terça-feira, 28 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 5


V

O BANQUETE DE NOIVADO




N
o dia seguinte o tempo estava bom. O Sol levantou-se puro e brilhante e os seus primeiros raios, de um vermelho-púrpuro, recamaram de rubis as extremidades espumantes das vagas. O banquete fora preparado no primeiro andar daquela mesma Reserve cuja latada já conhecemos. Era uma grande sala iluminada por cinco ou seis janelas, por cima de cada uma das quais (explique o fenômeno quem puder!) se encontrava escrito o nome de uma das grandes cidades de França. Uma balaustrada de madeira, como o resto da construção, seguia ao longo das janelas.
Embora o banquete estivesse marcado para o meio-dia, desde as onze horas da manhã que a balaustrada regurgitava de passeantes impacientes. Eram marinheiros privilegiados do Pharaon e alguns soldados amigos de Dantés. Para honrar os noivos, todos tinham envergado os seus mais belos trajes.
Entre os futuros convivas circulava o rumor de que os armadores do Pharaon honrariam com a sua presença o banquete de noivado do seu imediato; mas tratava-se da sua parte de tão grande honra concedida a Dantés que ninguém ousava ainda acreditar nisso.
No entanto, quando chegou com Caderousse, Danglars confirmou a notícia. Estivera de manhã com o próprio Sr. Morrel e o Sr. Morrel dissera-lhe que viria almoçar na Réserve.
Com efeito, pouco depois deles o Sr. Morrel entrou por sua vez na sala e foi saudado pelos marinheiros do Pharaon com um “hurra!” unânime de aplausos. A presença do armador era para eles a confirmação do rumor que corria já de que Dantés seria nomeado comandante. E como Dantés era muito estimado a bordo, aquela boa gente agradecia assim ao armador de que uma vez por acaso a sua escolha estivesse de acordo com os desejos deles. Assim que o Sr. Morrel entrou, Danglars e Caderousse foram unanimemente encarregados de prevenir o noivo. Era essa a sua missão: preveni-lo da chegada da importante personagem cujo aparecimento produziria tão viva sensação e dizer-lhe que se apressasse.
Danglars e Caderousse saíram correndo, mas ainda mal tinham dado cem passos quando, próximo do armazém da pólvora, depararam com um grupinho que se aproximava.
O grupinho era constituído por quatro jovens amigas de Mercedes e catalãs como ela, e acompanhava a noiva, a quem Edmond dava o braço, junto da noiva vinha o Tio Dantés e atrás Fernand com o seu sorriso maligno.
Mas nem Mercedes; nem Edmond reparavam no sorriso maligno de Fernand. As pobres crianças estavam tão felizes que só se viam um ao outro e o céu belo e puro que os abençoava.
Danglars e Caderousse desempenharam-se da sua missão de embaixadores. Em seguida, depois de trocarem um aperto de mão muito enérgico e amistoso com Edmond, retiraram-se, Danglars para tomar lugar junto de Fernand e Caderousse para se colocar ao lado do Tio Dantés, centro da atenção geral.
O velhote envergava uma bela casaca de tafetá canelado, adornada com grandes botões de aço facetados. As pernas, magras, mas nervosas, ostentavam magníficas meias de algodão mosqueado, que cheiravam à léguas a contrabando inglês. Do chapéu de três bicos pendia-lhe um laço de fitas brancas e azuis. Finalmente, apoiava-se numa bengala torcida e retorcida em cima com o pedum antigo. Dir-se-ia um desses janotas que se pavoneavam em 1796 nos jardins pouco antes reabertos do Luxemburgo e das Tulherias.
Como já dissemos, Caderousse esgueirara-se para junto dele. Caderousse a quem a esperança de uma boa refeição acabara de reconciliar com os Dantés; Caderousse a quem restava na memória uma vaga lembrança do que se passara na véspera, tal como ao acordarmos de manhã e encontramos no espírito da sombra do sonho que tivemos durante o sono.
