domingo, 31 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 35


XXXV

A “MAZZOLATA”




— Senhores — disse ao entrar o Conde de Monte Cristo — Aceitem as minhas maiores desculpas por não me ter antecipado, mas receei ser indiscreto se me apresentasse tão cedo nos seus aposentos. Aliás, mandaram-me dizer que viriam e por isso estou à disposição de ambos.
— Franz e eu temos de lhe apresentar mil agradecimentos, Sr. Conde — disse Albert — Tirou-nos realmente de um grande apuro e estávamos em vias de inventar os veículos mais fantásticos no momento em que recebemos o seu amável convite.
— Meu Deus, senhores — perguntou o conde, fazendo sinal aos dois rapazes para se sentarem no sofá — Só por culpa do imbecil do Pastrini os deixei tanto tempo em dificuldades! Não me disse nada acerca do embaraço em que se encontravam, a mim que, sozinho e isolado como estou aqui, apenas procurava uma oportunidade de estabelecer relações com os meus vizinhos. Logo que soube que lhes podia ser útil em qualquer coisa, bem viram com que alvoroço, aproveitei essa oportunidade para lhes apresentar os meus cumprimentos.
Os dois jovens inclinaram-se. Franz ainda não encontrara uma única palavra para dizer. Ainda não tomara nenhuma resolução e, como nada indicava no Conde o seu desejo de o reconhecer ou de ser reconhecido por ele, não sabia se devia, com qualquer palavra, aludir ao passado ou deixar ao futuro o cuidado de lhe fornecer novas provas. De resto, embora estivesse certo de que era ele quem se encontrava na véspera no camarote, não podia responder tão positivamente quanto a ser ele o homem que na antevéspera estivera no Coliseu. Resolveu, portanto deixar correr o marfim, como se costuma dizer, sem dirigir ao Conde qualquer pergunta direta. Aliás, tinha uma vantagem sobre ele, era senhor do seu segredo, ao passo que, pelo contrário, o Conde não podia exercer qualquer ação sobre Franz, que não tinha nada a esconder.
Em todo o caso resolveu encaminhar a conversa para um ponto que podia, mesmo assim, conduzir sempre ao esclarecimento de certas dúvidas.
— O Sr. Conde — disse — Ofereceu-nos lugares na sua carruagem e nas suas janelas do Palácio Rospoli. Poder dizer-nos agora como nos será possível arranjar um posto qualquer, como se diz na Itália, na Praça del Popolo?
— Ah, sim, é verdade! — exclamou o Conde com ar distraído e olhando Morcerf com muita atenção — Não há na Praça del Popolo qualquer coisa como uma execução?
— Há — respondeu Franz, vendo que ele vinha por si mesmo aonde o queria trazer.
— Espere, espere... creio ter dito ontem ao meu intendente para tratar disso. Talvez possa prestar-lhes também esse pequeno serviço.
Estendeu a mão para um cordão de campainha e puxou-o três vezes.
— Nunca se preocupou — disse a Franz — Com o emprego do tempo e o meio de simplificar as idas e vindas dos criados? Fiz um estudo disso. Quando toco uma vez é para o meu criado de quarto; duas vezes, é para o meu mordomo; três vezes, é para o meu intendente. Assim, não perco nem um minuto, nem uma palavra. Cá está o nosso homem.
Viu-se então entrar um indivíduo de quarenta e cinco a cinqüenta anos, que pareceu a Franz assemelhar-se como duas gotas de água com o contrabandista que o introduzira na gruta, mas que não pareceu reconhecê-lo por nada deste mundo. Pelo visto, fora avisado.
— Sr. Bertuccio — perguntou o Conde — Tratou, como lhe ordenei ontem, de me arranjar uma janela na Praça del Popolo?
— Tratei, sim, Excelência — respondeu o intendente — Mas era muito tarde...
— Como, não lhe tinha dito que queria uma? — indagou o Conde, franzindo o sobrolho.
— E Vossa Excelência tem uma, a que estava alugada ao Príncipe Lobanieff. Mas tive de pagar por cento...
— Está bem, está bem, Sr. Bertuccio, poupe a estes senhores a todos esses pormenores domésticos. Arranjou a janela, não arranjou? Pois nada mais é preciso. Dê o endereço da casa ao cocheiro e este já na escada para nos acompanhar. Não é preciso mais nada. Vá.
