quarta-feira, 13 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 20


XX

O CEMITÉRIO DO CASTELO D’IF




E
m cima da cama, estendido no sentido do comprimento e fracamente iluminado por uma luz brumosa que penetrava através da janela, via-se um saco de pano grosseiro, debaixo de cujas amplas pregas se desenhava confusamente uma forma longa e rígida. Era a mortalha de Faria, essa mortalha que, no dizer dos carcereiros, era tão barata. Assim, estava tudo acabado. Entre Dantés e o seu velho amigo existia já uma separação material e era-lhe impossível voltar a ver-lhe os olhos, esses olhos que tinham ficado abertos como que para verem para além da morte. Também não poderia apertar mais a mão industriosa que lhe erguera o véu que cobria tanta coisa oculta. Faria, o útil, o bom companheiro a quem se afeiçoara tão profundamente só existia na sua memória.
Então, sentou-se à cabeceira daquela cama terrível e mergulhou em sombria e amarga melancolia.
Só! Voltara a ficar só! Tornara a cair no silêncio! Encontrava-se de novo diante do nada! Só! Sem sequer a vista, sem sequer a voz do único ser humano que o prendia ainda à terra! Não seria preferível fazer como Faria, abalar, ir pedir a Deus a revelação do enigma da vida, embora correndo o risco de passar pela porta lúgubre do sofrimento?
A idéia do suicídio, expulsa pelo amigo, afastada pela sua presença, voltou então a erguer-se como um fantasma junto do cadáver de Faria.
— Se morresse — disse — Iria para onde ele foi e com certeza o encontraria. Mas como morrer? É muito fácil — acrescentou rindo — Fico aqui e atiro-me ao primeiro que entrar. Estrangulo-o e serei guilhotinado.
Mas como acontece que, nas grandes dores como nas grandes tempestades, o abismo se encontra entre duas vagas. Dantés recuou perante a idéia dessa morte infamante e passou precipitadamente do desespero a uma ânsia ardente de vida e liberdade.
— Morrer! Oh, não! — exclamou — Não teria valido a pena viver tanto, sofrer tanto para morrer agora! Morrer era bom quando da outra vez tomei essa resolução, há anos. Mas agora seria realmente demasiado ajudar o meu miserável destino. Não, quero viver e lutar até ao fim! Não, quero reconquistar a felicidade que me roubaram! Antes de pensar em morrer não devo esquecer que tenho de punir os meus carrascos e talvez também (quem sabe?) de recompensar alguns amigos. Mas agora vão me esquecer aqui e só sairei da minha masmorra como Faria.
Mal, porém, acabou de proferir estas últimas palavras Edmond ficou imóvel, de olhos fixos, como um homem a quem ocorreu uma idéia súbita, mas a quem essa idéia assusta. De súbito levantou-se, levou a mão à testa como se tivesse tido uma vertigem, deu duas ou três voltas na cela e voltou a deter-se diante da cama...
— Oh, oh!... — murmurou — Quem me envia este pensamento? Sois Vós, meu Deus? Uma vez que só os mortos saem livremente daqui, tomemos o lugar dos mortos.
E sem perder tempo analisando esta decisão, como que para não dar ao pensamento tempo de destruir esta resolução desesperada, inclinou-se sobre o horrível saco, abriu-o com a faca que Faria fizera, retirou o cadáver do saco, levou-o para a sua cela, deitou-o na cama, cobriu-lhe a cabeça com o bocado de pano com que ele próprio tinha o hábito de se cobrir, tapou-o com o cobertor, beijou-lhe pela última vez a testa gelada, tentou mais uma vez fechar aqueles olhos rebeldes, que continuavam abertos, assustadores devido à ausência de vida, virou-lhe o rosto para a parede a fim do carcereiro, quando lhe trouxesse a refeição da noite, julgar que estava dormindo, como acontecia muitas vezes, voltou à galeria, puxou a cama contra a muralha, entrou na outra cela, tirou do armário agulha e linha, desembaraçou-se dos seus andrajos para que cheirasse debaixo do pano a carne nua, introduziu-se no saco esventrado, colocou-se na posição do cadáver e fechou a costura por dentro.
Ouviria-se bater o seu coração se por azar alguém entrasse naquele momento.
Dantés poderia perfeitamente ter esperado para depois da visita da noite, mas receava que, entretanto o governador mudasse de resolução e levassem dali o cadáver. Então a sua derradeira esperança estaria perdida.
Eis o que tencionava fazer: se durante o trajeto os coveiros descobrissem que transportavam um vivo em vez de um morto, Dantés não lhes daria tempo de se recomporem da surpresa. Com uma facada vigorosa abriria o saco de alto a baixo e, aproveitando o terror dos homens, fugiria. Se o quisessem deter, se serviria da faca.
Se o conduzissem ao cemitério e o depositassem numa cova, se deixaria cobrir de terra. Depois, como era de noite, assim que os coveiros virassem costas abriria uma passagem através da terra mole e fugiria (esperava que o peso não fosse exagerado, para poder levantá-lo...).
Se se enganasse, se pelo contrário a terra fosse excessivamente pesada, morreria asfixiado e pronto, tudo estaria acabado.
Dantés não comia desde a véspera, mas assim como não se lembrara da fome de manhã, também agora não pensava nela. A sua posição era tão precária que não lhe deixava tempo de fixar o pensamento em nenhuma outra idéia.
