ao mesmo tempo?
— Com mil demônios, quero que me matem! — gritou Albert.
O hoteleiro virou-se para Franz com um ar que queria dizer: “Decididamente, Excelência, o seu companheiro é louco”.
— Meu caro Albert — declarou Franz — A sua resposta é sublime e vale o Quil mourt do velho Corneille. Simplesmente, quando Horácio respondia isso tratava-se da salvação de Roma e a coisa valia a pena. Mas quanto a nós repare que se traía simplesmente da satisfação de um capricho e que seria ridículo, por um capricho, arriscarmos a vida.
— Per Bacco! — exclamou mestre Pastrini — Ora aí está o que se chama falar!
Albert serviu-se de um copo de lacryma christi, que bebeu aos golinhos, resmungando palavras ininteligíveis.
— Agora, mestre Pastrini — prosseguiu Franz — Que o meu companheiro está calmo e o senhor teve ensejo de apreciar as minhas disposições pacificas; agora, vejamos quem é o Sr. Luigi Vampa? É pastor ou patrício? Novo ou velho? Baixo ou alto? Descreva-o, a fim de, se o encontrarmos por acaso no mundo como Jean Sbogar ou Lara, possamos ao menos reconhecê-lo.
— Não poderia dirigir-se a ninguém mais indicado do que eu, Excelência, para ter pormenores exatos, pois conheci Luigi Vampa em criança. E até um dia em que eu próprio lhe caí nas mãos, ao ir de Ferentino para Alatri, teve a sorte de lembrar-se de mim, do nosso antigo conhecimento. Deixou-me passar, não só sem me fazer pagar o resgate, mas também só depois de me oferecer um riquíssimo relógio e de me contar a sua história.
— Vejamos o relógio.
Mestre Pastrini tirou da algibeira do colete um magnífico Breguet com o nome do seu autor, a marca de Paris e uma coroa de conde.
— Aqui o tem — disse.
— Apre! — exclamou Albert — Os meus cumprimentos. Tenho um mais ou menos idêntico — e tirou o relógio da algibeira do colete — Mas custou-me três mil francos.
— Ouçamos a história — disse Franz por seu turno, puxando uma poltrona e fazendo sinal a mestre Pastrini para se sentar.
— Vossas Excelências me dão licença? — perguntou o hoteleiro.
— Por Deus, você, meu caro, não é um pregador para falar de pé — observou Albert.
O hoteleiro sentou-se depois de fazer a cada um dos seus futuros ouvintes uma saudação respeitosa, a qual tinha como finalidade indicar que estava pronto a prestar a respeito de Luigi Vampa as informações que desejassem.
— Um momento! — pediu, Franz, detendo mestre Pastrini quando este já abria a boca — Diz que conheceu Luigi Vampa em pequeno. É, portanto, ainda um homem novo?
— Como um homem novo?... Evidentemente que sim. Tem apenas vinte e dois anos! Oh, é um figurão que irá longe, podem ter certeza!
— Que diz a isto, Albert? É belo, aos vinte e dois anos, ter conseguido uma reputação — comentou Franz.
— Sim, decerto. Na sua idade, Alexandre, César e Napoleão, que depois fizeram certo barulho no mundo, não estavam tão adiantados como ele.
— Portanto, o herói cuja história vamos ouvir só tem vinte e dois anos? — prosseguiu Franz, dirigindo-se ao hoteleiro.
— Só, como já tive a honra de lhe dizer.
— É alto ou baixo?
— De estatura média. Pouco mais ou menos como Sua Excelência — respondeu o hoteleiro, indicando Albert.
— Obrigado pela comparação — disse este, inclinando-se.
— Continue, mestre Pastrini — interveio Franz, sorrindo da susceptibilidade do amigo — E a que classe da sociedade pertencia?
— Era um simples pastorinho ligado à quinta do conde de San-Felice, situada entre a Palestrina e o lago de Gabri. Nascera em Pampinara e entrara aos cinco anos de idade ao serviço do conde. O pai, que também era pastor em Anagni, tinha um rebanhozito e vivia da lã dos seus carneiros e da venda do leite das suas ovelhas, que vinha negociar a Roma. Ainda criança, o pequeno Vampa já tinha um caráter estranho. Um dia, contava sete anos, procurou o pároco de Palestrina e pediu-lhe que o ensinasse a ler. Era coisa difícil, porque o jovem pastor não podia abandonar o rebanho. Mas o bom do pároco ia todos os dias dizer missa numa pobre aldeola, muito pouco considerável para pagar a um padre, e que como nem sequer tinha nome era conhecida pelo de Borgo. O padre propôs a Luigi que se encontrasse com ele no caminho à hora do seu regresso. Dar-lhe-ia assim a lição, mas preveniu-o de que a lição seria curta e de que deveria por conseqüência aproveitá-la.
“O garoto aceitou com alegria. Todos os dias, Luigi levava o rebanho a pastar no caminho de Palestrina ao Borgo; todos os dias às nove da manhã o pároco passava, o padre e o garoto sentavam-se à beira de uma vala e o pastorinho dava a sua lição pelo breviário do sacerdote. Passados três meses sabia ler. Mas isso não bastava; precisava agora de aprender a escrever. O padre mandou fazer a um professor de caligrafia de Roma três abecedários: um grande, um médio e um pequeno, e mostrou-lhe que copiando o abecedário numa ardósia com uma pena de ferro poderia aprender a escrever. Nessa mesma tarde, quando o rebanho regressou à quinta, o pequeno Vampa, correu à oficina do ferreiro de Palestina, pegou num grande prego, forjou-o, martelou-o, arredondou-o e transformou-o numa espécie de estilete antigo.
“No dia seguinte reuniu uma provisão de ardósia e meteu mãos à obra. Passados três meses sabia escrever. O pároco, atônico com aquela profunda inteligência e impressionado com semelhante aptidão, ofereceu-lhe diversos cadernos de papel, um pacote de penas e um canivete. Foi uma nova aprendizagem, mas uma aprendizagem que não era nada comparada com a primeira. Passados oito dias, manejava a pena como manejava o estilete. O pároco contou o caso ao conde de San-Felice, que quis ver o pastorinho, o mandou ler e escrever na sua presença, ordenou ao intendente que o mandasse comer com os criados e deu-lhes duas piastras por mês.
“Com esse dinheiro, Luigi comprou livros e lápis. Com efeito, aplicava a todos os objetos a facilidade de imitação que possuía e, como Giotto em criança, desenhava nas suas ardósias as suas ovelhas, as árvores e as casas. Depois, com a ponta do canivete começou a talhar a madeira e a dar-lhe todas as espécies de formas. Fora assim que Pinelli, o escultor popular, começara. Uma pequenina de seis ou sete anos, isto é, um bocadinho mais nova do que Vampa, guardava por seu turno as ovelhas de uma quinta perto de Palestrina. Era órfã, nascera em Valmontone e chamava-se Teresa.
