domingo, 31 de julho de 2011

[CULINÁRIA] Bolo de Caneca


BOLO DE CANECA


Ingredientes da Massa :
1 ovo pequeno
4 colheres (sopa) de leite
3 colheres (sopa) de óleo
2 colheres (sopa) rasas de chocolate em pó
4 colheres (sopa) rasas de açúcar
4 colheres (sopa) rasas de farinha de trigo
1 colher (café) rasa de fermento em pó

Ingredientes Calda:
2 colheres (sopa) de leite
1 colher (chá) de manteiga
2 colheres (sopa) rasas de açúcar
3 colheres (sopa) rasas de chocolate em pó

Modo de Preparo (Massa):
1. Escolha uma caneca de 500ml e quebre o ovo dentro. Bata bem com um garfo.
2. Acrescente o óleo, o açúcar, o leite, o chocolate e bata mais.
3. Acrescente a farinha de trigo e o fermento em pó, mas não bata, apenas mexa delicadamente até incorporar e a massa fica homogênea.
4. Leve ao microondas por 3 minutos na potência máxima.

Modo de Preparo (Calda):
Em uma panela, mistures todos os ingredientes e leve ao fogo baixo por 3 minutos.

Dica de Cozinheiro:
§   Antes de por a calda, pegue um garfo, e usando as pontas, faça alguns furinhos na superfície do bolo, e nas bordas. Então despeje a calda por cima.
§   Nunca, sob nenhuma circunstancia, bata a farinha de trigo. Isso impedirá a massa de crescer.



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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer". (Thomas Hardy)

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 35


XXXV

A “MAZZOLATA”