O intendente cumprimentou e deu um passo para se retirar.
— Ah! — deteve-o o Conde — Faça-me o favor de perguntar a Pastrini se recebeu a tavoletta e me quer enviar o programa da execução.
— É inútil — interveio Franz, tirando a sua agenda da algibeira — Vi esses cartazes, copiei-os e tenho-os aqui.
— Muito bem. Então, Sr. Bertuccio, pode-se retirar, não preciso mais de si. Previnam-nos apenas quando o pequeno almoço estiver servido. Estes senhores — continuou, virando-se para os dois amigos — Dão-me a honra de tomar o pequeno almoço comigo, não é verdade?
— Mas, Sr. Conde, na verdade seria abusar — protestou Albert.
— Não, antes pelo contrário, dar-me o grande prazer. Retribuir-me o tudo isto um dia, em Paris, um ou outro e talvez ambos. Sr. Bertuccio, mande pôr três talheres.
Tirou a agenda das mãos de Franz.
— Dizem, portanto — continuou no tom de quem lê os pequenos anúncios — Que... “serão executados hoje, 12 de Fevereiro, o réu Andrea Rondolo, culpado de assassínio na pessoa respeitabilíssima e veneradíssima de D. César Terlini, cônego da Igreja de São João de Latrão, e o réu Peppino, também conhecido por Rocca Priori, culpado de cumplicidade com o detestável bandido Luigi Vampa e os homens da sua quadrilha...” Hum!... “O primeiro será mazzolato e o segundo decapitado”. Sim, com efeito — prosseguiu o Conde — Era de fato assim que as coisas se deviam passar primitivamente; mas parece-me que desde ontem houve qualquer alteração na ordem e na seqüência da cerimônia.
— Sim? — observou Franz.
— Sim. Ontem, em casa do Cardeal Rospigliosi, onde passei a noite, falava-se de qualquer coisa como um adiamento concedido a um dos dois condenados.
— A Andrea Rondolo? — perguntou Franz.
— Não... — perguntou negligentemente o Conde — Ao outro... — deitou uma olhadela à agenda, como que para se recordar do nome —... A Peppino, por alcunha Rocca Priori. Isso priva-os de uma guilhotinadela, mas resta-lhes a mazzolata, que é um suplício deveras curioso quando se vê pela primeira vez e mesmo pela segunda, ao passo que o outro, que aliás devem conhecer, é muito simples, muito rápido, e sem nada de inesperado. A mandaça nunca falha, não treme, não, fere em falso, não obriga a tentar trinta vezes, como aconteceu ao soldado encarregado de cortar a cabeça ao conde de Chalais, e ao qual, de resto, Richelieu, talvez tivesse recomendado o paciente. Mas deixemo-nos disto — acrescentou o Conde em tom desdenhoso — Não me falem dos Europeus no tocante a suplícios; não percebem nada disso e encontram-se verdadeiramente na infância, ou antes, na velhice da crueldade.
— Na verdade, Sr. Conde — observou Franz — Dir-se-ia que fez um estudo comparado dos suplícios entre os diversos povos do mundo.
— Pelo menos há poucos que não tenha visto — respondeu friamente o Conde.
— E encontrou prazer em assistir a esses horríveis espetáculos?
— A minha primeira sensação foi de repulsa, a segunda de indiferença e a terceira de curiosidade.
— Curiosidade! A palavra é terrível, não acha?
— Por quê? Na vida há apenas uma preocupação grave: a morte. Pois bem, não seria curioso estudar de que formas diferentes a alma pode sair do corpo e como, segundo os caracteres, os temperamentos e até os costumes do país, os indivíduos suportam essa suprema passagem do ser para o nada? Quanto a mim, respondo-lhe uma coisa: quanto mais vemos morrer, mais fácil se toma morrer. Assim, na minha opinião, a morte é talvez um suplício, mas não é uma expiação.
— Não o compreendo bem — confessou Franz — Explique-se, pois tenho dificuldade em dizer-lhe até que ponto as suas palavras espicaçaram a minha curiosidade.
