sábado, 23 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 27


XXVII

O RELATO




— Antes de mais nada — disse Caderousse — Devo, senhor, pedir-lhe que me prometa uma coisa.
— Qual? — perguntou o abade.
— Se alguma vez utilizar algum dos fatos que lhe vou revelar, que ninguém saiba que soube esses fatos por mim, pois aqueles de quem lhe vou falar são ricos e poderosos e se me tocassem só que fosse com a ponta de um dedo me quebrariam como vidro.
— Esteja descansado, meu amigo — declarou o abade — Sou padre e as confissões morrem comigo. Lembre-se de que o nosso objetivo é apenas cumprir dignamente as últimas vontades do nosso amigo. Fale, pois à vontade, mas sem ódio. Diga a verdade, toda a verdade. Não conheço e provavelmente nunca conhecerei as pessoas de que vai falar. De resto, sou italiano e não francês. Pertenço a Deus e não aos homens e vou regressar ao meu convento, donde saí apenas para cumprir as últimas vontades de um moribundo.
Esta promessa positiva pareceu dar a Caderousse um pouco de confiança.
— Bom, nesse caso, quero, direi mesmo mais, devo desenganá-lo a respeito dessas amizades que o pobre Edmond julgava sinceras e dedicadas.
— Comecemos pelo pai, se não se importa — sugeriu o abade — Edmond falou-me muito do velhote, pelo qual nutria profundo amor.
— A história é triste, senhor — observou Caderousse, abanando a cabeça — Conhece-lhe provavelmente os princípios.
— Conheço — respondeu o abade — Edmond contou-me tudo até o momento de ser preso, num restaurantezinho perto de Marselha.
— Na Réserve! Oh, meu Deus, sim! Ainda vejo tudo tal qual como se passou.
— Não foi no próprio banquete de noivado?
— Foi. E o banquete, que tivera um começo alegre, teve um fim triste: um comissário de polícia acompanhado de quatro soldados entrou e prendeu Dantés.
— É exatamente aí que termina o que sei — declarou o padre — O próprio Dantés não sabia mais nada além do que lhe era estritamente pessoal, pois nunca mais tornou a ver nenhuma das cinco pessoas de que lhe falei, nem ouviu falar delas.
— Bom, uma vez, Dantés preso, o Sr. Morrel correu a obter informações, que foram bem tristes. O velho voltou sozinho para casa, despiu o traje de festa chorando, passou todo o dia andando de um lado para o outro no quarto e à noite não se deitou, pois eu morava por baixo dele e ouvi-o andar toda a noite. Eu próprio, devo dizê-lo, também não dormi, porque a dor do pobre pai me afligia muito e cada um dos seus passos esmagava-me o coração como se ele me pusesse realmente o pé no peito. No dia seguinte, Mercedes veio a Marselha implorar a proteção do Sr. de Villefort, mas não conseguiu nada. Aproveitou, no entanto a oportunidade para visitar o velhote. Quando o viu tão triste e abatido e soube que passara a noite sem se meter na cama e que não comia desde a véspera, quis levá-lo para cuidar dele, mas o velho recusou terminantemente.
Não — dizia ele — Não sairei de casa, pois é a mim que o meu pobre filho ama antes de mais nada e se sair da prisão é a mim que correrá a ver em primeiro lugar. Que diria se não estivesse aqui à sua espera?
“Eu escutava tudo isto do patamar da escada, porque gostaria que Mercedes convencesse o velho a acompanhá-la. O eco daqueles passos todos os dias por cima da minha cabeça não me deixavam um instante de repouso.
— Mas o senhor mesmo não subia a casa do velho para o confortar? — perguntou o padre.
— Ah, senhor, só se confortam aqueles que querem ser confortados e ele não o queria ser! — respondeu Caderousse — De resto, não sei porquê, mas parece-me que tinha repugnância em ver-me. Uma noite, ao ouvir os seus soluços, não agüentei mais e subi; mas quando cheguei à porta já não soluçava, rezava. As palavras eloqüentes e as súplicas piedosas que encontrava para se exprimir eram tão comoventes que não saberia repetir-lhas, senhor. Aquilo era mais do que devoção, era mais do que dor. Por isso, eu que não sou beato falso nem gosto dos Jesuítas, disse para comigo naquele dia: “é uma grande sorte, na verdade, ser só e Deus não me ter dado filhos, porque se fosse pai e sentisse dor idêntica à do pobre velho, como não poderia encontrar na memória nem no coração nada do que ele diz a Deus, iria direitinho atirar-me ao mar para não sofrer mais tempo”.
