quarta-feira, 27 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 31


XXXI

ITÁLIA — SIMBAD, O MARINHEIRO




E
m princípios do ano de 1838 encontravam-se em Florença dois jovens pertencentes à mais elegante sociedade de Paris. Um deles era o Visconde Albert de Morcerf e o outro o Barão Franz d’Epinay. Tinham combinado ir passar o carnaval do mesmo ano em Roma, onde Franz, que residia em Itália havia perto de quatro anos, serviria de cicerone a Albert.
Ora, como não é coisa de somenos ir passar o Carnaval em Roma, sobretudo quando se pretende não dormir na Praça do Povo ou no Campo-Vaccino, escreveram a mestre Pastrini, proprietário do Hotel de Londres, na Praça de Espanha, pedindo-lhe que lhes reservasse aposentos confortáveis.
Mestre Pastrini respondeu que já só dispunha de dois quartos e um gabinete situados al secondo piano, que lhes oferecia mediante a módica quantia de um luís por dia. Os dois jovens aceitaram e em seguida, para aproveitar o melhor possível o tempo que lhe restava, Albert partiu para Nápoles. Quanto a Franz, permaneceu em Florença.
Depois de fruir durante algum tempo a vida que proporciona a cidade dos Médicis, de percorrer em todos os sentidos esses édenes a que chamam casinos e de ser recebido nos palácios magníficos que fazem as honras de Florença, deu-lhe na veneta, como já vira a Córsega, berço de Bonaparte, de visitar a Ilha de Elba, o grande interlúdio de Napoleão.
Portanto, uma tardinha, soltou uma barchetta da argola de ferro que a prendia ao porto de Liorne, deitou-se no fundo em cima da sua capa e disse aos marinheiros estas únicas palavras:
— “Para a Ilha de Elba!”
A embarcação deixou o porto tal como a ave marinha deixa o seu ninho e no dia seguinte desembarcava Franz em Porto Ferraio. Franz atravessou a ilha imperial, depois de seguir todos os vestígios que a passagem do gigante nela deixara, e foi embarcar em Marciana. Duas horas depois de deixar terra, retomou-a para desembarcar na Pianosa, onde o esperavam, garantiram-lhe, bandos infinitos de perdizes vermelhas.
A caçada foi ruim. Franz matou com grande dificuldade algumas perdizes magras e, como todo o caçador que se cansou para nada, voltou à sua embarcação de bastante mau humor.
— Ah, se Vossa Excelência quisesse — disse-lhe o patrão — Faria uma bela caçada!...
— Onde?
— Vê aquela ilha? — continuou o patrão, estendendo o dedo para o sul e mostrando uma massa cônica que saía do meio do mar pintado do mais belo índigo.
— Vejo. Que ilha é? — perguntou Franz.
— A Ilha de Monte Cristo — respondeu o liornês.
— Mas não tenho licença para caçar nessa ilha.
— Vossa Excelência nem precisa dela, a ilha está deserta.
— Por Deus, uma ilha deserta no meio do Mediterrâneo é coisa curiosa — observou o jovem.
— É natural, Excelência. Esta ilha é um banco de rochedos e em toda a sua extensão talvez não haja uma jeira de terra arável.
— A quem pertence a ilha?
— A Toscana.
— Que caça encontrarei lá?
— Milhares de cabras-monteses.
— Que vivem lambendo as pedras? — observou Franz com um sorriso de incredulidade.
— Não, mas sim pastando as urzes, as murtas e os lentiscos que crescem nos seus intervalos.
— Mas onde dormiria?
— Em terra, nas grutas, ou a bordo, na sua capa. Aliás, se Vossa Excelência quiser poderemos partir imediatamente a seguir à caçada. Como sabe, navegamos tão bem à vela de noite como de dia, e na falta da vela temos os remos.
Como restava ainda bastante tempo a Franz para se juntar ao companheiro e já não tinha de se preocupar com o seu alojamento em Roma, aceitou a proposta, que talvez lhe permitisse ressarcir-se do mau resultado da primeira caçada. Ao ouvirem a sua resposta afirmativa, os marinheiros trocaram algumas palavras em voz baixa.
— Então, que temos de novo? — perguntou — Surgiu alguma impossibilidade?
— Não — respondeu o patrão — Mas devemos prevenir Vossa Excelência de que a ilha está em contumácia.
— Que significa isso?
— Significa que como Monte Cristo é desabitada e serve às vezes de descanso a contrabandistas e piratas que vêm da Córsega, da Sardenha ou da África, se qualquer sinal denunciar a nossa presença na ilha seremos forçados, no regresso a Liorne, a fazer uma quarentena de seis dias.
— Diabo, ai está uma coisa que modifica tudo! Seis dias!... Precisamente tanto tempo quanto precisou Deus para criar o mundo. É um bocadinho demais, meus filhos.
— Mas quem dirá que Vossa Excelência esteve em Monte Cristo?
— Oh, eu não! — exclamou Franz.
— E nós também não — garantiram os marinheiros.
— Nesse caso, vamos para Monte Cristo.
O patrão comandou a manobra; aproaram à ilha e a embarcação começou a navegar na sua direção.
Franz esperou que a operação estivesse concluída e quando tomaram a nova rota, a vela foi enfunada pela brisa e os quatro marinheiros reocuparam os seus lugares, três à proa e um ao leme, reatou a conversa.
— Meu caro Caetano — disse ao patrão — Acaba de me dizer, se me não engano, que a Ilha de Monte Cristo servia de refúgio a piratas, o que me parece uma caça muito diferente das cabras.
— Sim, Excelência, e é verdade.
— Eu sabia da existência de contrabandistas, mas pensava que depois da tomada de Argel e da destruição da Regência os piratas já só existissem nos romances de Cooper e do capitão Marryat.
— Pois Vossa Excelência enganava-se. Existem tanto piratas como bandidos, supostamente exterminados pelo papa Leão XII, mas que, no entanto assaltam todos os dias os viajantes, até às portas de Roma. Não ouviu dizer que apenas há seis meses o encarregado de negócios da França junto da Santa Sé foi roubado a quinhentos passos de Velletri?
— Ouvi.
— Pois bem, se Vossa Excelência morasse em Liorne, como nós, ouviria dizer de tempos em tempos que um naviozinho carregado de mercadorias ou que um bonito iate inglês, esperados em Bástia, Porto Ferraio ou Civitta-Vecchia, não chegara nem se sabia que lhe acontecera, mas que sem dúvida se despedaçara contra qualquer rochedo. Bom, o rochedo que encontrou foi uma barca baixa e estreita tripulada por seis ou oito homens, que o surpreenderam ou pilharam numa noite escura e tempestuosa, nas imediações de alguma ilha selvagem e desabitada, tal como os bandidos detêm e pilham uma sege de posta no recanto de um bosque.
— Mas sendo assim — perguntou Franz, que continuava deitado na barca — Porque motivo é que aqueles a quem acontecem semelhantes acidentes se não queixam, não exigem que recaia sobre os piratas a vingança do governo francês, sardo ou toscano?
— Por que motivo? — repetiu Caetano com um sorriso.
— Sim, por que motivo?