Aproximando-se de Fernand, Danglars lançara ao amante rejeitado um olhar profundo. Fernand que caminhava atrás do futuro casal completamente esquecido por Mercedes, que no egoísmo juvenil e encantador do amor só tinha olhos para o seu Edmond; Fernand que estava pálido, mas que de vez em quando corava em acessos súbitos, que desapareciam e davam lugar a uma palidez crescente. A intervalos olhava para os lados de Marselha e então apoderava-se-lhe dos membros um tremor nervoso e involuntário. Fernand parecia esperar ou pelo menos prever qualquer grande acontecimento.
Dantés vestia com simplicidade. Como pertencia à marinha mercante, o seu traje era meio militar, meio civil e dava-lhe um aspecto, para mais realçado pela alegria e pela beleza da noiva, deveras atraente.
Mercedes estava linda, parecia uma dessas gregas de Chipre ou de Keos, de olhos de ébano e lábios de coral. Caminhava com esse passo livre e franco com que caminham as Arlesianas e as Andaluzas. Uma moça citadina talvez procurasse esconder a sua alegria debaixo de um véu ou pelo menos do veludo das pálpebras, mas Mercedes sorria e olhava todos os que a rodeavam e o seu sorriso e o seu olhar diziam tão francamente quanto o poderiam dizer estas palavras: “Se são meus amigos, regozijem-se comigo, porque na verdade sou feliz!”
Assim que os noivos e aqueles que os acompanhavam chegaram à vista da Réserve, o Sr. Morrel desceu e foi por sua vez ao encontro deles, seguido dos marinheiros e dos soldados com que ficara e aos quais renovara a promessa já feita a Dantés de que este sucederia ao Comandante Leclére. Ao vê-lo chegar, Edmond largou o braço da noiva e passou-o para o do Sr. Morrel. O armador e a jovem deram então o exemplo e subiram à frente a escada de madeira que levava à sala onde o banquete estava servido e que rangeu durante cinco minutos sob os passos pesados dos convivas.
— Meu pai — disse Mercedes, parando a meio da mesa e dirigindo-se ao velho Dantés — Fique à minha direita, peço-lhe. Quanto à minha esquerda reservo-a para aquele que me serviu de irmão — declarou com uma doçura que penetrou profundamente no coração de Fernand como uma punhalada.
Os seus lábios empalideceram e sob o tom bistrado do seu rosto desagradável foi possível ver mais uma vez o sangue desaparecer pouco a pouco para afluir ao coração.
Entretanto, Dantés executara a mesma manobra: à sua direita colocara o Sr. Morrel: à sua esquerda, Danglars. Depois, com a mão, fizera sinal a todos para se sentarem onde quisessem.
Pouco depois corriam à volta da mesa os salsichões de Arles, de carne bem curada e aroma acentuado: as lagostas de carapaça fascinante; as palurdas de concha rosada; os ouriços-do-mar, que parecem castanhas no seu invólucro espinhoso; as amêijoas, que têm a pretensão de substituir com vantagem, na opinião dos gastrônomos do Meio-Dia, as ostras do Norte; enfim, todos esses acepipes delicados que as vagas lançam nas margens arenosas e que os pescadores reconhecidos designam pelo nome genérico de mariscos.
— Que estranho silêncio! — observou o velhote, saboreando um copo de vinho dourado como o topázio que o Tio Pamphile em pessoa acabava de colocar diante de Mercedes — Não se diria que não estão aqui trinta pessoas que só desejam rir...
— Eh, um marido nem sempre está alegre! — exclamou Caderousse.
— A verdade — confessou Dantés — É que me sinto neste momento demasiado feliz para estar alegre. Se é isto que quer dizer, vizinho, tem razão. A alegria causa às vezes um efeito estranho, oprime como a dor.
Danglars observou Fernand, cuja natureza impressionável absorvia e refletia todas as emoções.