— Pobre pai! — murmurou o padre.
— De dia para dia vivia mais só e isolado. O Sr. Morrel e Mercedes apareciam muitas vezes para vê-lo, mas a sua porta estava sempre fechada. E embora eu tivesse certeza absoluta de que estava em casa, não respondia. Um dia em que contra o seu hábito recebeu Mercedes e em que a pobre pequena, ela própria desesperada, tentava reconfortá-lo, o velho disse-lhe:
Acredita, minha filha, que ele morreu, e que em vez de o esperarmos é ele quem nos espera. Sinto-me muito feliz porque, como sou o mais velho, serei por conseqüência quem o verá primeiro.
“Por melhor que uma pessoa seja, como sabe, não tarda a afastar-se daqueles que a entristecem, e o velho Dantés acabou por ficar completamente só. Apenas de tempos a tempos via subir a casa dele pessoas desconhecidas, que desciam com qualquer embrulho mal escondido. Compreendi depois que continham esses embrulhos: o velho vendia pouco a pouco o que possuía para viver. Finalmente, o pobre homem chegou ao fim dos seus míseros haveres. Devia três meses de renda e ameaçaram pô-lo na rua. Pediu mais oito dias e concederam-lhe. Soube deste pormenor porque o senhorio foi a minha casa depois de sair da dele.
“Durante os três primeiros dias, ouvi-o caminhar como de costume, mas no quarto dia não ouvi mais nada. Arrisquei-me a subir. A porta estava fechada, mas através da fechadura vi-o tão pálido e abatido que, julgando-o muito doente, mandei avisar o Sr. Morrel e corri a casa de Mercedes. Ambos vieram logo. O Sr. Morrel trazia um médico. Este diagnosticou uma gastrenterite e prescreveu dieta. Estava lá, senhor, e nunca mais esquecerei o sorriso do velho ao ouvir a receita. A partir desse dia passou a abrir a porta. Tinha uma desculpa para não comer: o médico prescrevera dieta.
O abade soltou uma espécie de gemido.
— Esta história interessa-lhe, não é verdade, senhor? — perguntou Caderousse.
— Interessa, de fato — respondeu o abade — É comovente.
— Mercedes voltou. Encontrou-o tão mudado que como da primeira vez quis mandá-lo transportar para casa dela. Essa era também a opinião do Sr. Morrel, que estava disposto a levá-lo à força. Mas o velho gritou tanto que tiveram medo. Mercedes ficou à sua cabeceira. O Sr. Morrel saiu depois de fazer sinal à catalã de que deixava uma bolsa em cima da chaminé. Mas fazendo finca pé na receita do médico, o velho recusou-se a comer. Por fim, após nove dias de desespero e abstinência, o velho amaldiçoando aqueles que tinham causado a sua desgraça e dizendo a Mercedes:
Se tornares a ver o meu Edmond, diga-lhe que morro abençoando-o.
O abade levantou-se, deu duas voltas na sala e levou a mão trêmula à garganta seca.
— E o senhor julga que morreu...
— De fome, senhor, de fome — respondeu Caderousse — Não lhe oculto a verdade porque estamos aqui dois cristãos.
O abade pegou com mão convulsa no copo de água ainda meio cheio, despejou-o de um trago, e conteve-se, com os olhos avermelhados e as faces pálidas.
— Reconheça que foi uma grande infelicidade! — disse com voz rouca.
— Tanto maior, senhor, quanto é certo não ter Deus sido para aí metido nem achado. Os culpados foram apenas os homens.
— Passemos, portanto a esses homens — disse o abade — Mas lembre-se — continuou com ar quase ameaçador — De que se comprometeu a dizer-me tudo. Vejamos, quem são esses homens que fizeram morrer o filho de desespero e o pai de fome?
— Dois homens que o invejavam, um por amor e o outro por ambição: Fernand e Danglars.
— E de que forma se manifestou essa inveja?
— Denunciaram Edmond como agente bonapartista.
— Mas qual dos dois o denunciou, qual dos dois foi o verdadeiro culpado?
— Ambos, senhor. Um escreveu a carta e o outro a colocou no correio.
— E onde foi escrita essa carta?
