sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 26


XXVI

A ESTALAGEM DA PONT DU GARD




A
queles que como eu percorreram a pé o Meio-Dia da França devem ter notado entre Bellegarde e Beaucaire, aproximadamente a meio caminho da aldeia à cidade, mas mais perto de Beaucaire do que de Bellegarde, uma estalagenzinha donde pende, numa chapa metálica que range à menor aragem, uma grotesca representação da ponte de Gard.
Tomando como ponto de referência o curso do Rôdano, a estalagenzinha está situada do lado esquerdo da estrada, de costas viradas para o rio. Completa-a o que no Linguadoque se chama um quintal, isto é, o lado oposto àquele onde se abre a porta destinada aos viajantes dá para um recinto onde vegetam algumas oliveiras enfezadas e outras tantas figueiras-bravas, de folhagem prateada pela poeira. Nos seus intervalos crescem, e é tudo quanto a legumes, alhos, pimentos e chalotas.
Finalmente, num dos cantos, como uma sentinela esquecida, um grande pinheiro manso ergue melancolicamente o tronco flexível, enquanto a copa, aberta em leque, torra sob um sol de trinta graus. Todas essas árvores, grandes ou pequenas, se inclinam naturalmente na direção onde passa o mistral, um dos três flagelos da Provença. Os outros dois, como se sabe ou como se não sabe, são a Durance e o Parlamento.
Aqui e ali, na planície circundante, que lembra um grande lago de poeira, vegetam algumas espigas de trigo candial, que os horticultores da região cultivam sem dúvida por curiosidade e cada uma das quais serve de poleiro a uma cigarra que persegue com o seu canto áspero e monótono os viajantes perdidos nesta tebaida.
Havia cerca de sete ou oito anos que a estalagenzinha era explorada por um homem e uma mulher que tinham apenas como pessoal uma criada de quartos chamada Trinette e um moço de estrebaria chamado Pacaud, dupla cooperação que de resto chegava amplamente para satisfazer as necessidades do serviço desde que um canal aberto entre Beaucaire e Aiguemortes fizera suceder vitoriosamente os barcos ao trânsito acelerado e a embarcação de carga e passageiros à diligência.
Como que para tornar ainda mais pungentes as queixas do pobre estalajadeiro que arruinava, o canal passava entre o Rôdano, que o alimentava, e a estrada, que exauria, e a cerca de cem passos da estalagem de que acabamos de dar uma breve, mas fiel descrição.
O homem que dirigia a estalagenzinha devia contar quarenta a quarenta e cinco anos, era alto, magro e nervoso, autêntico tipo meridional com os seus olhos encovados e brilhantes, o seu nariz aquilino e os seus dentes brancos como os de um animal carnívoro. Os seus cabelos que pareciam, apesar dos primeiros ataques da idade, não se decidirem a embranquecer, eram, assim como a barba que usava em forma de colar, espessos, frisados e entremeados de pouquíssimos cabelos brancos. A sua tez, naturalmente morena, estava ainda coberta por uma camada de bistre, devido ao hábito que o pobre diabo adquirira de se manter de manhã à noite à porta do estabelecimento, para ver se, quer a pé, quer de carruagem, chegava algum cliente, espera quase sempre frustrada e durante a qual se limitava a proteger o rosto do calor escaldante do sol com um lenço de assoar vermelho, atado na cabeça, à maneira dos almocreves espanhóis.
Este homem era o nosso velho conhecido Gaspard Caderousse.
A mulher, pelo contrário, que em solteira se chamava Madeleine Radelle, era uma mulher pálida, magra e achacada. Nascida nos arredores de Arles, embora conservasse os traços primitivos da beleza tradicional das suas patrícias, vira o rosto arruinar-se-lhe lentamente devido aos acessos quase contínuos de uma dessas febres inexoráveis tão comuns entre as populações vizinhas das lagoas de Aiguemortes e dos pântanos da Camarga. Conservava-se, portanto, quase sempre sentada e a tiritar ao fundo do quarto, situado no primeiro andar, quer estendida numa poltrona, quer encostada à cama, enquanto o marido montava à porta o seu quarto de sentinela habitual, que prolongava com tanto mais prazer quanto é certo que todas as vezes que se encontrava com a sua azeda metade esta perseguia-o com as suas eternas queixas contra o destino, queixas a que o marido respondia habitualmente apenas com estas palavras filosóficas:
Cala-te, Carconte! É Deus que assim o quer”.
