quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 6


VI

O SUBSTITUTO DO PROCURADOR RÉGIO




N
a Rua do Grand-Cours, defronte da Fonte das Medusas, numa dessas velhas casas de arquitetura aristocrática edificadas por Puget, celebrava-se também no mesmo dia e à mesma hora, um banquete de noivado. Simplesmente, em vez dos atores desta outra cena serem gente do povo, marinheiros e soldados, pertenciam à alta sociedade marselhesa.
Eram antigos magistrados que se tinham demitido dos seus cargos durante a usurpação, velhos oficiais que tinham desertado das fileiras para se alistarem nas do exército de Condé‚ e jovens educados pela família ainda mal tranquilizada acerca da sua existência, apesar dos quatro ou cinco substitutos que pagara, no ódio a esse homem de que cinco anos de exílio fariam um mártir e quinze anos de restauração um deus.
Estava-se à mesa e a conversa seguia o seu curso, animada por todas as paixões, as paixões da época, paixões tanto mais terríveis, vivas e encarniçadas no Meio-Dia quanto é certo que havia quinhentos anos os ódios religiosos alimentavam os ódios políticos.
O Imperador, rei da ilha de Elba depois de ter sido soberano de parte do mundo, reinando sobre uma população de cinco a seis mil almas depois de ter ouvido gritar “Viva Napoleão!” por cento e vinte milhões de súditos e em dez línguas diferentes, era tratado ali como um homem perdido para sempre para a França e para o trono. Os magistrados salientavam os erros políticos, os militares falavam de Moscou e Leipzig e as mulheres do seu divórcio de Josefina. Parecia àquela sociedade monárquica alegre e triunfante, não pela queda do homem, mas sim pelo aniquilamento do príncipe, que a vida recomeçava para ela e que saía de um sonho desagradável.
Um velho, condecorado com a cruz de S. Luís, levantou-se e propôs aos convivas um brinde à saúde do Rei Luís XVIII. Era o Marquês de Saint-Méran.
Por via desse brinde, que recordava ao mesmo tempo o exilado de Hartwell e o rei pacificador da França, estabeleceu-se grande rumor, os copos ergueram-se à moda inglesa e as mulheres desmancharam os seus ramalhetes e juncaram com eles a toalha. Foi um entusiasmo quase poético.
— Eles teriam de admitir, se estivessem aqui — disse a Marquesa de Saint-Méran, mulher de olhar severo, lábios finos e aspecto aristocrático e ainda elegante, apesar dos seus cinqüenta anos — Teriam de admitir, todos esses revolucionários que nos expulsaram e que por nossa vez deixamos conspirar tranquilamente nos nossos velhos castelos que compraram por uma cãdea no tempo do Terror, que a verdadeira dedicação esteve no nosso lado, pois nós ligamos o nosso destino ao da monarquia que se desmoronava, ao passo que eles, pelo contrário, saudaram o sol nascente e fizeram a sua fortuna enquanto nós perdíamos a nossa. E também teriam de admitir que para nós o nosso rei era unicamente Luís, o Bem-Amado, enquanto para eles o seu usurpador nunca passou de Napoleão, o maldito. Não é verdade, Villefort?
— Que diz, Sra. Marquesa?... Perdoai-me, mas não estava seguindo a conversa.
— Então, deixe essas crianças, marquesa — interveio o velho que fizera o brinde — Essas crianças vão se casar e muito naturalmente têm mais de que falar do que de política.
— Peço-lhe perdão, minha mãe — disse uma linda moça de cabelo louro e olhos de veludo nadando num fluido nacarado — Restituo-lhe o Sr. de Villefort, que monopolizei por um instante. Sr. de Villefort, a minha mãe está  falando consigo.
— Estou pronto a responder-lhe, minha senhora, se se dignar repetir a sua pergunta, que mal ouvi — disse o Sr. de Villefort.
— Está perdoada, Renée — declarou a marquesa, com um sorriso terno que se não esperaria ver florir naquele rosto severo.
Mas o coração da mulher é assim: por mais árido que o bafo dos preconceitos e as exigências da etiqueta o tornem, possui sempre um recanto fértil e ridente, aquele que Deus consagrou ao amor materno.
— Estão perdoados... pois eu dizia, Villefort, que os bonapartistas não tinham nem a nossa convicção, nem o nosso entusiasmo, nem a nossa dedicação.
— Mas, minha senhora, têm pelo menos uma coisa que substitui tudo isso: o fanatismo. Napoleão é o Maomé do Ocidente, é para todos esses homens vulgares, mas de ambições supremas, não só um legislador e um mestre, mas também um modelo, o modelo da igualdade.
— Da igualdade! — exclamou a marquesa — Napoleão o modelo da igualdade! E que reserva então para o Sr. de Robespierre? Parece-me que lhe rouba o lugar para o dar ao corso, de qualquer modo, parece-me que se trata pelo menos de uma usurpação.
