terça-feira, 19 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 23


XXIII

A ILHA DE MONTE CRISTO




F
inalmente, por uma dessas sortes inesperadas que às vezes têm aqueles sobre os quais o rigor do destino se encarniçou durante muito tempo, Dantés ia alcançar o seu objetivo por um meio simples e natural e pôr o pé na ilha sem inspirar a ninguém qualquer suspeita. Apenas uma noite o separava dessa partida tão esperada.
Essa noite foi uma das mais febris que passou Dantés. Durante ela, todas as possibilidades boas e más lhe acudiram alternadamente ao espírito. Se fechava os olhos, via a carta do Cardeal Spada escrita em caracteres chamejantes na parede; se adormecia um instante, os sonhos mais insensatos vinham fervilhar-lhe no cérebro. Descia as grutas pavimentadas de esmeraldas, de paredes de rubis e estalactites de diamantes. As pérolas caiam gota a gota, tal como habitualmente se filtra a água subterrânea.
Arrebatado, maravilhado, Edmond enchia as algibeiras de pedrarias. Depois regressava à luz do dia e as pedrarias transformavam-se em simples seixos. Então, procurava tornar a entrar nas grutas maravilhosas, apenas entrevistas. Mas o caminho torcia-se em espirais infinitas e a entrada voltara a ser invisível. Procurava em vão na memória fatigada a palavra mágica e misteriosa que abria ao pescador árabe as cavernas esplêndidas de Ali Babá. Tudo era inútil; o tesouro desaparecido tornara-se novamente propriedade dos gênios da terra, aos quais tivera por instantes a esperança de arrebatá-lo.
O dia rompeu quase tão febril como o fora a noite; mas trouxe a lógica em auxílio da imaginação e Dantés conseguiu fixar um plano, até ali vago e flutuante no seu cérebro.
Veio a noite e com a noite os preparativos da partida. Esses preparativos eram um meio de Dantés ocultar a sua agitação. Pouco a pouco adquirira sobre os companheiros autoridade de comandar como se fosse senhor do navio; e como as suas ordens eram sempre claras, precisas e fáceis de executar, os companheiros obedeciam-lhe não só com prontidão, mas também com prazer.
O velho marinheiro deixava-o agir. Também ele reconhecera a superioridade de Dantés sobre os seus, outros marinheiros e sobre ele próprio. Via no rapaz o seu sucessor natural e lamentava não ter uma filha para prender Edmond por meio dessa aliança.
Às sete horas da noite ficou tudo pronto; às sete e dez dobrava-se o farol, precisamente no momento em que o farol se acendia.
O mar estava calmo, com vento fresco soprando do sudeste. Navegava-se sob céu azul, onde Deus acendia também alternadamente os seus faróis, cada um deles um mundo. Dantés declarou que todos podiam deitar, pois ele encarregaria do leme.
Quando o maltês (era assim que chamavam a Dantés) fazia semelhante declaração, isso bastava e todos se iam deitar tranquilamente. Isso acontecia algumas vezes: lançado do isolamento no mundo, Dantés experimentava de vez em quando imperiosas necessidades de estar só. Ora, que isolamento haveria que fosse simultaneamente maior e mais poético do que o de um navio que flutua isolado no mar, durante a escuridão da noite, no silêncio da imensidade e sob o olhar do Senhor?
Desta vez, porém, o isolamento foi povoado pelos seus pensamentos, a noite iluminada pelas suas ilusões e o silêncio animado pelas suas promessas.
Quando o patrão acordou, o navio navegava a todo o pano. Não havia um pedacinho de tela que não estivesse enfunado pelo vento. Navegava-se a mais de duas léguas e meia por hora.
A Ilha de Monte Cristo crescia no horizonte.
Edmond entregou o navio ao patrão e foi deitar-se por sua vez na sua rede. Mas, apesar de ter passado a noite em claro, não conseguiu pregar olho um só instante.
Duas horas mais tarde voltou a subir à coberta. O navio preparava-se para dobrar a Ilha de Elba. Encontravam-se próximos da Mareciana e para lá da ilha plana e verde da Pianosa. Distinguia-se no azul do céu o cume chamejante de Monte Cristo.
Dantés ordenou ao timoneiro que virasse a bombordo, a fim de deixar a Pianosa à direita. Calculara que tal manobra encurtaria a viagem duas ou três milhas. Por volta das cinco horas da tarde a ilha encontrava-se completamente à vista. Distinguiam-se os mais pequenos pormenores graças à limpidez atmosférico característica da luz emitida pelos raios do Sol no acaso.
