domingo, 24 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 28



XXVIII

OS REGISTROS DAS PRISÕES




N
o dia seguinte àquele em que se passou na estrada de Bellegarde a Beaucaire a cena que acabamos de contar, um homem de trinta a trinta e dois anos, envergando fraque azul-claro, calças amarelo-torrado e colete branco, tendo ao mesmo tempo aspecto e sotaque britânicos, apresentou-se no gabinete do maire de Marselha.
— Senhor — disse-lhe — Sou chefe de escritório da Casa Thomson & French, de Roma. Há dez anos que mantemos relações com a Casa Morrel & Filhos, de Marselha. Temos aproximadamente uma centena de milhar de francos comprometidos nessas relações, e não sem alguma preocupação, atendendo a que se diz a casa ameaça ruína. Venho, portanto propositadamente de Roma para lhe pedir informações acerca dessa casa.
— Senhor — respondeu o maire — Sei efetivamente que há quatro ou cinco anos o azar parece perseguir o Sr. Morrel. Perdeu sucessivamente quatro ou cinco navios e passou por três ou quatro falências. Mas não me compete, embora eu próprio seja seu credor por uma dezena de milhar de francos, dar qualquer informação a respeito do estado da sua fortuna. Pergunte-me o que penso do Sr. Morrel como maire e lhe responderei que é um homem correto até ao exagero e que até agora satisfez todos os seus compromissos com perfeita pontualidade. É tudo o que lhe posso dizer, senhor. Se deseja saber mais, dirija-se ao Sr. de Boville, inspetor das prisões, Rua de Noailles, nº 15, que tem, segundo creio, duzentos mil francos colocados na Casa Morrel. Se há realmente alguma coisa a temer, como esta importância é mais considerável do que a minha o encontrará provavelmente melhor informado do que eu a respeito.
O inglês pareceu apreciar tão grande delicadeza, cumprimentou, saiu e dirigiu-se no andamento especial dos filhos da Grã-Bretanha para a rua indicada.
O Sr. de Boville estava no seu gabinete. Ao vê-lo, o inglês fez um gesto de surpresa que parecia indicar não ser a primeira vez que se encontrava diante da pessoa que vinha visitar. Quanto ao Sr. de Boville, estava tão desesperado que era evidente que todas as faculdades do seu espírito, absorvidas no pensamento que o ocupava naquele momento, não deixavam nem à sua memória nem à sua imaginação vagar para se ocupar do passado.
Com a fleuma da sua nação, o inglês fez-lhe pouco mais ou menos nos mesmos termos a pergunta que fizera ao maire de Marselha.
— Oh, senhor, infelizmente os seus receios não podem ser mais fundados e tem na sua presença um homem desesperado! — exclamou o Sr. de Boville — Tinha duzentos mil francos colocados na Casa Morrel, todo o dote da minha filha que contava casar dentro de quinze dias. Esses duzentos mil francos eram reembolsáveis, cem mil em 15 deste mês e cem mil em quinze do próximo mês. Avisei o Sr. Morrel de que desejava que o reembolso fosse feito pontualmente e ele veio aqui apenas há meia-hora dizer-me que se o navio Pharaon não entrar aqui até ao dia 15 lhe será impossível pagar-me.
— Mas isso assemelha-se muito a um subterfúgio — observou o inglês.
— Diga antes, senhor, que se assemelha a uma falência! — gritou o Sr. de Boville, desesperado.
O inglês pareceu refletir um instante e depois perguntou:
— Assim, senhor, esse crédito inspira-lhe receios?
— Para ser mais exato, considero-o perdido.
— Bom, nesse caso compro-lho.
— O senhor?
— Sim, eu.
— Mas com uma desvalorização enorme, sem dúvida?
— Não, por duzentos mil francos. A nossa casa — acrescentou o inglês, rindo — Não se dedica a esse gênero de negócios.
— E o senhor paga...
— Em dinheiro.
E o inglês tirou da algibeira um maço de notas de banco que devia ascender ao dobro da importância que o Sr. de Boville receava perder. Um relâmpago de alegria passou pelo rosto do Sr. de Boville. No entanto, fez um esforço sobre si mesmo e disse:
— Senhor, devo preveni-lo de que segundo todas as probabilidades, não cobrará mais de seis por cento dessa importância.
— Isso não é comigo — respondeu o inglês — Isso é com a casa Thomson & French, em nome da qual procedo. Talvez a ela interesse precipitar a ruína de uma casa rival. Tudo o que sei senhor, é que estou pronto a entregar-lhe essa importância em troca da sua transmissão. Apenas pretendo uma comissão de corretagem.
— Claro, senhor, é justíssimo! — exclamou o Sr. de Boville — A comissão é habitualmente de um e meio; quer dois! Quer três? Quer cinco? Quer mais, enfim? Diga!
— Senhor — respondeu o inglês, rindo — Sou como a minha casa, também não me dedico a essa espécie de negócios. Não, a minha comissão de corretagem é de natureza muito diferente.
— Diga, senhor. Estou às suas ordens.
— O senhor não é inspetor das prisões?
— Sou, há mais de catorze anos.
— Possui registros de entrada e saída?
— Sem dúvida.
— A esses registros devem estar juntas notas relativas aos prisioneiros?
— Cada prisioneiro tem o seu processo.
— Bom, senhor, fui educado em Roma pelo pobre diabo de um abade que desapareceu de súbito. Soube mais tarde que estivera detido no Castelo d’If e desejaria conhecer alguns pormenores acerca da sua morte.
— Como se chamava?
— Abade Faria.
— Oh, lembro-me perfeitamente dele! — exclamou o Sr. de Boville — Estava louco.
— Dizia-se.
— Oh, estava-o, sem dúvida nenhuma!
— É possível. E qual era o seu gênero de loucura?
— Pretendia saber da existência de um tesouro imenso e oferecia importâncias astronômicas ao Governo se o pusessem liberdade.
— Pobre diabo! Morreu?
