segunda-feira, 4 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 11


XI

O PAPÃO DA CÓRSEGA




A
o ver o ar transtornado daquele rosto, Luís XVIII empurrou violentamente a mesa diante da qual se encontrava.
— Que tem, Sr. Barão? — perguntou — Parece muito transtornado. Essa perturbação, essa hesitação, têm alguma coisa a ver com o que dizia o Sr. de Blacas e com o que acaba de me confirmar o Sr. de Villefort?
Pela sua parte, o Sr. de Blacas aproximava-se vivamente do barão, mas o terror do cortesão impedia de triunfar o orgulho do estadista. Com efeito, em semelhantes circunstâncias era muito mais vantajoso para ele ser humilhado pelo Ministro da Polícia do que humilhá-lo em tal caso.
— Sir... — balbuciou o barão.
— Fale! — ordenou Luís XVIII.
Cedendo então a um impulso de desespero, o Ministro da Polícia precipitou-se aos pés de Luís XVIII, que recuou um passo e franziu o sobrolho.
— Quer fazer o favor de falar? — insistiu.
— Oh, sir, que horrível desgraça! Nunca me penitenciarei suficientemente. Nunca me resignarei!
— Senhor — disse Luís XVIII — Ordeno-lhe que fale.
— Pois bem, Sir, o usurpador deixou a Ilha de Elba em 28 de Fevereiro e desembarcou em 1 de Março.
— Onde? — perguntou vivamente o rei.
— Na França, Sir, num porto perto de Antibes, no Golfo Juan.
— O usurpador desembarcou na França, perto de Antibes, no golfo Juan, a duzentas e cinqüenta léguas de Paris, no dia 1 de Março, e o senhor só sabe disso hoje, 3 de Março!... Senhor, o que me diz é impossível: ou lhe fizeram um relatório falso ou o senhor enlouqueceu.
— Infelizmente, Sir, é a pura verdade!
Luís XVIII fez um gesto indizível de cólera e terror e aprumou-se como se um golpe imprevisto o tivesse atingido ao mesmo tempo no coração e no rosto.
— Na França! — exclamou — O usurpador na França! Mas então ninguém vigiava esse homem? Quem sabe se não estariam feitos com ele...
— Oh, Sir — interveio o duque de Blacas — Não se pode acusar de traição um homem como o Sr. Dandré! Sir, estávamos todos cegos e o ministro da Polícia compartilhou a cegueira geral, mais nada.
— Mas... — começou Villefort; depois, detendo-se de súbito — Ah, perdão, Sir! — exclamou inclinando-se — O meu zelo domina-me. Que Vossa Majestade se digne desculpar-me.
— Fale, senhor, fale à vontade — disse o rei — Já que foi o único a prevenir-nos do mal, ajude-nos a encontrar-lhe o remédio.
— Sir — declarou Villefort — O usurpador é detestado no Meio-Dia. Parece-me, portanto que se se aventurar no Meio-Dia se poderá sublevar facilmente contra ele a Provença e o Linguadoque.
— Sim, sem dúvida — concordou o ministro — Mas ele avança por Cap e Sisteron.
— Ele avança, ele avança... — repetiu Luís XVIII — Quer dizer que marcha sobre Paris?
O Ministro da Polícia guardou um silêncio que equivalia à mais completa confissão.
— E o Delfinado, senhor? — perguntou o rei a Villefort — Acha que se poder sublevar como a Provença?
— Sir, custa-me dizer a Vossa Majestade uma verdade cruel, mas o espírito do Delfinado está longe de valer o da Provença e a do Linguadoque. Os montanheses são bonapartistas, Sir.
— Claro — murmurou Luís XVIII — Informou-se bem... e quantos homens traz consigo?
— Não sei, Sir — respondeu o ministro da Polícia.
— Como? Não sabe?! Esqueceu-se de se informar desse pormenor? Verdade seja que é de pouca importância — acrescentou com um sorriso demolidor.
— Sir, não me pude informar a esse respeito. O despacho anunciava simplesmente o desembarque e a estrada tomada pelo usurpador.
— E como chegou às suas mãos esse despacho? — perguntou o rei.
O ministro baixou a cabeça e um vivo rubor invadiu-lhe a testa.
— Pelo telégrafo, Sir — balbuciou.
Luís XVIII deu um passo em frente e cruzou os braços como teria feito Napoleão.