“As duas crianças encontravam-se, sentavam-se ao lado uma da outra, deixavam os seus rebanhos misturar-se e pastar juntos, conversavam, riam e brincavam. Depois, à tardinha, separavam os carneiros do conde de San-Felice dos do barão de Cervetri e os garotos regressavam às respectivas quintas, prometendo encontrarem-se de novo no dia seguinte de manhã. No dia seguinte cumpriam a sua palavra e cresciam assim lado a lado.
“Vampa fez doze anos e a pequena Teresa onze. Entretanto, os seus instintos naturais desenvolviam-se. A par do gosto pelas artes, que Luigi levara tão longe quanto lhe era possível naquele isolamento, era triste por natureza, ardente por impulso, colérico por capricho e sempre trocista. Nenhum dos rapazes de Pampinara, de Palestrina ou de Valmontone conseguira não só adquirir qualquer influência sobre ele, mas também tornar-se seu companheiro. O seu temperamento voluntarioso, sempre disposto a exigir sem nunca se querer vergar a qualquer concessão, afastava dele qualquer gesto amistoso, qualquer demonstração de simpatia. Só Teresa dominava com uma palavra, um olhar, um gesto aquele caráter obstinado que cedia sob a mão de uma mulher, mas que sob a de um homem, fosse ele qual fosse, se retesaria até quebrar. Teresa era, pelo contrário, viva, ladina e alegre, e também excessivamente vaidosa. As duas piastras que o intendente do conde de San-Felice dava a Luigi e o produto de todas as esculturazinhas que vendia aos comerciantes de brinquedos de Roma, transformavam-se em brincos de contas, em colares de vidrilhos e em agulhas de ouro. Assim, graças à prodigalidade do seu jovem amigo, Teresa era a mais bela e elegante camponesa dos arredores de Roma.
“As duas crianças continuaram a crescer, a passar todo o dia juntas e a entregar-se sem resistência aos instintos da sua natureza primitiva. Por isso, nas suas conversas, nos seus desejos e nos seus sonhos, Vampa via-se sempre comandante de navio de guerra, general de exército ou governador de uma província. E Teresa via-se rica, metida nos mais lindos vestidos e seguida de criados de libré. Depois de passarem todo o dia tecendo o seu futuro com tão loucos e brilhantes arabescos, separavam-se para reconduzirem os seus carneiros ao aprisco e descerem das alturas dos seus sonhos à humildade da sua verdadeira posição.
“Um dia, o jovem pastor disse ao intendente do conde que vira um lobo sair das montanhas da Sabine e rondar-lhe o rebanho. O intendente deu-lhe uma espingarda. Era o que Vampa queria. Por acaso, a espingarda era uma excelente arma de Bréscia, que disparava balas com a precisão de uma carabina inglesa. Simplesmente, um dia o conde, ao matar uma raposa ferida, partira-lhe a coronha e a espingarda fora atirada para o refugo. Isso, porém não constituía nenhuma dificuldade para um escultor como Vampa. Examinou a coronha primitiva, calculou o que seria preciso modificar para a adaptar à sua vista e fez outra coronha carregada de ornamentos tão maravilhosos que se quisesse ir vendê-la à cidade lhe dariam certamente, só pela madeira, quinze ou vinte piastras.
“Mas nem pela cabeça lhe passava fazer isso. Uma espingarda fora durante muito tempo o sonho do rapaz. Em lodos os países em que a independência substitui a liberdade a primeira necessidade que experimenta qualquer coração forte, qualquer organização poderosa, é a de possuir uma arma que assegure ao mesmo tempo o ataque e a defesa e que, tornando terrível aquele que a usa, o torne com freqüência temido. A partir daquele momento, Vampa dedicou todos os momentos livres a exercitar-se com a espingarda. Comprou pólvora e balas e tudo lhe serviu de alvo: o tronco da oliveira triste, enfezada e cinzenta que vegetava na vertente das montanhas da Sabine; a raposa que à tardinha saia do seu covil para começar a sua caçada noturna, e a águia que planava no ar. Em breve se tornou tão hábil que Teresa perdeu o medo que experimentara ao princípio ao ouvir as detonações e divertiu-se a ver o seu jovem companheiro colocar a bala da espingarda onde queria, com tanta precisão como se fosse colocá-la com a mão.
“Uma tarde, um lobo saiu efetivamente de um bosque de abetos junto do qual os dois jovens costumavam instalar-se. Mas ainda não dera dez passos em campo aberto quando caiu morto. Orgulhosíssimo do seu belo tiro, Vampa pô-lo às costas e levou-o para a quinta. Todas estas proezas davam a Luigi certa fama nos arredores da quinta. Onde quer que se encontre, o homem superior arranja uma clientela de admiradores. Nas redondezas falava-se do jovem pastor como o mais hábil, o mais forte e o mais bravo contadino de dez léguas em redor; e embora pela sua parte Teresa, e num círculo ainda mais vasto, passasse por uma das mais bonitas moças da Sabine, ninguém se atrevia a dizer-lhe uma palavra de amor, porque a sabiam amada por Vampa.
“E, no entanto os dois jovens nunca tinham dito um ao outro que se amavam. Haviam crescido juntos como duas árvores que confundem as suas raízes debaixo do chão, os seus ramos no ar e o seu perfume no céu. Apenas o seu desejo de se verem era o mesmo. Esse desejo tornara-se uma necessidade e por isso mais depressa aceitariam a morte do que um só dia de separação.
“Teresa contava dezesseis anos e Vampa dezessete. Por essa altura começou-se a falar com insistência numa quadrilha de bandidos que se organizava nos montes Lepini. O banditismo nunca foi seriamente extirpado dos arredores de Roma. Às vezes faltam-lhe chefes, mas quando aparece um chefe é raro faltar-lhe uma quadrilha. O célebre Cucumetto, perseguido nos Abruzos e expulso do reino de Nápoles, onde sustentara uma verdadeira guerra, atravessara Garigliano como Manfredo e viera, entre Sonnino e Juperno, refugiar-se nas margens do Amasina. Era ele quem se ocupava da organização da quadrilha e que seguia as pisadas de Decesaris e Gasparone, que esperava em breve ultrapassar. Vários rapazes de Palestrina, Frascati e Pampinara desapareceram. De início, as pessoas preocuparam-se com o seu desaparecimento, mas não tardou a saber-se que se tinham ido juntar à quadrilha de Cucumetto.
“Passado algum tempo, Cucumetto tornou-se alvo das atenções gerais. Citavam-se por parte desse chefe de bandidos rasgos de audácia extraordinários e de revoltante brutalidade. Um dia, raptou uma moça, filha do agrimensor de Frosinone. As leis dos bandidos são positivas: uma moça pertence primeiro àquele que a raptou e depois os outros tiram à sorte e a desgraçada tem de se submeter aos prazeres de toda a quadrilha até os bandidos a abandonarem ou ela morrer. Quando os pais são bastante ricos para a resgatar, mandam-lhe um mensageiro tratar do resgate. A cabeça da prisioneira responde pela segurança do emissário. Se o resgate é recusado, a prisioneira está irremediavelmente condenada.
