quinta-feira, 30 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 7


VII

O INTERROGATÓRIO




A
ssim que Villefort se viu fora da sala de jantar tirou a máscara de felicidade e tomou o ar grave de um homem chamado à suprema função de se pronunciar sobre a vida do seu semelhante. Ora, apesar da mobilidade da sua fisionomia — mobilidade que o substituto, como deve fazer um bom ator, por mais de uma vez estudara diante do espelho — desta vez teve dificuldade em franzir o sobrolho e carregar o semblante.
Com efeito, excetuando a recordação da linha política seguida pelo pai e que podia, se dela não se afastasse completamente, prejudicar-lhe o futuro, Gérard de Villefort era naquele momento tão feliz quanto um homem poderia ambicionar. Rico por si mesmo, ocupava aos vinte e sete anos um lugar elevado na magistratura e ia casar com uma linda moça que amava não apaixonadamente, mas sim com a razão, como um Substituto do Procurador Régio pode amar, e além da sua beleza, que era notável, Mademoiselle de Saint-Méran, sua noiva, pertencia a uma das famílias mais cotadas da época. Por outro lado, sem contar com a influência do pai e da mãe, que como não tinham outro filho podiam reservar toda inteira ao genro, a jovem levaria ainda ao marido um dote de cinqüenta mil escudos que graças às “esperanças”, essa palavra atroz inventada pelos casamenteiros, poderia ser completado um dia com uma herança de meio milhão.
Todos estes elementos reunidos constituíam, portanto para Villefort um total de felicidade deslumbrante, a ponto de lhe parecer ver manchas no Sol quando olhara demoradamente a sua vida interior com os olhos da alma.
Encontrou à porta o comissário de polícia que o esperava. A presença do funcionário policial fê-lo cair imediatamente das alturas do terceiro céu na terra material em que nos movemos. Compôs a expressão como dissemos e declarou aproximando-se do oficial de justiça:
— Aqui estou, senhor. Li a carta e fez bem em prender esse homem. Agora dê-me acerca dele e da conspiração todos os pormenores que obteve.
— Acerca da conspiração, senhor, ainda não sabemos nada, todos os papéis que encontramos com o preso foram fechados num único maço e entregues, selados, no gabinete de V. Exª. Quanto ao arguido, V. Exª deve ter visto pela própria carta que o denunciado é um tal Edmond Dantés, imediato do três mastros Pharaon que se dedica ao comércio de algodão com Alexandria e Esmirna e pertence à Casa Morrel & Filhos, de Marselha.
— Antes de servir na marinha mercante serviu na marinha de guerra?
— Oh, não, senhor? É ainda muito novo.
— De que idade?
— Dezenove ou vinte anos, no máximo.
Neste momento, e como Villefort, seguindo a Grand-Rue, tivesse chegado à esquina da Rua dos Conseils, um homem que parecia esperar a sua passagem abordou-o.
Era o Sr. Morrel.
— Ah, Sr. de Villefort! — exclamou o excelente homem ao ver o substituto — Ainda bem que o encontrei! Imagine que acaba de se cometer o equívoco mais estranho, mais inaudito: prenderam o imediato do meu navio, Edmond Dantés.
— Bem sei — respondeu Villefort — E vou interrogá-lo.
— Oh, senhor — continuou Morrel, levado pela sua amizade para com o jovem — Não conhece o acusado como eu conheço! Imagine o homem mais afável, o mais probo, e quase me atrevo a dizer o homem que melhor sabe do seu oficio de toda a marinha mercante... oh, Sr. de Villefort, recomendo-lhe muito sinceramente e de todo o meu coração!
Como pudemos ver, Villefort pertencia à classe nobre da cidade e Morrel à classe plebéia. O primeiro era um ultra-monárquico e o segundo suspeito de secreto bonapartismo. Villefort olhou desdenhosamente para Morrel e respondeu-lhe com frieza:
— Como sabe, senhor, pode-se ser afável na vida privada, probo nas relações comerciais e sabedor da sua profissão e nem por isso ser menos um grande culpado, politicamente falando. Sabe-o, não é verdade, senhor?
E o magistrado sublinhou as últimas palavras, como se quisesse aplicá-las ao próprio armador, enquanto o seu olhar perscrutador parecia querer penetrar até ao fundo do coração daquele homem que ousava interceder por outro quando devia saber que ele próprio necessitava de indulgência.