— Escute — disse o Conde, e o seu rosto encheu-se de rancor como o de qualquer outra pessoa se coloraria de sangue — Se um homem tivesse feito perecer por meio de torturas inauditas, no meio de tormentos sem fim, o seu pai, a sua mãe, a sua noiva, um desses seres, enfim, que quando os desenraizam do nosso coração deixam nele um vazio eterno e uma chaga sempre sangrenta, consideraria a reparação que lhe concedesse a sociedade suficiente, só porque o cutelo da guilhotina passou entre a base occipital e os músculos trapézios do assassino e porque este que o fez passar anos de sofrimentos morais, experimentou alguns segundos de dor física?
— Sim, bem sei que a justiça humana é insuficiente como confortadora — admitiu Franz — Só pode verter o sangue em troca do sangue, e mais nada. Mas temos de nos contentar com o que ela pode e não com outra coisa.
— Vejamos um caso material — prosseguiu o Conde — Aquele em que a sociedade, ferida pela morte de um indivíduo, na base em que assenta, vinga a morte com a morte. Mas não há milhões de dores em que as entranhas do homem podem ser dilaceradas sem que a sociedade se preocupe minimamente com isso, sem que lhe ofereça o meio insuficiente de vingança de que falamos há pouco? Não há crimes para os quais o empalamento dos Turcos, os alcatruzes dos Persas e os látegos dos Iroqueses seriam suplícios demasiado suaves e que, no entanto a sociedade, indiferente, deixa sem castigo?... Responda, não há crimes assim?
— Há — concordou Franz — E é para os punir que o duelo é tolerado.
— Ah, o duelo!... — exclamou o Conde — Curiosa maneira, palavra, de alcançar um fim, quando o fim é a vingança! Um homem rouba-lhe a amante, seduz-lhe a mulher, desonra-lhe a filha. De uma vida inteira que tinha o direito de esperar de Deus a parte de felicidade por Ele prometida a todo o ser humano ao criá-lo, esse homem fez uma existência de dor, miséria ou infâmia, e o senhor considera-se vingado infligindo-lhe, a um homem que lhe introduzi o delírio no espírito e o desespero no coração, uma estocada no peito ou metendo-lhe uma bala na cabeça? Ora adeus! Sem contar que muitas vezes é ele que sai triunfante da luta, limpo aos olhos do mundo e de certo modo absolvido por Deus. Não, não — continuou o Conde — Se alguma vez tivesse de me vingar, não seria assim que me vingaria.
— Portanto, desaprova o duelo? Portanto, não se bateria em duelo? — perguntou por sua vez Albert, atônito por ouvir em emitir tão estranha teoria.
— Oh, claro que me bateria! — respondeu o Conde — Entendamo-nos: me bateria em duelo por uma miséria, por um insulto, por um desmentido, por uma bofetada, e isso com tanta mais despreocupação quanto é certo que, graças à experiência que adquiri de todos os exercícios do corpo e ao lento hábito que também adquiri do perigo, teria quase a certeza de matar o meu homem. Oh, claro que me bateria em duelo por tudo isso! Mas por um sofrimento lento, profundo, infinito, eterno, infligiria, se me fosse possível um sofrimento idêntico ao que me tivessem causado: olho por olho, dente por dente, como dizem os orientais, nossos mestres em todas as coisas, esses eleitos da criação que souberam criar para si uma vida de sonhos e um paraíso de realidades.
— Mas — observou Franz ao Conde — Com essa teoria que o constitui juiz e carrasco na sua própria causa, seria difícil que se contivesse numa medida que lhe permitisse escapar eternamente ao poder da lei. O ódio é cego, a cólera desorienta, e aquele que serve a si próprio a vingança arrisca-se a beber uma beberagem amarga.
— Sim, se é pobre e inexperiente; não, se é milionário e hábil. Aliás, o pior que lhe pode acontecer é o último suplício de que falamos há pouco, aquele que a filantrópica Revolução Francesa inventou para substituir o esquartejamento e a roda. Mas que significa o suplício se estiver vingado? Na verdade, sinto-me quase decepcionado por, segundo todas as probabilidades, esse miserável Peppino não ser decapitado, como eles dizem, pois se o fosse veriam como a execução é rápida e se realmente vale a pena perder tempo falando respeito. Mas agora reparo, meus senhores, que escolhemos uma conversa deveras singular para um dia de carnaval. Como aconteceu tal coisa? Ah, já me lembro! Pediram-me um lugar à minha janela. Pois bem, seja, o terão. Mas sentemo-nos primeiro à mesa, pois vêm anunciar-nos que estamos servidos.
Com efeito um criado abriu uma das quatro portas da sala e proferiu as palavras sacramentais:
— Al suo commodo!