“A moça tinha um apaixonado na quadrilha de Cucumetto, chamado Carlini. Ao reconhecer o rapaz, a jovem estendeu-lhe os braços e julgou-se salva. Mas o pobre Carlini, quando viu de quem se tratava, sentiu o coração despedaçado, pois não tinha quaisquer dúvidas acerca da sorte que esperava a amada. No entanto, como era o favorito de Cucumetto, como havia três anos que compartilhava os seus perigos e como lhe salvara a vida abatendo a tiro de pistola um carabineiro que tinha já o sabre levantado sobre a cabeça do chefe, esperou que Cucumetto tivesse compaixão da moça. Chamou, portanto o chefe à parte, enquanto a jovem, sentada junto do tronco de um grande pinheiro que se erguia no meio de uma clareira da floresta, transformava em véu o toucado pitoresco das camponesas romanas e escondia o rosto aos olhares luxuriosos dos bandidos.
“Carlini contou tudo ao chefe: os seus amores com a prisioneira, os seus juramentos de fidelidade, e como todas as noites, desde que se encontravam nos arredores, se namoravam numas ruínas. Precisamente na noite do rapto, Cucumetto mandara Carlini a uma aldeia vizinha e ele não pudera comparecer ao encontro; mas Cucumetto passara por ali por acaso, segundo dissera, e fora então que raptara a jovem. Carlini suplicou ao chefe que abrisse uma exceção a seu favor e respeitasse Rita, dizendo-lhe que o pai era rico e pagaria um bom resgate. Cucumetto pareceu ceder às súplicas do amigo e encarregou-o de arranjar um pastor que pudessem mandar a casa do pai de Rita, em Frosinone.
“Então, Carlini aproximou-se muito contente da moça, disse-lhe que estava salva e convidou-a a escrever uma carta ao pai contando-lhe o que lhe acontecera e comunicando-lhe que o seu resgate fora fixado em trezentas piastras. Concediam ao pai apenas o prazo de doze horas, isto é, até ao dia seguinte às nove horas da manhã. Escrita a carta, Carlini apoderou-se imediatamente dela e correu para a planície em busca de um mensageiro. Encontrou um jovem pastor que recolhia o rebanho. Os mensageiros naturais dos bandidos são os pastores, que vivem entre a cidade e a montanha, entre a vida selvagem e a vida civilizada. O jovem pastor partiu imediatamente, prometendo chegar antes de uma hora a Frosinone. Carlini voltou para trás muito contente, disposto a ir ter com a amada e dar-lhe a boa nova.
“Encontrou a quadrilha na clareira, onde ceava alegremente provisões que os bandidos exigiam aos camponeses como um tributo. Em vão procurou Cucumetto e Rita no meio dos alegres convivas. Perguntou onde estavam; os bandidos responderam com uma grande gargalhada. Um suor frio correu pela testa de Carlini e sentiu a angústia agarrá-lo pelos cabelos. Repetiu a pergunta. Um dos convivas encheu um copo de vinho de Orvietto e estendeu-lhe dizendo:
“— À saúde do bravo Cucumetto e da bela Rita!
“Nesse momento Carlini julgou ouvir um grito de mulher. Adivinhou tudo. Pegou no copo, partiu-o no rosto do que lhe apresentava e correu na direção do grito. Dados cem passos, atrás de uma moita, encontrou Rita desmaiada nos braços de Cucumetto. Ao ver Carlini, Cucumetto levantou-se com uma pistola em cada mão. Os dois bandidos olharam-se um instante. Um com o sorriso da luxúria nos lábios, o outro com a palidez da morte na fronte. Diria-se ir acontecer entre os dois homens algo terrível. Mas, pouco a pouco, o rosto de Carlini descontraiu-se, e a sua mão, que levara a uma das pistolas que trazia à cintura, largou-a e pendeu-lhe ao lado do corpo. Rita estava deitada entre ambos. O luar iluminava a cena.
“— Então, fizeste o recado de que te encarregaste? — perguntou-lhe Cucumetto.
“— Fiz, sim, capitão — respondeu Carlini — E amanhã, antes das nove horas, o pai de Rita estará aqui com o dinheiro.
“— Ótimo! Entretanto, vamos passar uma noite divertida. A moça é encantadora e não há dúvida que tens bom gosto, mestre Carlini. Por isso, como não sou egoísta, vamos voltar para junto dos camaradas e tirar à sorte a quem pertencerá agora.
“— Assim, decidiu entregá-la à lei comum? — perguntou Carlini.
“— E porque abriríamos exceção a seu favor?
“— Julguei que o meu pedido...
“— Que é você mais do que os outros?
“— Tem razão.
“— Mas sossegue — prosseguiu Cucumetto rindo — Mais tarde ou mais cedo a sua vez chegará.
“Carlini apertou os dentes com força.
“— Vamos — disse Cucumetto, dando um passo na direção dos convivas — Não vem?
“— Já vou...
“Cucumetto afastou-se sem perder de vista Carlini, receando sem dúvida que o atacasse por trás. Mas nada no bandido denunciava uma intenção hostil. Estava de pé, com os braços cruzados, junto de Rita, que continuava desmaiada. Por instantes Cucumetto pensou que o rapaz a tomasse nos braços e fugisse com ela. Mas isso pouco lhe importava agora; possuíra Rita, como pretendia, e quanto ao dinheiro, trezentas piastras divididas pela quadrilha eram tão pouco que não se importava muito perdê-las. Continuou, pois o seu caminho para a clareira. Mas com grande espanto seu, Carlini chegou lá quase ao mesmo tempo que ele.
“— A tiragem à sorte! A tiragem à sorte! — gritaram todos os bandidos ao verem o chefe.
“E os olhos de todos aqueles homens brilharam de embriaguez e lascívia, enquanto as chamas da fogueira lançavam sobre as suas pessoa, um clarão avermelhado que os fazia parecer demônios. O que pediam era justo. Por isso, o chefe fez um sinal com a cabeça, anunciando que aquiescia ao pedido. Meteram-se todos os nomes num chapéu, o de Carlini como os dos outros, e o mais novo da quadrilha tirou da urna improvisada um boletim. O boletim tinha o nome de Diavolaccio. Era o mesmo que propusera a Carlini o brinde à saúde do chefe e a quem Carlini respondera quebrando-lhe o copo no rosto.
“Um grande ferimento aberto da têmpora à boca deixava correr o sangue aos borbotões. Ao ver-se assim favorecido pela sorte, Diavolaccio soltou uma gargalhada.
“— Capitão — disse — Há pouco, Carlini não quis beber à sua saúde. Convide-o agora a beber à minha, talvez seja mais condescendente consigo do que comigo.
“Todos esperavam uma explosão da parte de Carlini; mas com grande surpresa de todos, pegou num copo e numa garrafa, encheu o copo e disse com voz perfeitamente calma:
“— À tua saúde, Diavolaccio.
“E bebeu o conteúdo do copo sem que a mão lhe tremesse. Depois sentou-se ao pé da fogueira e pediu:
“— A minha parte da ceia! A corrida que acabo de fazer abriu-me o apetite.
“— Viva Carlini! — gritaram os bandidos.
“— Sim, senhor, isto é o que se chama levar as coisas como companheiro!