Esta alcunha devia-se ao fato de Madeleine Radelle ter nascido na aldeia da Carconte, situada entre Salon e Lambesc. Ora, de acordo com um hábito da região, segundo o qual se designam quase sempre as pessoas por uma alcunha em vez de as designar por um nome, o marido substituíra por aquele apelativo o de Madeleine, demasiado suave e eufônico, talvez para a sua linguagem rude.
Todavia, apesar da sua pretensa resignação aos decretos da Providência, não se julgue que o nosso estalajadeiro não sentia profundamente o estado de miséria a que o reduzira o miserável canal de Beaucaire e que era insensível aos incessantes queixumes com que a mulher o perseguia. Era, como todos os meridionais, um homem sóbrio e sem grandes necessidades, mas exibicionista. Por isso, no tempo da sua prosperidade não deixava passar nem uma ferra de gado, nem uma procissão da tarasca sem nelas se mostrar com a Carconte, um no trajo pitoresco dos homens do Meio-Dia, misto de catalão e andaluz, e a outra com o encantador trajo das mulheres de Arles, que parece inspirado na Grécia e na Arábia.
Mas pouco a pouco, correntes de relógio, colares, cintas de mil cores, corpetes bordados, jaquetas de veludo, meias elegantes, polainas sarapintadas e sapatos com fivelas de prata tinham desaparecido e Gaspard Caderousse, não podendo continuar a mostrar-se à altura do seu esplendor passado, renunciara por si e pela mulher a todas as pompas mundanas cujo estrépido alegre ouvia, roído de inveja, ecoar até à pobre estalagem que continuava a conservar mais como um abrigo do que como um negócio.
Caderousse mantivera-se, como era seu hábito, parte da manhã diante da porta, passeando o olhar melancólico de um relvadozinho pelado, onde debicavam algumas galinhas, até às duas extremidades do caminho deserto, que se dirigia de um lado para o sul e do outro para o norte. De súbito, porém, a voz azeda da mulher obrigou-o a abandonar o seu posto. Entrou na casa resmungando e subiu ao primeiro andar, mas deixou a porta escancarada como se quisesse convidar os viajantes a não a esquecerem quando passassem.
No momento em que Caderousse entrou em casa, a estrada de que falamos e que ele percorria com a vista encontrava-se tão vazia e solitária como o deserto ao meio-dia. Estendia-se, branca e infinita, entre duas alas de árvores enfezadas, e compreendia-se perfeitamente que um viajante livre de escolher outra hora do dia, se não aventurasse naquele medonho Saara.
No entanto, apesar de todas as probabilidades, se Caderousse tivesse ficado no seu posto poderia ter visto aparecer, do lado de Bellegarde, um cavaleiro e um cavalo no passo respeitável e amistoso que indica as melhores relações entre o cavalo e o cavaleiro. O animal era um cavalo castrado e avançava a passo travado; o cavaleiro era um padre vestido de preto e coberto com um tricôrnio, apesar do calor escaldante do Sol, então no seu zênite. O andamento de ambos não ia além de um trote muito razoável.
Chegado diante da porta o grupo parou. Seria difícil decidir se foi o cavalo que deteve o homem ou o homem que deteve o cavalo; mas em todo o caso o cavaleiro pôs pé em terra e, puxando o animal pela brida, foi prendê-lo ao torniquete de um guarda-vento escalavrado que já só tinha um gonzo. Em seguida dirigiu-se para a porta, enxugando com um lenço de algodão encarnado a testa coberta de suor, e bateu três vezes no limiar com a ponta ferrada da bengala que segurava na mão.
Ato contínuo, um grande cão preto levantou-se e deu alguns passos rosnando e mostrando os dentes brancos e agudos, dupla demonstração hostil que provava quão pouco habituado estava a conviver.
