terça-feira, 5 de julho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 12


XII

PAI E FILHO




O
 Sr. Noirtier, porque era efetivamente ele próprio quem acabava de entrar, seguiu com a vista o criado até ele fechar a porta. Depois, receando sem dúvida que escutasse na antecâmara, foi atrás dele abrir a porta. A precaução não se revelou inútil, pois a rapidez com que mestre Germain se retirou provou que não estava de modo algum isento do pecado que perdeu os nossos primeiros pais.
O Sr. Noirtier deu-se então ao incômodo de ir ele próprio fechar a porta da antecâmara, tornou a fechar a do quarto de cama, correu os ferrolhos e estendeu novamente a mão a Villefort, que seguira todos estes movimentos com uma surpresa de que ainda se não recompusera.
— Demônio, sabes, meu caro Gerard — disse ao jovem, fitando-o com um sorriso cuja expressão era muito difícil de definir — Que não parece estar satisfeito por me ver?
— Claro, meu pai — respondeu Villefort — Que estou encantado. Mas estava tão longe de esperar a sua visita que me deixou um pouco surpreendido.
— Mas, meu caro amigo — prosseguiu o Sr. Noirtier sentando-se — Parece-me que te poderia dizer outro tanto. Como! Me anuncia o seu noivado em Marselha para 28 de Fevereiro e em 3 de Março está em Paris?
— Não se queixe por estar aqui, meu pai — disse Gerard aproximando-se do Sr. Noirtier — Pois foi por sua causa que vim e talvez esta viagem o salve.
— Deveras? — perguntou o Sr. Noirtier recostando-se indolentemente na poltrona onde estava sentado — Deveras? Conte-me isso, Sr. Magistrado, que deve ser curioso.
— Meu pai, já ouviu falar de certo clube bonapartista situado na Rua Saint-Jacques?
— Número 53? Já e até sou seu vice-presidente.
— Meu pai, o seu sangue-frio arrepia-me.
— Que quer, meu caro, quando se foi proscrito pelos montanheses, se saiu de Paris numa carroça de feno e se foi perseguido nas charnecas de Bordéus pelos esbirros de Robespierre, habituamo-nos a muitas coisas. Continue. Que aconteceu nesse clube da Rua Saint-Jacques?
— O que aconteceu foi que chamaram lá o General Quesnel e que o General Quesnel saiu às nove horas da noite de casa e foi encontrado dois dias depois no Sena.
— Quem te contou essa bonita história?
— O próprio rei, senhor.
— Pois em troca da tua história — continuou Noirtier — Vou te dar uma notícia.
— Meu pai, julgo saber já o que me vai dizer.
— Oh! Já sabe do desembarque da Sua Majestade o imperador?
— Silêncio, meu pai, suplico-lhe, primeiro por si e depois por mim. Sim, já sabia dessa notícia e até a soube primeiro do que o senhor. Há três dias que percorro a galope o caminho de Marselha a Paris, com a raiva de não poder lançar duzentas léguas à minha frente o pensamento que me queima o cérebro.
— Há três dias! Está louco? Há três dias o Imperador ainda não tinha embarcado!
— Não importa, eu sabia do projeto.
— Como?
— Por uma carta dirigida ao senhor vinda da Ilha de Elba.
— A mim?
— A você, e que encontrei na carteira do portador. Se essa carta tivesse caído nas mãos doutro, a esta hora, meu pai, talvez já estivesse fuzilado.
O pai de Villefort desatou a rir.
— Vamos, vamos... — disse — Parece que a Restauração aprendeu com o Império a forma de resolver rapidamente as coisas... fuzilado! Como vai depressa, meu caro! E essa carta onde está? Conheço-te demasiado para temer que a tenha deixado por aí.
— Queimei-a para que não restasse dela um único fragmento. Porque essa carta era a sua condenação.
— E a perda do teu futuro — respondeu friamente Noirtier — Sim, compreendo. Mas não tenho nada a temer, visto você me proteger.
