terça-feira, 26 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 30


XXX

O 5 DE SETEMBRO




O
 prazo concedido pelo mandatário da Casa Thomson & French no momento em que Morrel esperava o pior pareceu ao pobre armador uma dessas reviravoltas do destino que anunciam ao homem que o azar se cansou finalmente de se encarniçar contra ele. No mesmo dia contou o que lhe acontecera à filha, à mulher e a Emmanuel, e um pouco de esperança, senão de tranqüilidade, reentrou na família.
Mas infelizmente Morrel não tinha apenas negócios com a Casa Thomson & French, que se mostrara tão transigente para consigo. Como dissera, no comércio têm-se correspondentes e não amigos. Quando pensava profundamente no caso, nem sequer compreendia o comportamento generoso da firma Thomson & French para consigo e só explicava por meio desta reflexão inteligentemente egoísta que essa teria feito: “Mais vale amparar um homem que nos deve cerca de trezentos mil francos, e receber esses trezentos mil francos ao fim de três meses, do que apressar-lhe a ruína e receber apenas seis ou oito por cento do capital”.
Infelizmente, quer por ódio, quer por cegueira, nem todos os correspondentes de Morrel fizeram a mesma reflexão, e alguns até fizeram a reflexão contrária. As letras aceites por Morrel foram, portanto apresentadas a pagamento com escrupuloso rigor e, graças ao adiamento concedido pelo inglês, pagas por Coclés à boca do cofre. Coclés continuou, portanto a viver na sua tranqüilidade fatídica e só o Sr. Morrel viu com terror que se tivesse tido de reembolsar, em 15, os cem mil francos de Boville e, em 30, os trinta e dois mil e quinhentos francos de letras para as quais, assim como para o crédito do inspetor das prisões, dispunha de um adiamento, seria naquele mês um homem perdido.
A opinião de todo o comércio de Marselha era que Morrel não resistiria aos sucessivos revezes que tinham desabado sobre si. A surpresa foi, portanto grande quando o viram satisfazer no fim do mês, com a pontualidade habitual, todos os seus compromissos. Apesar disso, a confiança não reentrou nos espíritos e foi unanimemente adiada para o fim do próximo mês a declaração de falência do infeliz armador.
Passou-se todo o mês em esforços inauditos da parte de Morrel para reunir todos os seus recursos. Em outros tempos o seu papel, fosse a que prazo fosse, era aceito com confiança e até solicitado. Morrel tentou negociar papel a noventa dias e encontrou os cofres de todos os bancos fechados.
Felizmente, Morrel tinha algumas cobranças com as quais podia contar. Essas cobranças efetuaram-se e Morrel encontrou-se ainda em condições de fazer face aos seus compromissos quando chegou o fim de Julho.
No tocante ao mandatário da Casa Thomson & French, ninguém mais lhe pusera a vista em cima em Marselha. No dia seguinte ou dois dias depois da sua visita a Morrel desaparecera. Ora, como em Marselha só falara com o maire, o inspetor das prisões e o Sr. Morrel, a sua passagem só deixara como sinal a diferente recordação com que ficaram dele essas três pessoas.
Quanto aos marinheiros do Pharaon, parece que tinha encontrado qualquer colocação, pois também haviam desaparecido. O comandante Gaumard, refeito da indisposição que o retivera em Palma, regressou por seu turno, mas hesitava em se apresentar ao Sr. Morrel. Este soube, porém da sua chegada e foi procurá-lo pessoalmente. O digno armador sabia antecipadamente, pela descrição de Penelon, a forma corajosa como se comportara o comandante durante todo o sinistro e foi ele quem procurou animá-lo. Além disso, levou-lhe o montante do seu soldo, que o comandante Gaumard não ousaria ir receber.
Quando descia a escada, o Sr. Morrel encontrou Penelon, que subia. Penelon fizera, ao que parecia, bom emprego do seu dinheiro, pois estava todo vestido de novo. Ao ver o seu armador, o digno timoneiro pareceu muito embaraçado. Afastou-se para o canto mais distante do patamar, passou alternadamente o rolo de tabaco da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, arregalando os olhos atarantado, e correspondeu apenas com uma tímida pressão ao aperto de mão que, com a sua cordialidade habitual, lhe ofereceu o Sr. Morrel. Este atribuiu o embaraço de Penelon à elegância da sua indumentária. Era evidente que o excelente homem não se dera por si próprio a semelhante luxo; portanto, estava já sem dúvida contratado a bordo de qualquer outro navio e a sua vergonha provinha, se assim se pode dizer, do fato de não ter usado mais tempo do luto pelo Pharaon. Talvez viesse até informar o Comandante Gaumard da sua boa fortuna e apresentar-lhe alguma proposta da parte do seu novo patrão.