Morrel corou, pois não se sentia com a consciência muito tranqüila a respeito das suas opiniões políticas. Além disso, a confidência que lhe fizera Dantés acerca da sua conversa com o grande marechal e das poucas palavras que lhe dirigira o imperador ainda lhe perturbava um pouco o espírito. No entanto, acrescentou, em tom do mais profundo interesse:
— Suplico-lhe, Sr. de Villefort, seja justo como deve ser, bom como sempre foi e “restitua-nos” depressa o pobre Dantés!
O “restitua-nos” soou revolucionariamente ao ouvido do Substituto do Procurador Régio.
— Eh, eh, restitua-nos!... — disse baixinho — Esse Dantés será filiado em alguma seita de carbonários para que o seu protetor empregue assim sem pensar a fórmula coletiva? Prenderam-no numa taberna, disse-me, segundo creio, o comissário. Em numerosa companhia, acrescentou. Deve ser alguma loja.
Depois, em voz alta, respondeu:
— Senhor, pode estar absolutamente tranquilo que não terá recorrido inutilmente à minha justiça se o acusado estiver inocente. Mas se, pelo contrário, for culpado... vivemos numa época difícil, senhor, em que a impunidade seria um exemplo fatal. Nesse caso, serei obrigado a cumprir o meu dever.
E em seguida, como tivesse chegado à porta de sua casa, contígua ao Palácio da Justiça, entrou majestosamente, depois de cumprimentar com uma polidez gelada o pobre armador, que ficou como que petrificado no lugar onde o deixara Villefort.
A antecâmara estava cheia de guardas e agentes de polícia. No meio deles, guardado à vista e envolto em olhares chamejantes de ódio, via-se de pé, calmo e imóvel, o prisioneiro.
Villefort atravessou a antecâmara, deitou um olhar oblíquo a Dantés e, depois de receber um maço de papéis que lhe entregou um agente, desapareceu dizendo:
— Tragam o prisioneiro.
Por mais rápido que tivesse sido esse olhar, bastara a Villefort para fazer uma idéia do homem que ia interrogar. Reconhecera a inteligência naquela testa ampla e franca, a coragem naquele olhar fixo e naquele sobrolho franzido e a sinceridade naqueles lábios carnudos e entreabertos que deixavam ver uma dupla fileira de dentes brancos como o marfim.
A primeira impressão fora favorável a Dantés, mas Villefort ouvira dizer tantas vezes, como uma frase de profundo sentido político que se devia desconfiar do primeiro impulso, visto ser o mais prudente, que aplicou a máxima à impressão sem ter em conta a diferença que havia entre as duas palavras.
Sufocou, portanto os bons instintos que lhe queriam invadir o coração para dai lhe tomarem de assalto o espírito, compôs diante do espelho o seu rosto dos grandes dias e sentou-se, sombrio e ameaçador, à secretária.
Um instante depois dele entrou Dantés.
O jovem continuava pálido, mas calmo e sorridente. Cumprimentou o seu juiz com natural delicadeza e em seguida procurou com os olhos uma cadeira, como se estivesse na sala do armador Morrel. Só então encontrou o olhar inexpressivo de Villefort, esse olhar característico dos magistrados, que não querem que lhes leiam o pensamento e que por isso transformam os olhos num vidro despolido. Aquele olhar revelou-lhe que se encontrava diante da justiça, figura de maneiras sombrias.
— Quem é e como se chama? — perguntou Villefort, folheando os apontamentos que o agente lhe entregara ao entrar e que no espaço de uma hora se tinham tornado volumosos, de tal modo a corrupção da espionagem se apodera depressa do corpo dos infelizes chamados arguidos.
— Chamo-me Edmond Dantés, senhor — respondeu o jovem, em voz calma e sonora — E sou imediato a bordo do navio Pharaon pertencente à firma Morrel & Filhos.
— A sua idade? — continuou Villefort.
— Dezenove anos — respondeu Dantés.
— Que fazia quando foi preso?
— Assistia ao banquete do meu próprio noivado, senhor — respondeu Dantés em voz ligeiramente comovida, de tal forma era doloroso o contraste entre esses momentos de alegria e aquela cerimônia lúgubre, de tal forma o rosto sombrio do Sr. de Villefort fazia brilhar em todo o seu esplendor o rosto radiante de Mercedes.