— Senhores — disse ao entrar o Conde de Monte Cristo — Aceitem as minhas maiores desculpas por não me ter antecipado, mas receei ser indiscreto se me apresentasse tão cedo nos seus aposentos. Aliás, mandaram-me dizer que viriam e por isso estou à disposição de ambos.
— Franz e eu temos de lhe apresentar mil agradecimentos, Sr. Conde — disse Albert — Tirou-nos realmente de um grande apuro e estávamos em vias de inventar os veículos mais fantásticos no momento em que recebemos o seu amável convite.
— Meu Deus, senhores — perguntou o conde, fazendo sinal aos dois rapazes para se sentarem no sofá — Só por culpa do imbecil do Pastrini os deixei tanto tempo em dificuldades! Não me disse nada acerca do embaraço em que se encontravam, a mim que, sozinho e isolado como estou aqui, apenas procurava uma oportunidade de estabelecer relações com os meus vizinhos. Logo que soube que lhes podia ser útil em qualquer coisa, bem viram com que alvoroço, aproveitei essa oportunidade para lhes apresentar os meus cumprimentos.
Os dois jovens inclinaram-se. Franz ainda não encontrara uma única palavra para dizer. Ainda não tomara nenhuma resolução e, como nada indicava no Conde o seu desejo de o reconhecer ou de ser reconhecido por ele, não sabia se devia, com qualquer palavra, aludir ao passado ou deixar ao futuro o cuidado de lhe fornecer novas provas. De resto, embora estivesse certo de que era ele quem se encontrava na véspera no camarote, não podia responder tão positivamente quanto a ser ele o homem que na antevéspera estivera no Coliseu. Resolveu, portanto deixar correr o marfim, como se costuma dizer, sem dirigir ao Conde qualquer pergunta direta. Aliás, tinha uma vantagem sobre ele, era senhor do seu segredo, ao passo que, pelo contrário, o Conde não podia exercer qualquer ação sobre Franz, que não tinha nada a esconder.
Em todo o caso resolveu encaminhar a conversa para um ponto que podia, mesmo assim, conduzir sempre ao esclarecimento de certas dúvidas.
— O Sr. Conde — disse — Ofereceu-nos lugares na sua carruagem e nas suas janelas do Palácio Rospoli. Poder dizer-nos agora como nos será possível arranjar um posto qualquer, como se diz na Itália, na Praça del Popolo?
— Ah, sim, é verdade! — exclamou o Conde com ar distraído e olhando Morcerf com muita atenção — Não há na Praça del Popolo qualquer coisa como uma execução?
— Há — respondeu Franz, vendo que ele vinha por si mesmo aonde o queria trazer.
— Espere, espere... creio ter dito ontem ao meu intendente para tratar disso. Talvez possa prestar-lhes também esse pequeno serviço.
Estendeu a mão para um cordão de campainha e puxou-o três vezes.
— Nunca se preocupou — disse a Franz — Com o emprego do tempo e o meio de simplificar as idas e vindas dos criados? Fiz um estudo disso. Quando toco uma vez é para o meu criado de quarto; duas vezes, é para o meu mordomo; três vezes, é para o meu intendente. Assim, não perco nem um minuto, nem uma palavra. Cá está o nosso homem.
Viu-se então entrar um indivíduo de quarenta e cinco a cinqüenta anos, que pareceu a Franz assemelhar-se como duas gotas de água com o contrabandista que o introduzira na gruta, mas que não pareceu reconhecê-lo por nada deste mundo. Pelo visto, fora avisado.
— Sr. Bertuccio — perguntou o Conde — Tratou, como lhe ordenei ontem, de me arranjar uma janela na Praça del Popolo?
— Tratei, sim, Excelência — respondeu o intendente — Mas era muito tarde...
— Como, não lhe tinha dito que queria uma? — indagou o Conde, franzindo o sobrolho.
— E Vossa Excelência tem uma, a que estava alugada ao Príncipe Lobanieff. Mas tive de pagar por cento...
— Está bem, está bem, Sr. Bertuccio, poupe a estes senhores a todos esses pormenores domésticos. Arranjou a janela, não arranjou? Pois nada mais é preciso. Dê o endereço da casa ao cocheiro e este já na escada para nos acompanhar. Não é preciso mais nada. Vá.
O intendente cumprimentou e deu um passo para se retirar.
— Ah! — deteve-o o Conde — Faça-me o favor de perguntar a Pastrini se recebeu a tavoletta e me quer enviar o programa da execução.
— É inútil — interveio Franz, tirando a sua agenda da algibeira — Vi esses cartazes, copiei-os e tenho-os aqui.
— Muito bem. Então, Sr. Bertuccio, pode-se retirar, não preciso mais de si. Previnam-nos apenas quando o pequeno almoço estiver servido. Estes senhores — continuou, virando-se para os dois amigos — Dão-me a honra de tomar o pequeno almoço comigo, não é verdade?
— Mas, Sr. Conde, na verdade seria abusar — protestou Albert.
— Não, antes pelo contrário, dar-me o grande prazer. Retribuir-me o tudo isto um dia, em Paris, um ou outro e talvez ambos. Sr. Bertuccio, mande pôr três talheres.
Tirou a agenda das mãos de Franz.
— Dizem, portanto — continuou no tom de quem lê os pequenos anúncios — Que... “serão executados hoje, 12 de Fevereiro, o réu Andrea Rondolo, culpado de assassínio na pessoa respeitabilíssima e veneradíssima de D. César Terlini, cônego da Igreja de São João de Latrão, e o réu Peppino, também conhecido por Rocca Priori, culpado de cumplicidade com o detestável bandido Luigi Vampa e os homens da sua quadrilha...” Hum!... “O primeiro será mazzolato e o segundo decapitado”. Sim, com efeito — prosseguiu o Conde — Era de fato assim que as coisas se deviam passar primitivamente; mas parece-me que desde ontem houve qualquer alteração na ordem e na seqüência da cerimônia.
— Sim? — observou Franz.
— Sim. Ontem, em casa do Cardeal Rospigliosi, onde passei a noite, falava-se de qualquer coisa como um adiamento concedido a um dos dois condenados.
— A Andrea Rondolo? — perguntou Franz.
— Não... — perguntou negligentemente o Conde — Ao outro... — deitou uma olhadela à agenda, como que para se recordar do nome —... A Peppino, por alcunha Rocca Priori. Isso priva-os de uma guilhotinadela, mas resta-lhes a mazzolata, que é um suplício deveras curioso quando se vê pela primeira vez e mesmo pela segunda, ao passo que o outro, que aliás devem conhecer, é muito simples, muito rápido, e sem nada de inesperado. A mandaça nunca falha, não treme, não, fere em falso, não obriga a tentar trinta vezes, como aconteceu ao soldado encarregado de cortar a cabeça ao conde de Chalais, e ao qual, de resto, Richelieu, talvez tivesse recomendado o paciente. Mas deixemo-nos disto — acrescentou o Conde em tom desdenhoso — Não me falem dos Europeus no tocante a suplícios; não percebem nada disso e encontram-se verdadeiramente na infância, ou antes, na velhice da crueldade.
— Na verdade, Sr. Conde — observou Franz — Dir-se-ia que fez um estudo comparado dos suplícios entre os diversos povos do mundo.
— Pelo menos há poucos que não tenha visto — respondeu friamente o Conde.
— E encontrou prazer em assistir a esses horríveis espetáculos?
— A minha primeira sensação foi de repulsa, a segunda de indiferença e a terceira de curiosidade.
— Curiosidade! A palavra é terrível, não acha?
— Por quê? Na vida há apenas uma preocupação grave: a morte. Pois bem, não seria curioso estudar de que formas diferentes a alma pode sair do corpo e como, segundo os caracteres, os temperamentos e até os costumes do país, os indivíduos suportam essa suprema passagem do ser para o nada? Quanto a mim, respondo-lhe uma coisa: quanto mais vemos morrer, mais fácil se toma morrer. Assim, na minha opinião, a morte é talvez um suplício, mas não é uma expiação.
— Não o compreendo bem — confessou Franz — Explique-se, pois tenho dificuldade em dizer-lhe até que ponto as suas palavras espicaçaram a minha curiosidade.
— Escute — disse o Conde, e o seu rosto encheu-se de rancor como o de qualquer outra pessoa se coloraria de sangue — Se um homem tivesse feito perecer por meio de torturas inauditas, no meio de tormentos sem fim, o seu pai, a sua mãe, a sua noiva, um desses seres, enfim, que quando os desenraizam do nosso coração deixam nele um vazio eterno e uma chaga sempre sangrenta, consideraria a reparação que lhe concedesse a sociedade suficiente, só porque o cutelo da guilhotina passou entre a base occipital e os músculos trapézios do assassino e porque este que o fez passar anos de sofrimentos morais, experimentou alguns segundos de dor física?
— Sim, bem sei que a justiça humana é insuficiente como confortadora — admitiu Franz — Só pode verter o sangue em troca do sangue, e mais nada. Mas temos de nos contentar com o que ela pode e não com outra coisa.
— Vejamos um caso material — prosseguiu o Conde — Aquele em que a sociedade, ferida pela morte de um indivíduo, na base em que assenta, vinga a morte com a morte. Mas não há milhões de dores em que as entranhas do homem podem ser dilaceradas sem que a sociedade se preocupe minimamente com isso, sem que lhe ofereça o meio insuficiente de vingança de que falamos há pouco? Não há crimes para os quais o empalamento dos Turcos, os alcatruzes dos Persas e os látegos dos Iroqueses seriam suplícios demasiado suaves e que, no entanto a sociedade, indiferente, deixa sem castigo?... Responda, não há crimes assim?
— Há — concordou Franz — E é para os punir que o duelo é tolerado.
— Ah, o duelo!... — exclamou o Conde — Curiosa maneira, palavra, de alcançar um fim, quando o fim é a vingança! Um homem rouba-lhe a amante, seduz-lhe a mulher, desonra-lhe a filha. De uma vida inteira que tinha o direito de esperar de Deus a parte de felicidade por Ele prometida a todo o ser humano ao criá-lo, esse homem fez uma existência de dor, miséria ou infâmia, e o senhor considera-se vingado infligindo-lhe, a um homem que lhe introduzi o delírio no espírito e o desespero no coração, uma estocada no peito ou metendo-lhe uma bala na cabeça? Ora adeus! Sem contar que muitas vezes é ele que sai triunfante da luta, limpo aos olhos do mundo e de certo modo absolvido por Deus. Não, não — continuou o Conde — Se alguma vez tivesse de me vingar, não seria assim que me vingaria.
— Portanto, desaprova o duelo? Portanto, não se bateria em duelo? — perguntou por sua vez Albert, atônito por ouvir em emitir tão estranha teoria.
— Oh, claro que me bateria! — respondeu o Conde — Entendamo-nos: me bateria em duelo por uma miséria, por um insulto, por um desmentido, por uma bofetada, e isso com tanta mais despreocupação quanto é certo que, graças à experiência que adquiri de todos os exercícios do corpo e ao lento hábito que também adquiri do perigo, teria quase a certeza de matar o meu homem. Oh, claro que me bateria em duelo por tudo isso! Mas por um sofrimento lento, profundo, infinito, eterno, infligiria, se me fosse possível um sofrimento idêntico ao que me tivessem causado: olho por olho, dente por dente, como dizem os orientais, nossos mestres em todas as coisas, esses eleitos da criação que souberam criar para si uma vida de sonhos e um paraíso de realidades.