“Excelentes homens”, disse Morrel para consigo enquanto se afastava, “Oxalá o seu novo patrão seja capaz de os estimar como eu os estimo e ser mais feliz do que eu!”
Agosto passou em tentativas constantemente renovadas por Morrel para readquirir o seu antigo crédito ou conseguir outro. Em 20 de Agosto soube-se em Marselha que embarcara na mula-posta e disse-se então que a falência deveria ser declarada no fim desse mês e que Morrel partira antecipadamente para não assistir a esse ato cruel, delegado, sem dúvida, ao seu primeiro-escriturário Emmanuel e no seu tesoureiro Coclés. Mas contra todas as previsões quando chegou o dia 31 de Agosto a tesouraria abriu como de costume, Coclés apareceu atrás da rede de arame, calmo como o justo Horácio, examinou com a mesma atenção o papel que lhe apresentavam e depois, da primeira à última, pagou as letras com a habitual pontualidade. Apareceram até dois reembolsos, como o Sr. Morrel previra, que Coclés pagou com a prontidão com que pagara as letras aceitas pelo armador. As pessoas não compreendiam nada e adiavam, com a tenacidade característica dos profetas da desgraça, a falência para fins de Setembro.
Morrel chegou no dia 1.
Toda a família o esperava com grande ansiedade. Daquela viagem a Paris deveria surgir a sua derradeira oportunidade de salvação. Morrel pensara em Danglars. Atualmente milionário e em outros tempos seu protegido, pois fora graças à recomendação de Morrel que Danglars entrara ao serviço do banqueiro espanhol, em casa do qual iniciara a sua imensa fortuna. Atualmente, dizia-se, Danglars possuía seis ou oito milhões e crédito ilimitado. Podia, portanto, sem tirar um escudo da algibeira, salvar Morrel: lhe bastaria garantir um empréstimo e Morrel estaria salvo. Havia muito tempo que Morrel se lembrara de Danglars, mas existem repulsas instintivas de que não somos senhores e Morrel adiara tanto quanto lhe fora possível recorrer a esse meio supremo. E tivera razão, pois regressara abatido pela humilhação de uma recusa.
Mesmo assim, à chegada, Morrel não deixara escapar nenhum queixume nem proferira nenhuma recriminação. Beijara chorando a mulher e a filha, estendera a mão amiga a Emmanuel, fechara-se no seu gabinete do segundo andar e mandara chamar Coclés.
— Desta vez, estamos perdidos — disseram as duas mulheres a Emmanuel.
Depois, num curto conciliábulo entre elas, decidiram que Julie escreveria ao irmão, de guarnição em Nimes, para que viesse imediatamente. As pobres mulheres sentiam instintivamente que necessitavam de todas as suas forças para aparar o golpe que as ameaçava.
Aliás, Maximilien Morrel, apesar de contar apenas vinte e dois anos, tinha já grande influência sobre o pai. Era um jovem firme e reto. Quando se tratara de abraçar uma carreira, o pai não quisera impor-lhe antecipadamente um futuro e consultara os gostos do jovem Maximilien. Este declarara então que queria seguir a carreira militar, fizera brilhantemente os estudos adequados e entrara por concurso para a Escola Politécnica e saíra de lá alferes do 53º de linha. Havia um ano que tinha esse posto, mas tinha a promessa de ser promovido a tenente na primeira oportunidade. No regimento, Maximilien Morrel era citado como rígido observador não só de todas as obrigações impostas aos soldados, mas ainda de todos os deveres inerentes ao homem, pelo que só o tratavam por estóico. Escusado ser dizer que muitos daqueles que lhe davam este epíteto o repetiam por o ter ouvido e nem sequer sabiam o que ele significava.
Era este jovem que a mãe e a irmã chamavam em seu auxílio, para as amparar na circunstância grave em que pressentiam ir encontrar-se.