— Não, minha senhora — respondeu Villefort — Deixo cada um no seu pedestal: Robespierre coloca Luís XVI no seu cadafalso, Napoleão coloca Vedame na sua coluna, simplesmente, um praticou a igualdade que rebaixa e o outro a igualdade que eleva. Um rebaixou os reis ao nível da guilhotina, o outro o povo ao nível do trono... mas isso não significa — acrescentou Villefort, rindo — Que ambos não sejam infames revolucionários e que o 9 do Termidor e o 4 de Abril de 1814 não constituam dois dias felizes para a França e dignos de ser igualmente festejados pelos amigos da ordem e da monarquia. E explica também por que motivo, apesar de ter caído para nunca mais se levantar, assim espero, Napoleão conservou os seus fanáticos. Que quer, marquesa? Cromwell, que não era mais de metade de tudo o que foi Napoleão, também tinha os seus!
— Sabe que tudo isso que acaba de dizer, Villefort, cheira a revolução à distância? Mas perdôo-lhe: não se pode ser filho de girondino sem se conservar alguns dos seus gostos.
A fronte de Villefort cobriu-se de vivo rubor.
— Meu pai era girondino, minha senhora, é verdade — perguntou — Mas foi proscrito por esse mesmo Terror que vos proscrevia, e pouco faltou para não lhe colocarem a cabeça no mesmo cadafalso que viu cair a do pai da Sra. Marquesa.
— É verdade — admitiu a marquesa, sem que tão sangrenta recordação provocasse a menor alteração no seu rosto — Em todo o caso, seria por motivos diametralmente opostos que ambos subiriam ao cadafalso, e a prova é que toda a minha família permaneceu fiel aos príncipes exilados, enquanto o seu pai se apressou a aderir ao novo governo e depois de o cidadão Noirtier ser girondino o Conde Noirtier tornou-se senador.
— Minha mãe — interveio Renée — Bem sabe que se combinou não voltar a falar dessas más recordações.
— Minha senhora — prosseguiu Villefort — Junto-me a Mademoiselle de Saint-Méran para lhe pedir muito humildemente o esquecimento do passado. Que adianta estarmos com recriminações a respeito de coisas em que a própria vontade de Deus é importante? Deus pode modificar o futuro, mas não pode modificar o passado. Nós, homens, o que podemos‚ senão renegá-lo, pelo menos deitar-lhe um véu por cima. Pela minha parte afastei-me não só da opinião, mas também do nome do meu pai. Meu pai foi ou até talvez ainda seja bonapartista e chama-se Noirtier, eu sou monárquico e chamo-me Villefort. Deixe morrer no velho tronco um resto de seiva revolucionária e veja apenas, minha senhora, o rebento que se afasta desse tronco, sem poder, e quase direi sem querer, separar-se dele por completo.
— Bravo, Villefort! — exclamou o Marquês — Bravo, bem respondido! Também eu tenho pregado constantemente à marquesa o esquecimento do passado sem nunca o conseguir. Espero que seja mais feliz do que eu.
— Sim, está bem — condescendeu a marquesa — Esqueçamos o passado. Não desejo outra coisa e foi, de fato, o que se combinou. Mas que pelo menos Villefort seja inflexível no futuro. Não se esqueça, Villefort, de que respondemos por si perante Sua Majestade, de que também Sua Majestade se dignou esquecer, a nosso pedido, e estender-lhe a mão, tal como eu esqueço a seu pedido. Simplesmente, se lhe cair algum conspirador nas mãos, lembre-se que tem tantos mais olhos postos em si quanto se sabe pertencer a uma família que talvez esteja relacionada com esses conspiradores.
— Infelizmente, minha senhora — respondeu Villefort — A minha profissão e sobretudo o tempo em que vivemos ordenam-me que seja severo. E eu o serei. Tenho já algumas acusações políticas a sustentar a esse respeito tenho dado as minhas provas. Desgraçadamente estamos longe do fim.
— Acha? — perguntou a marquesa.
— Muito o receio. Napoleão, na Ilha de Elba, está pertíssimo da França. A sua presença quase à vista das nossas costas alimenta a esperança dos seus partidários. Marselha está cheia de oficiais a meio soldo que todos os dias, sob qualquer pretexto fútil, procuram questões com os monárquicos. Daí duelos entre pessoas de classes elevadas, dai assassínios entre o povo.
— Pois sim — disse o Conde de Salvieux, velho amigo do Sr. de Saint-Méran e camareiro do Sr. Conde de Artois — Pois sim, mas como sabem a Santa Aliança pensa transferi-lo.
— Sim, falava-se disso quando da nossa partida de Paris — declarou o Sr. de Saint-Méran — Mas para onde?
— Para Santa Helena.
— Santa Helena? Que é isso? — perguntou a marquesa.
— Uma ilha situada a duas mil léguas daqui, para lá do equador — respondeu o conde.
— Ainda bem. Como disse Villefort, foi uma grande imprudência deixar semelhante homem entre a Córsega, onde nasceu, e Nápoles, onde ainda reina o cunhado, e diante da Itália, de que queria fazer um reino para o filho.