— Na própria Réserve, na véspera do casamento.
— Está certo, isso está certo. Oh, Faria, Faria, como conhecias bem os homens e as coisas?...
— Que diz, senhor? — perguntou Caderousse.
— Nada — perguntou o padre — Continue.
— Foi Danglars quem escreveu a denúncia com a mão esquerda, para que a sua letra não fosse conhecida, e Fernand quem a enviou.
— Mas o senhor também estava lá! — gritou de súbito o abade.
— Eu? — disse Caderousse, atônito — Quem lhe disse que também lá estava?
O abade viu que avançara demasiado.
— Ninguém — respondeu — Mas para conhecer tão bem todos esses pormenores é necessário que os tenha testemunhado.
— É verdade — admitiu Caderousse com voz sufocada — Eu estava lá.
— E não se opôs a essa infâmia? — indagou o abade — Nesse caso é seu cúmplice.
— Senhor — disse Caderousse — Ambos me tinham feito beber a ponto de quase não saber o que fazia. Via apenas através de uma nuvem. Disse tudo o que pode dizer um homem em semelhante estado, mas responderam-me ambos que era uma brincadeira que queriam pregar a Dantés e daí não adviria quaisquer conseqüências.
— Mas no dia seguinte, senhor, no dia seguinte bem viu o que aconteceu. E, no entanto, não disse nada, embora estivesse presente quando o prenderam.
— Tem razão, senhor, de fato estava lá e quis falar, quis dizer tudo, mas Danglars não me deixou.
E se por acaso é culpado? — disse-me — Se realmente aportou à Ilha de Elba e o encarregaram de trazer uma carta para o comitê bonapartista de Paris? Se encontram essa carta em seu poder, aqueles que o defenderem passarão por seus cúmplices.
— Eu temia a política, tal como ela se fazia então, confesso, e calei-me. Foi uma covardia, admito, mas não foi um crime.
— Compreendo, limitou-se a deixar as coisas seguirem o seu curso e mais nada.
— É verdade, senhor — confessou Caderousse — E esse é o meu remorso de dia e de noite. Peço muitas vezes perdão a Deus, juro-lhe, tanto mais que essa ação, a única que tenho seriamente a censurar-me em toda a minha vida, é sem dúvida a causa da minha adversidade. Expio um instante egoísmo. Por isso, digo sempre à Carconte quando se queixa: “Cale-se, mulher, é Deus que assim quer”.
E Caderousse baixou a cabeça, com todos os sinais de verdadeiro arrependimento.
— Bem, senhor — disse o abade — Falou com franqueza. Quem se acusa assim, merece perdão.
— Infelizmente — observou Caderousse — Edmond morreu e não me perdoou!
— Por ignorância... — atalhou o abade.
— Mas agora talvez saiba — acrescentou Caderousse — Dizem que os mortos sabem tudo.
Fez-se um instante de silêncio. O abade levantara-se e passeava pensativo. Voltou para o seu lugar e sentou-se.
— Já se referiu duas ou três vezes a um tal Sr. Morrel. Quem é esse homem? — perguntou.
— Era o armador do Pharaon, o patrão de Dantés.
— E que papel teve esse homem em todo esse triste caso? — perguntou o abade.
— O papel de um homem honesto, corajoso e amigo, senhor. Intercedeu vinte vezes por Edmond. Quando o imperador regressou, escreveu, suplicou e ameaçou, de tal forma que na II Restauração o perseguiram encarniçadamente como bonapartista. Dez vezes, como já lhe disse, foi a casa do velho Dantés; para o retirar de lá, e ainda na véspera da sua morte, como também já lhe disse, deixou em cima da chaminé uma bolsa com a qual se pagaram as dívidas do pobre homem e se fez face ao seu funeral. Assim, o infeliz velho pode morrer ao menos como vivera, sem prejudicar ninguém. Sou eu que tenho a bolsa, uma grande bolsa de rede encarnada.
— E esse Sr. Morrel ainda é vivo? — perguntou o abade.
— É — respondeu Caderousse.
— Nesse caso — prosseguiu o abade — Deve ser um homem abençoado por Deus, rico... feliz...
Caderousse sorriu amargamente.
— Sim, feliz como eu — perguntou.
— O Sr. Morrel deveria ser feliz! — exclamou o abade.
— Está quase na miséria, senhor, e, pior do que isso, quase desonrado.
— Como assim?