Imediatamente um passo pesado fez estremecer a escada de madeira que subia ao longo da parede e que descia, curvado e às arrecuas, o dono do pobre estabelecimento à porta do qual se encontrava o padre.
— Já vou! — dizia, entretanto Caderousse, surpreendidíssimo — Já vou! Faça o favor de se calar, Margottin? Não tenha medo, senhor; ladra, mas não morde. Deseja vinho, não é verdade? Sempre está um destes calores... ah, perdão! — interrompeu-se Caderousse ao ver com que espécie de viajante tratava — Não sabia quem tinha a honra de receber. Que deseja, em que o posso servir, Sr. Abade? Estou às suas ordens.
O padre olhou o homem durante dois ou três segundos com uma atenção estranha e pareceu até procurar atrair sobre si a atenção do estalajadeiro. Depois, vendo que as feições deste só exprimiam surpresa por não receber resposta, achou que era tempo de pôr termo a essa surpresa e perguntou com um acento italiano muito pronunciado:
— O senhor não se chama Caderousse?
— Chamo, senhor — respondeu o estalajadeiro, talvez ainda mais surpreendido com a pergunta do que com o silêncio — Sou, com efeito. Gaspard Caderousse para o servir.
— Gaspard Caderousse... sim, creio serem esses o nome e o apelido. Morou há tempos nas Alamedas de Meilhan, não é verdade? No quarto andar?
— Exato.
— Exercia lá a profissão de alfaiate?
— Exercia, mas o negócio foi por água abaixo. E que faz tanto calor naquela maldita Marselha que, na minha opinião, as pessoas acabarão por andar nuas. Mas a propósito de calor, não deseja refrescar-se, Sr. Abade?
— Pois sim. Dê-me uma garrafa do seu melhor vinho e continuemos a conversa, se não se importa, a partir do ponto onde a deixamos.
— Como quiser, Sr. Abade — respondeu Caderousse.
E para não perder a oportunidade de vender uma das últimas garrafas de vinho de Cahors que lhe restavam, Caderousse apressou-se a levantar um alçapão aberto do próprio soalho daquela espécie de sala do térreo, que servia ao mesmo tempo de cozinha.
Quando passados cinco minutos reapareceu, encontrou o abade sentado num banco, com o cotovelo apoiado numa mesa comprida, enquanto Margottin, que parecia ter feito as pazes com ele, talvez por esperar que, contrariamente ao habitual, aquele viajante singular tomasse qualquer coisa, lhe estendia sobre a coxa o pescoço descarnado e o olhar langoroso.
— Está sozinho? — perguntou o abade ao estalajadeiro enquanto este pousava diante dele a garrafa e um copo.
— Oh, meu Deus! Sim, sozinho ou quase, Sr. Abade! Tenho a minha mulher, mas ela não me pode ajudar em nada, atendendo a que está sempre doente, a pobre Carconte.
— Ah, é casado! — disse o padre, com uma espécie de interesse, e deitando à sua volta um olhar que parecia avaliar no seu escasso valor o modesto mobiliário do pobre casal.
— Parece-lhe que não sou rico, não é verdade, Sr. Abade? — disse, suspirando, Caderousse — Mas que quer, não basta um homem ser honesto para prosperar no mundo.
O abade cravou nele um olhar penetrante.
— Sim, um homem honesto; posso me gabar disso, senhor — insistiu o estalajadeiro, sustentando o olhar do abade, com uma das mãos no peito e abanando a cabeça de cima para baixo — Nos tempos que correm, são poucos que podem dizer o mesmo.
— Tanto melhor se é verdade isso que se gaba — perguntou o abade — Pois mais tarde ou mais cedo, é minha firme convicção, o homem honesto é recompensado e o mau punido.
— É próprio do seu estado dizer isso, Sr. Abade; é próprio do seu estado dizer isso — prosseguiu Caderousse com uma expressão amarga — Mas cada qual é livre de não acreditar no que o senhor diz.
— Faz mal em falar assim, senhor — perguntou o abade — Pois talvez eu próprio seja para si, dentro em breve, uma prova do que afirmo.