— Assim — disse empalidecendo de cólera — Sete exércitos coligados derrubaram esse homem; um milagre do Céu recolocou-me no trono dos meus avôs depois de vinte anos de exílio; durante esses vinte e cinco anos estudei, sondei, analisei os homens e as coisas desta França que me estava prometida. Para quê? Para no fim de tudo isto uma força que tinha na mão rebentar e destruir-me!
— Sir, é a fatalidade — murmurou o ministro, sentindo que semelhante peso, leve para o destino, bastava para esmagar um homem.
— Mas então é verdade o que diziam de nós os nossos inimigos: “Não aprenderam nem esqueceram nada?” Se tivesse sido atraiçoado por pessoas elevadas por mim às dignidades, que deveriam velar por mim mais cuidadosamente do que por si mesmas, porque a minha fortuna era a sua, antes de mim não eram nada e depois de mim nada seriam, mas cair miseravelmente por incapacidade, por inépcia! Ah, sim, senhor, tem razão, é uma fatalidade.
O ministro mantinha-se curvado debaixo deste espantoso anátema.
O Sr. de Blacas enxugava a testa coberta de suor.
Villefort sorria intimamente porque sentia crescer a sua importância.
— Cair — continuava Luís XVIII, que ao primeiro relance de olhos sondava o princípio para onde se inclinava a monarquia — Cair e saber da queda pelo telégrafo! Oh, preferiria subir o cadafalso do meu irmão Luís XVI a descer assim a escadaria das Tulherias, corrido pelo ridículo!... O ridículo, que o senhor não sabe o que é na França, embora o devesse saber.
— Sir, sir — murmurou o ministro — Por piedade!...
— Aproxime-se, Sr. de Villefort — continuou o rei, dirigindo-se ao jovem que de pé, imóvel e atrás observava o andamento daquele diálogo onde pairava, perdido, o destino de um reino — E diga a este senhor que se podia saber com antecedência tudo o que ele não soube.
— Sir, era materialmente impossível adivinhar projetos que esse homem ocultava de todos.
— Materialmente impossível! Ora ai está uma grande frase, senhor. Infelizmente, há grandes frases assim como há grandes homens; já medi umas e outros. Materialmente impossível a um ministro, que tem uma administração, repartições, agentes, informadores, espiões e um milhão e quinhentos mil francos de fundos secretos saber o que se passa a sessenta léguas das costas da França! Pois bem, veja, senhor, aqui tem quem não tinha nenhum desses recursos à sua disposição; aqui tem, senhor, um simples magistrado que a tal respeito sabia mais do que o senhor com toda a sua polícia e que me teria salvado a coroa se tivesse tido como o senhor o direito de dirigir um telégrafo.
O olhar do Ministro da Polícia virou-se com expressão de profundo desprezo para Villefort, que inclinou a cabeça com a modéstia do triunfo.
— Não digo isto em sua intenção, Blacas — continuou Luís XVIII — Porque se você nada descobriu, ao menos teve a feliz idéia de perseverar a sua desconfiança. Outro que fosse talvez tivesse considerado a revelação do Sr. de Villefort insignificante ou então sugerida por uma ambição venal.
Estas palavras aludiam às que o Ministro da Polícia pronunciara com tanta confiança uma hora antes.
Villefort compreendeu o jogo do rei. Outro talvez se tivesse deixado empolgar pela embriaguez do elogio; mas ele temia fazer do Ministro da Polícia um inimigo mortal, embora sentisse que este estava irremediavelmente perdido. Com efeito, o ministro que na plenitude do seu poder não soubera adivinhar o segredo de Napoleão, poderia nas convulsões da sua agonia, descobrir o de Villefort. Para isso, bastar-lhe-ia interrogar Dantés. Veio, pois, em socorro do ministro em vez de o enterrar.
— Sir — disse Villefort — A rapidez dos acontecimentos deve provar a Vossa Majestade que só Deus os poderia impedir levantando uma tempestade. O que Vossa Majestade julga da minha parte o efeito de uma profunda perspicácia deve-se pura e simplesmente ao acaso. Aproveitei esse acaso como servidor dedicado e mais nada. Não me conceda mais do que mereço, Sir, para nunca voltar atrás na primeira idéia que tiver concebido a meu respeito.
O Ministro da Polícia agradeceu ao jovem com um olhar eloqüente e Villefort compreendeu que fora bem sucedido no seu projeto, isto é, que sem perder nada do reconhecimento do rei acabava de fazer um amigo com que, se fosse caso disso, poderia contar.
— Está bem — disse o rei — E agora, meus senhores — prosseguiu virando-se para o Sr. de Blacas e para o Ministro da Polícia — Já não me são necessários, podem-se retirar. O que resta fazer é da competência do Ministro da Guerra.