— Assistia ao seu banquete de noivado — repetiu o substituto, estremecendo a seu pesar.
— Sim, senhor, estou prestes a casar com uma mulher que amo há três anos.
Villefort, apesar de se mostrar habitualmente impassível, ficou impressionado com a confidência, com a voz comovida de Dantés, surpreendido no meio da sua felicidade, e essa voz fez-lhe vibrar uma fibra simpática no fundo da alma. Também ele se ia casar, também ele era feliz, e acabavam de perturbar a sua felicidade a fim de o levarem a contribuir para a destruição da alegria de um homem que, como ele, tocava já a felicidade.
Este paralelismo filosófico, pensou, produziria grande efeito no seu regresso ao salão do Sr. de Saint-Méran. E compôs antecipadamente no espírito, enquanto Dantés esperava novas perguntas, as palavras antitáticas com o auxílio das quais os oradores constroem essas frases sedentas de aplausos que por vezes fazem crer numa verdadeira eloqüência. Composto o seu pequeno speech interior, Villefort sorriu do efeito e disse, dirigindo-se a Dantés:
— Continue, senhor.
— Que deseja que continue?
— A esclarecer a justiça.
— A justiça que me diga em que ponto deseja ser esclarecida e lhe direi tudo o que sei. Simplesmente — acrescentou também com um sorriso — Previno-a de que não sei grande coisa.
— Serviu no tempo do usurpador?
— Ia ser incorporado na marinha de guerra quando ele caiu.
— São conhecidas as suas opiniões políticas extremistas — insinuou Villefort, a quem ninguém dissera nada a tal respeito, mas que não achava despropositado afirmá-lo como quem formula uma acusação.
— As minhas opiniões políticas, senhor? Bom, é quase vergonhoso dizê-lo, mas nunca tive o que se chama uma opinião. Tenho apenas dezenove anos, como já tive a honra de lhe dizer; não sei nada, não estou destinado a desempenhar qualquer papel, o pouco que sou e que serei, se me derem o lugar que ambiciono, devê-lo-ei ao Sr. Morrel. Por isso, todas as minhas opiniões, não direi políticas, mas pessoais, limitam-se a estes três sentimentos: amo o meu pai, respeito o Sr. Morrel e adoro Mercedes. Aqui tem, senhor, tudo o que posso dizer à justiça, como vê, é pouco interessante para ela.
À medida que Dantés falava, Villefort observava-lhe o rosto, ao mesmo tempo tão afável e tão franco, e sentia acudirem-lhe à memória as palavras de Renée que sem o conhecer lhe pedira indulgência para com o arguido. Com a prática que o substituto já possuía do crime e dos criminosos, via em cada palavra de Dantés surgir a prova da sua inocência. Com efeito, aquele rapaz, quase se poderia dizer aquela criança, simples, natural e eloquente, com essa eloquência do coração que nunca se encontra quando se procura, cheio de afeição para todos porque era feliz e porque a felicidade torna bons os próprios maus, derramava até sobre o seu juiz a suave afabilidade que lhe  transbordava do coração. Edmond não tinha no olhar, na voz e nos gestos, por mais rude e severo que Villefort tivesse sido para com ele, a não ser atenções e bondade para com aquele que o interrogava.
“Por Deus”, disse Villefort para consigo, “Aqui está um rapaz encantador que talvez me permita sem grande dificuldade, assim espero, ser agradável a Renée e satisfazer a primeira recomendação que me fez, o que me poderá valer um bom aperto de mão diante de toda a gente e um beijo terno num canto”.
E com esta doce esperança o rosto de Villefort desanuviou-se. E assim, quando abandonou o fio do seu pensamento e olhou para Dantés, este, que seguia todos os movimentos da fisionomia do seu juiz, sorria como o próprio pensamento de Villefort.
— Tem algum inimigo? — perguntou o substituto.
— Inimigos, eu? — perguntou Dantés — Tenho a sorte de ser demasiado insignificante para que a minha posição os arranje. Quanto ao meu temperamento, talvez um pouco vivo, sempre tentei suavizá-lo no trato com os meus subordinados. Tenho dez ou doze marinheiros sob as minhas ordens, interrogue-os, senhor, e lhe dirão que me estimam e respeitam, não como um pai, sou demasiado novo para isso, mas sim como um irmão mais velho.