O primeiro risco que Dantés corria era que o carcereiro, quando lhe fosse levar a refeição das sete horas, descobrisse a substituição operada. Felizmente, quer por misantropia, quer por cansaço, Dantés recebera muitas vezes o carcereiro deitado, e quando assim acontecia, habitualmente o homem depositava o pão e a sopa em cima da mesa e retirava-se sem lhe falar. Mas desta vez o carcereiro poderia renunciar aos seus hábitos de mutismo, falar a Dantés e, vendo que este lhe não respondia, aproximar-se da cama e descobrir tudo.
Quando às sete horas da noite se aproximaram, as angústias de Dantés começaram realmente. Com uma das mãos apoiada no coração procurava conter-lhe as pulsações, enquanto com a outra enxugava o suor da testa, que lhe escorria ao longo das têmporas. De vez em quando, sentia arrepios percorrerem-lhe todo o corpo e apertarem-lhe o coração como num torno gelado. Julgava então que ia morrer. Mas as horas passaram sem trazer qualquer movimento ao castelo e Dantés deduziu que escapara ao primeiro perigo. Era um bom augúrio.
Finalmente, por volta da hora fixada pelo governador ouviram-se passos na escada e Edmond compreendeu que chegara o momento. Apelou para toda a sua coragem e conteve a respiração. Seria ótimo se conseguisse reter ao mesmo tempo as pulsações precipitadas das suas artérias.
Pararam à porta. Os passos eram de duas pessoas. Dantés adivinhou que eram os dois coveiros que vinham buscá-lo, e a dedução converteu-se em certeza quando ouviu o barulho que faziam ao pousar a padiola.
A porta abriu-se e uma luz velada chegou aos olhos de Dantés. Através da tela que o cobria viu duas sombras aproximarem-se da cama. Havia uma terceira à porta, de lanterna na mão. Cada um dos dois homens que tinham se aproximado da cama agarrou o saco por uma extremidade.
— Isto é que ele é ainda pesado para um velhote tão magro! — observou um deles, levantando-o pela cabeça.
— Dizem que cada ano acrescenta meia libra ao peso dos ossos — comentou o outro, agarrando-o pelos pés.
— Já deu o nó? — perguntou o primeiro.
— Muito estúpido seria eu se nos carregasse com um peso inútil — respondeu o segundo — Darei lá em baixo.
— Tem razão. Vamos lá então.
“A que nó se referiria ele?”, perguntou-se Dantés.
Transportaram o pretenso morto da cama para a padiola. Edmond retesava-se para desempenhar melhor o seu papel de defunto. Pousaram-no na padiola, e o cortejo, iluminado pelo homem da lanterna, que ia à frente, subiu a escada.
De súbito, o ar fresco e cortante da noite inundou-o. Dantés reconheceu o mistral. Foi uma sensação cheia ao mesmo tempo de delícias e angústias. Os carregadores deram uma vintena de passos e por fim pararam e depositaram a padiola no chão.
Um deles afastou-se e Dantés ouviu-lhe os sapatos ecoarem nas lajes.
“Onde estarei?”, interrogou-se.
— Sabe que não é nada leve? — declarou o que ficara ao pé de Dantés, sentando-se na beira da padiola.
O primeiro impulso de Dantés fora fugir; felizmente, contivera-se.
— Ilumine-me, animal — ordenou o carregador que se afastara — Ou nunca mais encontro o que procuro.
O homem da lanterna obedeceu à ordem, embora, como vimos, tivesse sido feita em termos pouco convenientes.
“Que procurará ele?”, perguntou-se Dantés. “Uma enxada, decerto”.
Uma exclamação de satisfação indicou que o coveiro encontrara o que procurava.
— Até que enfim — observou o outro — Levou tempo.
— Pois levou — respondeu o primeiro — Mas não perdeu demora.
Após estas palavras, aproximou-se de Edmond, que ouviu pousar perto de si um corpo pesado e ressoante. Ao mesmo tempo, uma corda rodeou-lhe os pés com viva e dolorosa pressão.
— Então, o nó está dado? — perguntou o coveiro que permanecera inativo.
— E bem dado — respondeu o outro — Respondo por ele.
— Nesse caso, a caminho.
E a padiola foi levantada e retomou o seu caminho.
Ao cabo de cinqüenta passos, pouco mais ou menos, pararam para abrir uma porta e em seguida recomeçaram a andar. O ruído das vagas quebrando-se contra os rochedos em que se erguia o Castelo chegava mais distintamente aos ouvidos de Dantés à medida que avançavam.
— Está mau o tempo! — observou um dos carregadores — Não deve ser agradável estar no mar esta noite.
— É verdade, e o abade corre grande risco de se molhar! — perguntou o outro, e ambos desataram a rir.
Dantés não compreendeu muito bem o gracejo, mas nem por isso os cabelos se lhe eriçaram menos na cabeça.
— Pronto, aqui estamos! — disse o primeiro.
— Mais longe, mais longe — contrapôs o outro — Bem sabe que o último ficou pelo caminho, esmagado nos rochedos, e que o governador nos disse no dia seguinte que éramos incompetentes.
Deram ainda quatro ou cinco passos mais, sempre subindo, e depois Dantés sentiu que o agarravam pela cabeça e pelos pés e o balançavam.
— Uma — disseram os coveiros.
— Duas...
— Três!
Ao mesmo tempo, Dantés sentiu-se efetivamente lançado num vácuo enorme, atravessar os ares como uma ave ferida e cair sempre com um terror que lhe gelava o coração. Apesar de puxado por baixo por qualquer coisa pesada que lhe precipitava a rapidez do vôo, pareceu-lhe que a queda durava um século.
Por fim, com um barulho medonho, entrou como uma seta na água gelada que o fez soltar um grito, abafado imediatamente pela imersão.
Dantés fora lançado ao mar, para o fundo do qual o arrastava um pelouro de trinta e seis preso aos pés.
O mar era o Cemitério do Castelo d’If.




  
 continua...



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