— Mas — observou Franz ao Conde — Com essa teoria que o constitui juiz e carrasco na sua própria causa, seria difícil que se contivesse numa medida que lhe permitisse escapar eternamente ao poder da lei. O ódio é cego, a cólera desorienta, e aquele que serve a si próprio a vingança arrisca-se a beber uma beberagem amarga.
— Sim, se é pobre e inexperiente; não, se é milionário e hábil. Aliás, o pior que lhe pode acontecer é o último suplício de que falamos há pouco, aquele que a filantrópica Revolução Francesa inventou para substituir o esquartejamento e a roda. Mas que significa o suplício se estiver vingado? Na verdade, sinto-me quase decepcionado por, segundo todas as probabilidades, esse miserável Peppino não ser decapitado, como eles dizem, pois se o fosse veriam como a execução é rápida e se realmente vale a pena perder tempo falando respeito. Mas agora reparo, meus senhores, que escolhemos uma conversa deveras singular para um dia de carnaval. Como aconteceu tal coisa? Ah, já me lembro! Pediram-me um lugar à minha janela. Pois bem, seja, o terão. Mas sentemo-nos primeiro à mesa, pois vêm anunciar-nos que estamos servidos.
Com efeito um criado abriu uma das quatro portas da sala e proferiu as palavras sacramentais:
— Al suo commodo!
Os dois jovens levantaram-se e passaram à sala de jantar. Durante o café da manhã, excelente e servido com infinito requinte, Franz procurou com a vista os olhos de Albert, a fim de ler neles a impressão que sem dúvida produzira nele as palavras do seu anfitrião. Mas quer porque na sua despreocupação habitual lhes não tivesse prestado grande atenção, quer porque a concessão que o Conde de Monte Cristo lhe fizera a propósito do duelo o tivesse reconciliado com ele, quer finalmente porque os antecedentes que relatamos, apenas conhecidos de Franz, tivessem duplicado só para si o efeito das teorias do Conde, não notou que o companheiro estivesse de modo algum preocupado. Muito pelo contrário, fazia honra à refeição como homem condenado havia quatro ou cinco meses à cozinha italiana, isto é, a uma das piores cozinhas do mundo. Quanto ao Conde, mal tocava em cada prato. Dir-se-ia que ao sentar-se à mesa com os seus convivas cumpria um mero dever de cortesia e que esperava que se fossem embora para se mandar servir alguma iguaria estranha ou especial.
Malgrado seu, o caso lembrava a Franz o terror que o Conde inspirara à condessa G... e a convicção em que a deixara de que o Conde, o homem que lhe mostrara no camarote fronteiro ao dela, era um vampiro.
No fim do café da manhã, Franz puxou o relógio.
— Estão assim com tanta pressa? — perguntou-lhe o Conde.
— Queira desculpar-nos, Sr. Conde — respondeu Franz — Mas temos ainda de fazer mil coisas.
— O quê?
— Não temos máscaras e hoje as máscaras são obrigatórias.
— Não percam tempo com isso. Temos, segundo creio, um quarto particular na Praça del Popolo. Mandarei levar para lá os trajes que se dignarem indicar-me e nos mascararemos imediatamente.
— Depois da execução? — perguntou Franz.
— Sem dúvida. Depois, durante, ou antes, como quiserem.
— Diante do cadafalso?
— O cadafalso faz parte da festa.
— Desculpe, Sr. Conde, mas pensei melhor — perguntou Franz — Decididamente, agradeço-lhe a sua amabilidade, mas me contentarei com um lugar na sua carruagem e outro à janela do Palácio Rospoli, e o deixarei livre, para dispor dele como entender, o meu lugar à janela da Praça del Popolo.
— Mas assim perde, previno-o, uma coisa deveras curiosa — contrapôs o Conde.
— O senhor me contará — insistiu Franz — E estou convencido de que pela sua boca o relato me impressionará quase tanto como a vista. De resto, já por mais de uma vez quis assistir a uma execução e nunca fui capaz. E você, Albert?
— Eu — respondeu o visconde — Vi executar Castaing. Mas creio que estava um bocadinho alegre nesse dia. Foi no dia da minha saída do colégio e tínhamos passado a noite não sei em que botequim.
— Aliás, o fato de não ter feito uma coisa em Paris não é razão para que a não faça no estrangeiro. Quando viajamos, é para nos instruirmos; quando mudamos de terra, é para ver. Lembre-se, portanto do rosto que fará quando lhe perguntarem: “Como são as execuções em Roma?”. E tiver de responder: “Não sei”. Além disso, consta que o condenado é um refinado patife, um velhaco que matou a golpes de cão de chaminé um bom cônego que o criara como filho. Que diabo, quando se assassina um sacerdote escolhe-se arma mais conveniente do que um cão de chaminé, sobretudo quando o sacerdote é talvez nosso pai. Se viajasse pela Espanha iria assistir às touradas, não é verdade? Pois bem, suponha que vamos ver uma tourada. Lembre-se dos antigos romanos do circo, das caçadas onde se matavam trezentos leões e uma centena de homens. Lembre-se dos oitenta mil espectadores que batiam palmas, das sensatas matronas que levavam as filhas casadouras e das encantadoras vestais de mãos brancas que faziam com o polegar um não menos encantador sinalzinho que significava: “Vamos, nada de moleza! Acabem com esse homem que já está há três quartos morto”.
— Vamos, Albert? — perguntou Franz.
— Claro que sim, meu caro! Estava como você, mas a eloqüência do Conde me fez decidir.
— Vamos, mas porque você quer — salientou Franz — Mas no caminho para a Praça del Popolo desejava passar pela Rua do Corso. Será possível. Sr. Conde?
— A pé, sim; de carruagem, não.
— Então, irei a pé.
— É assim tão necessário passar pela Rua do Corso?
— É. Quero ver uma coisa.
— Nesse caso, passaremos pela Rua do Corso. Mandaremos a carruagem pela Estrada del Babuino esperar-nos na Praça del Popolo. De resto, também não me importo de passar pela Rua do Corso para ver se umas ordens que dei foram cumpridas.
— Excelência — disse o criado abrindo a porta — Um homem vestido de penitente pede para vos falar.
— Ah, sim, sei do que se trata! — disse o Conde — Meus senhores, dignem-se passar novamente à sala onde encontrarão na mesa do centro excelentes charutos de Havana. Irei ter convosco dentro de instantes.
Os dois jovens levantaram-se e saíram por uma porta, enquanto o Conde, depois de lhes renovar as suas desculpas, saía por outra.
Albert que era um grande apreciador de charutos e que desde que estava na Itália não considerava pequeno sacrifício estar privado dos charutos do Café de Paris, aproximou-se da mesa e soltou um grito de alegria ao ver autênticos puros.
— Então, que pensa do Conde de Monte Cristo? — perguntou-lhe Franz.
— Que penso? — disse Albert, visivelmente surpreendido pelo companheiro lhe fazer semelhante pergunta — Penso que é um homem encantador, que faz maravilhosamente as honras da sua casa, que viu, estudou e refletiu muito, que é, como Bruto, da escola estóica, e — acrescentou, soltando amorosamente uma baforada de fumo que subiu em espiral para o teto — Que além de tudo isso possui excelentes charutos.
Era esta a opinião de Albert acerca do Conde. Ora, como Franz sabia que Albert tinha a pretensão de não ter opinião a respeito dos homens e das coisas senão depois de madura reflexão, não tentou modificar-lha. No entanto, perguntou-lhe:
— Não notou uma coisa singular?
— O quê?
— A atenção com que o olhava.
— A mim?
— Sim, a você.
Albert refletiu.
— Oh, não há nada de estranho nisso! — perguntou, suspirando — Há cerca de um ano que estou ausente de Paris e as minhas casacas devem estar fora de moda. O Conde deve ter-me tomado por um provinciano. Desengane-o, caro amigo, e diga-lhe, peço-lhe, na primeira oportunidade, que isso não é verdade.
Franz sorriu. Um instante depois o Conde regressou.
— Cá estou, senhores, e inteiramente à sua disposição — disse — As ordens estão dadas: a carruagem segue para a Praça del Popolo e nós, se estão de acordo, seguimos para a Rua do Corso. Tire alguns desses charutos, Sr. de Morcerf.
— Aceito, palavra, com grande prazer — disse Albert — Porque os charutos italianos são ainda piores do que os da fábrica do Estado, na França. Quando for a Paris lhe retribuirei tudo isto.
— E eu não recusarei. Espero ir lá qualquer dia e, uma vez que me permitir, irei bater-lhe à porta. E agora vamos, meus senhores, vamos porque não temos tempo a perder. É meio-dia e meia hora, partamos.
Desceram os três. O cocheiro recebeu as últimas ordens do amo e seguiu pela Via del Babuino, enquanto eles subiam a pé a Praça de Espanha e a Via Frattina, que os levava direitos aos palácios Fiano e Rospoli.
Toda a atenção de Franz se concentrou nas janelas deste último palácio. Não esquecera o sinal convencionado no Coliseu entre o homem da capa e o trasteveriano.
— Quais são as suas janelas? — perguntou ao Conde no tom mais natural que conseguiu arranjar.
— As três últimas — respondeu ele com uma negligência que não tinha nada de afetada, pois não podia adivinhar com que fim lhe faziam a pergunta.
Franz olhou rapidamente para as três janelas. As janelas laterais estavam forradas de damasco amarelo e a do meio de damasco branco com uma cruz vermelha.
O homem da capa cumprira a palavra que dera ao trasteveriano e já não havia dúvida: o homem da capa era o Conde. As três janelas encontravam-se ainda vazias.
De resto, por todos os lados se faziam preparativos. Colocavam-se cadeiras, erguiam-se bancadas, forravam-se janelas. As máscaras não podiam aparecer nem as carruagens circular senão ao toque do sino; mas adivinhavam-se as máscaras atrás de todas as janelas e as carruagens atrás de todas as portas.
Franz, Albert e o Conde continuaram a descer a Rua do Corso. À medida que se aproximavam da Praça del Popolo a multidão tornava-se mais densa e por cima das cabeças dessa multidão erguiam-se duas coisas: o obelisco encimado por uma cruz que indica o centro da Praça e, à frente do obelisco, precisamente no ponto de correspondência visual das três ruas do Babuino, do Corso e da Ripetta, as duas traves principais do cadafalso, entre as quais brilhava o cutelo arredondado da mandaça. Na esquina da rua encontrava-se o intendente do Conde, à espera do amo.
A janela alugada pelo preço exorbitante de que o Conde não quisera que os seus convidados tomassem conhecimento pertencia ao segundo andar do grande palácio situado entre a Rua do Babuino e o monte Píncio. Era, como dissemos, a janela de uma espécie de gabinete de vestir que dava para um quarto de dormir, os ocupantes do gabinete estavam como que em sua casa. Em cima das cadeiras viam-se trajes de palhaço, de cetim branco e azul, dos mais elegantes.
— Como me deixaram a escolha das máscaras — disse o Conde aos dois amigos — Mandei arranjar-lhes estas. Primeiro, porque são as mais em moda este ano; depois, por serem as mais cômodas para os confeti, atendendo a que a farinha se não vê.