— Infelizmente — observou Villefort — Temos os tratados de 1814 e não é possível tocar em Napoleão sem desrespeitar esses tratados.
— Pois vamos desrespeitá-los! — replicou o Sr. de Salvieux — Acaso ele esteve com tantas contemplações quando se tratou de fuzilar o infeliz Duque de Enghien?
— Pronto, está combinado — interveio a marquesa — A Santa Aliança desembaraça a Europa de Napoleão e Villefort desembaraça Marselha dos seus partidários. O rei reina ou não reina, se reina, o seu governo deve ser forte e os seus agentes inflexíveis. É o único meio de prevenir o mal.
— Infelizmente, minha senhora — observou, sorrindo, Villefort — Um substituto do procurador régio chega sempre quando o mal já está feito.
— Nesse caso, compete-lhe repará-lo.
— Poderia dizer-lhe também, minha senhora, que não reparamos o mal, apenas o vingamos.
— Oh, Sr. de Villefort — exclamou uma jovem e bonita conviva, filha do Conde de Salvieux e amiga de Mademoiselle de Saint-Méran — Veja se consegue arranjar um bom julgamento enquanto estivermos em Marselha! Nunca entrei num tribunal e dizem que é muito curioso.
— É de fato muito curioso, mademoiselle — concordou o substituto — Porque em vez de uma tragédia fictícia, se trata de um drama autêntico, em vez de dores fingidas, trata-se de dores reais. O homem que se lá vê, em lugar de, uma vez o pano descido, regressar a casa, jantar em família e deitar-se tranquilamente para recomeçar no dia seguinte, regressa à prisão onde se encontra o carrasco. Como sabe, para as pessoas nervosas, que procuram emoções, não existe espetáculo que se lhe compare. Fique descansada, mademoiselle, se as circunstâncias o permitirem, proporcionar-lho-ei.
— O senhor brinca, mas esse espetáculo causa calafrios! — exclamou Renée, empalidecendo.
— Que quer... trata-se de um duelo... já pedi cinco ou seis vezes a pena de morte para réus políticos ou outros... pois bem, quem sabe quantos punhais se preparam a esta hora na sombra ou estão já apontados contra mim?
— Oh, meu Deus! — exclamou de novo Renée, empalidecendo cada vez mais — Fala sério, Sr. de Villefort?
— O mais seriamente possível, mademoiselle — respondeu o jovem magistrado, de sorriso nos lábios — E com os bons julgamentos que Mademoiselle de Salvieux deseja para satisfazer a sua curiosidade e que eu desejo para satisfazer a minha ambição, a situação só se agravará. Julga que todos esses soldados de Napoleão, habituados a enfrentar cegamente o inimigo, refletem quando queimam um cartucho ou quando atacam à baioneta? Porventura refletirão mais para matar um homem que julgam seu inimigo pessoal do que para matar um russo, um austríaco ou um húngaro que nunca viram? Aliás, assim é preciso, pois de contrário a nossa profissão não se justificaria. Eu próprio, quando vejo brilhar nos olhos do réu o relâmpago da raiva, sinto-me animadíssimo, exalto-me. Já se não trata de um julgamento, trata-se de um combate, luto contra ele, ele responde, insisto, e o combate termina, como todos os combates, por uma vitória ou uma derrota. Aqui tem o que é pleitear! É o perigo que dá a eloqüência. Um acusado que me sorrisse depois da minha réplica me levaria a supor que falara mal, que o que dissera fora frouxo, sem vigor, insuficiente. Pense, pois, na sensação de orgulho que experimenta um procurador régio convencido da culpabilidade do réu quando vê empalidecer e inclinar-se o seu culpado sob o peso das provas e os raios da sua eloqüência... essa cabeça que se baixa, cairá.
Renée soltou um gritinho.
— Assim é que é falar — disse um dos convivas.
— Eis o homem que é preciso em tempos como os nossos! — observou um segundo.
— Por isso — disse um terceiro — No seu último julgamento foi soberbo, meu caro Villefort. Lembra-se, retiro-lhe aquele homem que assassinara o pai... pois o caso é que você o matou literalmente antes de o carrasco lhe tocar.
— Oh, quando se trata de parricidas pouco me importo! — exclamou Renée — Não há suplício suficientemente grande para semelhantes homens. Mas para os pobres acusados políticos!...
— Isso é ainda pior, Renée, porque o rei é o pai da nação e querer derrubar ou matar o rei é querer matar o pai de trinta e dois milhões de homens.
— Oh, é a mesma coisa, Sr. de Villefort! — perguntou Renée — Prometa-me ser indulgente com aqueles que lhe recomendar?
— Fique descansada — respondeu Villefort com o seu sorriso mais encantador — Faremos juntos os meus requisitórios.
— Minha querida — interveio a marquesa — Cuide dos seus colibris, dos seus cães e dos seus trapos e deixe o seu futuro marido cumprir o seu dever. Hoje as armas descansam e é a vez da toga. A este respeito existe uma frase latina de grande profundidade...
“Cedant arma togoe[1]” — disse Villefort, inclinando-se.