— Que quer dizer? — perguntou Caderousse com ar atônito.
— Quero dizer que antes de mais nada tenho de me assegurar se o senhor é o homem que procuro.
— Que provas quer que lhe dê?
— Conheceu em 1814 ou 1815 um marinheiro chamado Dantés?
— Dantés!... Se conheci o pobre Edmond! Sem dúvida nenhuma! Era até um dos meus melhores amigos! — exclamou Caderousse, cujo rosto foi invadido por um vermelho-púrpura, enquanto os olhos claros e firmes do abade pareciam dilatar-se para abarcarem por completo aquele que interrogava.
— Sim, creio que efetivamente se chamada Edmond.
— Se chamava Edmond, o pequeno! Claro que chamava! Tão certo como eu chamar-me Gaspard Caderousse. E que foi feito dele, senhor, desse pobre Edmond? — prosseguiu o estalajadeiro — Conheceu-o? Ainda está vivo? Está em liberdade? É feliz?
— Morreu prisioneiro, mais desesperado e miserável do que os forçados que arrastam a grilheta na cadeia de Toulon.
Uma palidez mortal sucedeu no rosto de Caderousse ao rubor que inicialmente o cobria. Virou-se e o abade viu-o enxugar uma lágrima com uma ponta do lenço encarnado que lhe servia para cobrir a cabeça.
— Pobre rapaz! — murmurou Caderousse — Pois aí tem mais uma prova do que lhe dizia, Sr. Abade: Deus só é bom para os maus. Ah — continuou Caderousse, com a linguagem colorida da gente do Meio-Dia — O mundo vai de mal a pior! Deviam cair do céu dois dias de pólvora e uma hora de fogo, para acabar com isto tudo!
— Parece que o senhor gostava muito desse rapaz — observou o abade.
— É verdade, gostava muito dele — confirmou Caderousse — Embora tenha de me penitenciar de ter por um instante invejado a sua felicidade. Mas depois, juro-lhe, palavra de Caderousse, tenho lamentado muito a sua pouca sorte.
Fez-se um momento de silêncio durante o qual o olhar fixo do abade não cessou um instante de interrogar a fisionomia mutável do estalajadeiro.
— E o senhor conheceu o pobre rapaz? — continuou Caderousse.
— Fui chamado ao seu leito de morte para lhe oferecer os derradeiros socorros da religião — respondeu o abade.
— De que morreu? — perguntou Caderousse, com voz estrangulada.
— De que se morre na prisão quando se morre aos trinta anos, se não da própria prisão?
Caderousse enxugou o suor que lhe corria pela testa.
— O que é estranho no meio de tudo isto — prosseguiu o abade — É que Dantés me jurou sempre no seu leito de morte, sobre o Cristo cujos pés beijava, ignorar a verdadeira causa do seu cativeiro.
— É verdade, é verdade — murmurou Caderousse — Não podia sabê-lo. Não, Sr. Abade, ele não mentia, o pobre rapaz.
— Foi por isso que me encarregou de esclarecer a sua desgraça, o que ele nunca pode fazer, e de reabilitar a sua memória, se essa memória tivesse recebido qualquer mácula.
E o olhar do abade, cada vez mais fixo, devorou a expressão quase sombria que apareceu no rosto de Caderousse.
— Um rico inglês — continuou o abade — Seu companheiro de infortúnio e que saiu da prisão quando da II Restauração possuía um diamante de grande valor. Ao sair da prisão quis deixar a Dantés, que numa doença que contraíra o tratara como um irmão, uma prova do seu reconhecimento e ofereceu-lhe esse diamante. Dantés, em vez de se servir dele para subornar os carcereiros, que aliás poderiam receber-lhe o diamante e atraiçoá-lo depois, conservou-o sempre preciosamente, para o caso de sair da prisão. Porque se saísse da prisão a sua fortuna estava assegurada só com a venda do diamante.
— Era, portanto, como o senhor disse, um diamante de grande valor? — perguntou Caderousse, com os olhos coruscantes.
— Tudo é relativo — prosseguiu o abade — De grande valor para Edmond. O diamante estava avaliado em cinqüenta mil francos.