Franz só muito imperfeitamente ouvia as palavras do Conde e por isso talvez não tenha apreciado no seu justo valor aquela nova amabilidade. A verdade é que toda a sua atenção estava concentrada no espetáculo que oferecia a Praça del Popolo e no instrumento terrível que naquela altura era o seu principal ornamento.
Era a primeira vez que Franz via uma guilhotina. Dizemos guilhotina porque a mandaça romana‚ talhada mais ou menos pelo mesmo padrão do nosso instrumento de morte. A única diferença reside no fato de o cutelo, que tem a forma de uma lua crescente e corta com a parte convexa, cair de menos alto.
Dois homens, sentados na prancha basculante onde se deita o condenado, almoçavam enquanto esperavam e comiam, tanto quanto Franz pode ver, pão e salsichas. Um deles levantou a prancha, tirou uma garrafa de vinho, bebeu um gole e passou a garrafa ao camarada. Aqueles dois homens eram os ajudantes do carrasco! Bastou o seu aspecto para que Franz sentisse o suor molhar-lhe a raiz dos cabelos.
Os condenados, transportados na véspera dos Carceri Nuove para a pequena Igreja de Santa Maria del Popolo, tinham passado a noite, assistidos cada um por dois padres, numa câmara-ardente gradeada, diante da qual passeavam sentinelas rendidas de hora a hora.
Duas alas de carabineiros colocadas de cada lado da porta da igreja estendia-se até ao cadafalso, à volta do qual formavam círculos, deixando livre um caminho de dez pés de largura, aproximadamente, e à roda da guilhotina um espaço de uma centena de passos de circunferência. Todo o resto da praça era um mar de cabeças de homem e mulher. Muitas das mulheres tinham os filhos às cavalitas. Essas crianças, cujo corpo ultrapassava a multidão, estavam admiravelmente colocadas.
O monte Píncio parecia um vasto anfiteatro em que todos os degraus estivessem carregados de espectadores. As varandas das duas igrejas que fazem esquina para a Rua do Babuino e para a Rua da Ripetta regurgitavam de curiosos privilegiados e os degraus dos peristilos lembravam uma torrente movediça e colorida que um mar‚ incessante empurrasse para o pórtico. Cada saliência da parede capaz de suportar um homem tinha a sua estátua viva.
O que o Conde dizia era, portanto verdade: o que existe de mais curioso na vida é o espetáculo da morte. E, no entanto, em vez do silêncio que deveria presidir à solenidade do espetáculo, saía da multidão um barulho ensurdecedor composto por risos, chamamentos e gritos alegres. Era também evidente, como dissera o Conde, que a execução não significava para toda aquela gente mais do que o início do Carnaval.
De súbito, o barulho cessou como que por encanto. Acabava de se abrir a porta da igreja.
Uma confraria de penitentes em que todos os membros envergavam uma espécie de saco cinzento apenas com aberturas nos olhos e empunhavam uma vela acesa, apareceu em primeiro lugar. O chefe da confraria vinha à frente.
Atrás dos penitentes vinha um homem alto. Esse homem estava nu, com exceção de umas ceroulas de pano do lado esquerdo das quais trazia presa uma grande faca embainhada. No ombro direito carregava uma pesada maça de ferro.
Aquele homem era o carrasco.
Além disso, calçava sandálias presas por cordas às canelas.
Atrás do carrasco caminhavam, pela ordem em que deviam ser executados, primeiro Peppino e depois Andrea. Cada um vinha acompanhado por dois padres. Nem um nem outro traziam os olhos vendados. Peppino caminhava com passo bastante firme. Sem dúvida fora avisado do que se preparava para si. Andrea era amparado por cada braço por um padre. Ambos beijavam de vez em quando o crucifixo que lhes apresentava o confessor. Mal viu aquele aparato, Franz sentiu as pernas fraquejarem-lhe. Olhou para Albert. Estava pálido como a sua camisa e num gesto maquinal atirou para longe o charuto, embora só tivesse fumado metade.
Apenas o Conde parecia impassível. Mais, uma leve coloração rosada parecia querer sobrepor-se à palidez lívida das suas faces. O nariz dilatava-se-lhe como o da fera que fareja sangue, e os seus lábios, ligeiramente afastados, deixavam ver os seus dentes brancos, pequenos e aguçados como os de um chacal. E, no entanto, apesar de tudo isso, o seu rosto tinha uma expressão de doçura sorridente que Franz nunca lhe vira. Os seus olhos negros, sobretudo, estavam admiráveis de mansidão e suavidade.
Entretanto, os dois condenados continuavam a dirigir-se para o cadafalso, e à medida que avançavam podiam distinguir-se-lhes as feições. Peppino era um belo moço de vinte e quatro a vinte e seis anos, de pele queimada pelo sol e olhar ousado e bravio. Vinha de cabeça levantada e parecia farejar o vento para ver de que lado lhe viria o seu libertador.
Andrea era gordo e baixo. O seu rosto, repugnantemente cruel, não indicava idade. Podia, no entanto contar trinta anos, pouco mais ou menos. Deixara crescer a barba na prisão. Inclinava a cabeça sobre um dos ombros e as pernas dobravam-se-lhe debaixo dele. Todo o seu ser parecia obedecer a um movimento maquinal, no qual a sua vontade já não intervinha.
— Parece-me — disse Franz ao Conde — Que me anunciara que só haveria uma execução.
— E disse-lhe a verdade — respondeu o Conde, friamente.
— No entanto, estão ali dois condenados...
— Pois estão. Mas desses dois condenados um morrerá e o outro terá ainda longos anos de vida.
— Parece-me que se o perdão deve vir, não há tempo a perder.
— Por isso aí vem. Veja — perguntou o Conde.
Com efeito, no momento em que Peppino chegava ao pé da mandala, um penitente que parecia vir atrasado passou através da ala sem que os soldados lhe impedissem a passagem, dirigiu-se ao chefe da confraria e entregou-lhe um papel dobrado em quatro.
O olhar ardente de Peppino não perdera nenhum destes pormenores.
O chefe da confraria desdobrou o papel, leu-o e levantou a mão.
— O Senhor seja bendito e Sua Santidade seja louvado! — disse em voz alta e inteligível — Há perdão da vida para um dos condenados.
— Perdão! — gritou o povo em uníssono — Há perdão!
Ao ouvir a palavra “perdão”, Andrea pareceu saltar e levantou a cabeça.
— Perdão para quem? — gritou.
Peppino ficou imóvel, mudo e arquejante.
— Há perdão da pena de morte para Peppino, também conhecido por Rocca Priori — respondeu o chefe da confraria.
E passou o papel ao capitão que comandava os carabineiros, o qual, depois de ler, o restituiu.
— Perdão para Peppino! — gritou Andrea, inteiramente fora do estado de torpor em que parecia mergulhado — Porquê perdão para ele e não para mim? Devíamos morrer juntos. Tinham-me prometido que ele morreria antes de mim e não têm o direito de me fazer morrer sozinho. Não quero morrer sozinho, não quero!
E arrancou-se dos braços dos dois padres, contorcendo-se, gritando, rugindo, fazendo esforços insensatos para quebrar as cordas que lhe prendiam as mãos. O carrasco fez sinal aos seus dois ajudantes, que saltaram do cadafalso e vieram apoderar-se do condenado.
— Que se passa? — perguntou Franz ao Conde.
Porque como aquilo decorria em dialeto romano, não compreendera muito bem.
— Que se passa? — respondeu o Conde — Não compreende bem? Passa-se que aquela criatura humana que vai morrer está furiosa por o seu semelhante não morrer com ela, e se a deixassem à vontade o despedaçaria com as unhas e com os dentes em vez de o deixar gozar a vida de que ela vai ser privada. Oh, homens, homens, raça de crocodilos, como diz Karl Moor — gritou o Conde, estendendo os punhos para toda aquela multidão — Como vos reconheço bem aí e como sois sempre bem dignos de vós próprios!
Com efeito, Andrea e os dois ajudantes do carrasco rolavam pelo chão, com o condenado sempre gritando:
Ele deve morrer, quero que ele morra! Não têm o direito de me matar sozinho!
— Vejam, vejam — continuou o Conde, agarrando cada um dos dois jovens pela mão — Vejam porque, pela minha alma, é curioso. Eis um homem que estava resignado com a sua morte, que caminhava para o cadafalso, que ia morrer como um covarde, é certo, mas enfim, ia morrer sem resistência e sem recriminações. Sabem o que lhe dava alguma coragem? Sabem o que o consolava? Sabem o que o levava a aceitar o seu suplício com resignação? O fato de outro compartilhar a sua angústia, de outro morrer com ele, de outro morrer antes dele! Levem dois carneiros ou dois bois ao matadouro e façam compreender a um deles que o companheiro não morrerá. O carneiro balirá e o boi mugirá de alegria. Mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem; o homem a quem Deus impôs como primeira, única e suprema lei o amor ao próximo; o homem a quem Deus deu voz para exprimir o seu pensamento, qual é o seu primeiro grito quando sabe que o seu camarada está salvo? Uma blasfêmia. Honra ao homem, essa obra-prima da Natureza, esse rei da Criação!
E o Conde desatou a rir, mas com um riso terrível, que indicava que devia ter sofrido horrivelmente para chegar a rir assim.
Entretanto a luta continuava e era de horrível vê-la. Os dois ajudantes transportavam Andrea para o cadafalso. Todo o povo tomara partido contra ele e vinte mil vozes gritavam em uníssono: “À morte! à morte!”
Franz recuou, mas o Conde pegou-lhe no braço e reteve-o diante da janela.
— Que faz? — perguntou-lhe — Piedade? Não há dúvida que está bem aplicada! Se ouvisse gritar que andava um cão raivoso à solta, pegaria na sua espingarda, correria para a rua e mataria sem misericórdia, à queima-roupa, o pobre animal, que no fim de contas não seria culpado de ter sido mordido por outro cão e de fazer o que lhe fizeram; mas tem piedade de um homem que nenhum outro homem mordeu e que, no entanto, assassinou o seu benfeitor, e que, não podemos agora matar porque tem as mãos amarradas, quer à viva força ver morrer seu companheiro de cativeiro, o seu companheiro de infortúnio! Não, não! Veja, veja!
A recomendação tornara-se quase inútil, pois Franz estava como fascinado pelo horrível espetáculo. Os dois ajudantes tinham conduzido o condenado para o cadafalso e aí, apesar dos seus esforços, das suas mordidelas e dos seus gritos, tinham-no obrigado a se ajoelhar. Entretanto, o carrasco pusera-se de lado e com a maça preparada. Então, a um sinal, os dois ajudantes afastaram-se. O condenado quis levantar-se, mas antes que tivesse tempo de fazê-lo a maça abateu-se sobre a têmpora esquerda. Ouviu-se um ruído abafado e seco, o paciente caiu como um boi, de cara contra o chão, e depois, bruscamente virou-se de costas.
Então o carrasco deixou cair a maça, tirou a faca da cintura e de um só golpe abriu-lhe a garganta, subiu-lhe imediatamente para a barriga e pôs-se a pisar nela com os pés. A cada pressão saía do pescoço do condenado um jato de sangue.
Desta vez, Franz não agüentou mais. Recuou e foi cair numa poltrona meio desmaiado.
Albert ficou de pé, com os olhos fechados e agarrado às cortinas da janela.
O Conde estava de pé e triunfante como o anjo mau.