Os dois jovens levantaram-se e passaram à sala de jantar. Durante o café da manhã, excelente e servido com infinito requinte, Franz procurou com a vista os olhos de Albert, a fim de ler neles a impressão que sem dúvida produzira nele as palavras do seu anfitrião. Mas quer porque na sua despreocupação habitual lhes não tivesse prestado grande atenção, quer porque a concessão que o Conde de Monte Cristo lhe fizera a propósito do duelo o tivesse reconciliado com ele, quer finalmente porque os antecedentes que relatamos, apenas conhecidos de Franz, tivessem duplicado só para si o efeito das teorias do Conde, não notou que o companheiro estivesse de modo algum preocupado. Muito pelo contrário, fazia honra à refeição como homem condenado havia quatro ou cinco meses à cozinha italiana, isto é, a uma das piores cozinhas do mundo. Quanto ao Conde, mal tocava em cada prato. Dir-se-ia que ao sentar-se à mesa com os seus convivas cumpria um mero dever de cortesia e que esperava que se fossem embora para se mandar servir alguma iguaria estranha ou especial.
Malgrado seu, o caso lembrava a Franz o terror que o Conde inspirara à condessa G... e a convicção em que a deixara de que o Conde, o homem que lhe mostrara no camarote fronteiro ao dela, era um vampiro.
No fim do café da manhã, Franz puxou o relógio.
— Estão assim com tanta pressa? — perguntou-lhe o Conde.
— Queira desculpar-nos, Sr. Conde — respondeu Franz — Mas temos ainda de fazer mil coisas.
— O quê?
— Não temos máscaras e hoje as máscaras são obrigatórias.
— Não percam tempo com isso. Temos, segundo creio, um quarto particular na Praça del Popolo. Mandarei levar para lá os trajes que se dignarem indicar-me e nos mascararemos imediatamente.
— Depois da execução? — perguntou Franz.
— Sem dúvida. Depois, durante, ou antes, como quiserem.
— Diante do cadafalso?
— O cadafalso faz parte da festa.
— Desculpe, Sr. Conde, mas pensei melhor — perguntou Franz — Decididamente, agradeço-lhe a sua amabilidade, mas me contentarei com um lugar na sua carruagem e outro à janela do Palácio Rospoli, e o deixarei livre, para dispor dele como entender, o meu lugar à janela da Praça del Popolo.
— Mas assim perde, previno-o, uma coisa deveras curiosa — contrapôs o Conde.
— O senhor me contará — insistiu Franz — E estou convencido de que pela sua boca o relato me impressionará quase tanto como a vista. De resto, já por mais de uma vez quis assistir a uma execução e nunca fui capaz. E você, Albert?
— Eu — respondeu o visconde — Vi executar Castaing. Mas creio que estava um bocadinho alegre nesse dia. Foi no dia da minha saída do colégio e tínhamos passado a noite não sei em que botequim.
— Aliás, o fato de não ter feito uma coisa em Paris não é razão para que a não faça no estrangeiro. Quando viajamos, é para nos instruirmos; quando mudamos de terra, é para ver. Lembre-se, portanto do rosto que fará quando lhe perguntarem: “Como são as execuções em Roma?”. E tiver de responder: “Não sei”. Além disso, consta que o condenado é um refinado patife, um velhaco que matou a golpes de cão de chaminé um bom cônego que o criara como filho. Que diabo, quando se assassina um sacerdote escolhe-se arma mais conveniente do que um cão de chaminé, sobretudo quando o sacerdote é talvez nosso pai. Se viajasse pela Espanha iria assistir às touradas, não é verdade? Pois bem, suponha que vamos ver uma tourada. Lembre-se dos antigos romanos do circo, das caçadas onde se matavam trezentos leões e uma centena de homens. Lembre-se dos oitenta mil espectadores que batiam palmas, das sensatas matronas que levavam as filhas casadouras e das encantadoras vestais de mãos brancas que faziam com o polegar um não menos encantador sinalzinho que significava: “Vamos, nada de moleza! Acabem com esse homem que já está há três quartos morto”.
— Vamos, Albert? — perguntou Franz.
— Claro que sim, meu caro! Estava como você, mas a eloqüência do Conde me fez decidir.
— Vamos, mas porque você quer — salientou Franz — Mas no caminho para a Praça del Popolo desejava passar pela Rua do Corso. Será possível. Sr. Conde?