Não se enganavam acerca da gravidade dessa circunstância, porque pouco depois de o Sr. Morrel entrar no seu gabinete com Coclés, Julie viu sair este último, pálido, trêmulo e de rosto descomposto.
Quis interrogá-lo ao passar por ela, mas o excelente homem continuou a descer a escada com uma precipitação que lhe não era habitual e limitou-se a exclamar, erguendo os braços ao céu:
— Oh, menina, menina, que horrível desgraça! Quem esperaria alguma vez uma coisa destas!
Pouco depois, Julie viu-o tornar a subir carregado como dois ou três volumosos registros, uma pasta e um saco de dinheiro.
Morrel consultou os registros, abriu a pasta e contou o dinheiro.
Todos os seus recursos ascendiam a seis ou oito mil francos e as suas cobranças até ao dia cinco a quatro ou cinco mil, o que totalizava, avaliando por alto, um ativo de catorze mil francos para pagar uma letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos. Nem sequer havia meio de oferecer semelhante amortização.
No entanto, quando desceu para jantar, Morrel parecia bastante calmo. Mas tal calma assustou mais as duas mulheres do que o faria o mais profundo abatimento. Depois do jantar, Morrel tinha o hábito de sair. Ia tomar o café ao Círculo dos Fôcios e ler o Sémaphore. Naquele dia, porém, não saiu e tornou a subir para o seu gabinete.
Quanto a Coclés, parecia completamente estupidificado. Durante parte do dia conservara-se no pátio, sentado numa pedra, de cabeça descoberta debaixo de um sol de trinta graus. Emmanuel tentava tranqüilizar as mulheres, mas era pouco eloqüente. O rapaz encontrava-se tão ao corrente dos negócios da casa que não podia deixar de adivinhar que uma grande catástrofe estava prestes a desabar sobre a família Morrel.
Anoiteceu.
As duas mulheres não se deitaram, esperando que quando descesse do seu gabinete Morrel fosse ter com elas. Mas ouviram-no passar diante da sua porta e estugar o passo, receando, sem dúvida, que o chamassem. Escutaram e ouviram-no entrar no seu quarto e fechar a porta por dentro.
A Sra. Morrel mandou a filha deitar. Em seguida, cerca de meia-hora depois de Julie se retirar, levantou-se, descalçou os sapatos e deslizou pelo corredor, a fim de ver através da fechadura o que fazia o marido. No corredor notou uma sombra que se retirava: era Julie que, também inquieta, precedera a mãe.
A jovem foi ao encontro da Sra. Morrel.
— Está escrevendo — disse-lhe.
As duas tinham-se adivinhado sem trocar palavra.
A Sra. Morrel inclinou-se ao nível da fechadura. Com efeito, Morrel escrevia. Mas o que não notara a filha notou-o a Sra. Morrel: o marido escrevia em papel selado. Assaltou-a a idéia terrível de que fazia o seu testamento. Estremeceu da cabeça aos pés, mas teve a coragem de não dizer nada.
No dia seguinte, o Sr. Morrel parecia absolutamente calmo. Esteve no seu gabinete como de costume, desceu para almoçar como habitualmente e apenas depois do jantar fez sentar a filha junto de si, tomou-lhe a cabeça nos braços e manteve-a assim durante muito tempo apertada ao peito. À noite, Julie disse à mãe que, embora na aparência calmo, notara que o coração do pai batia violentamente.
Os dois outros dias decorreram de forma mais ou menos idêntica. No dia 4 de Setembro à noite, o Sr. Morrel pediu à filha a chave do seu gabinete. Julie estremeceu ao ouvir tal pedido, que lhe pareceu sinistro. Por que motivo lhe pediria o pai uma chave que ela sempre tivera e que só lhe tiravam na infância para a castigar?
A jovem fitou o Sr. Morrel.
— Que mal fiz eu, meu pai, para que me tire a chave?
— Nada, minha filha — respondeu o pobre Morrel, a quem esta pergunta tão simples da filha fez brotar as lágrimas dos olhos — Nada, apenas necessito dela.
Julie simulou procurar a chave.
— Devo tê-la deixado no meu quarto.
E saiu. Mas em vez de ir ao quarto, desceu e correu para consultar Emmanuel.