  
 continua...


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 "A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer." (Thomas Hardy)

sábado, 30 de julho de 2011

A Saga "O Senhor dos Anéis" - 3


Vamos conhecer a Terra-Média. Nos livros, nós vamos conhecendo essa vasta Terra devagar, e muitas coisas ficam no ar sem realmente se entender a situação. Então eu vou explicar alguns detalhes desse mundo.



O CONTINENTE PERDIDO DE AMAN

Há muito tempo atrás, no fim da Segunda Era, o Mundo era plano e existiam três continentes principais: Aman, Númenor e Endor.


Endor era o território original do Mundo, o continente mais antigo. Ali os deuses de Arda (o mundo) construíram suas primeiras obras. Mas então o mal pisou em Endor, e os deuses partiram para longe, dentro do mar, e fizeram Aman: uma terra pura onde o mal nunca pôs as suas garras. Depois de muitas eras do mundo, antes mesmo que o tempo fosse contado, surgiram então os Elfos, a primeira das raças e chamados de Primogênitos. Muito e muito tempo depois vieram os Homens, chamados de Sucessores.

Muito tempo depois do surgimento das três raças principais, incluindo os Anões as duas citadas acima, foi criada a Ilha-Continente de Númenor, como um presente aos Homens por seus esforços na guerra contra o Inimigo (nesta época este era Morgoth, o Primeiro Senhor do Escuro). Mas com o passar da Segunda Era os Homens foram se tornando arrogantes, influenciados por um servo de Morgoth, Lorde Sauron. Quando a arrogância dos Homens de Númenor atingiu o auge, a ponto de quererem ir até Aman, a terra sagrada, a ilha de Númenor foi então destruída. E para evitar que qualquer um tentasse ir novamente para Aman, a ilha sagrada foi retirada do mundo, e a Terra se tornou curva. Assim, quando se navega para a Oeste da Terra-Média, encontra-se apenas água e mais água num infindável oceano.

Apenas aos elfos, os Primogênitos, foi permitido ir para Aman quando estivessem cansados da existência no Mundo de Fora. Para eles, os navios ainda seguiriam pela Estrada Plana e chegariam até as praias de Aman.



ELENDIL E O SENHOR DOS ANÉIS

Poucos Homens sobreviveram a destruição de Númenor, mas estes eram os mais fiéis aos deuses e não ousaram se aproximar de Aman. Em recompensa a sua lealdade, eles sobreviveram e puderam ir até a Terra-Média (na costa de Endor). Ali eles criaram Reinos de Homens, dois deles: Arnor ao Norte e Gondor ao Sul. Mas a paz não manteve-se por muito tempo, pois mesmo depois de ter seu corpo destruído junto com Númenor, o espírito de Sauron pôde retornar a Terra-Média e à sua torre escura: Barad-dûr.

Para aqueles que estão tentando encontrar onde os filmes se encaixam nessa história, é justamente nesse ponto: Sauron se enfurece ao saber que Homens sobreviveram a destruição de Númenor e ainda por cima é Elendil e seus filhos, fiéis aos antigos deuses e seus inimigos, grande Rei de Arnor e Gondor. Então, Sauron inicia uma guerra para destruir os Homens, e seus aliados na Terra-Média (Altos-Elfos que ainda não atravessaram o mar em direção a Aman. E nesse contexto último, começa a Saga "O Senhor dos Anéis".



OS ELFOS VÃO PARA O OESTE

O livro "O Silmarilion", é extremamente detalhado em explicar toda o inicio do Mundo de Arda, desde antes de sua criação, passando pelo surgimento dos elfos e homens, e também da Ascensão, Queda, Ressurgimento, Apogeu e Fim de Morgoth. Para resumir o por que dos elfos irem para Oeste, basta dizer que a muito tempo, Morgoth influenciou alguns elfos poderosos e eles acabaram ofendendo os deuses da Natureza. Depois de séculos de idas e vindas, um descendente dos elfos ofensores se redimiu ao pedir clemência aos Senhores de Aman (que eram os deuses da natureza). Então a raça dos elfos foi perdoada, e aqueles que estavam na Terra-Média, tiveram permissão de voltar a Aman, e desde então, quando os elfos da Terra-Média sentirem o tempo pesar, eles podem ir a Aman, onde podem passar o restante de sua imortalidade.

Como raça e como filosofia, os Elfos não se prendem a problemas de outras raças. Por isso, houve tão poucos elfos decididos a ajudar os Homens durante a Guerra do Anel. E no fim, quando partem para o Oeste, eles estão indo para Aman, para nunca mais voltar.

E por isso, ao final do "Retorno do Rei", quando Elessar retoma a sua coroa e reergue o Reino, é o início da Era dos Homens.





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 "A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer." (Thomas Hardy)