— Mas, à falta de inimigos, talvez tenha invejosos. Ia ser nomeado comandante aos dezenove anos, o que é um cargo elevado na sua idade, e ia casar com uma linda mulher que o ama, o que é uma felicidade rara em qualquer parte deste mundo. Estas duas preferências do destino podem ter-lhe granjeado invejosos.
— Sim, tem razão. Deve conhecer os homens melhor do que eu, é possível. Mas se esses invejosos se encontram entre os meus amigos, confesso-lhe que prefiro não os conhecer para não ser obrigado a odiá-los.
— Engana-se. Tanto quanto possível, devemos ver sempre claramente à nossa volta. E na verdade o senhor parece-me um jovem tão digno que vou me desviar em seu benefício das regras habituais da justiça e ajudá-lo a fazer brotar a luz dando-lhe conhecimento da denúncia que o trouxe à minha presença. Aqui está o papel acusador. Reconhece a letra?
E Villefort tirou a carta da algibeira e apresentou-a a Dantés, que a olhou e leu. Passou-lhe uma sombra pela testa e respondeu:
— Não, senhor, não conheço esta letra; está disfarçada, embora seja bastante firme. De qualquer modo, foi traçada por mão experiente. Sinto-me feliz — acrescentou, olhando com reconhecimento para Villefort — Por tratar com um homem como o senhor, pois, com efeito o meu invejoso é um autêntico inimigo.
E o relâmpago que passou pelos olhos do jovem ao pronunciar estas palavras permitiu a Villefort distinguir tudo o que havia de violenta energia debaixo da afabilidade inicial.
— E agora — disse o substituto — Responda-me francamente, senhor, não como um arguido ao seu juiz, mas sim como um homem numa posição falsa responde a outro homem que se interessa por ele: que há de verdade nesta acusação anônima?
E Villefort atirou com repugnância para cima da mesa a carta que Dantés acabava de lhe restituir.
— Tudo e nada, senhor. Eis a verdade pura, pela minha honra de marinheiro, pelo meu amor por Mercedes e pela vida do meu pai.
— Fale, senhor — disse em voz alta Villefort.
Depois, baixinho, acrescentou:
— Se Renée me pudesse ver, sem dúvida ficaria contente comigo e nunca mais me chamaria cortador de cabeças!
— Bom, o Comandante Leclére adoeceu com uma febre cerebral ao sairmos de Nápoles. Como não tínhamos um médico a bordo e não quis escalar nenhum porto da costa, pois tinha pressa de chegar à Ilha de Elba, a doença agravou-se e ele chamou-me a sua presença.
“— Meu caro Dantés — disse-me — Jure-me pela sua honra fazer o que lhe vou dizer. Estão em jogo altos interesses.
“— Juro-lhe, comandante — respondi-lhe.
“— Muito bem! Como depois da minha morte lhe pertence o comando do navio, na qualidade de imediato, assuma-o, aproe à Ilha de Elba, desembarque em Porto Ferraio, procure o grande marechal e lhe entregue esta carta. É possível que lhe entreguem outra carta e o encarreguem de qualquer missão. Essa missão me estava reservada, Dantés, cumpra-a em meu lugar e toda a honra disso será sua.
“— Assim farei, comandante, mas talvez não consiga chegar tão facilmente como pensa junto do grande marechal.
“— Aqui tem um anel que lhe mandará entregar — disse o comandante — E que removerá todas as dificuldades.
— E ao dizer estas palavras entregou-me um anel. Era tempo: duas horas mais tarde o delírio apoderou-se dele e no dia seguinte morreu.
— Que fez então?
— O que devia fazer, senhor, o que qualquer outro faria no meu lugar. Custe o que custar, as súplicas de um moribundo são sagradas, mas entre os marinheiros os pedidos de um superior são ordens que se devem cumprir. Fiz-me, portanto de vela para a Ilha de Elba, onde cheguei no dia seguinte, proibi a saída de toda a tripulação e desci sozinho a terra. Como previra, levantaram-me algumas dificuldades para me introduzir junto do grande marechal, mas mandei-lhe o anel que devia servir-me de sinal de reconhecimento e todas as portas se abriram diante de mim. Recebeu-me, interrogou-me acerca das últimas circunstâncias da morte do infeliz Leclére e, como este previra, entregou-me uma carta que me encarregou de levar pessoalmente a Paris. Prometi-lho, porque isso equivalia a cumprir as últimas vontades do meu comandante. Desembarquei e regularizei rapidamente todos os assuntos de bordo, depois, corri a ver a minha noiva, que encontrei mais bonita e apaixonada do que nunca. Graças ao Sr. Morrel, passamos por cima de todas as dificuldades eclesiásticas. Enfim, senhor, assistia como lhe disse ao banquete do meu noivado, ia casar-me dentro de uma hora e contava partir amanhã para Paris quando por via dessa denúncia, que o senhor parece desprezar agora tanto como eu, fui preso.