— Porque primeiro transportam do navio ou do iate para a barca tudo o que tem algum valor; depois, amarram os pés e as mãos da tripulação, prendem ao pescoço de cada homem um pelouro de 24, abrem um buraco do tamanho de uma barrica na quilha do navio capturado, sobem à coberta, fecham as escotilhas e passam para a barca. Ao cabo de dez minutos o navio começa a inclinar-se e a ranger, e afunda-se pouco a pouco. Primeiro, mergulha um dos lados; depois, o outro; em seguida ergue-se, volta a mergulhar e submerge-se sempre mais. De súbito, ouve-se um estampido semelhante a um tiro de canhão: é o ar que quebra a coberta. Então, o navio agita-se como um afogado que se debate e cujos movimentos são cada vez mais pesados. Não tarda que a água, demasiado comprimida nas cavidades, saia pelas aberturas, como as colunas líquidas que lança pelos seus respiradouros qualquer cachalote gigantesco. Finalmente, solta um derradeiro estertor, dá uma última volta sobre si mesmo e desaparece no abismo no meio de um grande turbilhão que gira um instante, diminui pouco a pouco e acaba por se extinguir por completo, de forma que ao cabo de cinco minutos só a vista de Deus descobriria no fundo daquele mar calmo o navio desaparecido. Compreende agora — acrescentou o patrão sorrindo — Por que motivo o navio não regressa ao porto e a tripulação se não queixa?
Se Caetano tivesse contado a história antes de propor a expedição, é provável que Franz tivesse pensado duas vezes antes de a empreender. Mas já tinham partido e pareceu-lhe que seria covardia recuar. Era um desses homens que não procuram as situações perigosas, mas que se essas situações vêm ao seu encontro conservam um sangue frio inalterável para as combater. Era um desses homens de vontade calma que encaram um perigo na vida como um adversário num duelo, que calculam os seus movimentos, estudam a sua força, se contêm o suficiente para recuperar o fôlego, mas não o bastante para parecerem covardes, que avaliando num só olhar todas as suas vantagens matam de um único golpe.
— Ora! — exclamou — Atravessei a Sicília e a Calábria, naveguei dois meses no arquipélago e nunca vi a sombra de um bandido ou de um corsário.
— Também não disse isto a Vossa Excelência para o fazer renunciar ao seu projeto — declarou Caetano — Interrogou-me e eu limitei-me a responder-lhe, mais nada.
— Claro, meu caro Caetano, e o que diz é muito interessante, por isso, como desejo ter o prazer de o ouvir o mais tempo possível, sigamos para Monte Cristo.
Entretanto, aproximavam-se rapidamente do termo da viagem. O vento era fresco e de feição e a embarcação dava sete milhas por hora. A medida que se aproximavam, a ilha parecia sair límpida dos últimos raios do Sol e distinguia-se, como os pelouros num arsenal, o aglomerado de rochedos empilhados uns sobre os outros, em cujos interstícios se viam avermelhar urzes e verdejar  árvores. Quanto aos marinheiros, embora parecessem perfeitamente tranqüilos, era evidente que se encontravam alerta e que o seu olhar interrogava o vasto espelho sobre o qual deslizavam e em cujo horizonte se viam apenas alguns barcos de pescadores que, com as suas velas brancas, balouçavam como gaivotas na crista das vagas.
Encontravam-se apenas a cerca de quinze milhas de Monte-Cristo quando o Sol começou a pôr-se atrás da Córsega, cujas montanhas apareciam à direita, recortando no céu o seu sombrio rendilhado. Aquela massa de pedra semelhante ao gigante Adamastor erguia-se ameaçadora diante da embarcação, à qual roubava o sol, cuja parte superior se dourava. Pouco a pouco, a sombra subiu do mar e pareceu expulsar diante de si aquele derradeiro reflexo do dia prestes a findar. Depois o raio luminoso foi repelido até o cimo do cone, onde se deteve um instante como o penacho incandescente de um vulcão, e por fim a sombra, sempre ascendente, invadiu gradualmente o cume como invadira a base, e a ilha revelou-se como que uma montanha cinzenta que ia sempre escurecendo. Passada meia-hora, era noite cerrada.
Felizmente os marinheiros encontravam-se nos seus lugares habituais e conheciam até o mais pequeno rochedo do arquipélago toscano, pois de contrário, no meio da escuridão profunda que envolvia a embarcação, Franz não deixaria de se sentir inquieto. A Córsega desaparecera por completo e a própria Ilha de Monte Cristo se tornara invisível. Mas os marinheiros pareciam possuir, como o lince, a faculdade de ver nas trevas, e o piloto, sentado ao leme, não denotava a menor hesitação.
Decorrera cerca de meia-hora desde que o Sol se pusera quando Franz julgou distinguir a um quarto de milha à esquerda uma massa sombria. Mas era tão impossível identificar do que se tratava que, receando provocar a hilaridade dos marinheiros, tomando algumas nuvens flutuantes pela terra firme, guardou silêncio. Mas de súbito surgiu um grande clarão na margem. A terra poderia assemelhar-se a uma nuvem, mas o fogo não era nenhum meteoro.
— Que luz é aquela? — perguntou.
— Caluda! É uma fogueira — respondeu o patrão.
— Mas vocês diziam que a ilha estava desabitada!
— Eu dizia que não tinha população fixa, mas também disse que era um lugar de descanso para os contrabandistas.
— E para os piratas!
— E para os piratas — disse Caetano, repetindo as palavras de Franz — Foi por isso que mandei ultrapassar a ilha, pois como vê o fogo está atrás de nós.
— Mas esse fogo — continuou Franz — Parece-me um motivo de segurança do que de preocupação. Pessoas que receassem ser vistas não acenderiam uma fogueira.
— Oh, isso não quer dizer nada! — perguntou Caetano — Se Vossa Excelência pudesse avaliar, no meio da obscuridade, a posição da ilha, veria que colocada como está a fogueira não pode ser vista nem da costa, nem da Pianosa, mas apenas do mar alto.
— Assim, receia que essa fogueira nos anuncie má companhia?
— É o que precisamos tirar a limpo — respondeu Caetano, com os olhos sempre fixos naquela estrela terrestre.
— Mas como?
— Já vai ver.
Depois destas palavras, Caetano reuniu-se em conselho com os companheiros e ao cabo de cinco minutos de discussão executaram em silêncio uma manobra que lhes permitiu virar de bordo num instante. Retomaram então a rota que acabavam de seguir e poucos segundos depois desta mudança de direção a fogueira desapareceu, oculta por qualquer ondulação do terreno.
Então, o piloto imprimiu com o leme nova direção ao barco, que se aproximou visivelmente da ilha, a qual não tardou a encontrar-se apenas a cerca de cinqüenta passos. Caetano ferrou a vela e a embarcação deteve-se.
Tudo isto foi feito no meio do maior silêncio. Aliás, desde a mudança de rota nem uma só palavra fora pronunciada a bordo.
Caetano, que propusera a expedição, chamara a si toda a responsabilidade por ela. Os quatro marinheiros não o perdiam de vista enquanto, preparados os remos, se mantinham prontos para remar, o que, graças à obscuridade, não seria difícil.