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 34


XXXIV

APARIÇÃO




F
ranz encontrara um meio termo para que Albert chegasse ao Coliseu sem passar diante de nenhuma ruína antiga e, conseqüentemente, sem que as preparações graduais roubassem ao colosso um único côvado das suas gigantescas proporções. Esse meio-termo consistia em seguir a Via Cistina, cortar à direita defronte de Santa Maria Maior e chegar pela Via Urbana e San Pietro in Vincoli à Via del Colosseo.
Este itinerário oferecia, aliás outra vantagem: o de não distrair em nada Franz da impressão produzida em si pela história que contara mestre Pastrini e na qual se encontrava metido o seu misterioso anfitrião de Monte Cristo. Por isso aninhara-se no seu canto e recaíra nos mil interrogatórios sem fim a que ele próprio se submetera e dos quais nem um lhe dera resposta satisfatória.
Outra coisa, de resto, lhe recordara também o seu amigo Simbad, o Marinheiro: as misteriosas relações entre os bandidos e os marinheiros. O que mestre Pastrini dissera acerca do refúgio que Vampa encontrava nas embarcações dos pescadores e dos contrabandistas, lembrava a Franz os dois bandidos corsos que encontrara a cear com a tripulação do iatezinho, o qual se desviara da sua rota e demandara Porto-Vecchio apenas para os desembarcar. O nome que se dava ao seu anfitrião de Monte Cristo, pronunciado pelo dono do Hotel de Espanha, provava-lhe que desempenhava o mesmo papel filantrópico tanto nas costas de Piombino, de Civita-Vecchia, de óstia e de Gaeta, como nas de Córsega, da Toscana e da Espanha. E como ele próprio, tanto quanto se recordava Franz, falara de Tunes e de Palermo, isso era a prova de que abarcava um círculo de relação bastante extenso.
Mas por mais que todas estas reflexões incluíssem no espírito do jovem, desvaneceram-se quando viu erguer-se diante de si o fantasma sombrio e gigantesco do Coliseu, através de cuias aberturas o luar projetava os longos e pálidos raios que expelem os olhos dos espectros. A carruagem deteve-se a poucos passos da Mesa Sudans. O cocheiro veio abrir a portinhola. Os dois jovens apearam-se e encontraram-se diante de um cicerone que parecia ter acabado de sair do chão.
Como o do hotel os seguira, com mais aquele eram dois.
Impossível, de resto, evitar em Roma o luxo dos guias. Além do cicerone geral que se apodera de nós no momento em que pomos o pé na soleira da porta do hotel, e que só nos larga no dia em que pomos o pé fora da cidade, há ainda um cicerone especial ligado a cada monumento, e eu diria quase a cada fração de monumento. Imagine-se, portanto como pulularão os cicerones no Coliseu, isto é, no monumento por excelência, acerca do qual dizia Marcial: “Que Menfis deixe de nos gabar os bárbaros milagres das suas pirâmides, que se não cantem mais as maravilhas da Babilônia. Tudo deve ceder perante a obra imensa do anfiteatro dos Césares e todas as vozes da I ama se devem reunir para elogiar este monumento”.
Franz e Albert não tentaram sequer subtrair-se à tirania ciceroniana. De resto, isso seria tanto mais difícil quanto é certo serem apenas os guias quem tem direito a percorrer o monumento com archotes. Não opuseram, pois nenhuma resistência e entregaram-se de pés e mãos amarrados aos seus condutores.
Franz conhecia o passeio por já o ter feito dez vezes. Mas como o companheiro, mais novo, punha pela primeira vez o pé no monumento de Flávio Vespasiano, devo confessar em sua honra que, apesar do cacarejo ignorante dos seus guias, estava muitíssimo impressionado. Efetivamente, não se faz idéia, antes de a ver, da majestade de semelhante ruína, em que todas as proporções são ainda aumentadas pela misteriosa claridade de um luar meridional cujos raios parecem um crepúsculo do Ocidente.
Por isso, assim que Franz, o pensador, deu cem passos debaixo dos pórticos interiores, abandonou Albert aos seus guias, que não estavam dispostos a renunciar ao direito imprescritível de lhe mostrar em todos os seus pormenores a cova dos leões, as instalações dos gladiadores e o pódio dos Césares, meteu por uma escada semi-arruinada e, deixando-o continuar o seu caminho simétrico, foi-se muito simplesmente sentar à sombra de uma coluna, diante de uma meia-lua que lhe permitia abarcar o gigante de granito em toda a sua majestosa extensão.
Franz encontrava-se ali havia um quarto de hora aproximadamente, oculto, como já disse, na sombra de uma coluna, entretido a observar Albert que, acompanhado dos seus dois porta-archotes, acabava de sair de um vomitorium situado na outra extremidade do Coliseu, e os quais, como as sombras que acompanham um fogo-fátuo, desciam de degrau em degrau para os lugares reservados às vestais, quando lhe pareceu ouvir rolar nas profundezas do monumento uma pedra solta da escada situada defronte da que tomara para chegar ao local onde estava sentado.
Não tem nada de estranho, sem dúvida, que uma pedra se solte debaixo do pé do tempo e role no abismo; mas desta vez parecia-lhe que fora aos pés de um homem que a pedra cedera e que um ruído de passos chegava até ali, embora aquele que o ocasionava fizesse tudo o que podia para os abafar.
Com efeito, passado um instante, apareceu um homem que saiu gradualmente da sombra à medida que subia a escada, cuja abertura, situada defronte de Franz, era iluminada pelo luar, mas cujos degraus desapareciam nas trevas à medida que se desciam.
Poderia ser um turista como ele que preterisse a meditação solitária à tagarelice sem sentido dos seus guias, e, portanto a sua aparição nada ter de surpreendente; mas a hesitação com que subiu os últimos degraus e a forma como, chegado à plataforma, parou e pareceu escutar, denotavam com evidência que estava ali com um fim especial e esperava alguém.
Num gesto instintivo, Franz escondeu-se o mais que pode atrás da coluna.
A dez pés do pavimento onde ambos se encontravam a abóbada estava danificada e uma abertura redonda, semelhante à de um poço, permitia ver o céu todo constelado de estrelas.
À roda da abertura, que talvez desse havia já centenas de anos passagem aos raios do luar, cresciam silvas cujas frágeis folhas verdes se recortavam e salientavam, com vigor no azul baço do firmamento, enquanto grandes cipós e pujantes rebentos de hera pendiam daquele terraço superior e se agitavam debaixo da abóbada como cordas flutuantes.
A personagem cuja chegada misteriosa atraíra a atenção de Franz encontrava-se colocada numa meia-luz que lhe não permitia distinguir-lhe as feições, mas que mesmo assim não era suficientemente escura para o impedir-lhe de examinar em pormenor a indumentária. O sujeito estava envolto numa grande capa escura da qual um dos panos, atirado por cima do ombro esquerdo, lhe ocultava a parte inferior do rosto, enquanto o chapéu de abas largas lhe cobria a parte superior. Apenas a extremidade da sua indumentária era iluminada pela luz oblíqua que passava pela abertura, o que permitia divisar calças pretas que caiam elegantemente sobre botas de verniz.
Aquele homem pertencia, evidentemente, senão à aristocracia, pelo menos à alta sociedade.
Estava ali havia alguns minutos e começava a dar visíveis sinais de impaciência quando se ouviu um leve ruído no terraço superior.
No mesmo instante, uma sombra interceptou a luz, um homem apareceu na abertura, mergulhou o olhar penetrante nas trevas e viu o homem da capa. Agarrou imediatamente um punhado de cipós pendentes e de hera flutuante, deixou-se escorregar e, chegado a três ou quatro pés do chão, saltou ligeiramente para terra. O recém-chegado envergava um traje completo de habitante do Trastevere.
— Desculpe tê-lo feito esperar, Excelência — disse em dialeto romano — Aliás, atrasei-me apenas alguns minutos. Acabam de dar dez horas em São João de Latrão.
— Eu é que cheguei adiantado e não você que chegou atrasado — respondeu o desconhecido no mais puro toscano — Portanto, deixemos de desculpas. De resto, se me fizesse esperar estou certo de que seria por motivo independente da sua vontade.
— E teria razão, Excelência. Venho do Castelo de Santo Ângelo e tive muita dificuldade em falar com Beppo.
— Quem é esse Beppo?
— Beppo é um funcionário da prisão a quem pago uma pequena subvenção para saber o que se passa dentro do castelo de Sua Santidade.
— Ah, ah, vejo que é homem precavido, meu caro!...
— Nunca se sabe o que pode acontecer, Excelência. Talvez um dia me apanhem na rede com o pobre Peppino e precise de um rato para me roer algumas malhas da minha prisão...
— Em suma, o que soube?
— Haverá duas execuções na terça-feira às duas horas, como é hábito em Roma quando do início de grandes festas. Um condenado será mazzolato. Trata-se de um miserável que assassinou um padre que o criou e que não merece qualquer interesse. O outro será decapitado, e esse é o pobre Peppino.
— Que quer, meu caro, inspira tão grande terror não só ao governo pontifício, como também aos reinos vizinhos, que pretendem absolutamente dar um exemplo.
— Mas Peppino nem sequer pertenceu à minha quadrilha. É um pobre pastor que apenas cometeu o crime de nos fornecer víveres.
— O que o constituiu perfeitamente em seu cúmplice. Por isso, têm alguma consideração com ele: em vez de o fustigarem, como acontecerá consigo se alguma vez lhe puserem as mãos em cima, se limitarão a guilhotiná-lo. De resto, isso variará os prazeres do povo e haverá espetáculo para todos os gostos.
— Sem contar com o que organizo e pelo qual ninguém espera — acrescentou o trastevenano.
— Meu caro amigo, permita-me que lhe diga que me parece disposto a cometer alguma tolice — observou o homem da capa.
— Estou disposto a tudo para impedir a execução do pobre diabo, que está em apuros por ter me ajudado. Pela Madona, me consideraria um covarde se não fizesse qualquer coisa pelo pobre rapaz!
— Que tenciona fazer?
— Colocarei uns vinte homens à roda do cadafalso e quando o trouxerem, a um sinal que darei, nos atiraremos de punhal em punho à escolta e nos apoderaremos dele.
— Isso parece-me muito arriscado e creio decididamente que o meu plano é melhor do que o seu.