— Sim — prosseguiu Caderousse — É como lhe digo. Depois de vinte e cinco anos de trabalho; depois de adquirir a mais respeitável reputação na praça de Marselha, o Sr. Morrel está completamente arruinado. Perdeu cinco navios em dois anos, passou por três falências terríveis e a sua única esperança cifra-se apenas nesse mesmo Pharaon que comandava o pobre Dantés e que deve regressar da Índia com um carregamento de cochonilha e índigo. Se esse navio naufragar como os outros, estará perdido.
— E esse infeliz tem mulher e filhos? — quis saber o abade.
— Tem uma mulher que no meio de tudo aquilo se comporta como uma santa, uma filha que ia casar com o homem que amava, mas cuja família já não o quer deixar desposar uma moça arruinada, e também um filho que é tenente do Exército. Mas como deve calcular, tudo isto aumenta a sua dor, em vez de a diminuir. Pobre e digno homem! Se não tivesse ninguém, daria um tiro nos miolos e pronto.
— Que coisa horrível! — murmurou o padre.
— Aí está como Deus recompensa a virtude, senhor — comentou Caderousse — Veja, eu que nunca pratiquei uma má ação, excetuando a que lhe contei, estou na miséria; eu, depois de ver morrer a minha pobre mulher da febre, sem poder fazer nada por ela, morrerei de fome como morreu o velho Dantés, enquanto Fernand e Danglars nadam em ouro.
— Porque diz isso?
— Porque tudo lhes correu bem, ao passo que às pessoas honestas tudo corre mal.
— Que foi feito de Danglars, o mais culpado, não é verdade, o instigador?
— Que foi feito dele? Deixou Marselha e empregou-se por recomendação do Sr. Morrel, que ignorava o seu crime, como secretário de um banqueiro espanhol. Durante a guerra de Espanha encarregou-se de parte dos fornecimentos ao Exército francês e enriqueceu. Então, com esse primeiro dinheiro, jogou na Bolsa e triplicou, quadruplicou os seus capitais. Viúvo da filha do seu banqueiro, casou com uma viúva, a Sra. de Nargonne, filha do Sr. de Servieux, camareiro do atual rei, e que goza de enorme influência. Tornou-se milionário e fizeram-no barão. Portanto, agora é o Barão Danglars, tem um palácio na Rua do Mont-Blanc, dez cavalos nas cavalariças, seis lacaios na sua antecâmara e não sei quantos milhões nos seus cofres.
— Ah! — exclamou o abade num tom singular — E é feliz?
— Se é feliz? Quem pode garantir isso? A felicidade ou a infelicidade é o segredo das paredes. As paredes têm ouvidos, mas não têm língua. Se é feliz com uma grande fortuna, Danglars é feliz.
— E Fernand?
— Fernand já não é o mesmo, também.
— Mas como pode enriquecer um pobre pescador catalão sem recursos nem educação? Não compreendo, confesso.
— Nem compreende ninguém. Deve ter na vida qualquer segredo estranho que ninguém sabe.
— Mas, enfim, por meio de que degraus visíveis subiu a essa alta fortuna ou a essa alta posição?
— A ambas, senhor, a ambas! Possui ao mesmo tempo fortuna e posição.
— O que me diz parece um conto de fadas.
— A verdade é que o caso tem todo o aspecto disso. Mas escute que já vai compreender. Alguns dias antes do regresso de Napoleão, Fernand foi às sortes. Os Bourbon deixaram os Catalães muito quietinhos, mas quando Napoleão chegou, decretou um recrutamento extraordinário e Fernand foi obrigado a partir. Eu também parti, mas como era mais velho do que Fernand e acabava de casar com a minha pobre mulher, mandaram-me apenas para a costa.