Quanto a Franz, inspecionava as suas armas com o sangue frio que lhe conhecemos. Tinha duas espingardas de dois tiros e uma carabina. Carregou-as, verificou-lhes a fecharia e esperou.
Entretanto, o patrão despira o gabão e a camisa e prendera as calças na cintura. Como estava descalço, não precisava descalçar sapatos nem meias. Uma vez nesta indumentária, ou antes, liberto da sua indumentária, pôs um dedo nos lábios recomendando o mais profundo silêncio, deixou-se escorregar para o mar e nadou para a margem com tanta precaução que era impossível ouvir o menor ruído. Apenas devido ao sulco fosforescente provocado pelos seus movimentos era possível seguir-lhe o rasto.
Mas em breve até esse sulco desapareceu. Era evidente que Caetano chegara a terra.
No barco todos ficaram imóveis durante meia-hora, passada a qual viram reaparecer junto da margem e aproximar-se da embarcação o mesmo sulco luminoso. Ao cabo de um instante e em duas braçadas, Caetano alcançou a embarcação.
— Então — perguntaram ao mesmo tempo Franz e os quatro marinheiros.
— São contrabandistas espanhóis. Têm apenas consigo dois bandidos corsos.
— E que fazem esses dois bandidos corsos com contrabandistas espanhóis?
— Meu Deus, Excelência — respondeu Caetano em tom de profunda caridade cristã — As pessoas devem ajudar-se umas às outras! Muitas vezes, os bandidos encontram-se um bocadinho apertados em terra pelos guardas ou pelos carabineiros. Então, procuram uma embarcação e encontram nessa embarcação bons rapazes como nós a quem pedem hospitalidade na sua casa flutuante. Quem recusaria auxílio a um pobre diabo perseguido? Recebemo-lo e para maior segurança afastamo-nos para o largo. Não nos custa nada e salva a vida, ou pelo menos a liberdade a um dos nossos semelhantes que na primeira oportunidade retribui o favor que lhe prestamos indicando-nos um bom local onde possamos desembarcar as nossas mercadorias sem sermos incomodados pelos curiosos.
— Com que então, meu caro Caetano, você mesmo também é um bocadinho contrabandista, hem ?... — observou Franz, rindo.
— Que quer Vossa Excelência, faz-se um pouco de tudo!... — confessou Caetano com um sorriso impossível de descrever — É preciso viver...
— E você está em boas relações com as pessoas instaladas neste momento em Monte Cristo?
— Pouco mais ou menos. Nós, marinheiros, somos como os maçons: reconhecemo-nos por certos sinais.
— Nesse caso, parece-lhe que não teríamos nada a temer se desembarcássemos?
— Absolutamente nada. Os contrabandistas não são ladrões.
— Mas esses dois bandidos corsos... — insinuou Franz, calculando antecipadamente todas as probabilidades de perigo.
— Valha-me Deus, eles não têm culpa de ser bandidos! A culpa é das autoridades — perguntou Caetano.
— Como assim?
— Sem dúvida! Perseguem-nos apenas por furar uma pele...!  Como se não estivesse na natureza do corso vingar-se!
— Que entende você por furar uma pele? Assassinar um homem? — inquiriu Franz, continuando as suas investigações.
— Entendo matar um inimigo — respondeu o patrão — O que é muito diferente.
— Bom, vamos lá pedir hospitalidade aos contrabandistas e aos bandidos — decidiu o jovem — Acha que a concederão?
— Sem dúvida nenhuma.
— Quantos são?
— Quatro, Excelência, e com os dois bandidos, seis.
— Ótimo, é precisamente o nosso número! Estamos, portanto, no caso de esses cavalheiros mostrarem más intenções, em força igual e por conseqüências em condições de os dominar. Assim e pela última vez, vamos para Monte Cristo.
— Pois sim, Excelência. Mas ainda assim permite-nos que tomemos certas precauções?
— Claro, meu caro! Seja sábio como Nestor e prudente como Ulisses. Faço mais do que permitir-lhes, exorto-os a tomarem-nas.
— Muito bem. Então, silêncio — ordenou Caetano.
Todos se calaram.
Para um homem que, como Franz, encarava todas as coisas sob o seu verdadeiro aspecto a situação, sem ser perigosa, não deixava de revestir-se de certa gravidade. Encontrava-se na obscuridade mais profunda, isolado, no meio do mar, com marinheiros que não o conheciam e que não tinham nenhum motivo para lhe ser dedicados; que sabiam que trazia no cinto alguns milhares de francos e que tinham dez vezes, senão com inveja pelo menos com curiosidade, examinado as suas armas, que eram muito belas. Por outro lado ia desembarcar, escoltado apenas por esses homens, numa ilha que tinha um nome muitíssimo religioso, mas que parecia não prometer a Franz mais hospitalidade do que o Calvário a Cristo, graças aos seus contrabandistas e aos seus bandidos. Depois, aquela história dos navios afundados, que de dia julgara exagerada, parecia-lhe mais verossímil de noite. Por isso, colocado como estava entre um duplo perigo, talvez imaginário, não perdia os seus homens de vista nem largava a espingarda da mão.
Entretanto os marinheiros tinham içado de novo as velas e a embarcação voltara à esteira que já sulcara nas suas idas e vindas. Através da escuridão, Franz, um pouco mais habituado às trevas, distinguia o gigante de granito que a embarcação costeava. Por fim, ao ultrapassar de novo a esquina de um rochedo, viu a fogueira que brilhava mais ofuscante do que nunca e à sua volta cinco ou seis pessoas sentadas.
A reverberação do fogo estendia-se pelo mar dentro numa centena de passos. Caetano costeou a luz, mantendo, no entanto, a embarcação na parte não iluminada; depois, quando ficou exatamente defronte da fogueira, aproou na sua direção e entrou ousadamente no círculo luminoso, entoando uma canção de pescadores, acompanhado em coro pelos companheiros, que entoavam apenas o estribilho. À primeira palavra da canção os homens sentados à roda da fogueira levantaram-se e aproximaram-se do embarcadouro, de olhos postos na embarcação, cuja força e cujas intenções se esforçavam visivelmente por adivinhar. Em breve pareceram ter feito exame suficiente e foram, com exceção de um que ficou de pé na margem sentar-se de novo à volta da fogueira, na qual assava um cabrito inteiro.
Quando a embarcação chegou a uma vintena de passos da terra, o homem que se encontrava na margem fez maquinalmente com a carabina o gesto de uma sentinela que espera uma patrulha e gritou “Quem vem lá ?” em dialeto sardo.
Franz armou friamente as suas dois tiros.
Entretanto, Caetano trocou com o homem algumas palavras de que o jovem não compreendeu nada, mas que evidentemente lhe diziam respeito.
— Vossa Excelência quer dizer o seu nome ou manter o incógnito? — perguntou o patrão.
— O meu nome deve ser perfeitamente desconhecido. Diga-lhe, portanto simplesmente que sou um francês que viaja por prazer — respondeu Franz.
Assim que Caetano transmitiu a resposta, a sentinela deu uma ordem a um dos homens sentados à fogueira, o qual se levantou imediatamente e desapareceu entre os rochedos.
