segunda-feira, 27 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 4


IV

A CONSPIRAÇÃO




D
anglars seguiu Edmond e Mercedes com a vista até os dois namorados desaparecerem numa das esquinas do Forte de S. Nicolau. Depois virou-se e olhou para Fernand, que se deixara cair, pálido e fremente, na sua cadeira, enquanto Caderousse balbuciava a letra de uma canção báquica.
— Ora aí está, meu caro senhor — disse Danglars a Fernand — Um casamento que me não parece fazer a felicidade de todos...
— A mim desespera-me — confessou Fernand.
— Quer dizer que ama Mercedes?
— Adoro-a!
— Há muito tempo?
— Sempre a amei, desde que nos conhecemos.
— E está para aí a arrancar os cabelos em vez de procurar remédio para o caso! Que diabo, não julgava que as pessoas da sua nação procedessem assim!
— Que quer que faça? — perguntou Fernand.
— Sei lá! Porventura o caso me diz respeito? Não sou eu, parece-me que estou apaixonado por Mademoiselle Mercedes, mas sim o senhor. Procurai, diz o Evangelho, e encontrareis.
— Já encontrei.
— O quê?
— Desejaria apunhalar o “homem”, mas a mulher disse-me que se acontecesse alguma coisa ao noivo se mataria.
— Ora, ora! Essas coisas se dizem, mas não se fazem!
— Não conhece Mercedes, senhor: desde o momento que ameaçou, cumpriria a sua ameaça.
— Imbecil! — murmurou Danglars — Quero lá saber que se mate ou não, contanto que Dantés não seja comandante.
— E antes de Mercedes morrer — prosseguiu Fernand em tom de firme decisão — Morreria eu.
— O que é o amor! — exclamou Caderousse em voz cada vez mais avinhada — Se isso não é amor, já não sei quem sou!
— Vejamos — disse Danglars — O senhor parece-me um rapaz simpático e diabos me levem se não gostaria de o ajudar; mas...
— Sim — disse Caderousse — Vejamos...
— Meu caro — prosseguiu Danglars — Está três quartos bêbado; acaba a garrafa e ficará por completo. Beba e não se meta no que fazemos, porque para o fazer é preciso ter a cabeça bem no seu lugar.
— Eu bêbado? — protestou Caderousse — Ora essa! Fica sabendo que seria capaz de beber mais quatro das tuas garrafas, que não são maiores do que frascos de água-de-colônia! Tio Pamphile, vinho.
E juntando o gesto à palavra, Caderousse bateu com o copo na mesa.
— Dizia então, senhor?... — disse Fernand, esperando com avidez o seguimento da frase interrompida.
— Que dizia eu? Não me lembro. Este bêbado do Caderousse me fez perder o fio dos meus pensamentos.
— Sou tão bêbado como você. Tanto pior para aqueles que têm medo do vinho. É porque têm algum mau pensamento que receiam que o vinho lhes descubra.
E Caderousse pôs-se a cantar os dois últimos versos de uma canção popular na época:
Todos os maus bebem água, como bem o provou o dilúvio...
— Dizia, senhor — insistiu Fernand — Que gostaria de me ajudar. Mas acrescentou...
— Sim, mas acrescentei... para ajudá-lo‚ preciso que Dantés não case com aquela que o senhor ama, e parece-me que o casamento pode muito bem não se realizar sem que Dantés morra.
— Só a morte os separará — disse Fernand.
— Meu amigo, você raciocina como se não tivesse nada na cabeça — atalhou Caderousse — E aqui Danglars, que é um finório, um manhoso, um espertalhão, vai-lhe provar que está enganado. Prove, Danglars. Respondo por você. Diga-lhe que não é necessário que Dantés morra; aliás, seria uma pena que Dantés morresse. É bom rapaz e gosto dele, à saúde de Dantés!
Fernand levantou-se com impaciência.
— Deixe-o — interveio Danglars, retendo o rapaz — De resto, por mais bêbado que esteja não faz grande diferença. A ausência separa tão bem como a morte... suponha que existia entre Edmond e Mercedes os muros de uma prisão; estariam tão separados como se houvesse entre eles a pedra de um túmulo.
— Pois sim, mas sai-se da prisão — observou Caderousse, que se agarrava à conversa com os restos da sua inteligência — E quando aquele que sai da prisão se chama Edmond Dantés, vinga-se.
— Que importa! — murmurou Fernand.
— De resto — prosseguiu Caderousse — Sob que acusação se meteria Dantés na prisão? Não roubou, nem matou, nem assassinou.
— Cale-se — ordenou Danglars.
— Não me quero calar — perguntou Caderousse — Quero que me digam sob que acusação meteriam Dantés na prisão. Gosto de Dantés. À sua saúde, Dantés!
E despejou novo copo de vinho.
Danglars verificou pelos olhos inexpressivos do alfaiate os progressos da embriaguez e prosseguiu, virando-se para Fernand:
— Então, já viu que não há necessidade de matá-lo?
— De fato não há se, como o senhor dizia há pouco, houver maneira de conseguir que Dantés seja preso. O senhor sabe qual é essa maneira?