“Fernand foi arregimentado nas tropas ativas, passou a fronteira com o seu regimento e assistiu à batalha de Ligny. Na noite que se seguiu à batalha estava de plantão à porta do general que tinha relações secretas com o inimigo. Nessa mesma noite o general deveria juntar-se aos Ingleses. Propôs a Fernand que o acompanhasse. Fernand aceitou, abandonou o seu posto e seguiu o general. O que levaria Fernand a um conselho de guerra se Napoleão tivesse permanecido no trono, serviu-lhe de recomendação junto dos Bourbon. Regressou a França com a dragona de alferes; e como a proteção do general, que gozava de grande influência, o não abandonou, era capitão em 1823, quando da guerra de Espanha, isto é, no preciso momento em que Danglars arriscava as suas primeiras especulações. Fernand era espanhol e mandaram-no a Madrid observar o estado de espírito dos seus compatriotas. Voltou a encontrar Danglars, entendeu-se com ele, prometeu ao seu general o apoio dos monárquicos da capital e das províncias, recebeu promessas, assumiu pela sua parte compromissos, guiou o seu regimento por caminhos só dele conhecidos nos desfiladeiros guardados pelos monárquicos, e enfim prestou naquela curta campanha tais serviços que depois da tomada do Trocadero o nomearam coronel e concederam-lhe a cruz de oficial de Legião de Honra, bem como o título de conde.
— Que sorte! Que sorte! — murmurou o abade.
— Sim, mas escute que ainda não é tudo. Terminada a guerra de Espanha, a carreira de Fernand encontrava-se comprometida devido à longa paz que prometia reinar na Europa. Apenas a Grécia se encontrava sublevada contra a Turquia e acabava de iniciar a guerra da sua independência. Todos os olhos estavam postos em Atenas. Era moda lamentar e apoiar os Gregos. O Governo francês, sem os proteger abertamente, como sabe, tolerava as migrações parciais. Fernand solicitou e obteve licença para ir servir na Grécia, embora permanecendo sempre sob o controle do Exército. Passado algum tempo soube-se que o Conde de Morcerf, como então se chamava, entrara ao serviço de Ali Paxa com o posto de general instrutor. Ali Paxa foi assassinado, como sabe; mas antes de morrer recompensou os serviços por Fernand com uma importância considerável, com a qual Fernand regressou a França, onde o seu posto de tenente-general lhe foi confirmado.
— De modo que hoje... — começou o abade.
— De modo que hoje — prosseguiu Caderousse — Possui um magnífico palácio em Paris, na Rua do Helder, nº. 27.
O abade abriu a boca, permaneceu um instante como um homem que hesita, mas fazendo um esforço sobre si mesmo perguntou:
— E Mercedes? Garantiram-me que desaparecera...
— Sim, desapareceu — respondeu Caderousse — Mas como desaparece o Sol para surgir no dia seguinte mais brilhante.
— Quer dizer que também fez fortuna? — inquiriu o abade com um sorriso irônico.
— Neste momento, Mercedes é uma das maiores damas de Paris — respondeu Caderousse.
— Continue — pediu o abade — Parece-me ouvir o relato de um sonho. Mas eu próprio já vi coisas tão extraordinárias que as que me conta me surpreendem menos.
— Ao princípio, Mercedes ficou desesperada com o golpe que lhe roubava Edmond. Já lhe falei das suas instâncias junto do Sr. de Villefort e da sua dedicação ao pai de Dantés. No meio do seu desespero atingiu-a nova dor a partida de Fernand, de Fernand cujo crime ignorava e que considerava um irmão. Fernand partiu e Mercedes ficou sozinha. Passou três meses chorando, sem notícias de Edmond nem de Fernand, tendo apenas diante dos olhos um velho que morria de desespero. Uma noite, depois de estar todo o dia sentada, como era seu costume, no cruzamento dos dois caminhos que ligam Marselha aos Catalães, regressou a casa mais abatida do que nunca: nem o noivo, nem o amigo regressavam por um ou por outro desses dois caminhos e não tinha notícias de nenhum deles. De súbito, pareceu-lhe ouvir passos conhecidos. Virou-se com ansiedade, a porta abriu-se e apareceu Fernand com o seu uniforme de alferes.
“Não era o homem por quem ela chorava, mas era parte do seu passado que vinha ao seu encontro. Mercedes agarrou nas mãos de Fernand com um transporte que este tomou por amor, embora não passasse da alegria de já se não encontrar sozinha no mundo e de tornar a ver finalmente um amigo, após longas horas de triste solidão. E depois, deve-se dizê-lo, Fernand nunca fora odiado; não era apenas amado. Outro possuía todo o coração de Mercedes, mas esse estava ausente... desaparecera... talvez tivesse morrido. Sempre que lhe ocorria esta última idéia, Mercedes rompia em soluços e torcia as mãos de dor, mas tal idéia, que antes repelia quando lhe era sugerida por outrem, acudia-lhe agora por si só o espírito. De resto, pela sua parte o velho Dantés não se cansava de lhe dizer:
O nosso Edmond morreu, porque se não tivesse morrido voltaria para junto de nós.
