domingo, 26 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 3


III

OS CATALÃES




A
 cem passos do local em que os dois amigos, de olhos postos no horizonte e ouvido à escuta, saboreavam o vinho espumante de La Malgue, erguia-se atrás de uma colina escalvada e roída pelo sol e pelo mistral, a Aldeia dos Catalães.
Um dia, uma colônia misteriosa partiu de Espanha e desembarcou na língua de terra onde ainda hoje se encontra. Vinha ninguém sabia donde e falava uma língua desconhecida. Um dos chefes, que entendia o provençal, pediu à comuna de Marselha que lhes dessem aquele promontório nu e árido em que, como os marinheiros antigos, acabavam de varar os seus barcos. O pedido foi satisfeito e três meses mais tarde erguia-se uma aldeiazinha à volta dos doze ou quinze barcos trazidos por aqueles ciganos do mar.
Essa aldeia construída de forma estranha e pitoresca, meio moura, meio espanhola, é aquela que vemos hoje ser habitada por descendentes desses homens, que falam a língua dos pais. Há três ou quatro séculos que se conservam fiéis a esse promontoriozinho, sobre o qual desceram como um bando de aves marinhas, sem se misturarem em nada com a população marselhesa, casando entre si e conservando os costumes e o traje dos seus avós, tal como conservaram a sua linguagem.
Queiram os nossos leitores seguir-nos através da única rua da aldeiazinha e entrar conosco numa destas casas a que o sol deu por fora essa bela cor de folha morta particular aos monumentos da região e por dentro uma camada de têmpera, essa tinta branca que constitui o único ornamento das pousadas espanholas.
Uma bonita moça de cabelo negro como o azeviche e olhos aveludados como os das gazelas, encontrava-se encostada, de pé, a um tabique e esfregava entre os dedos afilados e de um desenho antigo uma urze inocente cujas flores arrancava e cujos restos juncavam já no chão. Além disso, os seus braços nus até ao cotovelo — os seus braços morenos, mas que pareciam modelados pelos da Vênus de Arles — fremiam numa espécie de impaciência febril e ela batia no chão com o pé flexível e arqueado de uma maneira que se entrevia a forma pura, orgulhosa e ousada da perna, metida numa meia de algodão encarnado com baguettes cinzentas e azuis.
A três passos dela, sentado numa cadeira que balançava num movimento brusco, apoiando o cotovelo num velho móvel carunchoso, um rapaz de vinte e dois anos olhava-a com um ar em que se misturavam a inquietação e o despeito.
Os seus olhos interrogavam, mas o olhar firme da moça dominava o seu interlocutor.
— Vejamos, Mercedes — dizia o rapaz — A Páscoa vem aí e é o momento pensar no casamento. Responde-me!
— Já te respondi cem vezes, Fernand, e na verdade é preciso que seja muito inimigo de você mesmo para continuar a perguntar-me!
— Pois repete-o mais uma vez, suplico-te, repete-o novamente para que o acredite. Diga-me pela centésima vez que recusa o meu amor, que a tua mãe aprovava; deixe-me entender que te é indiferente a minha felicidade, que a minha vida e a minha morte não significam nada para ti. Ah, meu Deus, meu Deus! Ter sonhado dez anos em ser teu marido, Mercedes, e perder essa esperança que era o único objetivo da minha vida!
— Pelo menos não fui eu, Fernand, que alguma vez alimentei essa esperança — respondeu Mercedes — Não tem a censurar-me uma única coqueteria para contigo. Sempre te disse: “Gosto de ti como um irmão, mas não exija de mim outra coisa que não seja esta amizade fraterna, pois o meu coração pertence a outro”. Não foi o que sempre te disse, Fernand?
— Foi, bem sei, Mercedes — respondeu o rapaz — Sim, tiveste para comigo o mérito cruel da franqueza. Mas esquece que entre os Catalães constitui uma lei sagrada casarem entre si?