— Não entregue a chave ao seu pai — disse-lhe Emmanuel — E amanhã de manhã, se for possível, não o deixe.
Ela procurou interrogar o rapaz, mas ou este não sabia mais nada ou não queria dizer outra coisa. Durante toda a noite de 4 para 5 de Setembro a Sra. Morrel esteve de ouvido colado à parede. Até às três da madrugada ouviu o marido passear agitadamente no quarto.
Só às três horas se atirou para cima da cama.
As duas mulheres passaram a noite juntas. Desde a véspera à noite que esperavam Maximilien. Às oito horas, o Sr. Morrel entrou no quarto da mulher e da filha. Estava clamo, mas a agitação da noite transparecia-lhe no rosto pálido e desfeito. As duas mulheres não ousaram perguntar-lhe se dormira bem. Morrel foi melhor para a mulher e mais paternal com a filha do que em qualquer outra ocasião. Não se cansava de olhar e beijar a pobre criança.
Julie recordou-se da recomendação de Emmanuel e quis acompanhar o pai quando este saiu. Mas ele repeliu-a com doçura e disse-lhe.
— Fica com a tua mãe.
Julie quis insistir.
— Quero que fiques! — atalhou Morrel.
Era a primeira vez que Morrel dizia à filha: “Quero!”, mas disse-o em tom impregnado de tão paternal doçura que Julie não ousou dar um passo em frente.
Ficou onde estava, de pé, muda e imóvel. Pouco depois a porta abriu-se e a jovem sentiu dois braços rodearam-na e uma boca colar-se-lhe à testa. Ergueu os olhos e soltou uma exclamação de alegria.
— Maximilien, meu irmão!
Ao ouvir este grito a Sra. Morrel acorreu e lançou-se nos braços do filho.
— Minha mãe — disse o rapaz, olhando ora para a Sra. Morrel, ora para a irmã — Que aconteceu? A vossa carta assustou-me e vim imediatamente.
— Julie — disse a Sra. Morrel, fazendo sinal ao rapaz para esperar — Vai dizer ao teu pai que Maximilien acaba de chegar.
A jovem correu para fora do apartamento, mas encontrou no primeiro degrau da escada um homem com uma carta na mão.
— É Mademoiselle Julie Morrel? — perguntou o homem com um sotaque italiano deveras pronunciado.
— Sou, sim, senhor — respondeu Julie balbuciante — Que me quer? Não o conheço...
— Leia esta carta — disse o homem, estendendo-lha.
Julie hesitava.
— Está nela a salvação do seu pai — acrescentou o mensageiro.
A moça arrancou-lhe a carta da mão.
Em seguida abriu-a rapidamente e leu:


Vá imediatamente às Alamedas de Meilhan, entre no prédio nº. 15, peça à porteira a chave do quarto do quinto andar, entre nesse quarto, pegue numa bolsa de rede de seda encarnada que está no canto da chaminé e leve-a ao seu pai.
É importante que ele a receba antes das onze horas.
Prometeu obedecer-me cegamente, lembro-lhe a sua promessa.

SIMBAD, O MARINHEIRO


A jovem soltou um grito de alegria, levantou os olhos e procurou, para o interrogar, o homem que lhe entregara a carta, mas ele desaparecera. Voltou então a olhar para a carta, a fim de a ler segunda vez, e descobriu que tinha um pós-escrito. Leu-o:


É importante que desempenhe esta missão pessoalmente e sozinha. Se fosse acompanhada ou mandasse outra pessoa, a porteira responderia que não sabia que queriam dizer.


Este pós-escrito diminuiu consideravelmente a alegria da moça. Não teria nada a temer? Não quereriam armar-lhe alguma cilada? A sua inocência fazia-a ignorar quais eram os perigos que podia correr uma moça da sua idade, mas ninguém precisa de conhecer o perigo para ter medo. Deve-se até notar que são precisamente os perigos desconhecidos aqueles que inspiram os maiores terrores. Julie hesitava e resolveu pedir conselho.
Mas, por um sentimento estranho, não foi nem à mãe nem ao irmão que recorreu, foi a Emmanuel. Desceu e contou-lhe o que lhe acontecera no dia em que o mandatário da Casa Thomson & French viera procurar o pai. Contou-lhe a cena da escada, revelou-lhe a promessa que lhe fizera e mostrou-lhe a carta.