— Ainda bem, Sir — disse o Sr. de Blacas — Que podemos contar com o Exército. Vossa Majestade sabe como todos os relatórios o dão como dedicado ao seu governo.
— Não me venha com relatórios! Agora, duque, sei a confiança que se pode ter neles. Eh! Mas a propósito de relatórios, Sr. Barão, que soube de novo acerca do caso da Rua Saint-Jacques?
— Acerca do caso da Rua Saint-Jacques! — deixou escapar Villefort, sem conter uma exclamação.
Mas deteve-se de súbito e disse:
— Perdão, Sir, a minha dedicação a Vossa Majestade faz-me constantemente esquecer, não o respeito que lhe devo e que está muito profundamente gravado no meu coração, mas sim as regras da etiqueta.
— Não se preocupe com isso, senhor — perguntou Luís XVIII — Hoje adquiriu o direito de interrogar.
— Sir — respondeu o Ministro da Polícia — Vinha precisamente dar hoje a Vossa Majestade as novas informações que recolhi a esse respeito quando a atenção de Vossa Majestade foi desviada para a terrível catástrofe do golfo. Agora essas informações já não têm nenhum interesse para o rei.
— Pelo contrário, senhor, pelo contrário — replicou Luís XVIII — Esse caso parece-me ter relação direta com aquele de que nos ocupamos e a morte do General Quesnel talvez nos ponha na pista de uma grande conspiração interna.
Ao ouvir o nome do General Quesnel, Villefort estremeceu.
— Com efeito, Sir — prosseguiu o Ministro da Polícia — Tudo leva a crer que essa morte é o resultado não de um suicídio, como a principio pareceu, mas sim de um assassínio. Ao que parece, o General Quesnel saía de um clube bonapartista quando desapareceu. Nessa mesma manhã fora procurado por um homem desconhecido que lhe marcara encontro na Rua Saint-Jacques. Infelizmente, o criado de quarto do general, que o penteava no momento em que o desconhecido foi introduzido no gabinete, ouviu-o perfeitamente indicar a Rua Saint-Jacques, mas não fixou o número.
À medida que o Ministro da Polícia dava ao Rei Luís XVIII estas informações, Villefort, que parecia suspenso dos seus lábios, corava e empalidecia.
O rei virou-se para ele.
— Não lhe parece, como a mim, Sr. de Villefort, que o General Quesnel, que se poderia crer ligado ao usurpador, mas que na realidade me pertencia de corpo e alma, foi vítima de uma cilada bonapartista?
— É provável, Sir — respondeu Villefort — Mas não se sabe mais nada?
— Estamos na pista do homem que marcou o encontro.
— Na sua pista? — repetiu Villefort.
— Sim. O criado deu os seus sinais. É um homem de cinqüenta a cinqüenta e dois anos, moreno, de olhos negros cobertos de sobrancelhas espessas e bigode. Envergava sobrecasaca azul e usava na lapela uma roseta de oficial da Legião de Honra. Ontem seguiu-se um indivíduo cujos sinais correspondiam exatamente aos que acabo de dar, mas desapareceu à esquina da Rua da Jussienne com a do Coq-Héron.
Villefort apoiara-se nas costas de uma poltrona. Porque à medida que o Ministro da Polícia falava sentia as pernas faltarem-lhe debaixo do corpo. Mas quando viu que o homem escapara à perseguição do agente que o seguia, respirou.
— Procure esse homem, senhor — disse o rei ao Ministro da Polícia — Porque se, como tudo me leva a crer, o General Quesnel, que nos seria tão útil neste momento, foi vítima de um assassino, bonapartista ou não, quero que os seus assassinos sejam cruelmente punidos.
Villefort necessitou de todo o seu sangue-frio para não deixar transparecer o terror que lhe inspirava a recomendação do rei.
— Coisa estranha! — continuou o monarca com um gesto de humor — A Polícia julga ter dito tudo quando diz: “Cometeu-se um assassínio”. E tudo ter feito quando acrescenta: “Estamos na pista dos culpados”.
— Sir, pelo menos nesse caso Vossa Majestade ficará satisfeito, assim espero.
— Veremos. Não o retenho mais tempo, barão. Sr. de Villefort, deve estar cansado dessa longa viagem; vá descansar. Instalou-se com certeza em casa de seu pai?
Uma sombra passou pelos olhos de Villefort.
— Não, Sir — respondeu — Hospedei-me no Hotel de Madrid, na Rua de Tournon.