— Você se engana Fernand, não se trata de uma lei, trata-se apenas de um hábito. E, acredita no que te digo, não invoques esse hábito a seu favor. Foi chamado às fileiras, Fernand. A liberdade que te concedem não passa de mera tolerância. De um momento para o outro pode ser chamado. Uma vez soldado, que faria de mim, isto é, de uma pobre órfã, triste, sem fortuna, possuindo como única riqueza uma cabana quase em ruínas, onde pendem algumas redes velhas, herança miserável deixada por meu pai à minha mãe e pela minha mãe a mim? Faz um ano que ela morreu e desde então, lembre-se Fernand, vivo quase da caridade pública! Às vezes finge que te sou útil, mas para ter o direito de dividir a pesca comigo. E eu aceito, Fernand, porque você é filho de um irmão do meu pai, porque fomos criados juntos e sobretudo porque te desgostaria muito se recusasse. Mas sinto bem que o peixe que vou vender e com que obtenho o dinheiro que me permite comprar o cânhamo que fio, sinto bem, Fernand, que é uma esmola.
— E que importa, Mercedes, se, por mais pobre e isolada que seja, me convém assim, mais do que a filha do mais orgulhoso armador ou do mais rico banqueiro de Marselha? De que precisamos nós? De uma mulher honesta e de uma boa dona de casa. Onde encontraria alguém melhor do que você nesses dois aspectos?
— Fernand — respondeu Mercedes abanando a cabeça — Uma mulher torna-se má dona de casa e não pode comprometer-se a ser honesta quando ama outro homem em vez do seu marido. Contente-se com a minha amizade porque, repito-te, é tudo o que posso oferecer, e eu só ofereço aquilo que estou certa de poder dar.
— Compreendo — disse Fernand — Suporta com paciência a tua miséria, mas tem medo da minha. Pois bem, Mercedes, amado por você tentarei a fortuna; você me dará sorte e enriquecerei. Posso tirar melhor partido da minha profissão de pescador; posso empregar-me numa casa comercial; eu posso próprio tornar-me comerciante!
— Não pode tentar nenhuma dessas coisas, Fernand. Você é um soldado e se ainda está nos Catalães é porque não há guerra. Continua a ser pescador; não se entregue a sonhos que te fariam parecer a realidade ainda mais terrível, e contente-se com a minha amizade, pois não posso dar outra coisa.
— Tem razão, Mercedes, serei marinheiro. Terei, em vez do traje dos nossos pais, que despreza, um chapéu de oleado, uma blusa às riscas e uma jaqueta azul com ancoras nos botões. Não é assim que devo me vestir para te agradar?
— Que quer dizer? — perguntou Mercedes, deitando-lhe um olhar imperioso — Que quer dizer? Não te compreendo.
— Quero dizer, Mercedes, que você só é tão dura e cruel para mim porque esperas alguém que se veste assim. Mas esse que espera talvez seja inconstante, e se o não é, o mar o será ele.
— Fernand, julgava-te bom, mas me enganei! — gritou Mercedes — Fernand, só um mau coração chamaria em auxílio do seu ciúme as cóleras de Deus! Sim, não o escondo mais, espero e amo aquele que você diz, e se ele não voltar, em vez de o acusar da inconstância a que te refere, direi que morreu amando-me.
O jovem catalão fez um gesto de raiva.
— Compreendo, Fernand odeia-o porque não te amo e está disposto a cruzar a tua navalha catalã com o seu punhal! Mas onde te levará isso? A perder a minha amizade se sair vencido e a ver a minha amizade transformar-se em ódio se sair vencedor. Acredita no que te digo: procurar brigar com um homem é uma péssima maneira de agradar à mulher que ama esse homem. Não, Fernand, não ceda assim aos seus maus pensamentos. Se não pode me ter como mulher, contente-se com ter-me por amiga e irmã. E depois — acrescentou com os olhos nublados e cheios de lágrimas — Espera, espera, Fernand. Como disseste há pouco, o mar é pérfido, e já lá vão quatro meses que ele partiu; e nesses quatro meses contei muitas tempestades!