Edmond devorava com os olhos aquela massa de rochedos que passava por todas as cores crepusculares, do rosa-vivo ao azul-escuro. De vez em quando subiam-lhe à cara golfadas de sangue, a testa purpureava-se-lhe e uma nuvem escarlate passava-lhe diante dos olhos.
Nunca jogador que tivesse arriscado toda a sua fortuna num lance de dados experimentara as angústias que Edmond sentia nos seus paroxismos de esperança.
Anoiteceu.
Às dez horas ancorou-se. A Jeune-Amélie era a primeira a comparecer ao encontro. Apesar do domínio que tinha habitualmente sobre si mesmo, Dantés não se pode conter: foi o primeiro a saltar para terra e se a tanto se atrevesse teria beijado-a como Bruto.
A noite estava escura; mas às onze horas a Lua ergueu-se do mar e cobriu-lhe de prata cada frêmito. Depois os seus raios, à medida que se elevava, começaram a refletir-se, em brancas cascatas de luz, nos rochedos empilhados daquele outro Pélion.
A ilha era familiar à tripulação da Jeune-Amélie, pois constituía uma das suas habituais estações. Quanto a Dantés, vira-a em todas as suas viagens no Levante, mas nunca lá desembarcara.
Interrogou Jacopo:
— Onde passamos a noite?
— Mas... a bordo da tartana — respondeu o marinheiro.
— Não ficaríamos melhor nas grutas?
— Em quais grutas?
— Nas grutas da ilha.
— Não conheço tais grutas — respondeu Jacopo.
Um suor frio inundou a testa de Dantés.
— Não há grutas em Monte Cristo? — insistiu.
— Não.
Dantés ficou um instante aturdido. Depois pensou que as grutas podiam ter sido entulhadas mais tarde, devido a qualquer acidente, ou até fechadas, para maior precaução, pelo Cardeal Spada.
Nesse caso, tudo se resumia em encontrar essa abertura perdida. Mas seria inútil procurá-la durante a noite. Dantés adiou, portanto a investigação para o dia seguinte. De resto, um sinal içado a cerca de meia légua no mar, e ao qual a Jeune-Amélie respondeu imediatamente com um sinal idêntico, indicou-lhe que chegara o momento de trabalhar.
O navio retardatário, tranqüilizado com o sinal que devia dar-lhe a conhecer que se podia aproximar com toda a segurança, surgiu imediatamente, branco e silencioso como um fantasma, e ancorou a uns duzentos metros da costa.
O transporte começou logo a seguir.
Enquanto trabalhava, Dantés pensava no “hurra” de alegria que com uma só palavra poderia levar todos aqueles homens a soltar se revelasse em voz alta o pensamento que incessantemente lhe sussurrava baixinho ao ouvido e ao coração. Mas, ao contrário de revelar o magnífico segredo, temia já ter dito demasiado a tal respeito e despertado suspeitas com as suas idas e vindas, as suas perguntas repetidas, as suas observações minuciosas e a sua preocupação contínua. Felizmente, para esta circunstancia pelo menos, que nele um passado deveras doloroso lhe deixara refletida no rosto uma tristeza indelével e que os lampejos de alegria entrevistos através dessa nuvem não passavam realmente de relâmpagos.
Ninguém desconfiava, portanto de nada, pelo que no dia seguinte, quando Dantés pegou uma espingarda, chumbo e pólvora e manifestou o desejo de ir matar uma das numerosas cabras-monteses que se viam saltar de rochedo em rochedo todos atribuíram a excursão apenas ao amor da caça ou ao desejo de isolamento. Só Jacopo o acompanhou. Dantés não quis opor-se à sua presença com receio de que a repugnância em ser acompanhado inspirasse algumas desconfianças. Mas assim que percorreu um quarto de légua e teve oportunidade de atirar a matar a um cabrito, mandou Jacopo levá-lo aos companheiros, para que o cozinhassem e, quando estivesse pronto, lhe dessem sinal para ir comer a sua parte disparando um tiro de espingarda. Alguns frutos secos e uma garrafa de vinho de Monte Pulciano completariam o banquete.
Dantés continuou o seu caminho, virando-se de vez em quando. Chegado ao topo de uma rocha viu mil pés abaixo de si os companheiros, aos quais acabava de se juntar Jacopo, que se ocupavam já ativamente dos preparativos do almoço, aumentado, graças à destreza de Edmond, com uma peça fundamental.
Edmond olhou-os um instante com o sorriso bondoso e triste do homem superior.