— Sim, sim — murmurou Villefort — Tudo isso me parece ser verdade, e se o senhor é culpado, é de imprudência, embora essa imprudência seja legítima devido às ordens do seu comandante. Entregue-me essa carta que lhe deram na Ilha de Elba, dê-me a sua palavra de que se apresentar  à primeira convocação e volte para junto dos seus amigos.
— Quer dizer que estou livre, senhor?! — exclamou Dantés, no cúmulo da alegria.
— Está, mas primeiro dê-me essa carta.
— Deve estar diante de si, senhor, pois apreenderam-na com os meus outros papéis e reconheço alguns deles nesse maço.
— Espere — disse o substituto a Dantés, que pegava as luvas e o chapéu — Espere. A quem é dirigida?
— Ao Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, em Paris.
Um raio que caísse sobre Villefort não o fulminaria mais rápida e imprevistamente. Deixou-se cair na poltrona, de onde se só erguera para chegar ao maço de papéis apreendidos a Dantés, remexeu-o precipitadamente e tirou dele a carta fatal, à qual deitou um olhar cheio de indizível terror.
Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, nº. 13 — murmurou, empalidecendo cada vez mais.
— Sim, senhor — confirmou Dantés, atônito — Conhece-o?
— Não — respondeu vivamente Villefort — Um fiel servidor do rei não conhece conspiradores.
— Trata-se portanto de uma conspiração? — perguntou Dantés, que começava, por se julgar livre, a sentir-se novamente dominado por um terror maior do que ao princípio — Seja como for, senhor, como já lhe disse ignoro completamente o conteúdo da correspondência de que fui portador.
— Pois sim, mas sabe o nome daquele a quem era dirigida! — disse Villefort, com voz abafada.
— Para lha entregar pessoalmente, senhor, era indispensável que o soubesse.
— Não mostrou esta carta a ninguém? — perguntou Villefort, lendo-a e empalidecendo à medida que a lia.
— A ninguém senhor, dou-lhe a minha palavra de honra!
— Todos ignoram que era portador de uma carta vinda da Ilha de Elba e endereçada ao Sr. Noirtier?
— Toda gente, senhor, exceto quem me entregou.
— É demasiado, é ainda demasiado! — murmurou Villefort.
A fronte de Villefort nublava-se cada vez mais à medida que se aproximava do fim: os seus lábios brancos, as suas mãos trêmulas e os seus olhos ardentes faziam passar pelo espírito de Dantés as mais dolorosas apreensões. Terminada a leitura, Villefort deixou cair a cabeça nas mãos e ficou um instante acabrunhado.
— Oh, meu Deus! Que se passa senhor? — perguntou timidamente Dantés.
Villefort não respondeu. Mas passados alguns instantes levantou o rosto pálido e descomposto e releu segunda vez a carta.
— E diz que não sabe o que contém esta carta? — insistiu Villefort.
— Dou-lhe a minha palavra de honra, repito, senhor, de que o ignoro — respondeu Dantés — Mas que tem o senhor, meu Deus? Sente-se mal, quer que toque, quer que chame?
— Não, senhor — respondeu Villefort, levantando-se vivamente — Não se mexa, não diga nada, é a mim que compete dar ordens aqui e não ao senhor.
— Era apenas para o ajudá-lo, senhor — protestou Dantés, magoado.
— Não preciso de nada, foi apenas uma indisposição passageira. Ocupe-se de si e não de mim, responda.
Dantés esperou o interrogatório anunciado por estas palavras, mas inutilmente: Villefort voltou a deixar-se cair na poltrona, passou a mão gelada pela testa coberta de suor e releu a carta pela terceira vez.