Fez-se silêncio. Todos pareciam preocupados com o que mais diretamente lhes respeitava: Franz com o seu desembarque, os marinheiros com as suas velas e os contrabandistas com o seu cabrito. No entanto, no meio de tão aparente despreocupação, todos se observavam mutuamente.
O homem que se afastara reapareceu de súbito, do lado oposto àquele por onde desaparecera, e fez um sinal com a cabeça à sentinela, que se virou e limitou a pronunciar estas palavras:
— Saccommodi.
O saccommodi italiano tem diversos significados. Quer dizer ao mesmo tempo: venham, entrem, sejam bem-vindos, façam de conta que estão em sua casa, etc. É como aquela frase turca de Moliêre que tanto espantava o burguês gentil-homem pela quantidade de coisas que continha.
Os marinheiros não esperaram que os convidassem segunda vez: em quatro remadas, a embarcação chegou a terra. Caetano saltou para a praia e trocou mais algumas palavras em voz baixa com a sentinela. Os seus companheiros desembarcaram um após outro. Por fim, desembarcou Franz.
Trazia uma das espingardas em bandoleira; Caetano empunhava a outra e um dos marinheiros a carabina. A sua indumentária refletia ao mesmo tempo algo de artista e de peralvilho o que inspirou aos anfitriões algumas desconfianças, e conseqüentemente alguma inquietação.
Amarraram a embarcação à margem e deram alguns passos a fim de procurarem uma instalação cômoda. Mas sem dúvida o ponto para onde se dirigiam não era da conveniência do contrabandista que fazia de sentinela, pois gritou a Caetano:
— Pare, aí não, por favor!
Caetano balbuciou uma desculpa e, sem insistir mais, dirigiu-se para o lado oposto, enquanto dois marinheiros iam acender archotes na fogueira a fim de iluminarem o caminho.
Ao fim de cerca de trinta passos detiveram-se numa esplanadazinha toda rodeada de rochedos nos quais tinham sido escavados uma espécie de cadeirões mais ou menos idênticos a pequenas guaritas onde se montaria guarda sentado. Em redor vegetavam em veios de terra vegetal alguns carvalhos-anões e tufos espessos de murta. Franz abaixou um archote e verificou por um monte de cinzas que não era o primeiro a notar o conforto daquele local, que devia ser uma das estações habituais dos visitantes nômades da Ilha de Monte Cristo.
Quanto à sua expectativa de acontecimentos, cessara. Logo que pusera pé em terra firme e verificara as disposições, senão amistosas, pelo menos indiferentes dos seus anfitriões, toda a sua preocupação desaparecera, e perante o odor do cabrito que assava no acampamento vizinho a preocupação transformara-se em apetite.
Tocou no assunto a Caetano, que lhe respondeu não haver nada mais simples de obter do que uma ceia quando se tinha, como eles na sua embarcação, pão, vinho e seis perdizes, e era fácil conseguir um bom fogo para as assar.
— De resto — acrescentou — Se Vossa Excelência acha tão tentador o cheiro do cabrito, posso ir oferecer aos nossos vizinhos duas das nossas aves em troca de um naco do seu quadrúpede.
— Faça isso, Caetano, faça isso — aceitou Franz — Você nasceu realmente com o dom da negociação.
Entretanto os marinheiros tinham arrancado braçadas de urze e feito molhos de murta e azinheira, aos quais tinham pegado fogo, de modo a conseguirem uma fogueira bastante respeitável.
Franz esperava com impaciência, sem deixar de aspirar o odor do cabrito, que o patrão regressasse, quando este reapareceu e se lhe dirigiu com ar muito preocupado.
— Então, que há de novo? Recusam a nossa oferta? — perguntou Franz.
— Pelo contrário — respondeu Caetano — O chefe, a quem disseram que Vossa Excelência era um jovem francês, convida-o para cear com ele.
— Ótimo! — exclamou Franz — Esse chefe é um homem deveras civilizado e não vejo motivo para recusar o seu convite, tanto mais que contribuo com a minha parte para a ceia.
— Oh, não se trata disso! Não falta com que cear à farta, mas é que ele põe, para que Vossa Excelência se apresente em sua casa, uma singular condição.
— Em sua casa? — repetiu o jovem — Quer dizer que mandou construir aqui uma casa?
— Não. Mas nem por isso deixa de possuir algo semelhante muito confortável, pelo menos segundo afirmam.
— Você conhece esse chefe?
— Ouvi falar dele.
— Bem ou mal?
— Das duas maneiras.
— Demônio! E qual é essa condição?
— Deixar que vendem os seus olhos e não tirar a venda senão quando ele próprio o convidar a fazê-lo.
Franz sondou tanto quanto possível o olhar de Caetano para saber o que ocultava tal proposta.
— Claro! — exclamou o patrão, adivinhando o pensamento de Franz — Sei isso perfeitamente: a coisa merece reflexão.
— Que faria você no meu lugar? — perguntou o rapaz.
— Eu, como não tenho nada a perder, iria.
— Aceitaria?
— Aceitava, nem que fosse só por curiosidade.
— Há, portanto algo curioso a ver em casa do chefe?
— Escute — disse Caetano, baixando a voz — Não sei se o que dizem é verdade...
Deteve-se para ver se algum estranho o escutava.
— E que dizem?
— Dizem que o chefe habita num subterrâneo ao pé do qual o Palácio Pitti não vale nada.
— Que sonho! — exclamou Franz, voltando a sentar-se.
— Oh, não se trata de um sonho! — continuou o patrão — Trata-se de uma realidade! Cama, o piloto do Saint-Ferdinand, entrou lá um dia e saiu maravilhado, dizendo que só nos contos de fadas existem semelhantes tesouros.
— Deveras? — ironizou Franz — Sabe que com essas palavras até me faria descer à caverna de Ali Babá?
— Estou dizendo o que me disseram, Excelência.
— Então aconselha-me a aceitar?
— Oh, não digo isso! Vossa Excelência fará o que muito bem entender. Não desejaria dar-lhe um conselho nesta ocasião.
Franz refletiu uns instantes, concluiu que aquele homem tão rico não poderia querer roubá-lo; visto trazer consigo apenas alguns milhares de francos, e como não entrevisse no meio de tudo aquilo senão uma excelente ceia, aceitou. Caetano foi levar-lhe a resposta.
Todavia, como dissemos, Franz era prudente. Por isso, procurou obter o maior número possível de pormenores acerca do seu estranho e misterioso anfitrião. Virou-se, pois para o marinheiro que durante o diálogo depenara as perdizes com a gravidade de um homem orgulhoso das suas funções e perguntou-lhe como teriam chegado ali aqueles homens, visto não se ver nem barcas, nem spéronares, nem tartanas:
— A mim isso não me causa nenhuma estranheza — respondeu o marinheiro — Tanto mais que conheço o navio em que navegam.
— É bom, esse navio?
— Tomara Vossa Excelência um assim para dar a volta ao mundo.
— Quantas toneladas desloca?
— Mais de cem. Trata-se, de resto, de um navio extravagante, de um iate, como dizem os Ingleses, mas construído de forma a fazer-se ao mar com qualquer tempo.