— Então, ainda receia alguma coisa? — perguntou a Dantés — Parece-me, pelo contrário, que tudo corre de acordo com os seus desejos!
— É precisamente isso que me assusta — respondeu Dantés — Parece-me que o homem não nasceu para ser tão facilmente feliz! A felicidade é como esses palácios das ilhas encantadas que têm as portas guardadas por dragões. É necessário lutar para conquistá-la e eu, para ser franco, não sei porque mereci a felicidade de ser marido de Mercedes.
— O marido, o marido... — interveio Caderousse, rindo — Ainda não, meu comandante. Experimente se fazer de marido e verá como será recebido!
Mercedes corou.
Fernand agitava-se na cadeira, estremecia ao menor pequeno ruído e de vez em quando limpava as grossas bagas de suor que lhe perlavam a testa como as primeiras gotas de uma chuva da tempestuosa.
— Palavra, vizinho Caderousse — perguntou Dantés — Que não vale a pena desmentir-me por tão pouco. Mercedes ainda não é minha mulher, é certo... — puxou do relógio — Mas o será dentro de hora e meia!
Todos soltaram um grito de surpresa, com exceção do velho Dantés, que exibiu os dentes, ainda bonitos, numa grande gargalhada. Mercedes sorriu e não corou. Fernand apertou convulsivamente o cabo da sua faca.
— Dentro de uma hora? — sobressaltou-se Danglars, empalidecendo por seu turno — Como assim?
— Sim, meus amigos — respondeu Dantés — Graças ao crédito do Sr. Morrel, o homem, depois do meu pai, a quem mais devo no mundo, todas as dificuldades estão aplanadas. Compramos os banhos e o maire de Marselha espera-nos às duas e meia na Câmara Municipal. Ora como acaba de dar uma hora e um quarto, não creio enganar-me muito dizendo que dentro de uma hora e trinta minutos Mercedes se chamará Sra. Dantés.
Fernand fechou os olhos. Uma nuvem de fogo queimou-lhe as pálpebras. Encostou-se à mesa para não desfalecer e, apesar de todos os seus esforços, não pôde conter um gemido abafado que se perdeu no meio do ruído dos risos e dos parabéns dos convivas.
— Isto é que é desembaraço, heim? — comentou o velho Dantés — É o que se chama não perder tempo, não acham? Chegado ontem de manhã, casado hoje às três horas! Não me venham dizer que os marinheiros não são despachados!
— Mas as outras formalidades? — objetou timidamente Danglars — O contrato, as escrituras?...
— O contrato? — perguntou Dantés, rindo — O contrato está pronto. Mercedes não tem nada e eu também não! Casamo-nos em regime de comunhão e pronto! Foi coisa que não levou muito tempo a escrever nem custar muito cara.
Esta saída suscitou uma nova explosão de alegria e de bravos.
— Portanto, o que tomamos por um banquete de noivado é muito simplesmente um banquete de casamento — observou Danglars.
— Não — contrapôs Dantés — Não perderão nada com isto, estejam tranqüilos. Amanhã de manhã parto para Paris. Quatro dias para ir, quatro dias para voltar, um dia para me desempenhar conscienciosamente da missão de que estou encarregado e em 1º de Março estarei de volta; em 2 de Março, portanto, o verdadeiro banquete de casamento.
A perspectiva de novo festim redobrou a hilaridade ao ponto de o velho Dantés, que no início do banquete se queixava do silêncio reinante, fazer agora, no meio da conversação geral, vãos esforços para formular o seu voto de prosperidade a favor dos futuros esposos.
Dantés adivinhou o pensamento do pai e correspondeu-lhe com um sorriso cheio de amor. Mercedes começou a ver as horas no relógio de cuco da sala e fez um sinalzinho a Edmond.