“O velho morreu, como já lhe disse. Se tivesse vivido, talvez Mercedes nunca se tivesse tornado a mulher de outro, pois ele estaria presente para lhe censurar a sua infidelidade. Fernand compreendeu isso. Quando soube da morte do velho, voltou. Desta vez era tenente. Na primeira viagem não dissera a Mercedes uma palavra de amor; na segunda recordou-lhe que a amava. Mercedes pediu-lhe mais seis meses para esperar e chorar Edmond.
— Tudo somado — disse o abade com um sorriso amargo — Dava dezoito meses ao todo. Quem pode exigir mais à noiva mais adorada?
Depois murmurou as palavras do poeta inglês:
Frailty thy name is woman!*

*Fragilidade o teu nome é mulher!

— Passados seis meses — prosseguiu Caderousse — Rrealizou-se o casamento na Igreja dos Accoules.
— A mesma igreja onde devia casar com Edmond — murmurou o padre — Só havia que mudar o noivo, e pronto.
— Mercedes casou-se, portanto — continuou Caderousse — Mas embora aos olhos de todos parecesse calma, nem por isso deixou de desmaiar ao passar diante da Réserve, onde dezoito meses antes fora festejado o seu noivado com aquele que verificaria amar ainda se se atrevesse a olhar o fundo do seu coração. Fernand, mais feliz, mas não mais tranqüilo, pois vi-o nessa época e temia constantemente o regresso de Edmond, Fernand tratou imediatamente de expatriar a mulher e de se exilar ele próprio. Os Catalães ofereciam ao mesmo tempo demasiados perigos e demasiadas recordações. Partiram oito dias depois do casamento.
— Tornou a ver Mercedes? — inquiriu o padre.
— Tornei, No momento da guerra de Espanha, em Perpinhão, onde Fernand a deixara. Ela ocupava-se então da educação do filho.
O abade estremeceu.
— Do filho? — disse.
— Sim — respondeu Caderousse — Do pequeno Albert.
—Mas para instruir esse filho — continuou o abade — Tinha ela própria de se instruir primeiro... ora, parece-me ter ouvido dizer a Edmond que era filha de um modesto pescador, bela, mas inculta.
— Oh, nesse caso conhecia muito mal a sua própria noiva! — observou Caderousse — Mercedes poderia ser rainha, senhor, se a coroa devesse assentar apenas nas cabeças mais belas e inteligentes. A sua fortuna progredia já e ela progredia com a sua fortuna. Aprendia desenho, música... aprendia tudo. Aliás, aqui para nós, creio que fazia tudo isso só para se distrair, para esquecer, que metia tantas coisas na cabeça apenas para combater o que tinha no coração. Mas agora tudo deve ser dito — continuou Caderousse — A riqueza e as honrarias confortaram-na, sem dúvida. É rica, é condessa, e, no entanto...
Caderousse deteve-se.
— No entanto, o quê? — perguntou o abade.
— No entanto, estou certo de que não é feliz — respondeu Caderousse.
— Que o leva a supor isso?
— Bom... quando me encontrei na mó de baixo, pensei que os meus antigos amigos me ajudariam em qualquer coisa. Apresentei-me em casa de Danglars, que nem sequer me recebeu. Fui a casa de Fernand, que me mandou cem francos pelo seu criado de quarto.
— Então não viu nem um nem outro?
— Não. Mas viu-me a Sra. de Morcerf.
— Como assim?
— Quando saí, caiu-me aos pés uma bolsa. Continha vinte e cinco luíses. Levantei rapidamente a cabeça e vi Mercedes fechar a persiana.
— E o Sr. de Villefort? — indagou o abade.
— Oh, esse não fora meu amigo, a esse não o conhecia, a esse não tinha nada a pedir!
— Mas não sabe o que foi feito dele e a parte que tomou na desgraça de Edmond?
— Não. Sei apenas que algum tempo depois de o mandar prender casou com Mademoiselle de Saint-Méran e em breve deixou Marselha. Decerto a felicidade lhe sorriu, como aos outros; decerto é rico como Danglars e considerado como Fernand. Só eu, como vê, fiquei pobre, miserável e esquecido de Deus.
— Engana-se, meu amigo — perguntou o abade — Às vezes, Deus pode parecer esquecer, quando a sua justiça descansa, mas chega sempre um momento em que Ele se recorda, e aqui está a prova.