— Qual é o seu plano, Excelência?
— Darei dez mil piastras a uma determinada pessoa que conheço e que conseguirá que a execução de Peppino seja adiada para o próximo ano. Depois, durante o ano, darei mais mil piastras a outra pessoa que conheço e farei com que ele fuja da prisão.
— Tem certeza que não falhará?
— Claro! — respondeu em francês o homem da capa.
— Que disse? — perguntou o trasteveriano.
— Disse, meu caro, que conseguirei mais sozinho com o meu ouro do que você e toda a sua gente com os seus punhais, as suas pistolas, as suas carabinas e os seus bacamartes. Deixe-me, portanto agir.
— A vontade! Mas se falhar, estaremos prontos para intervir.
— Estejam prontos para intervir, se isso lhes dá prazer, mas lhe garanto que obterei o adiamento.
— A execução será depois de amanhã, terça-feira, não se esqueça. Só dispõe do dia de amanhã.
— Claro. Mas o dia compõe-se de vinte e quatro horas, cada hora de sessenta minutos e cada minuto de sessenta segundos; e em oitenta e seis mil e quatrocentos segundos fazem-se muitas coisas.
— Como saberemos se for bem sucedido, Excelência?
— De uma maneira muito simples. Aluguei as três últimas janelas do Café Rospoli. Se obtiver o adiamento, as duas janelas do canto estarão forradas de damasco amarelo e a do meio estará forrada de damasco branco com uma cruz vermelha.
— Muito bem. E por quem mandará entregar a graça?
— Mande-me um dos seus homens disfarçado de penitente e a entregarei. Graças ao seu traje, poderá chegar junto do cadafalso e entregar a bula ao chefe da confraria, que a entregará ao carrasco. Entretanto, faça chegar esta notícia a Peppino, não vá morrer de medo ou enlouquecer e faremos por ele uma despesa inútil.
— Escute Excelência — disse o trasteveriano — Sou-lhe muito dedicado e creio que está convencido disto, não é verdade?
— Espero-o, pelo menos.
— Pois bem, se salvar Peppino, será mais do que dedicação no futuro, será obediência.
— Cuidado com o que diz, meu caro! Talvez lhe recorde um dia, pois talvez um dia também eu precise de você...
— Nesse caso, Excelência, me encontrará na hora da necessidade, tal estou certo de que o encontraria nessa mesma hora. Então, ainda que estivesse nos confins do mundo, não teria mais do que escrever-me: “Faça isto!” e eu o faria, palavra de...
— Cale-se! — atalhou o desconhecido — Ouvi um ruído.
— São turistas que visitam o Coliseu à luz de archotes.
— É inútil que os encontrem juntos. Esses guias denunciantes poderiam reconhecê-lo, e por muito honrosa que seja a sua amizade, meu caro amigo, se nos soubessem ligados como estamos receio muito que semelhante ligação me fizesse perder um bocadinho do meu crédito.
— Portanto, se conseguir o adiamento...
— A janela do meio forrada de damasco com uma cruz vermelha.
— E se o não conseguir?...
— Três tapeçarias amarelas.
— E nesse caso...
— E nesse caso, meu caro amigo, sirva-se do punhal à sua vontade. Permito-lhe e estarei lá para vê-lo atuar.
— Adeus, Excelência. Conto com o senhor, conte comigo.
Ditas estas palavras, o trasteveriano desapareceu pela escada, enquanto o desconhecido, cobrindo mais do que nunca o rosto com a capa, passou a dois passos de Franz e desceu à arena pelos degraus exteriores.
Um segundo mais tarde, Franz ouviu o seu nome ecoar debaixo das abóbadas: era Albert quem o chamava. Esperou para responder que os dois homens se afastassem, pois não queria que soubessem que tinham tido uma testemunha que, embora lhes não tivesse visto o rosto, não perdera uma palavra do seu diálogo.
Dez minutos depois, Franz rodava para o Hotel de Espanha, escutando com uma distração deveras impertinente a douta dissertação que Albert fazia, segundo Plínio e Calpúrnio, acerca das redes guarnecidas de pontas de ferro que impediam as feras de se atirar aos espectadores.
Deixava-o falar sem contradizê-lo. Tinha pressa de se encontrar sozinho para pensar sem que o distraíssem no que acabava de acontecer na sua presença.
Dos dois homens, um era-lhe certamente estranho, era a primeira vez que o via e ouvia, mas o mesmo não acontecia com o outro. E embora Franz lhe não pudesse ver o rosto, constantemente oculto na sombra ou escondido pela capa, o timbre daquela voz impressionara-o tanto da primeira vez que a ouvira que ela nunca mais poderia soar sem que a reconhecesse. Havia, sobretudo nas entonações irônicas, qualquer coisa de estridente e metálico que o fizera estremecer tanto nas ruínas do Coliseu como na gruta de Monte Cristo.
Por isso, estava absolutamente convencido de que aquele homem não era outro senão Simbad, o Marinheiro. Por isso, em qualquer outra circunstância, a curiosidade que lhe inspirara aquele homem seria tão grande que não hesitaria em se dar a conhecer. Mas naquela ocasião a conversa que acabava de ouvir era demasiado íntima para que o não contivesse o receio, muito sensato, de que o seu aparecimento lhe não seria agradável. Deixara-o, portanto afastar-se, como vimos, mas prometendo a si próprio, se o voltasse a encontrar, não deixar fugir essa segunda oportunidade como deixara fugir a primeira.
Franz estava demasiado preocupado para dormir bem. Gastou a noite passando e repassando no seu espírito todas as circunstâncias relacionadas com o homem da gruta e o desconhecido do Coliseu, e que tendiam a fazer das duas personagens o mesmo indivíduo. E quanto mais Franz pensava nisso, tanto mais se firmava nesta opinião.
Adormeceu ao amanhecer, o que fez com que acordasse muito tarde. Albert, como verdadeiro parisiense que era, já tomara as suas precauções para a noite e começara por mandar comprar um camarote no Teatro Argentina.
Franz tinha de escrever várias cartas para a França e cedeu, portanto a carruagem a Albert. Albert regressou às cinco horas. Apresentara as suas cartas de recomendação, obtivera convites para todas as festas e visitara Roma. Um dia bastara a Albert para fazer tudo isso. E ainda tivera tempo de se informar da peça que se representava e dos atores que a desempenhariam.
A peça tinha por título Parisina e os atores chamavam-se Coselli, Moriani e Spech.
Os nossos dois jovens não eram tão infelizes como julgavam: iam assistir à representação de uma das melhores óperas do autor de Lucia di Lammermoor, interpretada por três dos mais famosos artistas da Itália.
Albert nunca conseguira habituar-se aos teatros ultramontanos, cujos lugares de orquestra eram insuportáveis, e que não têm balcões nem frisas. Era duro para um homem que tinha a sua assinatura na ópera Cômica e o seu lugar no camarote infernal da ópera Dramática.
Mas isso não impedia Albert de se vestir a primor todas as vezes que ia à ópera com Franz. Primores desperdiçados, pois é mister reconhecer, para vergonha de um dos mais dignos representantes da nossa moda, que desde que há quatro meses cruzava a Itália em todos os sentidos, Albert não tivera uma única aventura. Às vezes, Albert procurava gracejar a tal respeito; mas no fundo estava singularmente mortificado por ele, Albert de Morcerf, um dos jovens mais requisitados, ainda não ter visto o seu esforço recompensado. O caso era tanto mais penoso quanto é certo que, segundo o hábito modesto dos nossos caros compatriotas, Albert partira de Paris com a convicção de ir obter na Itália os maiores êxitos e de no regresso fazer as delícias do Bulevard de Gand com a história das suas aventuras.
Infelizmente, nada semelhante acontecera. As encantadoras condessas genovesas, florentinas e napolitanas estavam presas, não aos maridos, mas sim aos amantes, e Albert adquirira a cruel convicção de que as italianas tinham pelo menos sobre as francesas a vantagem de serem fiéis na sua infidelidade.
Não quero dizer que na Itália, como em toda a parte, não haja exceções.
E, contudo, Albert era não só um cavalheiro perfeitamente elegante, mas também um homem de muito espírito. Além disso, era visconde. Visconde da nova nobreza é certo. Mas hoje, que não nos prendemos com essas ninharias, que importa que a nobreza remonte a 1399 ou a 1815? Ainda por cima, tinha cinqüenta mil libras de rendimento. Como se verifica, era mais do que o preciso para estar na moda em Paris. Daí, portanto ser um bocadinho humilhante não ter ainda sido seriamente notado por ninguém em nenhuma das cidades por onde passara.
Contava, porém, desforrar-se em Roma, visto o carnaval ser, em todos os países da Terra que celebravam tão estimável instituição, uma época de liberdade em que os mais sisudos se deixam arrastar a cometer qualquer ato de loucura. Ora, como o carnaval começava no dia seguinte, era importantíssimo que Albert iniciasse o seu programa antes do carnaval começar.
Com essa intenção comprara um dos camarotes mais em evidência do teatro e vestira-se impecavelmente para assistir ao espetáculo. Era um camarote de primeira ordem, que substitui entre nós a galeria. De resto, as três primeiras ordens são tão aristocráticas umas como outras e por esse motivo lhe chamam ordens nobres.
Aliás, o camarote onde caberiam doze pessoas sem ficarem apertadas custara aos dois amigos um bocadinho menos caro do que um camarote de quatro pessoas no Ambigu. Albert tinha ainda outra esperança: conseguir lugar no coração de uma bela romana, o que levaria, naturalmente, à conquista de um posto na carruagem da dama e conseqüentemente a ver o carnaval do alto de um veículo aristocrático ou de uma varanda principesca.
Todas estas considerações tornavam Albert mais impaciente do que nunca. Virava as costas aos atores, debruçava-se a ponto de deitar meio corpo fora do camarote e analisava todas as mulheres bonitas com um binóculo de seis polegadas de comprimento... o que não levava nem uma só mulher bonita a recompensar com um único olhar, mesmo de curiosidade, todo o esforço despendido por Albert.
Efetivamente, cada qual falava dos seus negócios, dos seus amores, dos seus prazeres, do Carnaval que principiaria no dia seguinte e da próxima Semana Santa, sem prestar atenção um só instante, nem aos atores nem à peça, com exceção dos momentos indicados, em que então todos se viravam, quer para ouvir uma porção do recitativo de Coselli, quer para aplaudir qualquer rasgo brilhante de Moriani, quer para gritar “Bravo!” à Spech. Depois, as conversas particulares retomavam o seu curso habitual.