— Deve ir, menina — disse Emmanuel.
— Acha? — murmurou Julie.
— Acho. Eu a acompanharei.
— Mas não vê que devo ir sozinha? — observou Julie.
— Irá sozinha — respondeu o rapaz — Eu esperarei à esquina da Rua do Museu e se a sua demora começar a preocupar-me irei procurá-la e ai daquele ou daqueles de que me disser ter razão de queixa!
— Assim, Emmanuel — perguntou hesitante a moça — Acha que devo fazer o que me indicam?
— Acho. O mensageiro não lhe disse que ia nisso a salvação do seu pai?
— Mas, Emmanuel, que perigo corre ele? — perguntou a moça.
Emmanuel hesitou um instante, mas o desejo de decidir Julie sem delongas levou a melhor.
— Ouça, hoje são 5 de Setembro, não é verdade?
— São.
— Pois hoje, às onze horas, o seu pai tem de pagar cerca de trezentos mil francos.
— Pois tem, bem o sabemos.
— Mas não tem nem quinze mil em caixa! — disse Emmanuel.
— Então, que vai acontecer?
— Vai acontecer que se hoje, antes das onze horas, o seu pai não encontrar alguém que o ajude, ao meio-dia será obrigado a declarar-se falido.
— Oh, venha, venha! — gritou a moça, arrastando o rapaz consigo.
Entretanto, a Sra. Morrel contara tudo ao filho.
O jovem sabia bem que em conseqüência das sucessivas desgraças que tinham acontecido ao pai haviam sido feitos grandes cortes nas despesas da casa, mas ignorava que as coisas tivessem chegado a tal ponto. Ficou aniquilado. Depois, de repente, correu para fora do apartamento e subiu rapidamente a escada, porque julgava o pai no gabinete, mas bateu em vão. Junto da porta do gabinete ouviu a do apartamento abrir-se, virou-se e viu o pai. Em vez de subir direto ao seu gabinete, o Sr. Morrel entrara no seu quarto, do qual saía apenas naquele momento.
O Sr. Morrel soltou um grito de surpresa ao ver Maximilien, pois ignorava a chegada do rapaz. Ficou imóvel onde estava, apertando com o braço esquerdo um objeto que tinha escondido debaixo da sobrecasaca.
Maximilien desceu rapidamente a escada e lançou-se ao pescoço do pai. Mas de repente recuou, deixando apenas a mão direita apoiada no peito do pai.
— Meu pai — disse, fazendo-se pálido como a morte — Porque traz um par de pistolas debaixo da sobrecasaca?
— Pronto, aí está o que eu temia! — exclamou Morrel.
— Meu pai, meu pai, em nome do Céu! — gritou o rapaz — Para que são essas armas?
— Maximilien — respondeu Morrel, olhando fixamente o filho — Você é um homem e um homem de honra. Anda comigo, vou te contar tudo.
E Morrel subiu com passo firme ao seu gabinete, enquanto Maximilien o seguia cambaleando. Morrel abriu a porta e fechou-a atrás do filho. Depois atravessou a antecâmara, aproximou-se da mesa, depositou as pistolas à ponta do móvel e indicou ao filho, com o dedo, um registro aberto. Nesse registro encontrava-se consignado o estado exato da firma.
Morrel tinha de pagar dentro de meia-hora duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos. E possuía ao todo quinze mil duzentos e cinqüenta e sete francos.
— Leia — disse Morrel.
O rapaz leu e ficou um momento como que esmagado.
Morrel não disse nem uma palavra. Que poderia dizer que contrariasse a inexorável eloqüência dos números?
— E fez tudo, meu pai, para evitar esta desgraça? — perguntou o rapaz passado um instante.
— Tudo — respondeu Morrel.
— Não espera nenhuma entrada de fundos?
— Nenhuma.
— Esgotou todos os seus recursos?
— Todos.
— E dentro de meia-hora o nosso nome estará desonrado? — continuou o jovem, com voz sombria.
— O sangue lavará a desonra — declarou Morrel.
— Tem razão, meu pai, e compreendo-o.
Depois, estendendo a mão para as pistolas:
— Há uma para si e outra para mim — disse — Obrigado!
Morrel deteve-lhe a mão.
— E a tua mãe... e a tua irmã... quem as sustentará?