Ao dizer estas palavras, o abade tirou o diamante da algibeira e apresentou-o a Caderousse.
— Tome, meu amigo — disse-lhe — Tome este diamante porque ele pertence-lhe.
— Como, a mim só?! — exclamou Caderousse — Vamos, senhor, não está brincando?
— Este diamante devia ser vendido entre os seus amigos. Como Edmond só tinha um amigo, a divisão é, portanto inútil. Tome este diamante e venda-o. Vale cinqüenta mil francos, repito-lhe, importância que, assim espero, bastar para o tirar da miséria.
— Oh, senhor! — disse Caderousse, estendendo timidamente uma das mãos e enxugando com a outra o suor que lhe perlava testa! — Oh, senhor, não brinque com a felicidade ou o desespero de um homem!
— Sei o que é a felicidade e o que é o desespero e nunca brincarei sem motivo com os sentimentos das pessoas. Tome, pois, mas em troca...
Caderousse, que tocava já no diamante, retirou a mão.
O abade sorriu.
— Em troca — continuou — Dê-me essa bolsa de seda encarnada que o Sr. Morrel deixou em cima da chaminé do velho Dantés e que me disse encontrar-se ainda em seu poder.
Cada vez mais atônito, Caderousse dirigiu-se para um grande armário de carvalho, abriu-o e deu ao abade uma bolsa comprida, de seda vermelha desbotada, com duas argolas de cobre que em tempos tinham sido douradas.
O abade pegou-lhe e em seu lugar deu o diamante a Caderousse.
— Oh, o senhor é um enviado de Deus! — exclamou Caderousse — Na verdade, ninguém sabia que Edmond lhe dera este diamante e o senhor poderia ficar com ele.
— Ao que parece, era o que farias — disse baixinho o abade.
Depois levantou-se e pegou o chapéu e as luvas.
— Ah! Tudo o que me disse é bem verdade, não é? Posso acreditar inteiramente nas suas palavras? — perguntou ainda.
— Olhe, Sr. Abade — respondeu Caderousse — Aqui tem ao canto desta parede um Cristo de madeira benzida, e em cima deste baú o livro dos Evangelhos da minha mulher. Abra o livro e jurarei sobre ele, com a mão estendida para o crucifixo, pela salvação da minha alma e pela minha fé de cristão, que lhe contei tudo como realmente se passou e como o anjo dos homens lhe contar ao ouvido de Deus no dia do Juízo Final!
— Está bem — disse o abade convencido pelo seu tom de que Caderousse dizia a verdade — Está bem, que esse dinheiro lhe aproveite! Adeus, volto para longe dos homens, que tanto mal fazem uns aos outros.
Esquivando-se com grande dificuldade aos entusiásticos agradecimentos de Caderousse, o abade retirou pessoalmente a tranca da porta, saiu, montou a cavalo, cumprimentou pela última vez o estalajadeiro, que se confundia em despedidas ruidosas, e partiu na mesma direção em que viera.
Quando se virou, Caderousse viu atrás de si a Carconte, mais pálida e trêmula do que nunca.
— É bem verdade o que ouvi? — perguntou ela.
— O quê? Que nos dava o diamante só para nós? — perguntou Caderousse, quase louco de alegria.
— Sim.
— Nada mais verdadeiro, porque... ei-lo!
A mulher olhou-o um instante. Depois, perguntou em voz abafada:
— E se for falso?
Caderousse empalideceu e cambaleou.
— Falso — murmurou — Falso... e por que motivo me daria esse homem um diamante falso?
— Para saber o teu segredo sem o pagar, imbecil!
Caderousse ficou um instante aturdido sob o peso desta hipótese.
— Oh — disse passado um instante, pegando no chapéu que colocou por cima do lenço encarnado atado à volta da cabeça — Vamos já sabê-lo!
— Como?
— Hoje é dia de feira em Beaucaire e estão lá joalheiros de Paris. Vou mostrar-lhes. Você, mulher, guarda a casa. Dentro de duas horas estarei de volta.
E Caderousse correu para fora de casa e meteu, sempre correndo, pela estrada oposta à que pouco antes tomara o desconhecido.
— Cinqüenta mil francos! — murmurou a Carconte a sós — É dinheiro... mas, não é uma fortuna.





continua...



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