Havia à roda da mesa a hilaridade ruidosa e a liberdade individual que acompanham, entre as pessoas de condição inferior, o fim dos repastos. Aqueles que não gostavam do seu lugar tinham-se levantado da mesa e procurado outros vizinhos. Todos começavam a falar ao mesmo tempo e ninguém se dava ao trabalho de responder ao que o seu interlocutor lhe dizia, mas apenas aos seus próprios pensamentos.
A palidez de Fernand quase passara para as faces de Danglars. Quanto ao próprio Fernand, já não vivia e parecia um condenado às penas eternas no meio de um mar de fogo. Fora um dos primeiros a levantar-se e passeava de um lado para o outro da sala procurando isolar o ouvido do barulho das canções e do choque dos copos.
Caderousse aproximou-se dele no momento em que Danglars, que parecia fugir, acabava de se lhe juntar a um canto da sala.
— Na verdade — disse Caderousse a quem a modéstia de Dantés e, sobretudo o bom vinho do Tio Pamphile tinham levado todos os restos de rancor que a felicidade inesperada de Dantés lhe fizera germinar na alma — Na verdade, Dantés é um excelente rapaz. E quando o vejo sentado ao pé da noiva digo para comigo que não estaria certo pregar-lhe a partida que vocês tramavam ontem.
— Por isso, bem viste que a coisa não teve seguimento — perguntou Danglars — O pobre Sr. Fernand estava tão transtornado que a princípio me fez pena; mas uma vez que tomou a sua decisão, a ponto de apadrinhar o seu rival, não tenho mais nada a dizer.
Caderousse olhou para Fernand, que estava lívido.
— O sacrifício é tanto maior — continuou Danglars — Quanto mais bonita é, na realidade, a noiva. Sempre me saiu um felizardo o espertalhão do meu futuro comandante! Gostaria de me chamar Dantés apenas durante doze horas.
— Vamos? — perguntou a voz meiga de Mercedes — São duas horas e esperam-nos dentro de um quarto de hora.
— Sim, sim, vamos! — disse Dantés, levantando-se vivamente.
— Vamos! — repetiram em coro todos os convivas.
No mesmo instante, Danglars, que não perdia de vista Fernand, sentado no bordo da janela, viu-o abrir muito os olhos, levantar-se como que convulsivamente e voltar a cair sentado no parapeito da janela.
Quase imediatamente soou na escada um ruído abafado: o eco de passos pesados e um rumor confuso de vozes, misturados com o tinir de armas, sobrepuseram-se às exclamações dos convivas, apesar de ruidosas, e atraíram a atenção de todos, que se remeteram a um silêncio inquieto. O barulho aproximou-se. Soaram três pancadas na porta. Cada um olhou para o vizinho com ar atônito.
— Em nome da Lei! — gritou uma voz vibrante à qual nenhuma outra respondeu.
A porta abriu-se imediatamente e um comissário, com a sua faixa à cintura, entrou na sala seguido de quatro soldados armados, comandados por um cabo.
A inquietação cedeu o lugar ao terror.
— Que se passa? — perguntou o armador indo ao encontro do comissário, que conhecia — Trata-se com certeza de algum equívoco, senhor.
— Se houver equívoco, Sr. Morrel — respondeu o comissário — Creia que será prontamente reparado. Entretanto, sou portador de um mandado de captura. E embora seja com pesar que desempenho a minha missão, nem por isso tenho menos de desempenhá-la. Qual dos senhores é Edmond Dantés?
Todos os olhares se viraram para o jovem que, muito impressionado, mas sem perder a dignidade, deu um passo em frente e disse:
— Sou eu, senhor.
— Edmond Dantés — prosseguiu o comissário — Em nome da Lei, está preso!
— Prende-me? — perguntou Edmond, com uma ligeira palidez — Mas prende-me por quê?
— Ignoro, senhor, mas saberá no seu primeiro interrogatório.
O Sr. Morrel compreendeu que não havia nada a fazer contra a inflexibilidade da situação. Um comissário com a sua faixa à cintura já não é um homem, é a estátua da Lei, fria, surda e muda.