“Dentro de duas horas”, pensou, “Voltarão a partir cinqüenta piastras mais ricos para irem, arriscando a vida, tentar ganhar mais cinqüenta. Depois regressarão seiscentas libras mais ricos e delapidarão esse tesouro em qualquer cidade, com o orgulho de sultões e a despreocupação de nababos. Hoje a esperança leva-me a desprezar a sua riqueza, que me parece a maior miséria; amanhã, talvez a decepção me obrigue a olhar essa grande miséria como a felicidade suprema... mas, oh, não, isso não acontecerá! O sábio, o infalível Faria, não se havia de enganar logo nessa única coisa. De resto, mais valeria morrer do que continuar a levar esta vida miserável e inferior”.
Deste modo, Dantés, que havia três meses só aspirava à liberdade, já se não contentava apenas com a liberdade, aspirava também à riqueza. E a culpa não era dele, mas sim de Deus, que limitando o poder do homem lhe provocou desejos infinitos!
Entretanto, por um caminho aberto entre duas muralhas de rochas e seguindo um carreiro aberto pela torrente e que, segundo todas as probabilidades, nunca fora pisado por pé humano, Dantés aproximara-se do local onde supunha que as grutas deviam ter existido. Seguindo junto à costa e examinando os menores objetos com toda a atenção, julgou notar em certos rochedos entalhes feitos pela mão do homem.
O tempo que lança sobre todas as coisas físicas o seu manto de musgo, tal como sobre as coisas morais o seu manto de esquecimento, parecia ter respeitado aqueles sinais traçados com certa regularidade e provavelmente com o fim de indicar uma pista. De tempos a tempos, porém, os sinais desapareciam sob tufos de murta que desabrochava em grandes ramos carregados de flores ou debaixo de líquenes parasitas. Edmond tinha então de afastar os ramos ou de levantar o musgo para reencontrar os sinais indicadores que o conduziam naquele outro labirinto.
Esses sinais tinham, de resto, dados boas esperanças a Edmond. Porque não teria sido o cardeal quem os traçara para que pudessem, no caso de uma catástrofe que não pudera prever tão completa, servir de guia ao sobrinho? Aquele lugar solitário era bem o que convinha a um homem que desejasse esconder um tesouro. Simplesmente, não teriam aqueles sinais infiéis atraído outros olhos além daqueles para os quais tinham sido traçados e teria a ilha de sombrias maravilhas guardado fielmente o seu magnífico segredo?
Entretanto, a sessenta passos do porto, aproximadamente, pareceu a Edmond, sempre oculto dos companheiros pelos acidentes do terreno, que os entalhes terminavam. Simplesmente, não conduziam a nenhuma gruta. Um grande rochedo redondo assente numa base sólida era a única coisa a que pareciam conduzir. Edmond pensou que em vez de ter chegado ao fim talvez estivesse, pelo contrário, apenas no princípio; deu, pois, meia volta e regressou por onde viera.
Entretanto, os companheiros preparavam o almoço: iam buscar água à fonte, transportavam pão e fruta para terra e cozinhavam o cabrito. Precisamente no momento em que o tiravam do seu espeto improvisado viram Edmond que, ligeiro e audacioso como uma cabra-montês, saltava de rochedo em rochedo, e dispararam um tiro de espingarda para avisá-lo. O caçador mudou imediatamente de direção e correu para eles. Mas no momento em que todos o seguiam com a vista na espécie de vôo que executava, classificando de temeridade a sua, habilidade, e como que para dar razão aos seus receios, o pé falhou a Edmond. Viram-no cambalear no cume de um rochedo, soltar um grito e desaparecer.
Saltaram todos ao mesmo tempo, pois todos gostavam de Edmond apesar da sua superioridade. No entanto, foi Jacopo quem chegou primeiro.
Encontrou Edmond estendido, sangrando e quase sem sentidos; devia ter caído de doze ou quinze pés de altura. Introduziram-lhe na boca algumas gotas de rum, e este remédio, que já demonstrara tanta eficácia sobre ele, produziu o mesmo efeito da primeira vez.
Edmond abriu os olhos e queixou-se de uma dor aguda no joelho, de um grande peso na cabeça e de picadas insuportáveis nos rins. Quiseram transportá-lo para a beira-mar, mas quando lhe tocaram, embora fosse Jacopo quem dirigia a operação, declarou gemendo que não se sentia com forças para suportar o transporte.
Todos compreenderam que era natural que Dantés tivesse perdido o apetite para o almoço, mas ele exigiu que os seus camaradas, que não tinham as mesmas razões que ele para fazer dieta, regressassem ao seu lugar. Quanto a ele, afirmou que precisava apenas de um bocadinho de repouso e que quando regressassem o encontrariam melhor.
Os marinheiros não se fizeram demasiado rogados. Tinham fome, e o cheiro do cabrito chegava até eles e entre lobos-do-mar não se fazem muitas cerimônias.