— Oh, se ele soubesse o que contém esta carta? — murmurou — Se soubesse alguma vez que Noirtier é o pai de Villefort, seria eu quem estaria perdido, perdido para sempre!
E de vez em quando olhava para Edmond, como se o seu olhar pudesse quebrar a barreira invisível que encerra no coração os segredos que a boca guarda.
— Oh, deixemo-nos de hesitações! — exclamou de súbito.
— Mas, em nome do Céu, senhor — pediu o pobre rapaz — Se desconfia de mim, se tem suspeitas a meu respeito, interrogue-me, estou pronto a responder-lhe.
Villefort fez um esforço violento sobre si mesmo e disse num tom que pretendia tornar firme:
— Senhor, as acusações mais graves resultam para si do seu interrogatório e não está, portanto na minha mão, como de início esperei, pô-lo imediatamente em liberdade, antes de tomar semelhante medida devo consultar o juiz de instrução. Entretanto, já viu de que forma o tenho tratado...
— Oh, sim, senhor, e agradeço-lhe, pois tem sido para mim muito mais amigo do que um juiz! — declarou Dantés.
— Pois bem, senhor, vou conservá-lo mais algum tempo preso, mas o menos que puder. A principal acusação que existe contra si é esta carta, e como vê...
Villefort aproximou-se da chaminé, lançou-a ao fogo e deixou-se estar até a carta ficar reduzida a cinzas.
— E como vê — continuou — Destruo-a.
— Oh, o senhor é mais do que justiça, é a bondade! — exclamou Dantés.
— Mas escute-me — prosseguiu Villefort — Depois de semelhante ato, decerto compreende que pode confiar em mim, não é verdade?
— Oh, senhor, ordene e cumprirei as suas ordens!
— Não — disse Villefort aproximando-se do rapaz — Não são ordens o que lhe quero dar, são conselhos, compreende?
— Diga-os e me conformarei com eles como se fossem ordens.
— Vou conservá-lo aqui, no Palácio da Justiça, até à noite. Talvez mais alguém o venha interrogar: diga tudo o que me disse, mas nem uma palavra acerca da carta.
— Prometo-lhe, senhor.
Agora era Villefort que parecia suplicar, era o arguido que tranqüilizava o juiz.
— Compreende — disse, deitando um olhar às cinzas, que ainda conservavam a forma do papel e que esvoaçavam por cima das chamas — Agora a carta desapareceu, só o senhor e eu sabemos que ela existiu. Ninguém tornará a apresentá-la. Negue-a, pois, se lhe falarem dela, negue decididamente e estará salvo.
— Negarei, senhor esteja tranquilo — prometeu Dantés.
— Muito bem, muito bem — aprovou Villefort, levando a mão ao cordão de uma campainha.
Depois, detendo-se um momento de tocar:
— Era a única carta que tinha? — perguntou.
— A única.
— Jure.
Dantés estendeu a mão.
— Juro — disse.
Villefort tocou.
O comissário da polícia entrou. Villefort aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido a que o comissário respondeu com um simples aceno de cabeça.
— Vá senhor — disse Villefort a Dantés.
Dantés inclinou-se, deitou um último olhar de reconhecimento a Villefort e saiu.
Assim que a porta se fechou atrás dele, as forças faltaram a Villefort, que caiu quase sem sentidos numa poltrona. Passado um instante, murmurou:
— Oh, meu Deus, de que dependem a vida e a fortuna!... Se o Procurador Régio estivesse em Marselha, se o juiz de instrução tivesse sido chamado em meu lugar, estaria perdido: aquele papel, aquele papel maldito me precipitaria no abismo. Ah, meu pai, meu pai! Será sempre um obstáculo à minha felicidade neste mundo e deverei lutar eternamente com o seu passado?
Depois, de súbito, um clarão inesperado pareceu passar-lhe pelo espírito e iluminou-lhe o rosto, desenhou-se-lhe um sorriso na boca ainda crispada e os seus olhos assustados tornaram-se fixos e pareceram deter-se num pensamento.
— É isso — disse — Sim, essa carta que me devia perder talvez faça a minha fortuna. Vamos, Villefort, mãos à obra.
E depois de se assegurar de que o arguido já não estava na antecâmara, o Substituto do Procurador Régio saiu por seu turno e dirigiu-se rapidamente para casa da noiva.




continua...




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