“E todos refizeram o círculo à volta da fogueira, enquanto Diavolaccio se afastava. Carlini comia e bebia como se nada se tivesse passado. Os bandidos olhavam-no com espanto, sem compreenderem aquela impassibilidade, quando ouviram passos pesados ressoarem no chão atrás deles. Viraram-se e viram Diavolaccio com a moça nos braços. Ela tinha a cabeça inclinada para trás e os seus longos cabelos pendiam até ao chão.
À medida que entravam no círculo da luz projetada pela fogueira, notava-se cada vez mais a palidez da jovem e do bandido. Aquela aparição tinha qualquer coisa de tão estranho e solene que todos se levantaram, exceto Carlini, que ficou sentado e continuou a comer e beber como se nada se passasse à sua volta. Diavolaccio continuava a avançar no meio do mais profundo silêncio, e depositou Rita aos pés do capitão. Então, todos verificaram a causa da palidez da jovem e do bandido: Rita tinha uma faca cravada até ao cabo por baixo do seio esquerdo.
“Todos os olhos se viraram para Carlini. A bainha que trazia à cintura estava vazia.
“— Ah, ah! — exclamou o chefe — Compreendo agora porque motivo Carlini ficou para trás.
“Toda a natureza selvagem está apta a apreciar uma ação forte. Por isso, embora talvez nenhum dos bandidos fosse capaz de fazer o que fizera Carlini, todos compreenderam o seu ato.
“— Vejamos — disse Carlini, levantando-se por sua vez e aproximando-se do cadáver com a mão na coronha de uma das suas pistolas — Ainda há alguém que me queira disputar esta mulher?
“— Não — respondeu o chefe — É tua!
“Então, Carlini tomou-a por seu turno nos braços e levou-a para fora do círculo de luz que projetava a chama da fogueira. Cucumetto dispôs as sentinelas como de costume e os bandidos deitaram-se envoltos nas suas capas à roda da fogueira. À meia-noite, uma sentinela deu o alerta e num instante o chefe e os companheiros levantaram-se.
“Era o pai de Rita, que vinha pessoalmente trazer o resgate da filha.
“— Tome — disse a Cucumetto, estendendo-lhe uma bolsa de dinheiro — Estão aí trezentas piastras, restitua-me a minha filha.
“Mas o chefe, sem pegar o dinheiro, fez-lhe sinal para que o seguisse. O velho obedeceu. Ambos se afastaram para debaixo das árvores, através de cujos ramos se filtrava o luar. Por fim, Cucumetto deteve-se, estendeu a mão e indicou ao velho duas pessoas reunidas ao pé de uma árvore.
“— Vê? — disse-lhe — Pede a tua filha a Carlini, é ele que a tem de entregar.
“E voltou para junto dos companheiros. O velho ficou imóvel e com os olhos fixos. Pressentia que qualquer desgraça desconhecida, imensa, inaudita, lhe pairava sobre a cabeça. Por fim, deu alguns passos para o grupo informe, que não conseguia identificar. Ao ouvir o ruído que o velho fazia ao avançar ao seu encontro, Carlini levantou a cabeça e as formas das duas pessoas surgiram mais distintas aos olhos do velho. Deitada no chão encontrava-se uma mulher, com a cabeça pousada nos joelhos de um homem sentado e inclinado sobre ela. Fora ao endireitar-se que o homem descobrira o rosto da mulher que apertava ao peito. O velho reconheceu a filha e Carlini reconheceu o velho.
“— Esperava-te — disse o bandido ao pai de Rita.
“— Miserável! — gritou o velho — O que você fez?
“E olhava com terror Rita, pálida, imóvel, ensanguentada, com uma faca espetada no peito. Um raio de luar batia nela e iluminava-a com uma luz baça.
“— Cucumetto violou a tua filha — disse o bandido — E como eu a amava, matei-a. Porque depois dele iria servir de joguete de toda a quadrilha.
“O velho não disse nada; apenas se tornou pálido como um espectro.
“— Agora — disse Carlini — Se fiz mal, vingue-a.
“E arrancou a faca do seio da moça, levantou-se e foi oferecê-la com uma das mãos ao velho, enquanto com a outra afastava a jaqueta e lhe oferecia o peito nu.
“— Fez bem — disse-lhe o velho, numa voz abafada — Abraça-me meu filho.
“Carlini lançou-se soluçando nos braços do pai da amada. Eram as primeiras lágrimas que vertia aquele homem sanguinário.
“— Agora — disse o velho a Carlini — Ajude-me a enterrar a minha filha.
“Carlini foi buscar duas enxadas e o pai e o apaixonado abriram uma cova ao pé de um carvalho cujos ramos frondosos deveriam cobrir a sepultura da jovem. Uma vez a cova aberta, o pai foi o primeiro a beijar a filha e depois o apaixonado. Em seguida, segurando-a um pelos pés e o outro pelos braços, desceram-na à cova. Finalmente, ajoelharam-se um de cada lado e rezaram as orações dos mortos. Quando terminaram, cobriram o cadáver de terra até a cova ficar cheia. Então, estendendo-lhe a mão, o velho disse a Carlini:
“— Obrigado, meu filho! Agora, deixe-me sozinho”.
“— Mas...
“— Deixe-me, te ordeno.
“Carlini obedeceu, foi juntar-se aos camaradas, enrolou-se na sua capa e em breve pareceu tão profundamente adormecido como os outros. Na véspera decidira mudar-se de acampamento. Uma hora antes de amanhecer, Cucumetto acordou os seus homens e deu ordem de partida. Mas Carlini não quis deixar a floresta sem saber o que acontecera ao pai de Rita. Dirigiu-se para o lugar onde o deixara. Encontrou o velho enforcado num dos ramos do carvalho que sombreavam a sepultura da filha. Fez então sobre o cadáver de um e a campa da outra o juramento de vingar ambos. Mas não pode cumprir o juramento, porque dois dias mais tarde, num encontro com os carabineiros romanos, Carlini foi morto.
“Simplesmente causou estranheza que, estando de frente para o inimigo, tivesse recebido uma bala entre as espáduas. Mas a estranheza cessou quando um dos bandidos observou aos seus camaradas que Cucumetto se encontrava dez passos atrás de Carlini quando Carlini caíra. Na manhã da partida da floresta de Frosinone, Cucumetto seguira Carlini na obscuridade, ouvira o juramento que ele fizera e, como homem precavido que era, antecipara-se. A respeito deste terrível chefe de quadrilha contavam-se mais dez histórias não menos curiosas do que esta. Assim, de Fondi a Perúsia todos tremiam só de ouvir o nome de Cucumetto.
“Tais histórias tinham sido muitas vezes tema de conversa entre Luigi e Teresa. A moça tremia toda ao ouvi-las, mas Vampa tranqüilizava-a com um sorriso, batendo na sua excelente espingarda, cujas balas eram infalíveis. Depois, se nem mesmo assim a jovem sossegava, mostrava-lhe a cem passos algum corvo empoleirado num ramo morto, metia a arma à cara, premia o gatilho e o animal, atingido, caia ao pé da árvore. Entretanto, o tempo ia passando. Os dois jovens tinham combinado casar-se quando tivessem Vampa vinte anos e Teresa dezenove. Eram ambos órfãos, só tinham de pedir licença ao patrão e haviam-na pedido e obtido.