Um arrepio percorreu todo o corpo do rapaz.
— Meu pai, tenciona pedir-me que viva?
— Sim, tenciono — respondeu Morrel — Porque é esse o teu dever. Possui um espírito calmo, forte, Maximilien... Maximilien, você não é um homem vulgar. Não te recomendo nada, não te ordeno nada, apenas te digo: examina a situação como se te tosse estranha e julgue-a por si mesmo.
O rapaz refletiu um instante e em seguida passou-lhe pelos olhos uma expressão de resignação sublime. Apenas tirou, com um gesto lento e triste, a dragona e a contra-dragona, insígnias do seu posto.
— Está bem — disse, estendendo a mão a Morrel — Morra em paz, meu pai! Eu viverei.
Morrel esboçou o gesto de se lançar aos joelhos do filho, mas Maximilien puxou-o para si e aqueles dois nobres corações bateram um instante um contra o outro.
— Sabe que a culpa não é minha, não sabe? — perguntou Morrel.
Maximilien sorriu.
— Sei, meu pai, que é o homem mais honesto que jamais conheci.
— Pronto, está tudo dito. Agora, volta para junto da tua mãe e da tua irmã.
— Meu pai, abençoe-me — pediu o jovem, dobrando o joelho.
Morrel tomou a cabeça do filho nas mãos, aproximou-a de si e beijou-a diversas vezes.
— Oh, sim, sim! — exclamou — Abençôo-te em meu nome e em nome de três gerações de homens irrepreensíveis. Ouve o que te dizem por meu intermédio: o edifício que a desgraça destruiu pode ser reconstruído pela Providência. Quando me virem morto de semelhante morte os mais inexoráveis terão compaixão de ti. A ti talvez dêem o tempo que me recusaram. Então, procura que a palavra infame não seja pronunciada. Mete ombros à obra. Trabalhe, rapaz, lute ardente e corajosamente. Vivam, você, a sua mãe e a sua irmã, com o estritamente necessário para que, dia a dia, o capital daqueles a quem devo aumente e frutifique nas suas mãos. Lembre-se de que será um belo dia, um grande dia, um dia solene o da reabilitação, o dia em que, neste mesmo gabinete, dirá: “O meu pai morreu por não poder fazer o que eu faço hoje. Mas morreu tranqüilo e calmo, porque sabia ao morrer que eu o faria”.
— Oh, meu pai, meu pai! — exclamou o rapaz — Se apesar de tudo pudesse viver!...
— Se viver, tudo se modificará. Se viver, o interesse se transformará em dúvida, a compaixão em encarniçamento. Se viver, não passarei de um homem que faltou à sua palavra, que não respeitou os seus compromissos, não passarei, enfim, de um falido. Pelo contrário, se morrer, pensa nisto Maximilien, o meu cadáver será apenas o de um homem honesto infeliz. Vivo, os meus melhores amigos evitarão esta casa; morto, Marselha em peso me acompanhará chorando à minha última morada. Vivo, se envergonhará do meu nome; morto, levantará a cabeça e dirá: “Sou filho daquele que se matou porque, pela primeira vez, foi obrigado a faltar à sua palavra”.
O rapaz soltou um gemido, mas pareceu resignado. Era a segunda vez que a convicção entrava, não no seu coração, mas sim no seu espírito.
— E agora — disse Morrel — Deixe-me sozinho e procure afastar as mulheres.
— Não quer ver mais uma vez a minha irmã? — perguntou Maximilien.
O jovem depositava derradeira e recôndita esperança nesse encontro e por isso o sugeria. Mas o Sr. Morrel abanou a cabeça.
— Eu a vi esta manhã e despedi-me dela.
— Não tem nenhuma recomendação especial a fazer-me, meu pai? — perguntou Maximilien em voz alterada.
— Tenho, sim, meu filho, uma recomendação sagrada.
— Diga, meu pai.
— A Casa Thomson & French foi a única que por humanidade ou talvez por egoísmo, mas não sou eu que posso ler no coração dos homens, teve compaixão de mim. O seu mandatário, que dentro de dez minutos se apresentará para cobrar o montante de uma letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos, não direi que me concedeu, mas ofereceu-me três meses. Quero que essa casa seja a primeira a ser reembolsada, meu filho, e que considere esse homem sagrado.
— Pois sim, meu pai — disse Maximilien.