— Cinqüenta mil francos! — exclamou Caderousse — Mas então... seria assim do tamanho de uma noz?
— Nem tanto — respondeu o abade — Mas, vai ver por si mesmo, pois trago-o comigo.
Caderousse pareceu procurar nas vestes do abade onde estaria a pedra preciosa.
O abade tirou da algibeira uma caixinha de chagrém preto, abriu-a e fez brilhar aos olhos deslumbrados de Caderousse a cintilante maravilha, montada num anel de admirável trabalho.
— E isso vale cinqüenta mil francos?
— Sem a montagem, que por si só também tem certo valor — respondeu o abade.
Fechou o estojo e voltou a meter na algibeira o diamante, que continuava a brilhar no fundo do cérebro de Caderousse.
— Mas como se explica que tenha esse diamante em seu poder Sr. Abade? — perguntou Caderousse — Edmond nomeou-o seu herdeiro?
— Não, mas sim seu executor testamentário. “Tenho três bons amigos e uma noiva”, disse-me. “Estou certo de que todos os quatro me lamentam amargamente. Um desses bons amigos chamava-se Caderousse”.
Caderousse estremeceu.
“Outro...” — continuou o abade sem parecer notar a emoção de Caderousse — “Outro chamava-se Danglars e o terceiro” — acrescentou — “Apesar de meu rival, estimava-me muito”.
Um sorriso diabólico iluminou as feições de Caderousse, que fez um gesto para interromper o abade.
— Espere — atalhou este — Deixe-me acabar, se tiver alguma observação a fazer-me, faça-a depois. “O outro, apesar de meu rival, também me estimava e chamava-se Fernand. Quanto à minha noiva, o seu nome era...” já não me lembro do nome da noiva — disse o abade.
— Mercedes — informou Caderousse.
— Ah, sim, é isso! — exclamou o abade, que depois soltou um suspiro abafado — Mercedes...
— E que mais? — perguntou Caderousse.
— Dê-me uma garrafa de água — pediu o abade.
Caderousse apressou-se a obedecer.
O abade encheu o copo e bebeu uns goles.
— Aonde estávamos? — perguntou, pousando o copo em cima da mesa.
— A noiva chamava-se Mercedes.
— Sim, é isso. “Vá a Marselha...” continua a ser Dantés quem fala, compreende?
— Perfeitamente.
“Venda o diamante, faça cinco quinhões e divida-os entre esses bons amigos, os únicos entes que me estimaram no mundo!”
— Como cinco quinhões? — atalhou Caderousse — O senhor só se referiu a quatro pessoas...
— Porque a quinta morreu, segundo me disseram... a quinta era o pai de Dantés.
— Sim, desgraçadamente! — confirmou Caderousse, impressionado pelos sentimentos que se entrechocavam em si — Sim, desgraçadamente o pobre homem morreu.
— Soube do seu falecimento em Marselha — declarou o abade, fazendo um esforço para parecer indiferente — Mas a morte foi há tanto tempo que não pude obter nenhum pormenor... sabe alguma coisa acerca do fim do velhote?
— Ora, ora!... a tal respeito ninguém sabe mais do que eu! Morava porta com porta com o pobre homem... sim, meu Deus, passado apenas um ano depois da prisão do filho, o pobre velho morreu!
— Mas de quê?
— Os médicos chamaram à doença... gastrenterite, se me não engano. Mas aqueles que o conheciam disseram que morreu de dor. E eu, que quase o vi morrer, digo que morreu...
Caderousse deteve-se.
— Morreu de quê? — insistiu com ansiedade o padre.
— Bom... morreu de fome!
— De fome?! — gritou o abade, saltando do banco — De fome? Os mais vis animais não morrem de fome! Os cães que vagueiam pelas ruas encontram uma mão compassiva que lhos atira um bocado de pão. E um homem, um cristão, morre de fome no meio de outros homens que se dizem cristãos como ele! Impossível! Oh, é impossível!
— O que disse está dito! — perguntou Caderousse.
— Mas não devia ter dito! — exclamou uma voz vinda da escada — Porque se mete onde não é chamado?