— Procurando bem, será possível encontrá-la — respondeu Danglars — Mas... — continuou — Por que diabo hei de me meter nisso? Porventura é alguma coisa comigo?
— Não sei se é alguma coisa consigo ou não — replicou Fernand, agarrando-o por um braço — Mas o que sei é que o senhor tem qualquer motivo especial de ódio contra Dantés. Quem odeia não se engana a respeito dos sentimentos dos outros.
— Eu, motivos de ódio contra Dantés? Palavra que não tenho nenhum. Eu o vi infeliz, meu amigo, e a sua infelicidade interessou-me, mais nada. Mas uma vez que julga que procedo em meu próprio benefício, passe muito bem, meu caro amigo, desenrasque-se como puder.
E Danglars simulou levantar-se por sua vez.
— Não vá embora, espere! — pediu Fernand, retendo-o — No fim de contas, pouco me importa que queira ou não queira mal a Dantés; quero-lhe eu, confesso-o bem alto. Descubra a maneira e eu executo-a, contando que não haja morte do homem, pois Mercedes jurou que se mataria se alguém matasse Dantés.
Caderousse, que deixara cair a cabeça em cima da mesa, levantou-a e, olhando Fernand e Danglars com os olhos mortiços e embrutecidos, observou:
— Matar Dantés? Quem fala aqui em matar Dantés? Não consinto que o matem. E meu amigo, ainda esta manhã se ofereceu para compartilhar o seu dinheiro comigo, como compartilhei o meu com ele. Não consinto que matem Dantés!
— E quem fala em matá-lo, imbecil? — perguntou Danglars — Trata-se apenas de uma brincadeira. Beba à sua saúde — acrescentou, enchendo o copo de Caderousse — E deixe-nos tranqüilos.
— Sim, sim, à saúde de Dantés! — exclamou Caderousse, despejando o copo — À sua saúde!... à sua saúde!...
— Mas o meio... o meio? — insistiu Fernand.
— Ainda o não encontrou?
— Não, o senhor é que se encarregou disso.
— É verdade — concordou Danglars — Os Franceses têm esta vantagem sobre os espanhóis: enquanto os Espanhóis ruminam, os Franceses inventam.
— Então invente — perguntou Fernand, com impaciência.
— Criado, uma pena, tinta e papel! — pediu Danglars.
— Uma pena, tinta e papel... — murmurou Fernand.
— Sim, sou guarda-livros: a pena, a tinta e o papel são as minhas ferramentas, e sem as minhas ferramentas não sei fazer nada.
— Uma pena, tinta e papel! — gritou por sua vez Fernand.
— Têm o que desejam em cima daquela mesa — disse o criado, indicando os objetos pedidos.
— Então nos dê.
O criado pegou o papel, a tinta e a pena e colocou-os em cima da mesa da latada.
— Quando penso — comentou Caderousse, deixando cair a mão em cima do papel — Que há aqui com que matar um homem mais seguramente do que se o esperassem no recanto de um bosque para o assassinar!... Sempre tive mais medo de uma pena, dum tinteiro e de uma folha de papel, do que de uma espada ou de uma pistola.
— O velhaco não está ainda tão bêbado como parece — observou Danglars — Dê-lhe de beber, Fernand.
Fernand voltou a encher o copo de Caderousse e este, como bom bebedor que era, levantou a mão de cima do papel e levou-a ao copo.
O catalão seguiu-lhe o gesto até Caderousse, quase vencido por aquele novo ataque, pousar, ou antes deixar cair, o copo em cima da mesa.
— Então? — perguntou o catalão, vendo que o resto da razão de Caderousse começava a desaparecer depois do último copo de vinho.
— Então, dizia eu — prosseguiu Danglars — Que se, por exemplo, depois de uma viagem como a que acaba de fazer Dantés, e durante a qual escalou Nápoles e a Ilha de Elba, alguém o denunciasse ao procurador régio como agente bonapartista...
— Denuncio-o eu! — disse vivamente o rapaz.
— Pois sim, mas nesse caso obrigam-no a assinar a denúncia e acareiam-no com o denunciado. E claro que lhe fornecerei o necessário para sustentar a sua acusação, o problema não é esse, mas Dantés não ficará eternamente na prisão, mais dia menos dia sairá, e no dia em que sair... pobre daquele que o fez entrar!
— Oh, não peço outra coisa senão que me procure para lutarmos! — declarou Fernand.
— Claro! E Mercedes? Mercedes que o odiará se você tiver a infelicidade de arranhar sequer a pele do seu bem-amado Edmond?
— Tem razão — admitiu Fernand.
— Não, não — prosseguiu Danglars — Se está decidido a fazer semelhante coisa o melhor é pegar tranquilamente, como eu faço, nesta pena, molhá-la na tinta e escrever com a mão esquerda, para que a letra não seja conhecida, uma denunciazinha assim concebida...
E Danglars, juntando o exemplo à palavra, escreveu com a mão esquerda, com letra inclinada para trás que não tinha qualquer analogia com a sua caligrafia habitual, as seguintes linhas, que passou a Fernand e que Fernand leu a meia voz:


“O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris. Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon”.


— Assim, sim — prosseguiu Danglars — Assim a sua vingança teria sentido, porque de modo algum recairia sobre si e o caso seguiria o seu curso sozinho. Bastaria dobrar esta carta, como eu faço, e escrever por fora: “Ao Sr. Procurador Régio” e estaria tudo resolvido.
E Danglars escreveu o endereço, gracejando.
— Sim, estaria tudo resolvido! — gritou Caderousse, que num derradeiro esforço de inteligência seguira a leitura e compreendera instintivamente a desgraça que semelhante denúncia poderia ocasionar — Sim estaria tudo resolvido; simplesmente, seria uma infâmia!
E estendeu o braço para pegar a carta.
— Por isso — disse Danglars, colocando-a fora do alcance da mão de Caderousse — Por isso, o que digo e o que faço não passa de uma brincadeira, e seria o primeiro a lamentar se acontecesse alguma coisa a esse bom Dantés! Assim, olhe...
Pegou a carta, amarrotou-a nas mãos e atirou-a para um canto da latada.
— Agora estamos de acordo — disse Caderousse — Dantés é meu amigo e não quero que lhe façam mal.
— E quem diabo pensa fazer-lhe mal? Nem eu nem Fernand! — disse Danglars, levantando-se e olhando para o rapaz, que ficara sentado, mas cujos olhos devoravam de soslaio o papel denunciador caído a um canto.
— Nesse caso — acrescentou Caderousse — Que nos dêem vinho. Quero beber à saúde de Edmond e da bela Mercedes.
— Já bebeu demais, bêbado — volveu-lhe Danglars — E se continuar a beber assim terá de dormir aqui, pois não se agüentará nas pernas.
— Quem, eu? — replicou Caderousse, levantando-se com a fatuidade dos bêbedos — Eu não me agüentar nas pernas! Aposto que sou capaz de subir ao campanário de Accoules e sem cambalear!
— Está bem, aposto, mas amanhã — acedeu Danglars — Hoje são horas de voltar para casa; dê-me o braço e vamos.
— Vamos — concordou Caderousse — Mas não preciso do seu braço para nada. Vem, Fernand? Vem conosco até Marselha?
— Não, regresso aos Catalães — respondeu Fernand.
— Faz mal. Vem conosco até Marselha, anda.
— Não tenho nada que fazer em Marselha e nem quero ir até lá.
— Como você diz isso! Não quer, hein! Pobre rapaz? Pronto, faça o que quiseres! Liberdade para toda a gente! Anda, Danglars, e deixemos o cavalheiro regressar aos Catalães...
Danglars aproveitou aquele momento de boa vontade de Caderousse para se arrastar na direção de Marselha. Simplesmente, para proporcionar a Fernand um caminho mais curto e mais fácil, em vez de voltar pelo Cais da Rive-Neuve, regressou pela Porta de Saint-Victor. Caderousse segui-o, cambaleando, agarrado ao seu braço.
Depois de dar uma vintena de passos, Danglars virou-se e viu Fernand precipitar-se para o papel, que meteu na algibeira. Em seguida, correu imediatamente para fora da latada e dirigiu-se para o lado do Pillon.
— Aonde é que ele vai? — perguntou Caderousse — Mentiu, disse que ia para os Catalães e vai para a cidade! Ei, Fernand, está enganado, meu rapaz!
— Você é que não está vendo bem — observou Danglars — Vai direitinho pelo caminho das Vieilles-Infirmeries.
— É verdade — admitiu Caderousse — Pois olha que juraria que o vi virar à direita. Decididamente, o vinho é um traidor.
— Vamos, vamos — murmurou Danglars — Agora creio que as coisas estão bem encaminhadas e que basta deixá-las seguir sozinhas.



continua...



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