— Mas viu-o?
— Sir, a primeira coisa que fiz foi dirigir-me a casa do Sr. Duque de Blacas.
— Mas o verá, ao menos?
— Não acredito, Sir.
— Ah, é justo! — exclamou Luís XVIII, sorrindo de maneira que demonstrava que todas estas perguntas reiteradas não tinham sido feitas sem intenção — Esquecia-me de que o senhor não está de boas relações com o Sr. Noirtier. Trata-se de um novo sacrifício feito à causa monárquica de que devo recompensá-lo.
— Sir, a bondade que Vossa Majestade me testemunha é recompensa que ultrapassa tanto todas as minhas ambições que não tenho mais nada a pedir ao rei.
— Não importa, senhor, e não o esqueceremos, esteja tranqüilo. Entretanto — o rei tirou a cruz da Legião de Honra que usava habitualmente na casaca azul, junto da cruz de S. Luís e por cima da placa da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo e de S. Lázaro e entregou-a a Villefort — Entretanto tome esta cruz.
— Sir — observou Villefort — Vossa Majestade engana-se, essa cruz é a de oficial.
— É verdade, senhor — disse Luís XVIII — Mas mesmo assim aceite-a. Não tenho tempo para mandar vir outra. Blacas, não se esqueça de providenciar para que seja passado o alvará ao Sr. de Villefort.
Os olhos de Villefort cobriram-se de lágrimas de orgulhosa alegria. Pegou na cruz e beijou-a.
— E agora — perguntou — Quais são as ordens que me faz a honra de me dar Vossa Majestade?
— Descanse o tempo que precisar e lembre-se de que sem força em Paris para me servir me poderá ser da maior utilidade em Marselha.
— Sir — respondeu Villefort inclinando-se — Deixarei Paris dentro de uma hora.
— Vá, senhor — disse o rei — E se o esquecer, a memória dos reis é curta, não receie fazer-se-me lembrado... Sr. Barão, mande procurar o Ministro da Guerra. Blacas, fique.
— Ah, senhor — disse o Ministro da Polícia a Villefort à saída das Tulherias — Entrou com o pé direito, tem a sua fortuna feita!
— Por muito tempo? — murmurou Villefort, despedindo-se do ministro, cuja carreira terminara, e procurando com a vista uma carruagem para regressar a casa.
Passava um fiacre no cais. Villefort fez-lhe sinal e o fiacre aproximou-se. Villefort deu o seu endereço, atirou-se para o fundo da carruagem e deu largas aos seus sonhos de ambição. Dez minutos depois estava em casa. Mandou preparar os cavalos para dali a duas horas e ordenou que lhe servissem o café da manhã.
Ia sentar-se à mesa quando a campainha da porta da rua tocou, acionada por uma mão franca e firme. O criado de quarto foi abrir e Villefort ouviu uma voz pronunciar o seu nome. “Quem poderá saber que estou aqui?”, interrogou-se o jovem. Neste momento o criado de quarto voltou a entrar.
— Então — perguntou Villefort — Quem era? Quem tocou? Quem procura por mim?
— Um desconhecido que não quer dizer o seu nome.
— Como! Um desconhecido que não quer dizer o seu nome? E o que quer esse desconhecido?
— Falar com o senhor.
— Comigo?
— Sim.
— Ele disse o meu nome?
— Perfeitamente.
— E que aparência tem esse desconhecido?
— Trata-se de um homem dos seus cinqüenta anos.
— Baixo? Alto?
— Mais ou menos da altura do senhor.
— Louro ou moreno?
— Moreno, muito moreno: cabelo preto, olhos pretos, sobrancelhas pretas.
— E vestido — perguntou vivamente Villefort — Vestido de que maneira?
— Com uma grande sobrecasaca azul abotoada de alto a baixo e condecorado com a Legião de Honra.
— É ele — murmurou Villefort empalidecendo.
— Por Deus — disse aparecendo à porta o indivíduo cujos sinais já demos por duas vezes — Que maneiras! É hábito em Marselha os filhos fazerem o pai esperar na antecâmara?
— Meu pai! — exclamou Villefort — Não me enganei... já calculava que fosse o senhor.
— Então, se já esperavas que fosse eu — perguntou o recém-chegado, pousando a bengala num canto e o chapéu numa cadeira — Permita-me que te diga, meu caro Gerard, que não é muito amável da tua parte me fazer esperar assim.
— Deixe-nos, Germain — disse Villefort.
O criado saiu dando sinais visíveis de espanto.





 continua...





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