— Onde foi construído?
— Ignoro-o, mas julgo-o genovês.
— E como é que um chefe de contrabandistas — continuou Franz — Ousa mandar construir no porto de Gênova um iate destinado ao seu comércio?
— Não disse que o proprietário do iate fosse um contrabandista.
— Pois não, mas disse-o Caetano, parece-me.
— Caetano vira a tripulação de longe e ainda não falara com ninguém.
— Mas se esse homem não é um contrabandista, que é então?
— Um rico senhor que viaja por prazer.
“Bom”, pensou Franz, “As duas versões são tão diferentes que a personagem ainda se torna mais misteriosa”.
— E como se chama?
— Quando lhe perguntam, responde que se chama Simbad, o Marinheiro. Mas duvido que seja esse o seu verdadeiro nome.
— Simbad, o Marinheiro?
— Sim.
— E onde habita esse senhor?
— No mar.
— De que país é?
— Não sei.
— Já o viu?
— Algumas vezes.
— Que homem é?
— Vossa Excelência julgará por si mesmo.
— E onde vai receber-me?
— Sem dúvida no palácio subterrâneo de que vos falou Caetano.
— E vocês nunca tiveram a curiosidade, quando vieram descansar aqui e encontraram a ilha deserta, de procurar penetrar nesse palácio encantado?
— Oh, decerto, Excelência, e por mais de uma vez! — confessou o marinheiro — Mas as nossas buscas foram sempre inúteis. Examinamos a gruta por todos os lados e não encontramos a mais pequena passagem. De resto, dizem que a porta não se abre com uma chave, mas sim com uma palavra mágica.
— Decididamente — murmurou Franz — Estou metido num conto das Mil e Uma Noites.
— Sua Excelência espera-vos — disse atrás dele uma voz que reconheceu ser a da sentinela.
O recém-chegado vinha acompanhado de dois homens da tripulação do iate. Como única resposta, Franz tirou um lenço da algibeira e apresentou-o ao que lhe dirigia a palavra. Sem dizerem nada, vendaram-lhe os olhos com um cuidado denunciador do receio de que cometesse qualquer indiscrição. Depois, pediram-lhe que jurasse que não tentaria de qualquer modo tirar a venda.
Jurou.
Então, os dois homens pegaram-lhe cada um por um braço e ele caminhou, guiado por ambos e precedido pela sentinela. Após uma trintena de passos adivinhou, pelo cheiro cada vez mais apetitoso do cabrito, que voltava a passar diante do acampamento. Em seguida, fizeram-no continuar o seu caminho durante mais cerca de cinqüenta passos, dirigindo-se, evidentemente, para o lado onde não tinha deixado penetrar Caetano, proibição que se explicava agora. Em breve, pela mudança da atmosfera, compreendeu que entrava num subterrâneo. Ao cabo de alguns segundos de marcha ouviu um estalido e pareceu-lhe que a atmosfera mudava mais uma vez de natureza e se tornava tépida e perfumada. Por fim, sentiu os pés pisarem um tapete espesso e fofo. Os guias deixaram-no. Reinou um momento de silêncio e uma voz disse em bom francês, embora com sotaque estrangeiro:
— Seja bem-vindo a minha casa, senhor. Pode tirar o lenço.
Como facilmente se calcula, Franz não esperou que lhe repetissem o convite. Tirou o lenço e encontrou-se na presença de um homem de trinta e oito a quarenta anos, vestido à tunisina, isto é, de barrete vermelho, com uma grande borla de seda azul, jaqueta de tecido preto toda bordada a ouro, calças cor de sangue de boi largas e tufadas, polainas da mesma cor, bordadas a ouro como a jaqueta, e babuchas amarelas. Apertava-lhe a cintura uma magnífica faixa de caxemira, adornada com um punhalzinho agudo e curvo.
A despeito da sua palidez quase lívida, aquele homem possuía um rosto notavelmente belo: olhos vivos e penetrantes, nariz direito e quase nivelado com a testa, o que indicava o tipo grego em toda a sua pureza, e dentes brancos como pérolas, que se salientavam admiravelmente sob o bigode preto que os enquadrava. Só a palidez era estranha. Dir-se-ia um homem que estivera fechado durante muito tempo num túmulo e que não conseguira recuperar a carnação dos vivos. Sem ser alto, era elegante, e como os homens do Sul, tinha as mãos e os pés pequenos.
Mas o que surpreendeu Franz, que classificara de sonho a descrição de Caetano, foi a suntuosidade do mobiliário.
Toda a sala estava forrada de tecidos turcos de cor carmesim e recamados de flores douradas. Num recanto via-se uma espécie de divã encimado por uma panóplia de armas árabes de bainhas de prata dourada e punhos resplandecentes de pedrarias. Do teto pendia um candeeiro de cristal de Veneza, de formato e cor encantadores, e os pés repousavam num tapete turco em que se enterravam até aos tornozelos. Pendiam reposteiros diante da porta por onde Franz entrara, bem como diante de outra que dava passagem para segunda sala que parecia esplendidamente iluminada.
O anfitrião deixou por instantes Franz entregue à sua surpresa, ao mesmo tempo que retribuindo-lhe exame com exame, não lhe tirava os olhos de cima.
— Senhor — disse-lhe por fim — Mil vezes perdão pelas precauções que lhe exigiram para o introduzir junto de mim. Mas como durante a maior parte do tempo esta ilha está deserta, se o segredo desta residência fosse conhecido encontraria sem dúvida, ao regressar, a minha instalação em bastante mau estado, o que seria mito desagradável, não pelo prejuízo que me causaria, mas sim porque não teria a certeza de poder, quando me apetecesse, isolar-me do resto do mundo. Agora, vou procurar fazer-lhe esquecer essa pequena contrariedade oferecendo-lhe o que de certo não esperaria encontrar aqui: uma ceia menos má e camas bastante boas.
— Garanto-lhe, meu caro anfitrião — respondeu Franz — Que escusa de se desculpar por isso. Sempre vi vendar os olhos às pessoas que penetravam nos palácios encantados. Veja, por exemplo, Raul, nos Huguenotes. Realmente, não tenho de que me queixar, porque o que me mostra compete com as maravilhas das Mil e Uma Noites.
— Não exagere! Lhe direi como Lúculo: se soubesse que ia ter a honra da sua visita, teria me preparado para ela. Mas enfim, tal como é o meu eremitério, coloco-o à sua disposição, e tal como é a, minha ceia, assim lha ofereço. Ali, estamos servidos?
Quase no mesmo instante o reposteiro levantou-se e um negro núbio, preto como o ébano e envergando uma simples túnica branca, fez sinal ao amo de que podia entrar na sala de jantar.
— Agora — disse o desconhecido a Franz — Não sei se é da minha opinião, mas parece-me que não há nada mais constrangedor do que ficarmos duas ou três horas em amena conversa sem um e outro sabermos por que nome ou por que título nos tratamos. Note que respeito demasiado as leis da hospitalidade para lhe perguntar o seu nome ou o seu título. Peço-lhe apenas que me indique um nome qualquer com a ajuda do qual lhe possa dirigir a palavra. Quanto a mim, para o pôr à vontade, informo-o de que costumam tratar-me por Simbad, o Marinheiro.