Fernand permaneceu impassível. Não procurou enxugar as lágrimas que rolavam pelas faces de Mercedes. E no entanto daria um copo do seu sangue por cada uma dessas lágrimas. Mas essas lágrimas corriam por outro. Levantou-se, deu uma volta na cabana e tornou a parar diante de Mercedes, de olhos sombrios e punhos fechados.
— Vejamos, Mercedes — disse por fim — Responde-me mais uma vez: isso está decidido?
— Amo Edmond Dantés — respondeu friamente a jovem — E nenhum outro a não ser Edmond será meu marido.
— E o amará sempre?
— Enquanto viver.
Fernand baixou a cabeça como um homem desanimado e soltou um suspiro que mais parecia um gemido. Depois, de repente, levantou a cabeça e perguntou, com os dentes apertados e as narinas frementes:
— E se morreu?
— Se morreu, morrerei também.
— E se te esqueceu?
— Mercedes! — gritou uma voz alegre fora de casa — Mercedes!
— Ah! — exclamou a jovem, corando de alegria e estremecendo de amor — Bem vês que não me esqueceu, pois está aqui!
E correu para a porta, que abriu gritando:
— Aqui, Edmond, estou aqui!
Fernand, pálido e fremente, recuou como um viajante à vista de uma serpente e foi de encontro à cadeira, na qual caiu sentado.
Edmond e Mercedes estavam nos braços um do outro. O sol ardente de Marselha, que penetrava através da abertura da porta, inundava-os de uma torrente de luz. De início não viram nada do que os rodeava; uma felicidade imensa isolava-os do mundo e só dirigiam um ao outro frases entrecortadas, impulsos de uma alegria tão viva que chegavam a parecer expressões de dor. Mas de súbito Edmond descobriu a silhueta escura de Fernand, que se recortava na sombra, pálida e ameaçadora. Num gesto de que ele próprio não tinha consciência, o jovem catalão pousava a mão na faca que trazia à cintura.
— Ah, perdão! — exclamou Dantés, franzindo por sua vez o sobrolho — Não tinha notado que éramos três.
Depois, virando-se para Mercedes, perguntou:
— Quem é este senhor?
— Este senhor será o teu melhor amigo, Dantés, porque é meu amigo, meu primo, meu irmão. É Fernand, isto é, o homem que depois de ti, Edmond, mais amo no mundo. Não o reconhece?
— Ah, com certeza! — respondeu Edmond.
E sem largar Mercedes, cuja mão apertava numa das suas, estendeu num gesto de cordialidade a outra ao catalão.
Mas, em vez de corresponder a esse gesto amistoso, Fernand ficou mudo e imóvel como uma estátua.
Então, Edmond passeou o seu olhar investigador de Mercedes, comovida e trêmula, para Fernand, sombrio e ameaçador. Esse simples olhar revelou-lhe tudo. A cólera subiu-lhe à cabeça.
— Não teria vindo com tanta pressa a tua casa, Mercedes, se soubesse que encontrava nela um inimigo.
— Um inimigo! — exclamou Mercedes, dirigindo um olhar irado ao primo — Um inimigo em minha casa, você diz, Edmond? Se acreditasse nisso, te daria o braço e iria contigo para Marselha, deixaria esta casa para nunca mais voltar.
Os olhos de Fernand relampejaram.
— E se te acontecesse alguma desgraça, meu Edmond — continuou a jovem, com a mesma fleuma implacável que provava a Fernand que lera até ao mais fundo do seu sinistro pensamento — Se te acontecesse alguma desgraça subiria ao cabo de Morgion e me atiraria de cabeça nos rochedos.
Fernand empalideceu horrivelmente.
— Mas está enganado, Edmond — prosseguiu — Não tem nenhum inimigo aqui. Só Fernand, o meu irmão, que vai apertar a sua mão como a um amigo dedicado.