— A pé, sim; de carruagem, não.
— Então, irei a pé.
— É assim tão necessário passar pela Rua do Corso?
— É. Quero ver uma coisa.
— Nesse caso, passaremos pela Rua do Corso. Mandaremos a carruagem pela Estrada del Babuino esperar-nos na Praça del Popolo. De resto, também não me importo de passar pela Rua do Corso para ver se umas ordens que dei foram cumpridas.
— Excelência — disse o criado abrindo a porta — Um homem vestido de penitente pede para vos falar.
— Ah, sim, sei do que se trata! — disse o Conde — Meus senhores, dignem-se passar novamente à sala onde encontrarão na mesa do centro excelentes charutos de Havana. Irei ter convosco dentro de instantes.
Os dois jovens levantaram-se e saíram por uma porta, enquanto o Conde, depois de lhes renovar as suas desculpas, saía por outra.
Albert que era um grande apreciador de charutos e que desde que estava na Itália não considerava pequeno sacrifício estar privado dos charutos do Café de Paris, aproximou-se da mesa e soltou um grito de alegria ao ver autênticos puros.
— Então, que pensa do Conde de Monte Cristo? — perguntou-lhe Franz.
— Que penso? — disse Albert, visivelmente surpreendido pelo companheiro lhe fazer semelhante pergunta — Penso que é um homem encantador, que faz maravilhosamente as honras da sua casa, que viu, estudou e refletiu muito, que é, como Bruto, da escola estóica, e — acrescentou, soltando amorosamente uma baforada de fumo que subiu em espiral para o teto — Que além de tudo isso possui excelentes charutos.
Era esta a opinião de Albert acerca do Conde. Ora, como Franz sabia que Albert tinha a pretensão de não ter opinião a respeito dos homens e das coisas senão depois de madura reflexão, não tentou modificar-lha. No entanto, perguntou-lhe:
— Não notou uma coisa singular?
— O quê?
— A atenção com que o olhava.
— A mim?
— Sim, a você.
Albert refletiu.
— Oh, não há nada de estranho nisso! — perguntou, suspirando — Há cerca de um ano que estou ausente de Paris e as minhas casacas devem estar fora de moda. O Conde deve ter-me tomado por um provinciano. Desengane-o, caro amigo, e diga-lhe, peço-lhe, na primeira oportunidade, que isso não é verdade.
Franz sorriu. Um instante depois o Conde regressou.
— Cá estou, senhores, e inteiramente à sua disposição — disse — As ordens estão dadas: a carruagem segue para a Praça del Popolo e nós, se estão de acordo, seguimos para a Rua do Corso. Tire alguns desses charutos, Sr. de Morcerf.
— Aceito, palavra, com grande prazer — disse Albert — Porque os charutos italianos são ainda piores do que os da fábrica do Estado, na França. Quando for a Paris lhe retribuirei tudo isto.
— E eu não recusarei. Espero ir lá qualquer dia e, uma vez que me permitir, irei bater-lhe à porta. E agora vamos, meus senhores, vamos porque não temos tempo a perder. É meio-dia e meia hora, partamos.
Desceram os três. O cocheiro recebeu as últimas ordens do amo e seguiu pela Via del Babuino, enquanto eles subiam a pé a Praça de Espanha e a Via Frattina, que os levava direitos aos palácios Fiano e Rospoli.
Toda a atenção de Franz se concentrou nas janelas deste último palácio. Não esquecera o sinal convencionado no Coliseu entre o homem da capa e o trasteveriano.
— Quais são as suas janelas? — perguntou ao Conde no tom mais natural que conseguiu arranjar.
— As três últimas — respondeu ele com uma negligência que não tinha nada de afetada, pois não podia adivinhar com que fim lhe faziam a pergunta.
Franz olhou rapidamente para as três janelas. As janelas laterais estavam forradas de damasco amarelo e a do meio de damasco branco com uma cruz vermelha.
O homem da capa cumprira a palavra que dera ao trasteveriano e já não havia dúvida: o homem da capa era o Conde. As três janelas encontravam-se ainda vazias.
De resto, por todos os lados se faziam preparativos. Colocavam-se cadeiras, erguiam-se bancadas, forravam-se janelas. As máscaras não podiam aparecer nem as carruagens circular senão ao toque do sino; mas adivinhavam-se as máscaras atrás de todas as janelas e as carruagens atrás de todas as portas.