O velho, pelo contrário, precipitou-se para o oficial; há coisas que o coração de um pai ou de uma mãe nunca compreendem. Pediu e suplicou, mas as suas lágrimas e as suas súplicas não podiam nada. Contudo, o seu desespero era tão grande que o comissário se comoveu.
— Senhor — disse-lhe — Sossegue. Talvez o seu filho se tenha esquecido de cumprir alguma formalidade aduaneira ou sanitária e muito provavelmente, depois de prestar todas as informações que pretendam dele, será posto em liberdade.
— Oh!... que significa isto? — perguntou, franzindo o sobrolho, Caderousse a Danglars, que simulava surpresa.
— Sei lá! — respondeu Danglars — Estou como você: vejo o que se passa, não compreendo nada e fico confuso.
Caderousse procurou com a vista Fernand: desaparecera.
Toda a cena da véspera se lhe apresentou então no espírito com terrível lucidez. Poderia se dizer que a catástrofe acabava de afastar o véu que a embriaguez da véspera colocara entre ele e a sua memória.
— Oh, oh!... — exclamou com voz rouca — Será isto o resultado da brincadeira de que falavam ontem, Danglars? Nesse caso, ai de quem a pôs em prática, porque é muito triste.
— Não diga isso! — protestou Danglars — Sabe perfeitamente que rasguei a carta.
— Não a rasgou — corrigiu Caderousse — Limitou-se a atirá-la a um canto.
— Cale-se, você não viu nada, estava bêbado.
— Onde está Fernand? — perguntou Caderousse.
— Sei lá! — respondeu Danglars — Provavelmente foi cuidar da sua vida. Mas em vez de perdermos tempo com isso vamos ajudar esses pobres infelizes.
Com efeito, durante esta conversa, Dantés apertara, sorrindo, a mão a todos os seus amigos e constituíra-se prisioneiro dizendo:
— Fiquem tranqüilos, o erro será corrigido e provavelmente nem sequer entrarei na cadeia.
— Com certeza, estou convencido disso! — disse Danglars, que naquele momento se aproximava, como dissemos, do grupo principal.
Dantés desceu a escada, precedido pelo comissário de polícia e rodeado pelos soldados. Uma carruagem com a portinhola aberta esperava à porta. Subiu para ela, dois soldados e o comissário subiram depois dele, a portinhola fechou-se e a carruagem tomou o caminho de Marselha.
— Adeus, Dantés! Adeus, Edmond! — gritou Mercedes debruçando-se da balaustrada.
O prisioneiro ouviu este último grito, saído como um soluço do coração dilacerado da noiva. Colocou a cabeça fora da portinhola e gritou, antes de desaparecer numa das esquinas do Forte de S. Nicolau:
— Até à vista, Mercedes!
— Esperem aqui por mim — disse o armador — Pegarei a primeira carruagem que encontrar, correrei a Marselha e voltarei com notícias.
— Vá! — gritaram todas as vozes — Vá e volte depressa!
Depois das duas saídas houve um momento de terrível torpor entre todos os que ficaram.
O velho Dantés e Mercedes permaneceram durante algum tempo absortos, cada um na sua própria dor. Mas por fim os seus olhos reencontraram-se, ambos se reconheceram como duas vítimas atingidas pelo mesmo golpe e lançaram-se nos braços um do outro.
Entretanto, Fernand regressou, encheu um copo de água, bebeu-o e foi sentar-se numa cadeira. O acaso fez com que, ao sair dos braços do velhote, Mercedes se deixasse cair numa cadeira vizinha.
Num momento instintivo, Fernand recuou a dele.
— Foi ele — disse a Danglars o alfaiate Caderousse, que não perdera de vista o catalão.
— Não creio — respondeu Danglars — Seria demasiado estúpido. Em todo o caso, que o golpe recaia sobre quem o desferiu.