Proferidas estas palavras, a jovem fixou o seu olhar imperioso no catalão que, como que fascinado por esse olhar, se aproximou lentamente de Edmond e lhe estendeu a mão. O seu ódio, semelhante a uma vaga impotente, embora furiosa, quebrava-se contra o ascendente que aquela mulher exercia sobre ele. Mas assim que tocou na mão de Edmond, que sentiu que fizera tudo o que podia fazer, correu para fora de casa.
— Oh! — gritava correndo como um insensato e metendo os dedos nos cabelos — Oh, quem me livrasse deste homem! Que infelicidade a minha! Que infelicidade a minha!
— Eh, catalão! Eh, Fernand! Aonde vai correndo assim? — perguntou uma voz.
O rapaz parou de repente, olhou à sua volta e viu Caderousse sentado a uma mesa com Danglars, debaixo de uma latada de folhagem.
— Eh! — insistiu Caderousse — Por que não se aproxima? Está assim com tanta pressa que nem tem tempo de cumprimentar os amigos?
— Sobretudo quando têm ainda uma garrafa quase cheia diante de si — acrescentou Danglars.
Fernand olhou os dois homens com ar aparvalhado e não disse nada.
— Parece muito excitado — observou Danglars, tocando com o joelho em Caderousse — Não nos teremos enganado e, ao contrário do que prevíamos, ter sido Dantés; quem levou a melhor?
— Demônio, temos de tirar isso a limpo! — disse Caderousse.
E virando-se para o rapaz:
— Então, catalão, decide ou não?
Fernand enxugou o suor que lhe escorria da testa e entrou lentamente debaixo da latada, cuja sombra pareceu restituir-lhe um pouco de calma aos sentidos e a frescura um pouco de bem-estar ao corpo exausto.
— Bom dia — cumprimentou — Chamaram-me, não chamaram?
E mais caiu do que se sentou numa das cadeiras que rodeavam a mesa.
— Chamei porque corria como um louco e porque receei que fosse se atirar ao mar — redargüiu Caderousse, rindo — Que diabo, os amigos não são só para oferecer um copo de vinho, são também para nos impedir de beber três ou quatro litros de água!
Fernand soltou um gemido que mais pareceu um soluço e deixou cair a cabeça nos braços pousados em cruz em cima da mesa.
— Se quer que te diga, Fernand — prosseguiu Caderousse, encetando a conversa com a brutalidade grosseira da gente do povo, a quem a curiosidade faz esquecer toda a diplomacia — Tem o ar de um amante derrotado!
E sublinhou o gracejo com uma grande gargalhada.
— Ora — interveio Danglars — Um rapaz dessa pinta não nasceu para ser infeliz no amor. Está brincando, Caderousse.
— Estou? — perguntou este — Pois escuta como ele suspira... então, então, Fernand, levanta o nariz e responde-nos. Não é amável não responder aos amigos que nos perguntam como estamos de saúde.
— A minha saúde vai bem — disse Fernand, crispando os punhos, mas sem levantar a cabeça.
— Ah! Está vendo, Danglars? — disse Caderousse, piscando o olho ao amigo — Fernand, que vê aqui e é um bom e digno catalão, um dos melhores pescadores de Marselha, está apaixonado por uma linda moça chamada Mercedes. Mas, infelizmente, parece que a linda moça está, por sua vez, apaixonada pelo imediato do Pharaon. E como o Pharaon entrou hoje mesmo no porto... compreende?
— Não, não compreendo — respondeu Danglars.
— O pobre Fernand deve ter sido posto com dono — concluiu Caderousse.
— E depois? — interveio Fernand, levantando a cabeça e fitando Caderousse como um homem que procura alguém sobre quem descarregar a sua cólera — Mercedes não depende de ninguém? É absolutamente livre para amar quem quiser.
— Ah, se encara o caso assim isso é outra coisa! — perguntou Caderousse — Eu o julgava um catalão; e tinham me dito que os Catalães não eram homens que se deixassem suplantar por um rival. Disseram-me até que, sobretudo você, Fernand, era terrível nas suas vinganças.
Fernand sorriu palidamente.
— Um apaixonado nunca é terrível — observou.