Os dois homens viraram-se e viram através das barras do corrimão o rosto doentia da Carconte. Arrastara-se até ali e escutava a conversa sentada no último degrau, com o rosto apoiada nos joelhos.
— E você, mulher, porque se intromete na conversa? — volveu-lhe Caderousse — Este senhor pede informações e a delicadeza manda que as dê.
— Pois sim, mas a prudência manda que as recuse. Quem te diz com que intenção te querem fazer falar, imbecil?
— Com a melhor das intenções, minha senhora, garanto-lhe — interveio o abade — O seu marido não tem nada a temer, desde que responda francamente.
— Ora não tem nada a temer, não tem nada a temer!... Claro que tem! Começa-se com bonitas promessas e depois diz-se apenas que não tem nada a temer... em seguida desaparece-se sem cumprir nada do que se prometeu e uma boa manhã a desgraça cai sobre um pobre de Cristo sem que ele saiba donde lhe vem.
— Esteja tranqüila, boa mulher, que nenhuma desgraça lhos virá da minha parte, garanto-lhe.
A Carconte resmungou algumas palavras que ninguém entendeu, deixou cair novamente nos joelhos a cabeça que levantara por instantes e continuou a tremer de febre, deixando o marido livre para continuar a conversa, mas colocada de maneira a não perder uma palavra.
Entretanto, o abade bebera alguns goles de água e recuperara a serenidade.
— Mas então esse infeliz velho estava assim tão abandonado por toda a gente, a ponto de morrer dessa maneira?
— Oh, senhor, Mercedes, a catalã, e o Sr. Morrel não o abandonaram! — prosseguiu Caderousse — Mas o pobre velho tomou-se de uma antipatia profunda por Fernand, esse mesmo — acrescentou Caderousse com um sorriso irônico — Que Dantés lhe disse ser um dos seus amigos.
— E não o era? — perguntou o abade.
— Gaspard, Gaspard... — murmurou a mulher do cimo da escada — Preste atenção ao que vai dizer.
Caderousse fez um gesto de impaciência, única resposta que se dignou conceder à mulher, e respondeu ao abade:
— É possível ser amigo daquele cuja mulher se cobiça? Dantés, que era um coração de ouro, chamava a toda essa gente amigos... pobre Edmond!... Na verdade, é preferível que não tenha sabido de nada. Teria muita dificuldade em lhes perdoar na hora da morte... e, apesar do que dizem — continuou Caderousse na sua linguagem a que não faltava uma espécie de poesia rude — Ainda tenho mais medo da maldição dos mortos do que do ódio dos vivos.
— Imbecil! — gritou a Carconte.
— Sabe então — continuou o abade — O que Fernand fez contra Dantés?
— Se sei? Creio bem que sim.
— Fale então.
— Gaspard, aja como quiser, pois você é que manda — interveio a mulher — Mas se confia em mim não diga mais nada.
— Desta vez creio que tem razão, mulher — concordou Caderousse.
— Portanto, não quer dizer mais nada? — perguntou o abade.
— Que adianta falar? — perguntou Caderousse — Se o rapaz fosse vivo e me procurasse para saber concretamente quem eram os seus amigos e os seus inimigos, não digo que não falasse. Mas ele está debaixo da terra, segundo o senhor me disse, e já não pode ter ódio, já não pode se vingar. Ponhamos uma pedra em cima de tudo isso.
— Quer então — disse o abade — Que dê a essa gente, que o senhor considera indigna, a esses amigos que considera falsos, uma recompensa destinada à fidelidade?
— É verdade, tem razão — admitiu Caderousse — De resto, que representaria agora para eles o legado do pobre Edmond? Uma gota de água no oceano!
— Sem contar que essa gente pode te esmagar com um gesto — salientou a mulher.
— Como assim? Quer dizer que se tornaram ricos e poderosos?
— Então não conhece a sua história?
— Não. Conte-me.
Caderousse pareceu refletir um instante.
— Não. Na verdade, seria demasiado longo — acabou por dizer.