— Se esquece daquele que o aconselhou — perguntou Caderousse.
— Diabos te levem, como se um homem fosse responsável por tudo o que diz no ar!
— E é, quando o que diz no ar fere alguém.
Entretanto, os grupos comentavam a prisão em todos os tons.
— E você, Danglars, que pensa disto? — perguntou uma voz.
— Por mim — respondeu Danglars — Creio que terá trazido alguns fardos de mercadorias proibidas.
— Mas se fosse isso você deveria saber, Danglars, visto ser o guarda-livros.
— Sim, é verdade, mas o guarda-livros só conhece as mercadorias que lhe declaram. Sei que carregamos algodão e mais nada; que o carregamento foi embarcado em Alexandria pelo Sr. Pastret e em Esmirna pelo Sr. Pascal; não me perguntem mais nada.
— Oh, agora me lembro! — murmurou o pobre pai, agarrando-se a esse destroço — Agora me lembro ter-me dito ontem que trazia para mim uma caixa de café e uma caixa de tabaco.
— Vê? — disse Danglars — Deve ser isso. Na nossa ausência a alfândega terá feito uma visita a bordo do Pharaon e descoberto a caixa.
Mas Mercedes não acreditava em nada daquilo. Se contivera até ali, a sua dor desfez-se de súbito em soluços.
— Então, então, é preciso ter esperança! — disse sem saber muito bem o que dizia o velho Dantés.
— Sim, esperança — repetiu Danglars.
— Esperança — tentou murmurar Fernand. Mas a palavra sufocava-o. Agitou os lábios e não conseguiu que nenhum som lhe saísse da boca.
— Senhores! — gritou um dos convivas que ficara de atalaia na balaustrada — Senhores, uma carruagem! Ah, é o Sr. Morrel! Coragem, coragem! Traz-nos com certeza boas notícias.
Mercedes e o velho pai correram ao encontro do armador, que encontraram à porta.
O Sr. Morrel estava muito pálido.
— Então? — perguntaram ao mesmo tempo.
— Então, meus amigos — respondeu o armador abanando a cabeça — O caso é mais grave do que nós pensávamos.
— Mas, senhor, ele é inocente! — gritou Mercedes.
— Acredito — respondeu o Sr. Morrel — Mas acusam-no...
— De quê? — perguntou o velho Dantés.
— De ser agente bonapartista.
Aqueles dos meus leitores que viveram na época em que se passa esta história se recordarão que terrível acusação era então aquela que o Sr. Morrel acabava de formular. Mercedes soltou um grito; o velho deixou-se cair numa cadeira.
— Ah! — murmurou Caderousse — Vocês enganaram-me, Danglars, e pregaram a partida a Dantés. Mas não quero ver morrer de dor esse velho e essa garota e vou dizer-lhes tudo.
— Cale-se, desgraçado — ordenou-lhe Danglars, agarrando a mão de Caderousse — Ou não respondo por mim. Quem te disse que Dantés não é realmente culpado? O navio escalou a Ilha de Elba e ele desembarcou e ficou um dia inteiro em Porto Ferraio. Se lhe encontrassem alguma carta comprometedora, aqueles que o tivessem defendido passariam por seus cúmplices.
Com o instinto apurado do egoísmo, Caderousse compreendeu a perfeita solidez deste raciocínio. Fitou Danglars com olhos embrutecidos pelo medo e pela dor e por um passo que dera em frente deu dois atrás.
— Esperemos então — murmurou.
— Sim, esperemos — disse Danglars — Se estiver inocente, o colocarão em liberdade; se for culpado, é inútil nos comprometermos por um conspirador.
— Então saiamos porque não posso ficar mais tempo aqui.
— Sim, vamos — concordou Danglars, encantado por encontrar um companheiro de retirada — Vamos e eles que se arranjem como puderem.
Saíram. Fernand, que reassumira o seu papel de amparo da jovem, pegou na mão de Mercedes; e reconduziu-a aos Catalães.