— Faço mais do que isso, senhor: salvo-o.
— Oh, diabo, o caso está tornando-se dramático? Explique-se.
— Voltemos a esse clube da Rua Saint-Jacques, senhor.
— Parece que esse clube preocupa muito os senhores da Polícia. Porque o não procuraram melhor? O teriam encontrado.
— Não o encontraram, mas estão no seu rastro.
— E a frase sacramental, já se sabe: quando a Polícia se encontra em apuros, diz que está no rastro e o Governo espera tranquilamente o dia em que ela vem dizer, de orelha murcha, que esse rastro se perdeu.
— Pois sim, mas encontraram um cadáver. O General Quesnel foi assassinado, e em todos os países do mundo isso chama-se crime.
— Assassinado, você diz? Mas nada prova que o general tenha sido assassinado. Todos os dias se encontram pessoas no Sena, umas que se atiraram ao rio por desespero, outras que se afogaram por não saberem nadar.
— Meu pai, sabe muito bem que o general se não afogou por desespero e que ninguém toma banho no Sena em Janeiro. Não, não, não se iluda: essa morte está bem qualificada como assassínio.
— E quem a qualificou assim?
— O próprio rei.
— O rei! Julgava-o suficientemente filósofo para compreender que em política não há assassínio. Em política, meu caro, você sabe tão bem como eu, não há homens, mas sim idéias. Não há sentimentos, mas sim interesses. Em política não se mata um homem, suprime-se apenas um obstáculo, mais nada. Quer saber como as coisas se passaram? Pois bem, vou dizer. Julgávamos poder contar com o General Quesnel; nós o tínhamos recomendado da Ilha de Elba. Um de nós foi a sua casa e convidou-o a assistir na Rua Saint-Jacques a uma reunião onde encontraria amigos. Ele foi e lá revelaram-lhe todo o plano: a partida da Ilha de Elba, o desembarque projetado, etc. Depois de ouvir tudo, de se inteirar de tudo, de não haver mais nada a explicar-lhe, respondeu que era monárquico. Então, todos se entreolharam. Pedem-lhe que jure nada revelar; concorda, mas de tão má vontade, com franqueza, que é de tentar Deus jurar assim. Bom, apesar de tudo deixaram o general sair livre, completamente livre. Se não regressou a casa, que quer que te diga, meu caro? Não há dúvida que saiu de junto de nós. Pode ter se enganado no caminho, simplesmente. Assassínio! Na verdade, surpreende-me, Villefort. Você, Substituto do Procurador Régio, forjar uma acusação sobre tão más provas... nunca me passaria pela cabeça te dizer, quando exerces o teu ofício de monárquico e mandas cortar a cabeça a um dos meus: “Meu filho, cometeste um assassínio!” Não, digo sempre: “Muito bem, senhor, combateste vitoriosamente; nos desforraremos amanhã”.
— Mas, meu pai, acautele-se; essa desforra será terrível quando chegar a nossa vez.
— Não te compreendo.
— Conta com o regresso do usurpador?
— Confesso que conto.
— Engana-se, meu pai. Não penetrará dez léguas dentro da França sem ser perseguido, acossado como uma fera.
— Meu caro amigo, neste momento o Imperador está na estrada de Grenoble, em 10 ou 12 estará em Lion e em 20 ou 25 em Paris.
— As populações vão se sublevar...
— Para irem ao seu encontro.
— Só tem consigo alguns homens e mandarão exércitos contra ele.
— Que o escoltarão para entrar na capital. Na verdade, meu caro Gerard, não passa ainda de uma criança. Vocês julgam-se bem informados porque um telégrafo lhes disse, três dias depois do desembarque: “O usurpador desembarcou em Cannes com alguns homens; vamos em sua perseguição”.  Mas onde está ele? Que faz? A esse respeito vocês não sabem nada. Perseguem-no, é tudo o que sabem. Pois o perseguirão assim até Paris sem queimar uma escorva.