Franz, Albert e o Conde continuaram a descer a Rua do Corso. À medida que se aproximavam da Praça del Popolo a multidão tornava-se mais densa e por cima das cabeças dessa multidão erguiam-se duas coisas: o obelisco encimado por uma cruz que indica o centro da Praça e, à frente do obelisco, precisamente no ponto de correspondência visual das três ruas do Babuino, do Corso e da Ripetta, as duas traves principais do cadafalso, entre as quais brilhava o cutelo arredondado da mandaça. Na esquina da rua encontrava-se o intendente do Conde, à espera do amo.
A janela alugada pelo preço exorbitante de que o Conde não quisera que os seus convidados tomassem conhecimento pertencia ao segundo andar do grande palácio situado entre a Rua do Babuino e o monte Píncio. Era, como dissemos, a janela de uma espécie de gabinete de vestir que dava para um quarto de dormir, os ocupantes do gabinete estavam como que em sua casa. Em cima das cadeiras viam-se trajes de palhaço, de cetim branco e azul, dos mais elegantes.
— Como me deixaram a escolha das máscaras — disse o Conde aos dois amigos — Mandei arranjar-lhes estas. Primeiro, porque são as mais em moda este ano; depois, por serem as mais cômodas para os confeti, atendendo a que a farinha se não vê.
Franz só muito imperfeitamente ouvia as palavras do Conde e por isso talvez não tenha apreciado no seu justo valor aquela nova amabilidade. A verdade é que toda a sua atenção estava concentrada no espetáculo que oferecia a Praça del Popolo e no instrumento terrível que naquela altura era o seu principal ornamento.
Era a primeira vez que Franz via uma guilhotina. Dizemos guilhotina porque a mandaça romana‚ talhada mais ou menos pelo mesmo padrão do nosso instrumento de morte. A única diferença reside no fato de o cutelo, que tem a forma de uma lua crescente e corta com a parte convexa, cair de menos alto.
Dois homens, sentados na prancha basculante onde se deita o condenado, almoçavam enquanto esperavam e comiam, tanto quanto Franz pode ver, pão e salsichas. Um deles levantou a prancha, tirou uma garrafa de vinho, bebeu um gole e passou a garrafa ao camarada. Aqueles dois homens eram os ajudantes do carrasco! Bastou o seu aspecto para que Franz sentisse o suor molhar-lhe a raiz dos cabelos.
Os condenados, transportados na véspera dos Carceri Nuove para a pequena Igreja de Santa Maria del Popolo, tinham passado a noite, assistidos cada um por dois padres, numa câmara-ardente gradeada, diante da qual passeavam sentinelas rendidas de hora a hora.
Duas alas de carabineiros colocadas de cada lado da porta da igreja estendia-se até ao cadafalso, à volta do qual formavam círculos, deixando livre um caminho de dez pés de largura, aproximadamente, e à roda da guilhotina um espaço de uma centena de passos de circunferência. Todo o resto da praça era um mar de cabeças de homem e mulher. Muitas das mulheres tinham os filhos às cavalitas. Essas crianças, cujo corpo ultrapassava a multidão, estavam admiravelmente colocadas.
O monte Píncio parecia um vasto anfiteatro em que todos os degraus estivessem carregados de espectadores. As varandas das duas igrejas que fazem esquina para a Rua do Babuino e para a Rua da Ripetta regurgitavam de curiosos privilegiados e os degraus dos peristilos lembravam uma torrente movediça e colorida que um mar‚ incessante empurrasse para o pórtico. Cada saliência da parede capaz de suportar um homem tinha a sua estátua viva.
O que o Conde dizia era, portanto verdade: o que existe de mais curioso na vida é o espetáculo da morte. E, no entanto, em vez do silêncio que deveria presidir à solenidade do espetáculo, saía da multidão um barulho ensurdecedor composto por risos, chamamentos e gritos alegres. Era também evidente, como dissera o Conde, que a execução não significava para toda aquela gente mais do que o início do Carnaval.
De súbito, o barulho cessou como que por encanto. Acabava de se abrir a porta da igreja.
Uma confraria de penitentes em que todos os membros envergavam uma espécie de saco cinzento apenas com aberturas nos olhos e empunhavam uma vela acesa, apareceu em primeiro lugar. O chefe da confraria vinha à frente.