— E agora, mais uma vez, adeus — disse Morrel — Vai, vai, preciso estar só. Encontrar o meu testamento na mesa do meu quarto.
O rapaz ficou de pé, imóvel, apenas com a sua força de vontade, mas não de execução.
— Escuta, Maximilien — disse o pai — Supõe que sou soldado como você, que recebi ordem de tomar um reduto e que sabe que para o tomar terei de morrer. Não me dirias o que me disseste há pouco: “Vá, meu pai, porque se desonrar se ficar, e mais vale a morte do que a desonra!”
— Sim, sim — admitiu o jovem — Sim.
E apertando convulsivamente Morrel nos braços:
— Vá, meu pai — disse.
E correu para fora do gabinete. Depois de o filho sair, Morrel ficou um instante de pé e com os olhos fixos na porta. Em seguida estendeu a mão, encontrou o cordão de uma campainha e tocou. Pouco depois apareceu Coclés.
Já não era o mesmo homem, aqueles três dias de tortura tinham-no alquebrado. Esta idéia: “A casa Morrel vai cessar os seus pagamentos” curvava-o para o chão mais do que o fariam vinte anos de vida, além dos que já tinha, sobre a sua cabeça.
— Meu bom Coclés — disse Morrel num tom em que seria impossível encontrar expressão — Vai ficar na antecâmara. Quando aquele senhor que veio há três meses, você sabe, o mandatário da Casa Thomson & French chegar, o anunciará.
Coclés não disse nada. Acenou com a cabeça, foi-se sentar na antecâmara e esperou.
Morrel deixou-se cair na sua cadeira. Olhou para o relógio de sala: restavam-lhe apenas sete minutos. O ponteiro andava com uma rapidez incrível; parecia-lhe que o via avançar.
O que se passou então, naquele momento supremo, no espírito daquele homem que, ainda novo, em conseqüência de um raciocínio talvez falso, ou pelo menos especial, se ia separar de tudo o que amava no mundo e deixar a vida, que tinha para si todas as doçuras da família, é impossível exprimir. Seria necessário ver, para se fazer uma idéia, a sua testa coberta de suor, e, no entanto resignada, e os seus olhos cheios de lágrimas, e, no entanto erguidos ao céu.
O ponteiro continuava a andar e as pistolas estavam carregadas. Estendeu a mão, pegou numa e murmurou o nome da filha. Em seguida pousou a arma mortífera, pegou na pena e escreveu algumas palavras. Parecia-lhe que se não despedira o suficiente da filha querida. Depois tornou a olhar para o relógio. Já não contava os minutos, mas sim os segundos. Voltou a pegar na arma, com a boca entreaberta e os olhos fixos no ponteiro. Depois estremeceu ao ouvir o ruído que ele próprio fazia ao armar o cão. Nesse momento cobriu-lhe a testa um suor mais frio e uma angústia mortal apertou-lhe o coração.
Ouviu a porta da escada ranger nos gonzos.
Em seguida abriu-se a do gabinete.
O relógio ia dar onze horas.
Morrel não se virou; esperava apenas que Coclés dissesse estas palavras: “O mandatário da Casa Thomson & French”.
Aproximou a arma da boca...
De súbito, ouviu um grito: era a voz da filha. Virou-se e viu Julie; a pistola caiu-lhe das mãos.
— Pai! — gritou a moça, sem fôlego e quase morta de alegria — Salvo! Está salvo!
E lançou-se-lhe nos braços, erguendo na mão uma bolsa de rede de seda vermelha.
— Salvo, minha filha? Que quer dizer? — perguntou Morrel.
— Salvo, sim! Veja, veja! — respondeu a jovem.
Morrel pegou a bolsa e estremeceu, pois uma vaga recordação lembrou-lhe que aquele objeto já lhe pertencera. De um lado estava a letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos.
A letra estava paga.
Do outro, estava um diamante do tamanho de uma avelã, com estas três palavras escritas num bocadinho de pergaminho:

“Dote de Julie”

Morrel passou a mão pela testa. Julgava estar sonhando.
Naquele momento o relógio deu onze horas.
A campainha vibrou para ele como se cada pancada do martelo de aço fizesse vibrar-lhe o próprio coração.
— Vejamos, minha filha, explique-se. Onde encontrou esta bolsa?