— Grenoble e Lion são cidades fiéis e que lhe oporão uma barreira intransponível.
— Grenoble lhe abrirá as portas com entusiasmo e Lion em peso irá ao seu encontro. Acredite-me, estamos tão bem informados como vocês e a nossa polícia vale bem a vossa. Quer uma prova? Vocês quiseram esconder-me a sua viagem e, no entanto, soube da sua chegada cerca de meia-hora depois de transpor a barreira. Não deste o teu endereço a ninguém, exceto ao teu postilhão, e como vê sabia onde te encontrar, e a prova disso é que chego a tua casa precisamente no momento em que vai se sentar à mesa. Toca, pois, e pede segundo talher; comeremos juntos.
— Com efeito — respondeu Villefort, olhando o pai com surpresa — Com efeito parece-me muito bem informado.
— Mas, meu Deus, não há nada mais simples! Vocês, que detêm o poder, só dispõem dos meios que proporciona o dinheiro; nós, que o esperamos, só temos aqueles que proporciona a dedicação.
— A dedicação? — disse Villefort, rindo.
— Sim, a dedicação. É assim que se chama, em termos honestos, a ambição que espera.
E o pai de Villefort estendeu pessoalmente a mão para o cordão da campainha, a fim de chamar o criado que o filho se não resolvia a chamar.
Villefort deteve-lhe o braço.
— Espere meu pai — disse o jovem — Mais uma palavra.
— Diga.
— Por muito incompetente que seja a Polícia monárquica, sabe, no entanto uma coisa terrível.
— Qual?
— Os sinais do homem que na manhã do dia em que desapareceu o General Quesnel se apresentou em sua casa.
— Ah! Ela sabe isso, essa excelente Polícia? E quais são esses sinais?
— Tez morena, cabelo, suíças e olhos negros, sobrecasaca azul abotoada até ao queixo, roseta de oficial da Legião de Honra na lapela, chapéu de abas largas e bengala de bambu.
— Ah, ah! Ela sabe isso? — comentou Noirtier — Então por que motivo não prendeu esse homem?
— Porque o perdeu de vista ontem ou anteontem à esquina da Rua Coq-Héron.
— Bem te dizia que a vossa Polícia é estúpida.
— Sim, mas pode encontrá-lo de um momento para o outro.
— Claro — concordou Noirtier, olhando despreocupadamente à sua volta — Claro, se esse homem não estivesse precavido, mas está. E — acrescentou sorrindo — Vai mudar de aparência e de traje.
Após estas palavras, levantou-se, tirou a sobrecasaca e a gravata, dirigiu-se para uma mesa na qual estavam preparadas todas as peças do necessário à toilette do filho, pegou numa navalha de barba, ensaboou o rosto e com a mão perfeitamente firme cortou as suíças comprometedoras que davam à Polícia uma pista tão preciosa.
Villefort assistia a tudo com um terror que não era isento de admiração.
Cortadas as suíças, Noirtier deu outro arranjo ao cabelo; pôs, em vez da gravata preta, uma gravata de cor que se via à superfície de uma mala aberta; envergou, em vez da sobrecasaca azul abotoada, uma sobrecasaca de Villefort, castanha e ampla; experimentou diante do espelho o chapéu de abas reviradas do filho, pareceu satisfeito com a maneira como lhe ficava e, deixando a bengala de bambu no canto da chaminé onde a largara, fez silvar na mão nervosa um pingalinzinho com o qual o elegante substituto dava aos seus passos a desenvoltura que era uma das suas principais qualidades.
— Pronto! — disse virando-se para o filho, estupefato, quando esta espécie de metamorfose à vista se consumou — Pronto! Acha que a Polícia me reconhecerá agora?
— Não, meu pai — balbuciou Villefort — Pelo menos assim o espero.