“Um dia, quando conversavam acerca dos seus projetos de futuro, ouviram dois ou três tiros. Depois, de súbito, um homem saiu do bosque perto do qual os dois jovens costumavam fazer pastar os seus rebanhos e correu para eles. Quando chegou ao alcance da voz, gritou:
“— Sou perseguido! Podem-me esconder?
“Os dois jovens adivinharam sem dificuldade que o fugitivo devia ser algum bandido; mas existe entre o camponês e o bandido romano uma simpatia inata que leva o primeiro a estar sempre pronto a ajudar o segundo. Sem dizer nada, Vampa correu, portanto para a pedra que vedava a entrada da sua gruta, descobriu essa entrada puxando a pedra para si, fez sinal ao fugitivo para se refugiar naquele asilo desconhecido de todos, empurrou a pedra para o se lugar e voltou a sentar-se ao pé de Teresa. Quase imediatamente, apareceram na orla do bosque quatro carabineiros a cavalo. Três pareciam andar à procura do fugitivo, o quarto arrastava pelo pescoço um bandido prisioneiro.
“Os três carabineiros exploraram o local num relance de olhos, viram os dois jovens, correram para eles a galope e interrogaram-nos. Não tinham visto ninguém.
“— É pena — disse o cabo — Porque o que procuramos é o chefe.
“— Cucumetto?! — não puderam impedir-se de gritar ao mesmo tempo Luigi e Teresa.
“— Sim — respondeu o cabo — E como a sua cabeça estava posta a prêmio por mil escudos romanos, haveria quinhentos para vocês se nos ajudassem a prendê-lo.
“Os dois jovens entreolharam-se. O cabo teve um instante de esperança. Quinhentos escudos romanos equivalem a três mil francos, e três mil francos eram uma fortuna para dois pobres órfãos que iam casar.
“— Sim, é pena — respondeu Vampa — Mas não o vimos.
“Então os carabineiros bateram o local em várias direções, mas inutilmente. Depois, um após outro, desapareceram. Então, Vampa tirou a pedra e Cucumetto saiu. Este vira, através das frestas da porta de granito, os dois jovens falarem com os carabineiros, adivinhara o tema da conversa e lera no rosto de Luigi e de Teresa a resolução inquebrantável de o não entregar. Por isso, tirou da algibeira uma bolsa cheia de ouro e ofereceu-a. Mas Vampa ergueu a cabeça com orgulho; quanto a Teresa, os seus olhos brilharam ao pensar em tudo o que poderia comprar com aquele dinheiro: ricas jóias e lindos vestidos.
“Cucumetto era um diabo muito hábil que tomara a forma de um bandido em vez de uma serpente. Surpreendeu aquele olhar, reconheceu em Teresa uma digna filha de Eva e reentrou na floresta virando-se várias vezes a pretexto de saudar os seus libertadores. Passaram-se vários dias sem que ninguém visse Cucumetto nem se ouvisse falar dele. O Carnaval aproximava-se. O conde de San-Felice anunciou um grande baile de máscaras, para o qual tudo o que Roma tinha de mais elegante foi convidado. Teresa queria muito ver o baile. Luigi pediu ao seu protetor, o intendente, licença para ambos assistirem escondidos entre os criados da casa. A licença foi concedida. O conde dava o baile, sobretudo para ser agradável a sua filha Carmela, que adorava. Carmela era precisamente da idade e da estatura de Teresa, e Teresa era pelo menos tão bela como Carmela.
“Na noite do baile, Teresa pôs o seu mais bonito vestido, as suas mais ricas agulhetas e os seus mais brilhantes vidrilhos. Usava o traje das mulheres de Frascati. Luigi envergava o traje tão pitoresco do camponês romano em dias de festa. Ambos se misturaram, como lhes fora permitido, com os criados e os camponeses. A festa estava magnífica. Não só o palácio se encontrava feericamente iluminado, como também se viam milhares de lanternas coloridas suspensas das árvores do jardim. Por isso, em breve os convidados transbordaram do palácio para os terraços e dos terraços para as alamedas. Em cada cruzamento havia uma orquestra, bufes e refrescos. Os passeantes detinham-se, formavam-se quadrilhas e dançava-se onde apetecia dançar.
“Carmela envergava o traje das mulheres de Sonino: touca bordada a pérolas, presa ao cabelo por alfinetes de ouro e diamantes, faixa de seda turca com grandes flores bordadas, saia de caxemira e avental de musselina da índia. Os botões do corpete eram de pedras preciosas. Duas das suas companheiras estavam vestidas, uma de mulher de Netuno e a outra de mulher da Riccia. Acompanhavam-nas quatro jovens das mais ricas e nobres famílias de Roma, com essa liberdade italiana que não tem igual em nenhum outro país do mundo. Envergavam pela sua parte os trajes dos camponeses de Albano, de Velletri, de Civita-Castellana e de Sora. Escusado ser dizer que esses trajes de camponeses, assim como os das camponesas, resplandeciam de ouro e pedrarias. Carmela lembrou-se de fazer uma quadrilha uniforme; simplesmente, faltava-lhe uma mulher.
“Carmela olhava à sua volta, mas não via nenhuma convidada com um traje semelhante ao seu e ao das suas companheiras. O conde de San-Felice mostrou-lhe, no meio das camponesas, Teresa apoiada no braço de Luigi.
“— Dá licença, meu pai? — perguntou Carmela.
“— Sem dúvida — respondeu o conde — Não estamos no carnaval?
“Carmela inclinou-se para um rapaz que a acompanhava conversando e disse-lhe algumas palavras, ao mesmo tempo que lhe indicava com o dedo a moça. O jovem seguiu com a vista a bonita mão que lhe servia de condutora, fez um gesto de obediência e foi convidar Teresa a figurar na quadrilha dirigida pela filha do conde. Teresa sentiu como uma labareda passar-lhe pelo rosto. Interrogou Luigi com a vista; não havia maneira de recusar. Luigi deixou deslizar lentamente o braço de Teresa, que segurava no seu, e Teresa afastou-se conduzida pelo seu elegante cavalheiro e foi tomar lugar, toda trêmula, na quadrilha aristocrática.
“Claro que aos olhos de um artista o verdadeiro e severo, o traje de Teresa teria caráter muito diferente do de Carmela e das suas companheiras. Mas Teresa era uma moça frívola e vaidosa. Os bordados da musselina, as palmas da faixa e o brilho da caxemira deslumbravam-na, assim como o reflexo das safiras e dos diamantes a enlouquecia”.
“Pela sua parte, Luigi sentia nascer em si um sentimento desconhecido. Era como que uma dor surda que primeiro lhe mordia o coração e daí, tremente, lhe corria pelas veias e se lhe apoderava de todo o corpo. Seguia com a vista os menores movimentos de Teresa e do seu par, e quando as suas mãos se tocavam sentia como que deslumbramentos, as suas artérias latejavam com violência e vibrar-lhe aos ouvidos o som de um sino. Quando falavam, embora Teresa escutasse, tímida e de olhos baixos, as palavras do par, Luigi lia nos olhos ardentes do rapaz que essas palavras eram louvores, parecia-lhe que o chão girava debaixo de si e que todas as vozes do Inferno lhe sussurravam idéias de morte e assassínio. Então, temendo se deixar empolgar pela sua loucura, agarrava-se com uma das mãos ao bordo a que estava encostado de pé e com a outra apertava convulsivamente o punhal de cabo esculpido que trazia à cintura e que sem dar por isso tirava às vezes quase por completo da bainha.