— E eu — perguntou Franz — Lhe direi que, como para estar na situação de Aladim só me falta a famosa lâmpada maravilhosa, não vejo nenhum inconveniente em que, de momento, me trate por Aladim. Isso não nos tirará do Oriente, onde sou tentado a crer que fui transportado pelo poder de algum gênio.
— Muito bem, Sr. Aladim! — concordou o estranho anfitrião — Ouvi dizer que estávamos servidos, não é verdade? Queira, pois acompanhar-me à sala de jantar. O seu humilíssimo servidor passa-lhe adiante para lhe indicar o caminho.
E, ditas estas palavras, Simbad levantou o reposteiro e passou efetivamente à frente de Franz. Este ia de encantamento em encantamento. A mesa estava esplendidamente servida. Uma vez esclarecido acerca deste importante ponto, olhou à sua volta.
A sala de jantar não era menos esplêndida do que a que acabara de deixar. Era toda de mármore, adornavam-na baixos-relevos antigos valiosíssimos e nas duas extremidades da sala, que era oblonga, viam-se duas estátuas magníficas com cestos à cabeça. Os cestos continham duas pirâmides de frutos excelentes: abacaxis da Sicília, romãs de Málaga, laranjas das ilhas Baleares, pêssegos de França e tâmaras da Tunísia.
Quanto à ceia, compunha-se de um faisão assado rodeado de melros da Córsega, de perna de javali com geléia, de um quarto de cabrito à tártaro, de um rodovalho magnífico[1], e de uma gigantesca lagosta. Os intervalos dos pratos principais eram preenchidos com pratinhos de acepipes. As travessas eram de prata e os pratos de porcelana do Japão. Franz esfregou os olhos para ter a certeza de que não sonhava. Aliás, só era admitido para cuidar do serviço, do qual se desempenhava muitíssimo bem o hóspede cumprimentou por isso o seu anfitrião.

[1] O rodovalho é um peixe das águas do litoral continental português. Semelhante ao pregado, está entre os mais delicados peixes de água salgada, e a sua carne branca, magra e saborosa, é apreciada desde a Antiguidade.

— Sim — concordou este, sem deixar de fazer as honras da ceia com o maior à-vontade — Sim, é um pobre diabo que me é muito dedicado e que procura servir-me o melhor que pode. Lembra-se de que lhe salvei a vida, e como parece que tinha a cabeça em grande conta guarda-me algum reconhecimento por lha ter conservado.
Ali aproximou-se do amo, pegou-lhe na mão e beijou-a.
— Seria demasiado indiscreto, Sr. Simbad — disse Franz — Se lhe perguntasse em que circunstâncias praticou essa bela ação?
— Oh, meu Deus, foi muito simples! — respondeu o anfitrião — Parece que o brejeiro andara rondando as imediações do serralho do rei de Tunes, o que não era conveniente da parte de um figurão da sua cor. De modo que fora condenado pelo rei a cortarem-lhe a língua, a mão e a cabeça. A língua no primeiro dia, a mão no segundo e a cabeça no terceiro. Sempre desejara ter um mudo ao seu serviço. Por isso, esperei que lhe cortassem a língua e fui propor ao rei que me desse em troca de uma magnífica espingarda de dois tiros que na véspera me parecera despertar os desejos de, sua alteza. Hesitou um instante, de tal modo estava empenhado em acabar com o pobre diabo, mas juntei à espingarda uma faca de caça inglesa com a qual eu levara a melhor ao iatagã de sua alteza. Então, o rei decidiu-se a perdoar-lhe o corte da mão e da cabeça, mas com a condição de nunca mais pôr os pés em Tunes. A recomendação era inútil. Logo que o infiel avista, o mais longe que seja, as costas de África, corre para o fundo do porão e ninguém consegue fazê-lo sair de lá enquanto não está fora de vista a terceira parte do mundo.
Franz ficou um momento mudo e pensativo, sem saber que pensar da bonomia cruel com que o anfitrião acabava de lhe contar o caso.
— E como o respeitável marinheiro cujo nome adotou passa a vida a viajar? — perguntou para mudar de assunto.
— Passo. Foi um juramento que fiz num tempo em que não pensava muito poder cumpri-lo — respondeu o desconhecido, sorrindo — Fiz outros como este e espero que se cumpram todos a seu tempo.
Embora Simbad tivesse pronunciado estas palavras com o maior sangue frio, os seus olhos adquiriram uma expressão de ferocidade estranha.
— Creio que sofreu muito, senhor — disse-lhe Franz.
Simbad estremeceu e olhou-o fixamente.
— Porque diz isso? — perguntou.
— Por tudo — respondeu Franz — Pela sua voz, pelo seu olhar, pela sua palidez, e até pela vida que leva.
— Eu?! Levo a vida mais feliz que conheço, uma autêntica vida de paxá. Sou o rei da criação: se me sinto bem num lugar, fico; se me aborreço parto. Sou livre como os passarinhos, tenho asas como eles, e as pessoas que me rodeiam obedecem-me cegamente. De vez em quando divirto-me a escarnecer a justiça humana roubando-lhe um bandido que procura, um criminoso que persegue. Depois, tenho a minha própria justiça, baixa e alta, sem delongas e sem apelo, que condena ou absolve e com a qual ninguém tem nada a ver! Oh, se tivesse saboreado a minha vida não quereria outra e nunca mais regressaria ao mundo, a menos que tivesse algum grande projeto a cumprir!
— Uma vingança, por exemplo... — insinuou Franz.
O desconhecido pousou no jovem um desses olhares que mergulham profundamente no coração e no cérebro.
— E porque uma vingança? — perguntou.
— Porque — respondeu Franz — O senhor tem todo o ar de um homem que, perseguido pela sociedade, tem uma conta terrível a ajustar com ela.
— Pois engana-se! — volveu-lhe Simbad, rindo com o seu riso estranho, que lhe descobria os dentes brancos e agudos — Aqui onde me vê sou uma espécie de filantropo e talvez um dia vá a Paris fazer concorrência ao Sr. Appert e ao homem da capa azul.
— E será a primeira vez que fará essa viagem?
— Oh, meu Deus, claro que sim! Tenho o ar de ser muito pouco curioso, não tenho? Pois garanto-lhe não ser responsável por tão grande demora. Mas irei lá, mais dia menos dia!
— Peço-lhe que seja mais preciso, conta fazer brevemente essa viagem?
— Ainda não sei. Depende de circunstâncias submetidas a combinações incertas.
— Gostaria de estar lá nesse momento para procurar retribuir-lhe, na medida das minhas possibilidades, a hospitalidade que me dispensou tão generosamente em Monte Cristo.
— Aceitaria a sua oferta com muito prazer, mas infelizmente, se for, será talvez incógnito.
Entretanto, a ceia continuava e parecia ter sido servida exclusivamente em intenção de Franz, pois o desconhecido mal tocara num ou dois pratos de esplêndido festim que lhe oferecera e ao qual o seu conviva inesperado fazia as mais amplas honras.