Os amigos de Dantés, pela sua parte, acompanharam às Alamedas de Meilhan o velho quase desfalecido.
Em breve se espalhou por toda a cidade o boato de que Dantés fora preso como agente bonapartista.
— Pode acreditar em semelhante coisa, meu caro Danglars? — perguntou o Sr. Morrel, juntando-se ao seu guarda-livros e a Caderousse, pois ele próprio regressava apressadamente à cidade a fim de procurar saber alguma notícia direta de Edmond através do Substituto do Procurador Régio, Sr. de Villefort, que conhecia superficialmente — Acredita em semelhante coisa?
— Ora essa, senhor! — respondeu Danglars — Já lhe tinha dito que Dantés, sem nenhum motivo, aportara à Ilha de Elba e que essa escala me parecera suspeita.
— Mas deu conta das suas suspeitas a mais alguém além de mim?
— Nem por sombras, senhor — respondeu Danglars, baixinho — O senhor bem sabe que por causa do seu tio, Sr. Policar Morrel, que serviu o outro e que não oculta as suas idéias, há quem desconfie que lamenta a sorte de Napoleão. Recearia prejudicar Edmond e depois o senhor. Há coisas que um subordinado tem o dever de dizer ao seu armador e esconder rigorosamente dos outros.
— Muito bem, Danglars, muito bem! — aprovou o armador — Você é um excelente rapaz. Por isso, pensei antecipadamente em ti, no caso do pobre Dantés vir a ser comandante do Pharaon.
— Como assim, senhor?
— Sim, perguntei previamente a Dantés o que pensava a seu respeito e se teria alguma repugnância em conservá-lo no seu lugar. Porque, não sei porquê, julguei ter notado certa frieza entre vocês.
— E que lhe respondeu ele?
— Que efetivamente julgava ter tido, numa circunstância que me não revelou, algumas razões de queixa a seu respeito, mas que qualquer pessoa que tivesse a confiança do armador teria a dele.
— Hipócrita! — murmurou Danglars.
— Pobre Dantés! — suspirou Caderousse — Não há dúvida que era um excelente rapaz.
— Pois sim, mas entretanto o Pharaon está sem comandante — observou o Sr. Morrel.
— Oh — disse Danglars — É preciso esperar, pois só podemos partir daqui a três meses e entretanto Dantés será posto em liberdade!
— Decerto. Mas até lá...?
— Bom, até lá estou às suas ordens, Sr. Morrel — respondeu Danglars — Sabe perfeitamente que sou capaz de dirigir um navio tão bem como qualquer comandante de longo curso de fresca data. Além disso, utilizando os meus préstimos terá a vantagem de não estar em favor com ninguém quando Edmond sair da prisão: ele ocupará o seu lugar e eu o meu e pronto.
— Obrigado, Danglars — disse o armador — De fato, isso concilia tudo. Tome, pois, o comando com minha autorização e vigie o desembarque. Não é forçoso que sempre que acontece alguma catástrofe aos indivíduos os negócios sofram.
— Esteja descansado, senhor. Mas poderemos ao menos ver o pobre Edmond?
— Lhe responderei daqui a pouco, Danglars. Vou procurar falar com o Sr. Villefort e interceder junto dele a favor do prisioneiro. Bem sei que é um monárquico arrebatado, mas que diabo, por mais monárquico e Procurador Régio que seja, também é um homem e não o creio mal.
— Pois não — admitiu Danglars — Mas ouvi dizer que era ambicioso e isso assemelha-se muito.
— Enfim, veremos — disse o Sr. Morrel, suspirando — Vá para bordo que irei ter com ele.
E deixando os dois amigos para tomar o caminho do Palácio da Justiça.
— Está vendo o aspecto que o caso adquiriu? — disse Danglars a Caderousse — Ainda quer defender Dantés?





continua....




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