“Luigi tinha ciúmes! Sentia que levada pela sua natureza vaidosa e orgulhosa Teresa lhe poderia fugir. Entretanto, a jovem camponesa a princípio tímida e quase amedrontada depressa se recompusera. Dissemos que Teresa era bonita. Não dissemos tudo: Teresa era graciosa, mas possuía era graça bravia muito mais poderosa do que a nossa graça dengosa e afetada. Teve quase as honras da quadrilha. E se invejou a filha do conde de San-Felice, ousamos dizer que Carmela a não invejou a ela. Por isso, foi com muitos cumprimentos que o seu belo par a reconduziu ao lugar onde a fora buscar e esperava Luigi. Duas ou três vezes, durante a contradança, a moça lhe deitara uma olhadela e de todas as vezes o vira pálido e de rosto crispado. Uma vez até a lâmina do seu punhal, meio tirado da bainha, cegara-a como um relâmpago sinistro. Foi pois quase trêmula que retomou o braço do amado.
“A quadrilha obtivera o maior êxito e era evidente que todos desejavam fazer segunda edição. Só Carmela se opunha a isso. Mas o conde de San-Felice insistiu com a filha tão ternamente que ela acabou por consentir. Imediatamente um dos cavalheiros se adiantou para convidar Teresa, sem a qual era impossível a contradança realizar-se, mas a moça já desaparecera. Com efeito, Luigi não se sentira com coragem para suportar segunda prova; e meio por persuasão, meio à força, arrastara Teresa para outro ponto do jardim. Teresa cedera muito a seu pesar; mas vira o rosto transtornada do rapaz e compreendera, pelo seu silêncio entrecortado de estremecimentos nervosos, que algo estranho se passava nele. Ela própria não estava isenta da agitação interior, e embora nada tivesse feito de mal, compreendia que Luigi tinha o direito de a censurar. A respeito de quê? Ignorava—o, mas nem por isso sentia menos que as censuras seriam merecidas.
“Todavia, com grande espanto de Teresa, Luigi ficou calado e nem uma palavra lhe entreabriu os lábios durante todo o resto da noite. Somente quando o frio noturno expulsou os convidados do jardim e as portas do palácio se voltaram a fechar para eles, pois a partir dali a festa ia continuar, mas lá dentro, ao acompanhar Teresa a casa, lhe perguntou quando ele ia a entrar:
“— Teresa, em que pensavas quando dançavas diante da jovem condessa de San-Felice?
“— Pensava — respondeu a moça com toda a franqueza da sua alma — Que daria metade da minha vida para ter um vestido como o que ela trazia.
“— E que te dizia o teu par?”
“— Dizia-me que só de mim dependia possuí-lo e que para o ter me bastaria dizer uma palavra.
“— E tinha razão — respondeu Luigi — Deseja-o tão ardentemente como dizes?
“— Desejo.
“— Pois bem, o terás!
“Atônita, a moça levantou a cabeça para o interrogar; mas o rosto de Luigi tinha uma expressão tão terrível e sombria que as palavras lhe gelaram nos lábios. De resto, depois de dizer o que dissera, Luigi retirara-se. Teresa seguiu-o com a vista na noite, enquanto o pode distinguir. Depois, quando ele desapareceu, entrou em casa suspirando.
“Nessa mesma noite declarou-se um grande incêndio, devido, sem dúvida, à imprudência de algum criado que se esquecera de apagar as luzes. O fogo apoderou-se do Palácio San-Felice precisamente a partir dos aposentos da linda Carmela. Acordada no meio da noite pelo clarão das chamas, a jovem saltara da cama, envolvera-se no roupão e tentara fugir pela porta. Mas a galeria por onde teria de passar era já pasto das chamas. Então, regressara ao quarto e desatara a pedir socorro em altos gritos, quando de súbito a janela, situada a vinte pés do solo, se abrira, um jovem camponês entrara correndo no quarto, tomara-a nos braços e, com uma energia e um desembaraço sobre-humanos, transportara-a para a relva do jardim, onde ela perdera os sentidos. Quando voltou a si, o pai estava diante dela e todos os criados a rodeavam, ansiosos para socorrê-la. Ardera uma ala inteira do palácio. Mas que importava, se Carmela estava sã e salva? Procuraram por toda a parte o seu salvador, mas não o encontraram. Perguntaram por ele a toda a gente, mas ninguém o vira. Quanto a Carmela, estava tão assustada que não o reconhecera. De resto, como o conde era imensamente rico, excetuando o perigo que Carmela correra e que lhe pareceu, dada a forma miraculosa como lhe escapara, mais um novo favor da Providência do que uma verdadeira desgraça, a perda ocasionada pelas chamas pouco representou para ele.
“No dia seguinte, à hora habitual, os dois jovens encontraram-se na orla da floresta. Luigi fora o primeiro a chegar. Foi ao encontro da moça muito bem disposto, como se tivesse esquecido por completo a cena da véspera. Teresa estava visivelmente pensativa; mas ao ver Luigi assim bem disposto, afetou pela sua parte a despreocupação risonha que constituía o fundo do seu caráter quando qualquer paixão o não perturbava.
“Luigi tomou Teresa pelo braço e conduziu-a até à porta da gruta. Aí, deteve-se. Compreendendo que havia algo extraordinário, a moça olhou fixamente.
“— Teresa — disse Luigi — Ontem à noite disseste-me que darias tudo no mundo para ter um vestido semelhante ao da filha do conde...
“— Pois disse — respondeu Teresa, atônita — Mas estava louca para manifestar semelhante desejo.
“— E eu respondi-te: Pois bem, o terá!
“— É verdade — admitiu a jovem, cujo espanto aumentava a cada palavra de Luigi — Mas decerto respondeste isso para me ser agradável.
“— Nunca te prometi nada que te não desse, Teresa — perguntou orgulhosamente Luigi — Entra na gruta e vista-se.
“Ditas estas palavras, puxou a pedra e mostrou a Teresa a gruta iluminada por duas velas que ardiam de cada lado de um espelho magnífico. Em cima da mesa rústica, feita por Luigi, encontravam-se expostos o colar de pérolas e os alfinetes de diamantes, e numa cadeira ao lado encontrava-se o resto do traje. Teresa soltou um grito de alegria e, sem se informar de onde viera aquele traje nem perder tempo a agradecer a Luigi, correu para a gruta transformada em gabinete de vestir. Luigi correu a pedra atrás dela, porque acabava de ver, no alto de uma colina que impedia que do lugar onde estava se visse Palestrina, um viajante a cavalo que se deteve um instante como que hesitante no seu caminho e se recortou no azul do céu com a nitidez de contornos característica dos longes dos países meridionais.