Atrás dos penitentes vinha um homem alto. Esse homem estava nu, com exceção de umas ceroulas de pano do lado esquerdo das quais trazia presa uma grande faca embainhada. No ombro direito carregava uma pesada maça de ferro.
Aquele homem era o carrasco.
Além disso, calçava sandálias presas por cordas às canelas.
Atrás do carrasco caminhavam, pela ordem em que deviam ser executados, primeiro Peppino e depois Andrea. Cada um vinha acompanhado por dois padres. Nem um nem outro traziam os olhos vendados. Peppino caminhava com passo bastante firme. Sem dúvida fora avisado do que se preparava para si. Andrea era amparado por cada braço por um padre. Ambos beijavam de vez em quando o crucifixo que lhes apresentava o confessor. Mal viu aquele aparato, Franz sentiu as pernas fraquejarem-lhe. Olhou para Albert. Estava pálido como a sua camisa e num gesto maquinal atirou para longe o charuto, embora só tivesse fumado metade.
Apenas o Conde parecia impassível. Mais, uma leve coloração rosada parecia querer sobrepor-se à palidez lívida das suas faces. O nariz dilatava-se-lhe como o da fera que fareja sangue, e os seus lábios, ligeiramente afastados, deixavam ver os seus dentes brancos, pequenos e aguçados como os de um chacal. E, no entanto, apesar de tudo isso, o seu rosto tinha uma expressão de doçura sorridente que Franz nunca lhe vira. Os seus olhos negros, sobretudo, estavam admiráveis de mansidão e suavidade.
Entretanto, os dois condenados continuavam a dirigir-se para o cadafalso, e à medida que avançavam podiam distinguir-se-lhes as feições. Peppino era um belo moço de vinte e quatro a vinte e seis anos, de pele queimada pelo sol e olhar ousado e bravio. Vinha de cabeça levantada e parecia farejar o vento para ver de que lado lhe viria o seu libertador.
Andrea era gordo e baixo. O seu rosto, repugnantemente cruel, não indicava idade. Podia, no entanto contar trinta anos, pouco mais ou menos. Deixara crescer a barba na prisão. Inclinava a cabeça sobre um dos ombros e as pernas dobravam-se-lhe debaixo dele. Todo o seu ser parecia obedecer a um movimento maquinal, no qual a sua vontade já não intervinha.
— Parece-me — disse Franz ao Conde — Que me anunciara que só haveria uma execução.
— E disse-lhe a verdade — respondeu o Conde, friamente.
— No entanto, estão ali dois condenados...
— Pois estão. Mas desses dois condenados um morrerá e o outro terá ainda longos anos de vida.
— Parece-me que se o perdão deve vir, não há tempo a perder.
— Por isso aí vem. Veja — perguntou o Conde.
Com efeito, no momento em que Peppino chegava ao pé da mandala, um penitente que parecia vir atrasado passou através da ala sem que os soldados lhe impedissem a passagem, dirigiu-se ao chefe da confraria e entregou-lhe um papel dobrado em quatro.
O olhar ardente de Peppino não perdera nenhum destes pormenores.
O chefe da confraria desdobrou o papel, leu-o e levantou a mão.
— O Senhor seja bendito e Sua Santidade seja louvado! — disse em voz alta e inteligível — Há perdão da vida para um dos condenados.
— Perdão! — gritou o povo em uníssono — Há perdão!
Ao ouvir a palavra “perdão”, Andrea pareceu saltar e levantou a cabeça.
— Perdão para quem? — gritou.
Peppino ficou imóvel, mudo e arquejante.
— Há perdão da pena de morte para Peppino, também conhecido por Rocca Priori — respondeu o chefe da confraria.
E passou o papel ao capitão que comandava os carabineiros, o qual, depois de ler, o restituiu.
— Perdão para Peppino! — gritou Andrea, inteiramente fora do estado de torpor em que parecia mergulhado — Porquê perdão para ele e não para mim? Devíamos morrer juntos. Tinham-me prometido que ele morreria antes de mim e não têm o direito de me fazer morrer sozinho. Não quero morrer sozinho, não quero!
E arrancou-se dos braços dos dois padres, contorcendo-se, gritando, rugindo, fazendo esforços insensatos para quebrar as cordas que lhe prendiam as mãos. O carrasco fez sinal aos seus dois ajudantes, que saltaram do cadafalso e vieram apoderar-se do condenado.