Por fim, Ali trouxe a sobremesa, ou antes, tirou os cestos das mãos das estátuas e pô-las em cima da mesa. Entre os dois cestos colocou uma tacinha de prata dourada, com tampa do mesmo metal. O respeito com que Ali trouxe a taça despertou a curiosidade de Franz. Levantou a tampa e viu uma espécie de pasta esverdeava que lembrava compota de angélica, mas que lhe era completamente desconhecida. Recolocou a tampa, tão ignorante do que a taça continha depois de tapá-la como antes de a destapar, e olhou para o seu anfitrião, que sorria da sua decepção.
— Não consegue adivinhar — disse-lhe ele — Que espécie de comestível contém essa tacinha e isso intriga-o, não é verdade?
— Confesso que sim.
— Pois bem, essa espécie de compota verde‚ é nem mais nem menos, a ambrosia que Hebe servia à mesa de Júpiter.
— Mas essa ambrosia — observou Franz — Perdeu sem dúvida, ao passar para a mão dos homens, o seu nome celeste para tomar um nome humano. Em linguagem vulgar, como se chama este ingrediente, pelo qual, aliás, não sinto grande simpatia?
— Ora aí está justamente uma coisa que revela a nossa origem material! — exclamou Simbad — Muitas vezes passamos assim ao lado da felicidade sem a ver, sem a olhar, ou, se a vemos e olhamos, sem a reconhecer. Se é um homem positivo e o ouro é o seu deus, saboreie isto e se abrirão as minas do Peru, de Guzarate e de Golconda. Se é um homem de imaginação, se é poeta, saboreie também isto e as barreiras do possível desaparecerão. Os campos do infinito se abrirão e passeará de coração e espírito libertos no domínio sem limites da fantasia. Se é ambicioso e corre atrás das grandezas do mundo, saboreie mais uma vez isto e dentro de uma hora será rei, não rei de um reinozinho escondido num recanto da Europa, como a França, a Espanha ou a Inglaterra, mas sim rei do mundo, rei do universo, rei da criação. O seu trono se erguerá na montanha onde Satanás desafia Jesus. E sem necessitar de lhe prestar homenagem, sem ser obrigado a beijar-lhe as patas, ser o senhor supremo de todos os reinos da Terra. Não é tentador o que lhe ofereço, e não é uma coisa facílima, uma vez que basta fazer isto? Ora veja.
Ditas estas palavras, destapou por seu turno a tacinha de prata dourada que continha a substância tão elogiada, tirou uma colher de café da compota mágica, levou-a à boca e saboreou-a lentamente, com os olhos semi-cerrados e a cabeça inclinada para trás.
Franz deixou-o tomar à vontade o seu manjar favorito. Depois, quando o viu um bocadinho menos absorto, perguntou-lhe:
— Mas afinal que é esse manjar tão precioso?
— Já ouviu falar do Velho da Montanha, aquele que quis mandar assassinar Filipe Augusto? — perguntou-lhe o anfitrião.
— Sem dúvida.
— Como sabe, reinava sobre um rico vale dominado pela montanha de onde lhe veio o seu pitoresco nome. No vale havia jardins magníficos plantados por Hassen-bem-Sabah, e nesses jardins pavilhões isolados. Era nesses pavilhões que fazia entrar os seus eleitos e lhes dava de comer, segundo Marco Pólo, certa erva que os transportava ao Paraíso, no meio de plantas sempre floridas, de frutos sempre maduros, de mulheres sempre virgens. Ora, o que esses jovens ditosos tomavam por realidade era um sonho; mas um sonho tão agradável, tão inebriante, tão voluptuoso, que se vendiam de corpo e alma àquele que lhes proporcionara e, obedecendo às suas ordens como às de Deus, iam ferir no cabo do mundo a vítima indicada, após o que morriam no meio de torturas sem se queixarem, convencidos de que a morte a que se submetiam não passava de um meio de transição para a vida de delícias de que a erva sagrada que tem na sua presença lhos dera um antegosto.
— Então, trata-se de haxixe![2] — exclamou Franz — Sim, conheço isso, pelo menos de nome.

[2] O Haxixe é extraído da mesma planta donde se extrai a maconha. Mais precisamente, é uma espécie de resina retirada das folhas da “Cannabis sativa” e assim sendo, possui uma concentração maior de THC, a substância psico-ativa da droga. Tem efeitos viciantes e alucinógenos.

— Disse justamente a palavra, Sr. Aladim. É de fato haxixe, tudo o que se fabrica de melhor e mais puro em haxixe em Alexandria, haxixe de Abugor, o grande fabricante, o homem único, o homem a quem se deve ia erguer um palácio com esta inscrição: Ao vendedor da felicidade, o mundo reconhecido.
— Sabe que estou tentado a avaliar por mim mesmo a veracidade ou o exagero dos seus elogios? — disse Franz.
— Avalie por si mesmo, meu hóspede, avalie. Mas não se limite à primeira experiência. Como em todas as coisas, é necessário habituar os sentidos a uma impressão nova, suave ou violenta, triste ou alegre. Há uma luta da natureza contra essa substância divina, da natureza que não nasceu para a alegria e se agarra à dor. É preciso que a natureza vencida sucumba no combate e que a realidade suceda ao sonho. E então o sonho reinará como senhor, o sonho se transformará em vida e a vida em sonho. Mas que diferença nessa transfiguração! Isto é, comparando as dores da existência real com os gozos da existência fictícia, o senhor nunca mais quererá viver e quererá sonhar sempre. Quando trocar o seu mundo pelo mundo dos outros, lhe parecerá passar de uma primavera napolitana para um inverno lapão, lhe parecerá trocar o Paraíso pela Terra, o Céu pelo Inferno. Prove o haxixe, meu hóspede! Prove-o!
Como única resposta, Franz tirou uma colher daquela pasta maravilhosa, idêntica à que tirara o seu anfitrião, e levou-a à boca.
— Demônio! — exclamou depois de engolir a compota divina — Ainda não sei se o resultado será tão agradável como o senhor diz, mas isto não me parece tão saboroso como afirma.
— Porque as suas papilas gustativas ainda não estão habituadas à sublimidade da substância que saboreiam. Diga-me, gostou logo à primeira vez de ostras, de chá, de cerveja, de trutas, de todas as coisas que mais tarde adorou? Compreende que os Romanos temperassem os faisões com assa-foetica e que os Chineses comam ninhos de andorinha? Não, meu Deus, não, pois bem, acontece o mesmo com o haxixe: coma-o apenas, durante oito dias seguidos e nenhum alimento do mundo lhe parecerá atingir a delicadeza desse gosto que hoje talvez lhe pareça insípido e nauseabundo. Mas passemos à sala ao lado, isto é, ao seu quarto, onde Ali nos servirá o café e dará cachimbos.
Ambos se levantaram e, enquanto aquele que dera a si próprio o nome de Simbad e que também assim temos designado de vez em quando para, como o seu conviva, o designarmos de alguma maneira, dava algumas ordens ao criado, Franz entrou na sala contígua.