“Ao ver Luigi, o viajante meteu o cavalo a galope e foi ao seu encontro. Luigi não se enganara: o viajante, que se dirigia de Palestrina para Tivoli, estava hesitante no caminho. O rapaz indicou-lhe. Mas como a um quarto de milha dali a estrada se dividia em três caminhos e, chegado ai, o viajante se pudesse perder novamente, pediu a Luigi que lhe servisse de guia. Luigi tirou a capa e colocou-a no chão, pôs o carabina ao ombro e, liberto assim da pesada peça de vestuário, seguiu à frente do viajante com o passo rápido do montanhês que o passo de um cavalo dificilmente acompanha. Em dez minutos, Luigi e o viajante chegaram à espécie de encruzilhada indicada pelo jovem pastor. Uma vez aí, num gesto majestoso como o de um imperador, Luigi estendeu a mão para aquela das três estradas que o viajante devia seguir.
“— Aqui tem o seu caminho, Excelência — disse-lhe — Agora já não tem nada que se enganar.
“— E você aqui tem a sua recompensa — disse o viajante, oferecendo ao jovem pastor algumas moedas de pouco valor.
“— Obrigado — disse Luigi, retirando a mão — Presto um favor, não o vendo.
“— Mas — disse o viajante, que parecia de resto habituado à diferença entre o servilismo do homem das cidades e o orgulho do camponês — Se recusa um salário aceita ao menos um presente?
“— Aceito, isso é diferente.
“— Então — disse o viajante — Toma estes dois sequins de Veneza e os de à sua noiva para fazer uns brincos.
“— E o senhor tome este punhal — disse o jovem pastor — De Albino a Civita-Castellana não encontrará  outro cujo punho esteja melhor esculpido.
“— Aceito — respondeu o viajante. — Mas assim sou eu que te fico em dívida, pois este punhal vale mais do que dois sequins.
“— Para um comerciante, talvez; mas para mim, que o esculpi, vale apenas uma piastra.
“— Como se chamas? — perguntou o viajante.
“— Luigi Vampa — respondeu o pastor, com o mesmo ar com que responderia Alexandre, rei da Macedônia — E o senhor?
“— Eu — respondeu o viajante — Chamo-me Simbad, o Marinheiro.
Franz d’Epinay soltou um grito de surpresa.
— Simbad, o Marinheiro! — exclamou.
— Sim — confirmou o narrador — Foi o nome que o viajante deu a Vampa como sendo o seu.
— Mas afinal você tem alguma coisa contra esse nome? — perguntou Albert ao amigo — É um belíssimo nome, e as aventuras do patrão desse cavalheiro divertiram-me muito, confesso, na minha adolescência.
Franz não insistiu mais. Como bem se compreende, o nome de Simbad, o Marinheiro, despertara nele um mundo de recordações, da visita a Ilha de Monte Cristo.
— Continue — pediu ao hoteleiro.
— Vampa meteu desdenhosamente os dois sequins na algibeira e retomou lentamente o caminho por onde viera. Chegado a duas ou três centenas de passos, da gruta, julgou ouvir um grito. Parou e escutou para saber de que lado vinha esse grito. Passado um segundo, ouviu o seu nome pronunciado distintamente. O apelo vinha ao lado da gruta. Saltou como um cabrito-montês, armou a espingarda enquanto corria e chegou em menos de um minuto ao alto da colina oposta àquela em que vira o viajante. Ali os gritos de “Socorro!” chegaram-lhe ainda mais distintos. Relanceou, a vista pelo espaço que dominava: um homem raptava Teresa como o centauro Nesso raptara Dejanira. Esse homem, que se dirigia para o bosque, encontrava-se já a três quartos do caminho entre a gruta e a floresta.
“Vampa calculou a distância. O homem tinha duzentos passos de avanço sobre ele, pelo menos, e não havia possibilidade de apanhá-lo antes de chegar ao bosque. O jovem pastor deteve-se como se os seus pés tivessem criado raízes. Encostou a coronha da espingarda ao ombro, levantou lentamente o cano na direção do raptor, seguiu-o um segundo na corrida e disparou. O raptor parou bruscamente, os joelhos dobraram-se-lhe e o homem caiu arrastando Teresa na queda. Mas Teresa levantou-se imediatamente. Quanto ao fugitivo, ficou caído, debatendo-se nas convulsões da agonia. Vampa correu para Teresa, porque, a dez passos do moribundo, as pernas também lhe tinham faltado e a jovem caíra de joelhos. O rapaz tinha o receio terrível de que a bala que abatera o inimigo tivesse ao mesmo tempo ferido a noiva.
“Felizmente, nada disso acontecera, fora apenas o terror que paralisara as forças de Teresa. Quando Luigi teve a certeza de que estava sã e salva, virou-se para o ferido. Acabava de expirar, com os punhos fechados, a boca contraída pela dor e os cabelos eriçados sob o suor da agonia. Os olhos tinham-lhe ficado abertos e ameaçadores. Vampa, aproximou-se do cadáver e reconheceu Cucumetto. Desde o dia em que o bandido fora salvo pelos dois jovens, ficara apaixonado por Teresa e jurara que a moça seria sua. A partir desse dia, espiara-a. E, aproveitando o momento em que o rapaz a deixara sozinha para indicar o caminho ao viajante, raptara-a e julgava-se já senhor dela quando a bala de Vampa, guiada pela pontaria infalível do jovem pastor, lhe traspassara o coração. Vampa, olhou-o um instante sem a menor emoção, enquanto Teresa, pelo contrário, ainda toda trêmula, não ousava aproximar-se do bandido morto senão em passinhos curtos e deitava hesitante uma olhadela ao cadáver por cima do ombro do amado. Passado um instante, Vampa virou-se para a noiva e disse:
“— Ah, ah, já está vestida!... vou vestir-me também.
“Com efeito, Teresa trazia, da cabeça aos pés, o traje da filha do conde de San-Felice. Vampa, pegou no corpo de Cucumetto e levou-o para a gruta, enquanto Teresa ficava de fora. Se tivesse passado segundo viajante, veria uma coisa estranha: uma pastora a guardar as suas ovelhas com um vestido de caxemira, brincos e um colar de pérolas, alfinetes de diamantes e botões de safiras, esmeraldas e rubis. Sem dúvida se julgaria regressado ao tempo de Floriano e afirmaria, ao regressar a Paris, que encontrara a pastora dos Alpes sentada ao pé dos montes Sabinos. Passado um quarto de hora, Vampa saiu por sua vez da gruta. O seu traje não era menos elegante, no seu gênero, do que o de Teresa. Trazia uma jaqueta de veludo carmesim, com botões de ouro cinzelado, colete de seda todo coberto de bordados, um lenço romano atado ao pescoço, uma cartucheira toda adornada de ouro e seda encarnada e verde, calções de veludo azul-celeste presos por baixo do joelho com fivelas de diamantes, polainas de pele de gamo adornadas com mil arabescos coloridos e chapéu onde adejavam fitas de todas as cores. Pendiam-lhe da cintura dois relógios e trazia entalado na cartucheira um magnífico punhal.