— Pobre rapaz! — disse Danglars, fingindo lamentar o jovem do mais fundo do coração — Que quer, não esperava ver regressar assim Dantés, de repente. Talvez o julgasse morto, infiel, quem sabe! Essas coisas são tanto mais dolorosas quanto mais de surpresa nos acontecem.
— Em todo o caso — insinuou Caderousse, que bebia enquanto falava e em quem o famoso vinho de La Malgue começava a produzir efeito — Em todo o caso, dou-lhes a minha palavra de que Fernand não é o único a quem a feliz chegada de Dantés contraria. Não é verdade, Danglars?
— Claro que é verdade, e quase me atreveria a dizer que isso lhe dará azar...
— Mas não importa — prosseguiu Caderousse, deitando um copo de vinho a Fernand e enchendo pela oitava ou décima vez o seu próprio copo, enquanto Danglars mal tocara no seu — Não importa porque entretanto ele casa com Mercedes, a bela Mercedes. Pelo menos foi para isso que voltou.
Enquanto Caderousse falava, Danglars envolvia num olhar penetrante o jovem Fernand, no coração do qual as palavras do alfaiate calavam como chumbo derretido.
— Quando é o casamento? — perguntou.
— Oh, ainda não está marcado! — murmurou Fernand.
— Não está, mas estará — salientou Caderousse — Tão certo como Dantés será o comandante do Pharaon. Não é verdade, Danglars?
Danglars acusou a estocada inesperada e virou-se para Caderousse, cujo rosto observou, para ver se o golpe fora premeditado. Mas só viu inveja naquele rosto já quase estupidificada pela embriaguez.
— Pois bem — disse, enchendo os copos — Bebamos ao Comandante Edmond Dantés, marido da bela catalã!
Caderousse levou o copo à boca com mão pouco firme e despejou-o de um gole. Fernand pegou no seu e partiu-o no chão.
—Eh eh, eh! — gargalhou Caderousse — Mas quem vem ali, no alto da colina, na direção dos Catalães? Olha, Fernand, que tem melhor vista do que eu. Creio que começo a ver tudo turvo e como sabe o vinho é traiçoeiro... parecem dois namorados que caminham ao lado um do outro, de mãos dadas. Deus me perdoe, não desconfiam que os vemos e beijam-se!
Danglars não perdia nenhum sinal de angústia de Fernand, cujo rosto se descompunha a olhos vistos.
— Conhece-os, Sr. Fernand? — perguntou.
— Conheço — respondeu este, com voz surda — São o Sr. Edmond e Mademoiselle Mercedes.
— Ora vejam! — exclamou Caderousse — E eu que não os reconhecia... olá, Dantés! Olá, linda menina! Venham até aqui um bocadinho e digam-nos quando é o casamento, pois o Sr. Fernand é tão teimoso que não quer dizer.
— Faça o favor de se calar? — interveio Danglars, simulando conter Caderousse, que com a tenacidade dos bêbados se inclinava para fora da latada — Deixe os apaixonados amarem-se tranquilamente. Põe os olhos aqui no Sr. Fernand e segue-lhe o exemplo. É um homem razoável.
Talvez Fernand, de cabeça perdida, aguilhoado por Danglars como o touro pelos bandarilheiros, fosse finalmente explodir, tanto mais que já se levantara e parecia dobrar-se sobre si para saltar sobre o rival; mas Mercedes, risonha e decidida, levantou a bela cabeça e deixou ver o seu olhar puro e resplandecente.
Então Fernand lembrou-se da ameaça que ela fizera, de morrer se Edmond morresse, e deixou-se cair, desanimado, no seu lugar.
Danglars olhou sucessivamente para os dois homens: um embrutecido pela embriaguez, o outro dominado pelo amor.