— Agora, meu caro Gerard — continuou Noirtier — Recorro à tua prudência para fazer desaparecer todos os objetos que deixo à sua guarda.
— Oh, esteja tranqüilo, meu pai! — respondeu Villefort.
— Sim, sim! E agora creio que tem razão e que pode, com efeito, ter-me salvado a vida. Mas descansa que te retribuirei o favor proximamente.
Villefort abanou a cabeça.
— Não acredita?
— Espero, pelo menos, que se engane.
— Tornará a ver o rei?
— Talvez.
— Quer passar a seus olhos por um profeta?
— Os profetas da desgraça são mal vistos na corte, meu pai.
— É claro, mas mais dia menos dias far-lhes-ão justiça. E na hipótese de segunda restauração passará por um grande homem.
— Bom, que devo dizer ao rei?
— Diga-lhe isto: “Sir, enganam-no acerca das disposições da França, da opinião das cidades e do espírito do Exército. Aquele que chamam em Paris o Papão da Córsega, a quem chamam ainda o usurpador em Nevers, chama-se já Bonaparte em Lion e Imperador em Grenoble. Julga-o acossado, perseguido, em fuga; ele avança com a rapidez da águia que é o seu símbolo. Os soldados que julga mortos de fome, esmagados de fadiga, prontos a desertar, aumentam como os átomos de neve à volta da bola que se precipita. Sir, parta; abandone a França ao seu verdadeiro senhor, àquele que não a comprou, mas a conquistou. Parta, Sir, não porque corre qualquer perigo. O seu adversário é bastante forte para ser clemente. Mas sim porque seria humilhante para um neto de S. Luís dever a vida ao homem de Arcole, Marengo e Austerlitz”. Diga-lhe isto, Gerard, ou antes, não diga nada. Oculte a sua viagem; não se gabe do que veio fazer e do que fez em Paris; retoma a posta; se queimou o caminho para vir, devore o espaço para regressar, reentra em Marselha de noite; penetra em sua casa por uma porta das traseira e deixa-se ficar lá muito quietinho, muito apagado, muito escondido e sobretudo muito inofensivo, porque desta vez, eu juro, agiremos como pessoas enérgicas e que conhecem os seus inimigos. Vai, meu filho; vai, meu caro Gerard, e mediante esta obediência às ordens paternas ou, se preferires, a deferência para com os conselhos de um amigo, o manteremos no seu lugar. Será — acrescentou Noirtier sorrindo — Uma maneira de me salvar pela segunda vez se a báscula política te recolocar um dia em cima e a mim em baixo. Adeus, meu caro Gerard. Na tua próxima viagem hospede-se em minha casa.
E, ditas estas palavras, Noirtier saiu com a tranqüilidade que não o deixara um instante enquanto durara aquela conversa tão difícil.
Villefort, pálido e agitado, correu à janela, entreabriu a cortina e viu-o passar calmo e impassível pelo meio de dois ou três homens de má catadura, emboscados ao canto dos marcos e à esquina das ruas, que talvez estivessem ali para prender o homem das suíças pretas, da sobrecasaca azul e do chapéu de abas largas.
Villefort permaneceu assim, de pé e arquejante, até o pai desaparecer no cruzamento da Rua de Bussy. Então, correu para os objetos abandonados por ele, meteu no mais profundo da mala a gravata preta e a sobrecasaca azul, torceu o chapéu que escondeu na parte de baixo de um armário, partiu a bengala de bambu em três pedaços que lançou ao fogo, pôs um boné de viagem, chamou o criado de quarto, proibiu-lhe com um olhar as mil perguntas que tinha vontade de fazer, pagou a conta do hotel e saltou para a sua carruagem, que o esperava pronta a partir.
Soube em Lion que Bonaparte acabava de entrar em Grenoble e, no meio da agitação que reinava ao longo de toda a estrada, chegou a Marselha dominado por todas as angústias que entram no coração do homem com a ambição e as primeiras honras.





continua...




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