— Sim, senhor, há cinco ou seis meses pouco mais ou menos, em Fevereiro último.
— Possui uma excelente memória, senhor, para se lembrar assim das datas.
— Lembro-me desta porque a morte do pobre diabo foi acompanhada de uma circunstância singular.
— Pode-se saber qual? — perguntou o inglês com uma expressão de curiosidade de um observador profundo se admiraria de encontrar em rosto tão fleumático.
— Oh, meu Deus, claro que sim, senhor! A cela do abade ficava distante quarenta e cinco a cinqüenta pés, aproximadamente, da de um antigo agente bonapartista, um dos que mais tinham contribuído para o regresso do usurpador em 1815, homem muito resoluto e perigoso.
— Deveras? — disse o inglês.
— Sim — respondeu o Sr. de Boville — Eu próprio tive a oportunidade de ver esse homem em 1816 ou 1817 e só se descia à sua cela com um piquete de soldados. Esse homem causou-me profunda impressão e nunca esquecerei o seu rosto.
O inglês sorriu imperceptivelmente.
— Mas dizia, senhor — atalhou — É que as duas celas...
— Estavam separadas por uma distância de cinqüenta pés. Mas parece que Edmond Dantés...
— Esse homem perigoso chamava-se?...
— Edmond Dantés. Sim, senhor, parece que Edmond Dantés arranjara ferramentas ou fabricara-as, porque se encontrou uma galeria através da qual os prisioneiros comunicavam um com o outro.
— Essa galeria fora sem dúvida praticada com uma finalidade de evasão?
— Exato. Mas infelizmente para os prisioneiros o Abade Faria teve um ataque de catalepsia e morreu.
— Compreendo. Isso deve ter frustrado os planos de evasão.
— Quanto ao morto, sim — respondeu o Sr. de Boville — Mas quanto ao vivo, não. Pelo contrário, Dantés viu nisso um meio de antecipar a sua fuga. Pensava sem dúvida que os prisioneiros que morriam no Castelo d’If eram enterrados num cemitério vulgar. Por isso, levou o defunto para a sua cela, tomou o lugar dele no saco onde fora encerrado e esperou o momento do funeral.
— Era um meio arriscado e que indicava certa coragem — observou o inglês.
— Oh, como já lhe disse, senhor, era um homem forte e perigoso! Felizmente, ele próprio desembaraçou o Governo dos receios que nutria a seu respeito.
— Como assim?
— Como? Não compreende?
— Não.
— O Castelo d’If não tem cemitério. Os mortos são pura e simplesmente lançados ao mar depois de se lhos prender aos pés um pelouro de trinta e seis.
— E depois? — perguntou o inglês, como se fosse de raciocínio lento.
— E depois?... prenderam-lhe um pelouro de trinta e seis aos pés e atiraram-no ao mar!
— Deveras?! — exclamou o inglês.
— É verdade, senhor — continuou o inspetor — Decerto compreende qual foi a surpresa do fugitivo quando se sentiu precipitado do alto dos rochedos. Gostaria de ver o seu rosto nesse momento.
— Seria difícil...
— Mas não tem importância! — exclamou o Sr. de Boville, a quem a certeza de recuperar os seus duzentos mil francos punha de bom humor — Não tem importância! Imagino-a...
E desatou a rir.
— E eu também — disse o inglês.
E desatou igualmente a rir, mas como riem os Ingleses, isto é, entredentes.
— Assim — continuou o inglês, o primeiro a deixar de rir — Assim, o fugitivo morreu afogado?
— Evidentemente.
— De modo que o governador do castelo se livrou ao mesmo tempo do furioso e do louco?
— Exato.
— No entanto, deve ter sido lavrada uma espécie de ata do sucedido, não? — perguntou o inglês.
— Claro, claro, passou-se uma certidão de óbito. Compreende, os parentes de Dantés, se os tinha, podiam ter interesse em se assegurar se estava morto ou vivo.
— De forma que podem estar agora tranqüilos, se houver herança. Está morto e bem morto.
— Oh, meu Deus, se está! Atestarão quando quiserem.
— Perfeitamente — disse o inglês — Mas voltaremos aos registros.
— É verdade. Esta história desviou-nos disso. Perdão.
— Perdão de quê? Da história? De modo nenhum, até a achei curiosa.
— E ela é de fato. Portanto, deseja ver, senhor tudo o que se relaciona com o seu pobre abade, que era a bondade personificada, não é verdade?
— Me daria prazer.
— Entre no meu gabinete que eu mostro-lhe o que pretende.
Ambos entraram no gabinete do Sr. de Boville, onde efetivamente tudo se encontrava em perfeita ordem: cada registro tinha o seu número e cada processo o seu cacifo.
O inspetor convidou o inglês a sentar-se na sua poltrona, colocou diante dele o registro e o processo relativos ao Castelo d’If e deu-lhe todo o tempo que quisesse para os consultar, enquanto ele próprio, sentado num canto, lia o seu jornal.
O inglês encontrou facilmente o processo relativo ao Abade Faria. Mas parece que a história que lhe contara o Sr. de Boville o interessava vivamente, porque depois de tomar conhecimento das primeiras peças continuou a folhear até chegar ao processo de Edmond Dantés.
Encontrou aí cada coisa no seu lugar: denúncia, interrogatório, petição de Morrel e despacho do Sr. de Villefort.
Dobrou muito devagarinho a denúncia e meteu-a na algibeira. Leu o interrogatório e verificou que o nome de Noirtier não era mencionado nele; percorreu a petição de 10 de Abril de 1815, em que Morrel, de acordo com o conselho do substituto, exagerava com excelente intenção, visto Napoleão reinar então, os serviços que Dantés prestara à causa imperial, serviços que o certificado de Villefort tornava incontestáveis, e compreendeu tudo: aquela petição dirigida a Napoleão e guardada por Villefort tornara-se depois da II Restauração uma arma terrível nas mãos do procurador régio. Não estranhou, portanto, ao folhear o registro, encontrar esta nota aposta ao seu nome:


Edmond Dantés: Bonapartista fanático. Tomou parte ativa no regresso da Ilha de Elba. Manter no maior segredo e sob a mais rigorosa vigilância.


Por baixo destas linhas estava escrito com outra letra:

Em vista da nota supra, nada a fazer.

No entanto, comparando a letra da nota com a do certificado escrito por baixo da petição de Morrel, adquiriu a certeza de que a nota fora escrita pela mesma pessoa que escrevera o certificado, ou seja, por Villefort.
Quanto à segunda nota, o inglês deduziu que fora escrita por algum inspetor que tomara interesse passageiro pela situação de Dantés, mas que a recomendação da primeira colocara na impossibilidade de dar seguimento a esse interesse.
Como dissemos, o inspetor, por descrição e para não incomodar o pupilo do Abade Faria nas suas investigações, afastara-se e lia Le Drapeau Blanc. Não viu, portanto o inglês dobrar e meter na algibeira a denúncia escrita por Danglars debaixo do caramanchão da Réserve, que tinha o carimbo dos correios de Marselha, com a data de 27 de Fevereiro e a hora de tiragem das 6 da tarde.
Mas, devemos dizê-lo, mesmo que o tivesse visto ligava tão pouca importância àquele papel e tanta aos seus duzentos mil francos que se não oporia ao que fizesse o inglês, por mais incorreto que fosse.
— Obrigado — disse este fechando ruidosamente o registro — Já tenho aquilo de que precisava. Agora compete-me cumprir a minha promessa. Faça-me uma simples transferência do seu crédito, em que declare ter recebido o seu montante. Vou entregar-lhe o dinheiro.
Cedeu o seu lugar à mesa ao Sr. de Boville, que se sentou sem hesitar e se apressou a fazer a transferência pedida, enquanto o inglês contava as notas de banco a um canto da papeleira.




  
 continua...



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