Uma hora depois voltaram. Mas tudo o que Edmond conseguira fazer fora arrastar-se uma dezena de passos para se encostar a uma rocha musgosa. No entanto, longe de diminuírem, as dores de Dantés, parece que tinham aumentado de violência. O velho patrão, obrigado a partir de manhã para ir descarregar nas fronteiras do Piemonte e da França, entre Nice e Fréjus, insistiu com Dantés para que tentasse levantar-se. O rapaz fez esforços sobre-humanos para lhe fazer a vontade, mas a cada esforço tornava a cair, a gemer e pálido.
— Tem os rins partidos — disse baixinho o patrão — Não importa, é um bom companheiro e não devemos abandoná-lo. Vejamos se conseguimos transportá-lo para a tartana.
Mas Dantés declarou que preferia morrer onde estava do que suportar as dores atrozes que lhe ocasionaria qualquer movimento, por mais ligeiro que fosse.
— Bom — disse o patrão — Aconteça o que acontecer, ninguém dirá que deixamos sem socorro um bom companheiro. Só partiremos à tardinha.
Esta decisão surpreendeu muito os tripulantes, embora nenhum deles a desaprovasse, antes pelo contrário. O patrão era um homem muito rígido e viam-no pela primeira vez renunciar a uma empresa ou pelo menos adiar a sua execução. Por isso Dantés não permitiu que por sua causa se cometesse tão grave infração às regras de disciplina estabelecida a bordo.
— Não — disse ao patrão — Fui imprudente e é justo que sofra as conseqüências da minha imprudência. Deixem-me uma pequena provisão de bolachas, uma espingarda, pólvora e balas para matar os cabritos, ou mesmo para me defender, e um enxadão para construir, se demorarem muito tempo a virem me buscar, uma espécie de casa.
— Mas morrerás de fome — objetou o patrão.
— Prefiro assim — respondeu Edmond — A sofrer as dores inauditas que um só movimento me ocasiona.
O patrão virou-se para o lado do navio, que balouçava, com um princípio de aparelhagem, no portinho, pronto a fazer-se ao mar logo que a sua toilette estivesse concluída.
— Que havemos de fazer, maltês? — perguntou — Não podemos te abandonar assim, mas também não podemos ficar...
— Partam, partam! — gritou Dantés.
— Estaremos pelo menos oito dias ausentes — declarou o patrão — E, além disso, teremos de nos desviar da nossa rota para vir te buscar.
— Escute — disse Dantés — Se dentro de dois ou três dias encontrar algum barco de pesca ou outro que venha para estas paragens, recomende-me. Pagarei vinte e cinco piastras pelo meu regresso a Liorne. Se não encontrar nenhum barco, volte para cá.
O patrão abanou a cabeça.
— Ouça, patrão Baldi, há um meio de conciliar tudo — interveio Jacopo — Partam e deixem-me com o ferido que eu trato dele.
— E renunciarás à tua parte na divisão para ficares comigo? — perguntou Edmond.
— Renuncio e sem pesar — respondeu Jacopo.
— Bom, você é um excelente rapaz, Jacopo — disse Edmond — Deus recompensará a tua boa vontade; mas não preciso de ninguém, obrigado. Um dia ou dois de repouso me porão bom e espero encontrar nestes rochedos certas ervas muito boas contra as contusões.
E um sorriso estranho passou pelos lábios de Dantés.
Apertou a mão a Jacopo com efusão, mas manteve-se inabalável na resolução de ficar e de ficar sozinho. Os contrabandistas deixaram a Edmond o que ele pediu e retiraram-se, não sem se virarem várias vezes e fazerem de cada vez que se viravam sinais de um cordial adeus, ao qual Edmond respondia apenas com a mão, como se não pudesse mexer o resto do corpo.
Depois, quando desapareceram, murmurou rindo:
— É estranho que seja entre tais homens que se encontram provas de amizade e atos de dedicação.
Em seguida arrastou-se com cuidado até ao alto de um rochedo que lhe ocultava o aspecto do mar e de lá viu a tartana acabar de aparelhar, levantar ferro, balançar-se graciosamente como uma gaivota prestes a levantar vôo e partir. Passada uma hora, tinha desaparecido por completo. Pelo menos do lugar onde ficara o ferido era impossível vê-la.
Então Dantés levantou-se, mais rápido e ligeiro do que os cabritos que saltavam por entre as murtas e os lentiscos naqueles rochedos selvagens, pegou a espingarda com uma das mãos e a enxada com a outra e correu para a rocha onde terminavam os entalhes que descobrira nos rochedos.
— E agora — gritou, lembrando-se da história do pescador árabe que lhe contara Faria — Agora: “Abre-te, Sésamo!”





 continua...



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