[1] Submetam-se os exércitos à toga.

— Não me atrevo a falar latim — declarou a marquesa.
— Creio que preferiria que fosse médico — prosseguiu Renée — O anjo exterminador, por mais anjo que seja, sempre me meteu muito medo.
— Querida Renée! — murmurou Villefort, envolvendo a jovem num olhar apaixonado.
— Minha filha — disse o Marquês — O Sr. de Villefort, será o médico moral e político desta província. Acredite que é um papel digno de ser representado.
— E será uma maneira de fazer esquecer o que desempenhou o pai — acrescentou a incorrigível marquesa.
— Minha senhora — perguntou Villefort com um sorriso triste — Tive a honra de lhe dizer que o meu pai abjurara, pelo menos assim o espero, os erros do seu passado, que se tornara um amigo zeloso da religião e da ordem, melhor monárquico do que eu, talvez, pois ele o faz com arrependimento e eu sou apenas com paixão.
E depois desta frase torneada, Villefort, para apreciar o efeito da sua facúndia, olhou os convivas como depois de uma frase equivalente olharia o auditório no tribunal.
— Bom, meu caro Villefort — interveio o Conde de Salvieux — Foi precisamente isso que respondi anteontem nas Tulherias ao ministro da Casa Real, que me levantava algumas objeções acerca da singular aliança entre o filho de um girondino e a filha de um oficial do exército de Condé. E o ministro compreendeu perfeitamente. Aliás, tal união é do agrado de Luís XVIII, pois o rei, que sem que suspeitássemos escutava a nossa conversa, interrompeu-nos dizendo: “Villefort”, notem que o rei não pronunciou o nome de Noirtier e pelo contrário sublinhou o de Villefort, “Villefort”, disse o rei, “Fará uma boa carreira. Trata-se de um rapaz já amadurecido e da minha confiança. Vi com prazer o Marquês e a Marquesa de Saint-Méran tomarem-no como genro e lhes teria aconselhado essa aliança se não tivessem sido os primeiros a pedir-me licença para a contrair”.
— O rei disse isso, conde? — exclamou Villefort, extasiado.
— Foram as suas próprias palavras, e se o Marquês quiser ser franco confessará que o que acabo de dizer se harmoniza perfeitamente com o que o rei lhe disse a ele próprio quando lhe falou, há seis meses, de um projeto de casamento entre a filha e você.
— É verdade — confirmou o Marquês.
— Oh, deverei tudo a esse digno príncipe! Por isso, que não farei para o servir!
— Ora até que enfim! — disse a marquesa — É assim que gosto de o ver. Se neste momento aparecesse um conspirador, seria bem-vindo.
— Pois eu, minha mãe — atalhou Renée — Peço a Deus que não a escute e envie ao Sr. de Villefort apenas uns ladrõezecos, modestos falidos e tímidos vigaristas. Se assim acontecer, dormirei tranqüila.
— É como se desejasse ao médico enxaquecas, sarampos e picadas de vespas, tudo coisas que afetam apenas a epiderme — observou Villefort, rindo — Ora se, pelo contrário, me quiser ver procurador régio deseje-me dessas doenças terríveis cuja cura honra o médico.
Neste momento, e como se o acaso nada mais tivesse esperado do que a formulação do desejo de Villefort para o satisfazer, entrou um criado que lhe disse algumas palavras ao ouvido. Villefort pediu licença para deixar a mesa e voltou pouco depois de rosto aberto e lábios sorridentes.
Renée olhou-o com amor. Porque visto assim, com os seus olhos azuis, a sua tez mate e as suas suíças pretas, que lhe emolduravam o rosto, era realmente um elegante e bonito jovem. Por isso, todo o espírito da jovem pareceu ficar suspenso dos seus lábios enquanto esperava que ele explicasse a causa do seu desaparecimento momentâneo.
— Bom — disse Villefort — Há pouco ambicionava, mademoiselle, ter por marido um médico. Ora eu tenho com os discípulos de Esculápio (ainda se falava assim em 1815) pelo menos esta semelhança: nunca me pertence o momento que passa, vêm incomodar-me mesmo junto de si, mesmo no meu banquete de noivado.
— E por que motivo o incomodaram, senhor? — perguntou a linda jovem, com uma ligeira inquietação.
— Oh, por causa de um doente que, a crer no que me disseram, se deve encontrar em estado desesperado! Desta vez trata-se de um caso grave e a doença anda perto do cadafalso!
— Oh, meu Deus! — exclamou Renée, empalidecendo.
— Sim?! — disseram em uníssono os convivas.
— Parece que se acaba de descobrir, muito simplesmente, uma conspiraçãozinha bonapartista...
— Será possível? — perguntou a marquesa.
— Aqui está a carta denunciadora.
E Villefort leu:


“O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris. Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon”.


— Mas — disse Renée — Essa carta, que aliás não passa de uma carta anônima, é dirigida ao Sr. Procurador Régio e não a si.
— Sim, mas o procurador régio está ausente. Na sua ausência, a epístola foi entregue ao seu secretário, a quem compete abrir as cartas. Abriu, portanto esta, mandou-me procurar e, como se não encontrasse, ordenou a prisão.
— Assim, o culpado está preso? — perguntou a marquesa.
— Quer dizer, o acusado — corrigiu Renée.
— Está, sim, minha senhora — respondeu Villefort — E como tive a honra de dizer há pouco a Mademoiselle Renée, se se encontrar a carta em questão o doente está muito doente.
— E onde se encontra esse infeliz? — perguntou Renée.
— Em minha casa.
— Vá, meu amigo — disse o Marquês — Não falte aos seus deveres por nossa causa, quando o serviço do rei o espera do outro lado. Vá, pois onde o espera o serviço do rei.
— Oh, Sr. de Villefort, seja indulgente, lembre-se de que é o dia do seu noivado! — exclamou Renée, juntando as mãos.
Villefort contornou a mesa e, aproximando-se da cadeira da jovem, no espaldar da qual se apoiou, respondeu:
— Para lhe poupar uma preocupação, farei tudo o que puder, querida Renée. Mas se os indícios forem seguros e a acusação verdadeira, terá de se cortar essa erva daninha bonapartista.
Renée estremeceu ao ouvir a palavra “cortar”, porque a erva que se tratava de cortar era uma cabeça.
— Ora, ora! — interveio a marquesa — Não dê ouvidos a essa menina: ela tem de se ir habituando.
E a marquesa estendeu a Villefort a mão seca, que ele beijou sem desfitar Renée e dizendo-lhe com os olhos: “É a sua mão que beijo, ou pelo menos que desejaria beijar neste momento”.
— Tristes auspícios! — murmurou Renée.
— Na verdade, menina — disse a marquesa — É de uma infantilidade desesperante. Muito gostaria de saber que tem o destino do Estado a ver com as fantasias sentimentais e as suas pieguices de coração.
— Oh, minha mãe! — murmurou Renée.
— Piedade para a má monárquica, Sra. Marquesa — pediu Villefort — Prometo-lhe desempenhar-me conscienciosamente da minha missão de substituto do procurador régio, isto é, ser horrivelmente severo.
Mas ao mesmo tempo que o magistrado dirigia estas palavras à marquesa o noivo olhava de soslaio para a noiva e o seu olhar dizia; “Esteja tranqüila, Renée, em atenção ao seu amor serei indulgente”.
Renée correspondeu a esse olhar com o seu mais terno sorriso e Villefort saiu com o paraíso no coração.






continua...




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