— Tem todo o direito de se calar, meu amigo — disse o abade, em tom da mais profunda indiferença — E respeito os seus escrúpulos. Aliás, o seu procedimento é o de um homem verdadeiramente bom. Não falemos, portanto mais disso. De que estava eu encarregado? De uma simples formalidade. Venderei, pois o diamante.
E tirou o diamante da algibeira, abriu o estojo e fê-lo brilhar nos olhos deslumbrados de Caderousse.
— Venha, mulher! — disse o estalajadeiro, com voz rouca.
— Um diamante! — exclamou a Carconte, levantando-se e descendo com passo bastante firme a escada — Que diamante é esse?
— Não ouviu, mulher? — disse Caderousse — É um diamante que o pequeno nos legou: ao pai, em primeiro lugar, e depois aos seus três amigos, Fernand, Danglars e eu, e a Mercedes, sua noiva. O diamante vale cinqüenta mil francos.
— Oh, que linda jóia! — exclamou a mulher.
— Pertence-nos então a quinta parte dessa importância? — perguntou Caderousse.
— Pertence — respondeu o abade — Mais a parte do pai de Dantés, que me julgo autorizado a repartir pelos quatro.
— E porquê pelos quatro? — perguntou a Carconte.
— Porque são os quatro amigos de Edmond.
— Os amigos não são aqueles que atraiçoam! — murmurou surdamente, por sua vez, a mulher.
— Claro, claro — acrescentou Caderousse — Era exatamente o que eu dizia. É quase uma profanação, quase um sacrilégio, recompensar a traição, o crime talvez.
— Vocês assim querem... — perguntou tranquilamente o abade, voltando a guardar o diamante na algibeira da sotaina — Agora dêem-me as moradas dos amigos de Edmond, a fim de poder executar as suas últimas vontades.
O suor corria em grandes gotas pela testa de Caderousse. Viu o abade levantar-se e dirigir-se para a porta, como que para deitar uma olhadela ao cavalo, e voltar.
Caderousse e a mulher entreolhavam-se com expressão indizível.
— O diamante seria inteirinho para nós — disse Caderousse.
— Acha? — respondeu a mulher.
— Um padre não viria aqui para nos enganar.
— Faça como quiser — disse a mulher — Quanto a mim, não me meto nisso.
E retomou o caminho da escada, sempre tiritando. Batia os dentes, apesar do calor escaldante que fazia. No último degrau parou um instante.
— Pense bem, Gaspard! — aconselhou ao marido.
— Estou decidido! — respondeu Caderousse.
Carconte reentrou no quarto suspirando. Ouviu-se o soalho ranger-lhe debaixo dos pés até chegar à poltrona, onde se sentou pesadamente.
— Está decidido a quê? — indagou o abade.
— A dizer-lhe tudo — respondeu o estalajadeiro.
— Na verdade, parece-me que é o melhor que tem a fazer — concordou o padre — Não porque me interesse saber as coisas que me queria esconder; mas enfim, se puder ajudar-me a distribuir os legados de acordo com os desejos do testador, será melhor.
— Assim espero — respondeu Caderousse, com as faces incendiadas pelo rubor da esperança e da cupidez.
— Escuto-o — disse o abade.
— Espere — pediu Caderousse — Poderiam interromper-nos no ponto mais interessante e seria desagradável. Aliás, ninguém precisa saber que o senhor esteve aqui.
Dirigiu-se para a porta da estalagem e fechou-a, e para maior precaução trancou-a também. Entretanto, o abade escolheu um bom lugar para ouvir tudo à vontade: sentou-se a um canto, de modo a ficar na sombra, enquanto a luz cairia em cheio no rosto do seu interlocutor. Com a cabeça inclinada e as mãos juntas, ou antes, crispadas, preparava-se para ouvir com toda a atenção.
Caderousse puxou um banco e sentou-se diante dele.
— Lembre-se de que não te incitei a nada — disse a voz trêmula da Carconte, como se pudesse ver, através do sobrado, a cena que se preparava.
— Está bem, está bem — perguntou Caderousse — Não falemos mais disso. Assumo toda a responsabilidade.
E começou.




 continua...



___________________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.