— Que se passa? — perguntou Franz ao Conde.
Porque como aquilo decorria em dialeto romano, não compreendera muito bem.
— Que se passa? — respondeu o Conde — Não compreende bem? Passa-se que aquela criatura humana que vai morrer está furiosa por o seu semelhante não morrer com ela, e se a deixassem à vontade o despedaçaria com as unhas e com os dentes em vez de o deixar gozar a vida de que ela vai ser privada. Oh, homens, homens, raça de crocodilos, como diz Karl Moor — gritou o Conde, estendendo os punhos para toda aquela multidão — Como vos reconheço bem aí e como sois sempre bem dignos de vós próprios!
Com efeito, Andrea e os dois ajudantes do carrasco rolavam pelo chão, com o condenado sempre gritando:
Ele deve morrer, quero que ele morra! Não têm o direito de me matar sozinho!
— Vejam, vejam — continuou o Conde, agarrando cada um dos dois jovens pela mão — Vejam porque, pela minha alma, é curioso. Eis um homem que estava resignado com a sua morte, que caminhava para o cadafalso, que ia morrer como um covarde, é certo, mas enfim, ia morrer sem resistência e sem recriminações. Sabem o que lhe dava alguma coragem? Sabem o que o consolava? Sabem o que o levava a aceitar o seu suplício com resignação? O fato de outro compartilhar a sua angústia, de outro morrer com ele, de outro morrer antes dele! Levem dois carneiros ou dois bois ao matadouro e façam compreender a um deles que o companheiro não morrerá. O carneiro balirá e o boi mugirá de alegria. Mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem; o homem a quem Deus impôs como primeira, única e suprema lei o amor ao próximo; o homem a quem Deus deu voz para exprimir o seu pensamento, qual é o seu primeiro grito quando sabe que o seu camarada está salvo? Uma blasfêmia. Honra ao homem, essa obra-prima da Natureza, esse rei da Criação!
E o Conde desatou a rir, mas com um riso terrível, que indicava que devia ter sofrido horrivelmente para chegar a rir assim.
Entretanto a luta continuava e era de horrível vê-la. Os dois ajudantes transportavam Andrea para o cadafalso. Todo o povo tomara partido contra ele e vinte mil vozes gritavam em uníssono: “À morte! à morte!”
Franz recuou, mas o Conde pegou-lhe no braço e reteve-o diante da janela.
— Que faz? — perguntou-lhe — Piedade? Não há dúvida que está bem aplicada! Se ouvisse gritar que andava um cão raivoso à solta, pegaria na sua espingarda, correria para a rua e mataria sem misericórdia, à queima-roupa, o pobre animal, que no fim de contas não seria culpado de ter sido mordido por outro cão e de fazer o que lhe fizeram; mas tem piedade de um homem que nenhum outro homem mordeu e que, no entanto, assassinou o seu benfeitor, e que, não podemos agora matar porque tem as mãos amarradas, quer à viva força ver morrer seu companheiro de cativeiro, o seu companheiro de infortúnio! Não, não! Veja, veja!
A recomendação tornara-se quase inútil, pois Franz estava como fascinado pelo horrível espetáculo. Os dois ajudantes tinham conduzido o condenado para o cadafalso e aí, apesar dos seus esforços, das suas mordidelas e dos seus gritos, tinham-no obrigado a se ajoelhar. Entretanto, o carrasco pusera-se de lado e com a maça preparada. Então, a um sinal, os dois ajudantes afastaram-se. O condenado quis levantar-se, mas antes que tivesse tempo de fazê-lo a maça abateu-se sobre a têmpora esquerda. Ouviu-se um ruído abafado e seco, o paciente caiu como um boi, de cara contra o chão, e depois, bruscamente virou-se de costas.
Então o carrasco deixou cair a maça, tirou a faca da cintura e de um só golpe abriu-lhe a garganta, subiu-lhe imediatamente para a barriga e pôs-se a pisar nela com os pés. A cada pressão saía do pescoço do condenado um jato de sangue.
Desta vez, Franz não agüentou mais. Recuou e foi cair numa poltrona meio desmaiado.
Albert ficou de pé, com os olhos fechados e agarrado às cortinas da janela.
O Conde estava de pé e triunfante como o anjo mau.






  
 continua...


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 "A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer." (Thomas Hardy)

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