— Numa casa das Alamedas de Meilhan, no nº. 15, ao canto da chaminé de um pobre quartinho do quinto andar.
— Mas esta bolsa não te pertence! — gritou Morrel.
Julie estendeu ao pai a carta que recebera de manhã.
— E você foi sozinha a essa casa? — perguntou Morrel, depois de ler.
— Emmanuel acompanhou-me, meu pai. Devia esperar-me à esquina da Rua do Museu, mas, coisa estranha, quando voltei não estava lá.
— Sr. Morrel! — gritou uma voz na escada — Sr. Morrel!
— É a sua voz — disse Julie.
Ao mesmo tempo, Emmanuel entrou. Com o rosto transtornado de alegria emoção.
— O Pharaon! — gritou — O Pharaon!
— Que diz? O Pharaon? Endoideceu, Emmanuel? Sabe muito bem que naufragou.
— O Pharaon! Senhor, assinalam o Pharaon; o Pharaon está entrando no porto.
Morrel voltou a cair na sua cadeira. Faltavam-lhe as forças e a sua inteligência recusava-se a classificar aquela sucessão de acontecimentos incríveis, inauditos, fabulosos.
Mas o filho entrou por seu turno.
— Pai! — gritou Maximilien — Não disse que o Pharaon naufragara? Pois o vigia assinalou-o, está entrando no porto!
— Meus amigos — disse Morrel — Se isso fosse verdade, seria necessário acreditar num milagre de Deus. Impossível! Impossível!
Mas o que era real e não menos incrível era aquela bolsa que tinha na mão, era aquela letra resgatada, era aquele magnífico diamante.
— Ah, senhor! — disse Coclés por seu turno — Que significa isto? O Pharaon...
— Vamos, meus filhos — atalhou Morrel, levantando-se — Vamos ver e que Deus tenha piedade de nós se a notícia é falsa.
Desceram.
A meio da escada encontraram a Sra. Morrel. A pobre mulher não ousava subir. Chegaram num instante à Cannebiére. Havia muita gente no porto.
Todos se afastaram diante de Morrel.
— O Pharaon! O Pharaon! — diziam todas aquelas vozes.
De fato, coisa maravilhosa, inaudita, diante da Torre de S. João um navio, tendo à popa estas palavras escritas em letras brancas “Pharaon Morrel & Filhos, Marselha”, absolutamente idêntico ao outro Pharaon e como o outro carregado de cochonilha e índigo, ancorava e ferrava as velas. Na ponte, o Comandante Gaumard dava as suas ordens e mestre Penelon fazia sinais ao Sr. Morrel.
Já não era possível duvidar: o testemunho dos sentidos estava ali e dez mil pessoas confirmavam esse testemunho.
Quando Morrel e o filho se abraçaram no molhe, perante os aplausos de toda a cidade, testemunha daquele prodígio, um homem, com o rosto semi-coberto por uma barba preta e que escondido atrás da guarita de uma sentinela assistia à cena enternecido, murmurou estas palavras:
— Seja feliz, nobre coração; seja abençoado por todo o bem que fez e que ainda fará, e que o meu reconhecimento permaneça na sombra como o teu bem-fazer.
E com um sorriso, em que transpareciam a alegria e a felicidade, deixou o seu esconderijo e, sem que ninguém lhe prestasse atenção, de tal modo estavam todos interessados no acontecimento do dia, desceu uma dessas escadinhas que servem de cais e chamou três vezes:
— Jacopo! Jacopo! Jacopo!
Então veio ao seu encontro uma chalupa, que o recebeu a bordo e o transportou para um iate ricamente aparelhado, para a coberta do qual subiu com a ligeireza de um marinheiro. Daí, olhou mais uma vez para Morrel, que chorando de alegria distribuía cordiais apertos de mão a toda a gente e agradecia com um olhar vago ao benfeitor desconhecido que parecia procurar no Céu.
— E agora — disse o homem desconhecido — Adeus bondade, humanidade, reconhecimento... adeus a todos os sentimentos que dilatam o coração!... Substituí a Providência para recompensar os bons... que Deus vingador me ceda o seu lugar para castigar os maus!
Depois destas palavras, fez um sinal, e como se esperasse apenas esse sinal para partir, o iate fez-se imediatamente ao mar.




 continua...



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