Esta estava decorada com mais simplicidade, embora com não menos riqueza. Era redonda e contornava-a por completo um grande divã. Mas divã, paredes, teto e chão estavam todos forrados de peles magníficas, macias e fofas como o mais fofo o tapete. Eram peles de leões do Atlas, de juba abundante; peles de tigres de Bengala, de listras vivas; peles de pantera do Cabo, caprichosamente mosqueadas, como a daquela que apareceu a Dante, e finalmente peles de ursos da Sibéria, de raposas da Noruega, etc., e todas essas peles se encontravam lançadas em profusão umas sobre as outras, de forma que se julgaria caminhar sobre a relva mais espessa e dormir na cama mais macia.
Ambos se deitaram no divã. Chibuques de tubos de jasmim e pipos de âmbar estavam ao alcance da mão, todos preparados de forma a não ser necessário fumar duas vezes pelo mesmo. Pegou cada um no seu, Ali acendeu-os e saiu para ir buscar o café.
Houve um momento de silêncio durante o qual Simbad se entregou aos pensamentos que pareciam dominá-lo constantemente, mesmo no meio de um diálogo e Franz abandonou-se a esse devaneio mudo em que caímos quase sempre ao fumar excelente tabaco, o qual parece levar com o fumo todas as penas do espírito e proporcionar em troca ao fumador todos os sonhos da alma.
Ali trouxe o café.
— Como o toma? — perguntou o desconhecido — À francesa ou à turca, forte ou fraco, doce ou amargo, coado ou fervido? É à sua escolha; está preparado de todas as formas.
— Vou tomá-lo à turca — respondeu Franz.
— E tem razão! — exclamou Simbad — Isso prova que tem disposição para a vida oriental. Ah, os Orientais são os únicos homens que sabem viver! Quanto a mim — acrescentou com um dos seus sorrisos singulares que não escapavam ao jovem — Assim que concluir os meus negócios em Paris irei morrer no Oriente. Então, se me quiser encontrar terá de me ir procurar no Cairo, a Bagdá ou a Ispahan.
— Garanto-lhe que será a coisa mais fácil do mundo — perguntou Franz — Pois creio que me estão a nascer asas de águia, e com tais asas darei a volta ao mundo em vinte e quatro horas.
— Ah, ah, efeitos do haxixe!... Pois bem, abra as suas asas e voe para as regiões sobre-humanas. Nada receie, pois há quem vele por si. E se, como as de Ícaro, as suas asas se derreterem ao sol, e estaremos para o recebê-lo.
Então, disse algumas palavras em árabe a Ali, que fez um gesto de obediência e se retirou, mas sem se afastar.
Quanto a Franz, operava-se nele uma estranha transformação. Toda a fadiga física do dia, toda a preocupação de espírito ocasionada pelos acontecimentos da noite, desapareciam como no primeiro momento de repouso em que estamos ainda suficientemente conscientes para sentir aproximar-se o sono. O seu corpo parecia adquirir uma leveza imaterial, o seu espírito esclarecia-se de maneira inaudita e as faculdades dos seus sentidos pareciam duplicar. O horizonte ia-se alargando sempre, mas não esse horizonte sombrio sobre o qual pairava um vago terror e que vira antes de adormecer, mas sim um horizonte azul, transparente, vasto, com tudo o que o mar tem de azul com tudo o que o Sol tem de palhetas, com tudo o que a brisa tem de perfumes. Depois, no meio dos cantos dos seus marinheiros, cantos tão límpidos e tão cristalinos que com eles se comporia uma harmonia divina se fosse possível anotá-los, via aparecer a Ilha de Monte Cristo, não como um escolho ameaçador sobre as vagas, mas sim como um oásis perdido no deserto.
Em seguida, à medida que a embarcação se aproximava, os cantos tornavam-se mais numerosos, porque uma harmonia encantadora e misteriosa subia da ilha para Deus, como se alguma fada, como se Lorelei[3] ou um encantador como Anfíon, quisesse atrair para ali uma alma ou ali erguer uma cidade. Finalmente, a embarcação chegou à margem, mas sem esforço, sem qualquer abalo, como os lábios tocam nos lábios, e ele voltou a entrar na gruta sem que aquela música encantadora cessasse. Desceu, ou antes, teve a sensação de descer alguns degraus, respirando um ar fresco e perfumado como o que devia envolver a gruta de Circe, composto por perfumes que faziam divagar o espírito e por ardores que queimavam os sentidos, e reviu tudo o que vira antes de adormecer, desde Simbad, o anfitrião fantástico, até Ali, o servo mudo. Em seguida, tudo pareceu desvanecer-se e confundir-se diante dos olhos, como as derradeiras sombras de uma lanterna mágica que se apaga, e encontrou-se novamente na sala das estátuas, apenas iluminada por uma dessas lâmpadas antigas e pálidas que velam no meio da noite o sono ou a volúpia.

[3] Lorelei: fada alemã de longos cabelos loiros que canta para encantar os homens e depois afogá-los.

Eram sem dúvida as mesmas estátuas ricas de forma, de luxúria e de poesia, de olhos magnéticos, sorrisos lascivos e cabeleiras opulentas. Eram Frine, Cleópatra e Messalina, essas três grandes cortesãs. Depois, no meio daquelas sombras impudicas deslizava, como um raio puro, como um anjo cristão no meio do Olimpo, uma dessas figuras castas, uma dessas sombras calmas, uma dessas visões suaves que parecia velar a fronte virginal diante de todas aquelas obscenidades de mármore.
Pareceu-lhe então que as três estátuas tinham concentrado os seus três amores num só homem, e que esse homem era ele, que se aproximavam da cama onde dormia segundo sono, com os pés ocultos nas longas túnicas brancas, o colo nu, os cabelos desdobrando-se em ondas, numa dessas poses a que sucumbiam os deuses, mas a que resistiam os santos, com um desses olhares inflexíveis e ardentes como o que a serpente crava na avezinha, e que ele se abandonava a esses olhares pungentes como um abraço e voluptuosos como um beijo.
Franz teve a sensação de fechar os olhos e de, através do último olhar que lançava à sua volta, entrever a estátua pudica, que se velava inteiramente. Depois de os olhos se lhe fecharem para as coisas reais, os seus sentidos abriram-se para as impressões impossíveis.
Seguiu-se uma volúpia sem tréguas, um amor sem repouso, como o que o profeta prometia aos seus eleitos. Então, todas aquelas bocas de pedra adquiriram vida, todos aqueles peitos se tornaram quentes a ponto de para Franz, que suportava pela primeira vez os efeitos do haxixe, aquele amor ser quase uma dor e aquela volúpia quase uma tortura quando sentia roçarem-lhe a boca inquieta os lábios daquelas estátuas flexíveis e frias como os anéis de uma cobra. Mas quanto mais os seus braços tentavam repelir aquele amor desconhecido, tanto mais os seus sentidos se vergavam ao encanto do sonho misterioso, de modo que, depois de uma luta em que pôs toda a sua alma, se abandonou sem reservas e acabou por sucumbir anelante, exausto de fadiga e volúpia, aos beijos daquelas amantes de mármore e ao feitiço daquele sonho inaudito.





continua...



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