“Teresa soltou um grito de admiração. Assim vestido, Vampa lembrava um quadro de Leopold Robert ou de Schnetz. Envergara o traje completo de Cucumetto. O rapaz notou o efeito que produzia sobre a noiva e um sorriso de orgulho entreabriu-lhe a boca.
“— Agora — perguntou a Teresa — Está pronta a compartilhar a minha sorte qualquer que ela seja?
“— Estou! — gritou a moça com entusiasmo.
“— A seguir-me para toda a parte onde for?
“— Até ao fim do mundo.
“— Então, toma o meu braço e partamos, porque não temos tempo a perder.
“A moça passou o braço pelo do noivo sem sequer lhe perguntar para onde a levava. Naquele momento, parecia-lhe belo, orgulhoso e forte como um deus. E ambos se dirigiram para a floresta, cuja orla transpuseram ao cabo de poucos minutos. Não é necessário dizer que Vampa conhecia todos os caminhos da montanha. Penetrou portanto na floresta sem hesitar um só instante, embora não houvesse nenhum carreiro aberto, mas orientando-se apenas no caminho que devia seguir pelo exame das árvores e das moitas. Caminharam assim hora e meia, aproximadamente. Ao fim desse tempo encontravam-se na parte mais densa do bosque. O leito de um rio seco conduzia a uma garganta profunda. Vampa tomou esse estranho caminho que, apertado entre duas margens e escurecido pela sombra espessa dos pinheiros, parecia, exceto na facilidade da descida, o caminho do Averno de que fala Virgílio.
“Teresa ficou atemorizada com o aspecto daquele local selvagem e deserto e chegou-se mais para o seu guia sem dizer palavra. Mas como o via caminhar sempre com o mesmo passo e uma calma profunda lhe iluminasse o rosto, ela própria acabou por conseguir dissimular a sua emoção. De súbito, a dez passos deles, um homem pareceu destacar-se de uma árvore atrás da qual se encontrava escondido e apontou a arma a Vampa.
“— Nem mais um passo ou morre! — gritou.
“— Pois sim — respondeu Vampa, levantando a mão num gesto de desprezo, enquanto Teresa, já sem esconder o seu terror, se apertava contra ele — Porque os lobos também se comem uns aos outros!...
“— Quem é? — perguntou a sentinela.
“— Luigi Vampa, pastor da quinta de San-Felice.
“— Que quer?”
“— Falar com os teus companheiros que estão na clareira de Rocca Bianca.
“— Então, segue-me — disse a sentinela — Ou antes, como sabe onde fica a clareira, vai à frente.
“Vampa sorriu com ar de desprezo da precaução do bandido, passou pra frente com Teresa e continuou o seu caminho com o mesmo passo firme e tranqüilo que o trouxera até ali. Ao cabo de cinco minutos, o bandido mandou-os parar. Os dois jovens obedeceram. O bandido imitou três vezes o grasnar do corvo. Outro grasnido respondeu ao triplo chamamento.
“— Pronto — disse o bandido — Agora pode seguir.
“Luigi e Teresa recomeçaram a andar. Mas à medida que avançavam, mais Teresa, trêmula, se apertava contra o noivo. Com efeito, através das  árvores viam-se aparecer armas e cintilar canos de espingarda. A clareira de Rocca Bianca ficava no alto de uma pequena montanha que noutros tempos fora sem dúvida um vulcão, vulcão extinto antes de Rômulo e Remo deixarem Alba para vir edificar Roma. Teresa e Luigi chegaram ao cimo e encontraram-se no mesmo instante diante de uma vintena de bandidos.
“— Este rapaz quer falar com vocês — disse a sentinela.
“— Que tem para nos dizer? — perguntou o que, na ausência do chefe, o substituía.
“— Quero dizer que estou farto da profissão de pastor — declarou Vampa.
“— Ah, compreendo! — disse o lugar-tenente — E vem pedir-nos para ser admitido nas nossas fileiras?
“— Que seja bem-vindo! — gritaram vários bandidos de Ferrusino, Pampinara e Anagni, que tinham reconhecido Luigi Vampa.
“— Pois sim, simplesmente venho pedir—lhes outra coisa diferente de ser mais um companheiro.
“— Que vem nos pedir? — perguntaram os bandidos, espantados.
“— Venho pedir para ser vosso capitão — respondeu o rapaz.
“Os bandidos desataram a rir.
“— E o que fez para aspirar a essa honra? — inquiriu o lugar-tenente.
“— Matei o seu chefe Cucumetto, aqui está o seu espólio, e coloquei fogo no palácio de San-Felice para dar um vestido de casamento à minha noiva — respondeu Luigi.
“Uma hora depois, Luigi Vampa era eleito capitão em substituição de Cucumetto.
— Então, meu caro Albert — disse Franz, virando-se para o amigo — Que pensa agora do cidadão Luigi Vampa?
— Digo que é um mito — respondeu Albert — E que nunca existiu.
— Que é um mito? — perguntou Pastrini.
— Isso levaria muito tempo para explicar, meu caro anfitrião — respondeu Franz — E diz que mestre Vampa exerce neste momento a sua profissão nos arredores de Roma?
— E com uma audácia de que nenhum bandido antes dele deu o exemplo.
— Quer dizer que a Polícia tentou em vão prendê-lo?
— Que quer, ele está feito ao mesmo tempo com os pastores da planície, os pescadores do Tibre e os contrabandistas da costa! Se o procuram na montanha, está no rio; se o perseguem no rio, vai para o mar; depois, de repente, quando o julgam refugiado na ilha do Ciglio, do Guanouti ou de Monte Cristo, vêem-no reaparecer em Albano, em Tívoli ou na Riccia.
— E qual é a sua maneira de proceder com os viajantes?
— Oh, meu Deus, é muito simples! Conforme a distância a que se encontram da cidade, dá-lhes oito horas, doze horas ou um dia para pagarem o resgate. Passado esse tempo, concede mais uma hora de espera. Ao sexagésimo minuto dessa hora, se não chegou o dinheiro, estoura os miolos do prisioneiro com um tiro de pistola, ou crava-lhe o punhal no coração, e está tudo arrumado.
— Então, Albert, continua disposto a ir ao Coliseu pelos bulevares exteriores? — perguntou Franz ao companheiro.
— Absolutamente — respondeu Albert — Desde que o caminho seja mais pitoresco.
Neste momento, deram nove horas, a porta abriu-se e o cocheiro apareceu.
— Excelências — anunciou — A carruagem os espera.
— Bom — disse Franz — Nesse caso para o Coliseu!
— Pela Porta del Popolo, Excelências, ou pelas ruas?
— Pelas ruas, com a breca, pelas ruas! — gritou Franz.
— Ah, meu caro, julgava-o mais corajoso! — exclamou Albert, levantando-se por seu turno e acendendo o seu terceiro charuto.
Em seguida, os dois jovens desceram a escada e meteram-se na carruagem.






 continua...


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 "A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer." (Thomas Hardy)

Um comentário:

  1. Que história tensa essa do Vampa .... Excelente, muito criativa ...

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