— Não conseguirei nada destes idiotas — murmurou — E não é muito seguro para mim estar aqui entre um bêbado e um valentão. Eis um invejoso que se embebeda com vinho, quando deveria inebriar-se com fel, e um imbecil a quem acabam de roubar a amante diante do nariz e que se limita a choramingar e a lamentar-se como um garoto. E no entanto possui olhos chamejantes como esses espanhóis, esses sicilianos e esses calabreses, que se vingam tão bem, e punhos capazes de esmagar a cabeça de um boi tão seguramente como a maça de um magarefe. Decididamente, o destino de Edmond está traçado: casará com aquela linda moça, será comandante e rirá de nós. A menos que...
Um sorriso lívido desenhou-se nos lábios de Danglars.
— A menos que eu interfira nele — acrescentou.
— Olá! — continuava a gritar Caderousse, semi-levantado e com os punhos na mesa — Olá, Edmond! Não vê os amigos ou já se tornou tão orgulhoso que não lhes falas?
— Não, meu caro Caderousse — respondeu Dantés — Não me tornei orgulhoso, mas sinto-me feliz e a felicidade cega, creio, ainda mais do que o orgulho.
— Ainda bem! Aí está uma boa explicação — admitiu Caderousse.
— Eh, bom dia, Sra. Dantés!
Mercedes cumprimentou gravemente.
— Esse não é ainda o meu nome — disse — E na minha terra isso da azar, dizem. Não se deve chamar as moças pelo nome do noivo antes do noivo ser seu marido. Trate-me apenas por Mercedes, peço-lhe.
— Temos de perdoar essas coisas ao nosso bom vizinho Caderousse — interveio Dantés — Engana-se tão pouco!...
— Quer dizer que o casamento será em breve, Sr. Dantés? — perguntou Danglars, cumprimentando os dois jovens.
— Será o mais depressa possível, Sr. Danglars. Hoje se realizarão os esponsais em casa do meu pai e amanhã ou depois de amanhã, o mais tardar, o jantar de noivado, aqui, na Réserve. Espero que os amigos não faltem e escusado será dizer que está convidado, Sr. Danglars. E você também, Caderousse.
— E Fernand? — perguntou Caderousse, rindo com voz pastosa — E Fernand também?
— O irmão da minha mulher é meu irmão — declarou Edmond — E tanto Mercedes como eu o veríamos com profundo pesar afastar-se de nós em semelhante momento.
Fernand abriu a boca para responder, mas a voz morreu-lhe na garganta e não conseguiu articular uma única palavra.
— Hoje os esponsais, amanhã ou depois de amanhã o noivado... demônio, está com muita pressa, comandante!
— Danglars — disse Edmond, sorrindo — Digo-lhe o mesmo que Mercedes disse há pouco a Caderousse: não me trate pelo posto que ainda não me pertence, pois me daria azar.
— Perdão — respondeu Danglars — Queria dizer simplesmente que parecia com muita pressa. E, que diabo, temos tempo: o Pharaon não se fará ao mar antes de três meses.
— Tem-se sempre pressa de ser feliz, Sr. Danglars, porque quando se sofreu durante muito tempo tem-se muita dificuldade em acreditar na felicidade. Mas não é apenas o egoísmo que me impele, também tenho de ir a Paris.
— A Paris?! É a primeira vez que vai até lá, Dantés?
— É.
— O que vai fazer por lá?
— Nada meu, apenas uma última comissão do nosso pobre Comandante Leclére. Como deve compreender, Danglars, trata-se de um encargo sagrado. Mas esteja tranqüilo, não me demorarei mais do que o tempo de ir e vir.
— Sim, sim, compreendo — disse em voz alta Danglars.
E depois, baixinho:
— Vai a Paris para entregar, sem dúvida, ao seu destinatário a carta que o grande marechal lhe deu. Por Deus, essa carta dá-me uma idéia, uma excelente idéia! Ah, Dantés, meu amigo, ainda não figura no registro do Pharaon sob o número 1.
Depois virando-se para Edmond, que já se afastava, gritou-lhe:
— Boa viagem!
— Obrigado — respondeu Edmond, virando a cabeça e acompanhando este movimento com um gesto amistoso.
Em seguida os dois namorados continuaram o seu caminho, calmos e alegres como dois eleitos que sobem ao Céu.



 continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.