Quase no fim do primeiro ato a porta de um camarote que se conservara vazio até ali abriu-se e Franz viu entrar uma pessoa a quem tivera a honra de ser apresentado em Paris e que julgava ainda na França. Albert notou o gesto que fez o amigo a essa aparição e, virando-se para ele, perguntou-lhe:
— Conhece aquela dama?
— Conheço. Como a acha?
— Encantadora, meu caro, e loura. Oh, que cabelos adoráveis! É francesa?
— Não, é veneziana.
— E chama-se?
— Condessa G...
— Oh, conheço-a de nome! — exclamou Albert — Dizem que tem tanto de espiritual como de bonita. Com a breca, quando penso que lhe podia ter sido apresentado no último baile da Sra. de Villefort, onde ela estava, e que descurei isso!... Sou um parvalhão!
— Quer que repare essa falta? — perguntou Franz.
— Como, tem suficiente intimidade com ela para me levar ao seu camarote?
— Tive a honra de lhe falar três ou quatro vezes na minha vida. Mas como sabe‚ rigorosamente o bastante para não cometer uma inconveniência.
Neste momento a condessa viu Franz e fez-lhe com a mão um sinal gracioso a que ele correspondeu com uma respeitosa inclinação de cabeça.
— De fato, parece-me que você está nas melhores relações com ela — disse Albert.
— Aí é que você se engana e é isso que nos leva, a nós franceses, a cometer mil tolices no estrangeiro. Queremos submeter tudo aos nossos pontos de vista parisienses. Na Espanha, e, sobretudo, na Itália, nunca julgue a intimidade das pessoas pela liberdade das relações. Tenho certas afinidades com a condessa, mas mais nada.
— Afinidades de coração? — perguntou Albert, rindo.
— Não, apenas de espírito — respondeu seriamente Franz.
— Quando as contraíram?
— No momento de uma visita ao Coliseu idêntica à que fizemos juntos.
— Ao luar?
— Sim.
— Sozinhos?
— Quase!
— E falaram...
— Dos mortos.
— Oh, aí está, na verdade, um assunto deveras divertido! — exclamou Albert — Pois eu lhe juro que se tiver a sorte de ser o cavalheiro da bela condessa em semelhante visita, só lhe falarei dos vivos.
— E talvez faça mal.
— Entretanto, vai-me apresentar a ela como me prometeu?
— Assim que o pano desça.
— Como este maldito primeiro Ato é longo!
— Escute o final. É muito belo e Coselli canta-o admiravelmente.
— Pois sim; Mas que elegância!
— A Spech não pode ser mais dramática.
— Bom, deve compreender que depois de ouvirmos a Sontag e a Malibran...
— Não acha que Moriani tem uma voz excelente?
— Não gosto dos morenos que cantam como louros.
— Meu caro — disse Franz virando-se, enquanto Albert continuava de binóculo em punho — Na verdade você é muito exigente.
Por fim o pano desceu, com grande satisfação do Visconde de Morcerf, que pegou o chapéu, passou rapidamente a mão pelo cabelo, pela gravata e pelos punhos da camisa e disse a Franz que estava à sua espera.
E como pelo seu lado a condessa, que Franz interrogava com a vista, lhe deu a entender por um sinal que seria bem-vindo, Franz apressou-se a satisfazer a insistência de Albert e, seguido do companheiro, que aproveitava a viagem para alisar as rugas que o seu irrequietismo pudesse ler posto no colarinho e no forro da casaca, deu a volta ao hemiciclo e foi bater à porta do camarote quatro, ocupado pela condessa.
Imediatamente o jovem que estava sentado ao lado dela, à frente do camarote, se levantou e cedeu o seu lugar, conforme o hábito italiano, ao recém-chegado, que o deveria ceder por seu turno quando chegasse outra visita.
Franz apresentou Albert à condessa como um dos nossos jovens mais distintos pela sua posição social e pelo seu espírito, o que de resto era verdade, porque em Paris e no meio onde vivia Albert era um cavalheiro impecável. Acrescentou que, desesperado por não ter sabido aproveitar a estada da condessa em Paris para lhe ser apresentado, Albert o encarregara de reparar essa falta, missão desempenhava suplicando à condessa, junto a qual ele próprio necessitaria de um introdutor, que perdoasse a sua indiscrição. A condessa respondeu com um encantador cumprimento a Albert e estendeu a mão a Franz.
Convidado por ela, Albert ocupou o lugar vazio à frente do camarote e Franz sentou-se na segunda fila, atrás da condessa. Albert descobriu um excelente tema de conversa: Paris. Falou à condessa dos seus conhecimentos comuns e Franz compreendeu que estava nas suas sete quintas. Deixou-o à vontade, pediu-lhe o gigantesco binóculo e pôs-se por seu turno a explorar a sala.
Sozinha à frente de um camarote de terceira ordem, defronte deles, estava uma mulher admiravelmente bela, envergando um traje grego, que usava tão naturalmente que era evidente ser sua indumentária natural. Atrás dela, na sombra, desenhava-se a silhueta de um homem cujo rosto era impossível distinguir.
Franz interrompeu a conversa de Albert e da condessa para perguntar a esta última se conhecia a bela albanesa, tão digna de atrair não só a atenção dos homens, mas também das mulheres.
— Não — respondeu ela — Tudo o que sei é que está em Roma desde o início da estação, porque na abertura do teatro vi-a onde está agora e há um mês que não falta a nenhum recital, ora acompanhada pelo homem que está com ela neste momento, ora seguida simplesmente por um criado negro.
— Como a acha, condessa?
— Muitíssimo bonita. Medora devia parecer-se com ela.
Franz e a condessa trocaram um sorriso. Ela voltou à sua conversa com Albert e Franz a observar com o binóculo a sua albanesa.
O pano subiu para o bailado. Era um desses bons corpos de dança italianos, ensaiados e encenados pelo famoso Henri, que como coreógrafo conquistara em Itália fama colossal, que infelizmente para ele acabara por perder no teatro náutico; um desses corpos de baile onde todos, desde a primeira figura até ao último comparsa, toma parte tão ativa na ação que cento e cinqüenta pessoas fazem ao mesmo tempo o mesmo gesto e levantam simultaneamente o mesmo braço ou a mesma perna.
O bailado chamava-se Poliska.
Franz estava demasiado interessado na sua bela grega para dar importância ao bailado, por mais interessante que fosse. Quanto a ela, encontrava visível prazer no espetáculo, prazer que contrastava profundamente com o desinteresse absoluto daquele que a acompanhava e que, enquanto durou a obra-prima coreográfica, não fez um gesto, parecendo, apesar do barulho infernal das trombetas, dos címbalos e das campainhas da orquestra, saborear as doçuras celestes de um sono calmo e radioso.
Por fim o bailado terminou e o pano desceu no meio dos aplausos frenéticos de uma platéia inebriada. Graças ao hábito de dividir a ópera com um bailado, os intervalos são curtíssimos na Itália. Os cantores têm tempo para descansar e mudar de traje enquanto os bailarinos executam as suas piruetas e saltos de dança.
Começou a abertura do segundo Ato. Aos primeiros acordes de violino, Franz viu o dorminhoco levantar-se lentamente e aproximar-se da grega, que se virou para lhe dirigir algumas palavras e se encostou de novo à balaustrada do camarote. O rosto do seu interlocutor continuava na sombra e Franz não podia distinguir nenhuma das suas feições.
O pano subiu. A atenção de Franz foi inevitavelmente atraída para os atores e os seus olhos afastaram-se por um instante do camarote da bela grega e dirigiram-se para o palco.
O Ato principia, como se sabe, pelo duo do sonho: Parisina, deitada, deixa escapar diante de Azzo o segredo do seu amor por Hugo. O marido atraiçoado passa por todos os furores do ciúme, até que, convencido de que a mulher lhe é infiel, a acorda para lhe anunciar a sua vingança. Este dueto é dos mais belos, expressivos e terríveis que saíram da pena fecunda de Donizetti.
Franz ouvia-o pela terceira vez e, embora não fosse um melômano entusiasta, causou-lhe profunda impressão. Ia, portanto juntar os seus aplausos aos da sala quando as suas mãos, prestes a juntarem-se, ficaram afastadas e o “Bravo!” que lhe escapava da boca lhe morreu nos lábios.
O homem do camarote pusera-se de pé e ficara com a cabeça iluminada, de modo que Franz reconheceu nele o misterioso habitante de Monte Cristo, aquele de quem na véspera lhe parecera tão bem reconhecer a figura e a voz nas ruínas do Coliseu.
Não havia dúvida: o estranho viajante estava em Roma.
Decerto a expressão de seu rosto estava de harmonia com a perturbação que semelhante aparição lhe lançara no espírito, pois a condessa olhou-o, desatou a rir e perguntou-lhe o que tinha.
— Sra. Condessa — respondeu-lhe Franz — Perguntei-lhe se há pouco se conhecia aquela mulher albanesa; agora pergunto-lhe se conhece o marido.
— Tanto como ela — respondeu a condessa.
— Nunca reparou nele?
— Ora aí está uma pergunta à francesa! Sabe muito bem que para nós, italianas, não existe outro homem no mundo além do que amamos!
— Tem razão — concordou Franz.
— Em todo o caso — continuou ela aplicando o binóculo de Albert aos olhos e dirigindo-o para o camarote fronteiro — Deve ser algum novo desterrado, algum morto saído da sepultura com licença do coveiro, pois parece-me horrivelmente pálido.
— Sempre o vi assim — disse Franz.
— Isso quer dizer que o conhece? — inquiriu a condessa — Então, sou eu que lhe pergunto quem é.
— Creio já o ter visto e parece-me reconhecê-lo.
— De fato — disse ela, fazendo um movimento com os belos ombros, como se tivesse um arrepio — Compreendo que depois de se ver uma vez semelhante homem nunca mais se esqueça.
A sensação que Franz experimentara não era, portanto uma impressão particular, uma vez que outra pessoa também a experimentava.
— Então — perguntou Franz à condessa, depois de levar pela segunda vez o binóculo aos olhos — Que pensa do nosso homem?
— Parece-me Lorde Ruthwen em carne e osso.
Esta alusão a Byron impressionou Franz. Com efeito, se um homem o podia fazer acreditar na existência de vampiros, esse homem era aquele.
— Tenho de saber quem é — disse Franz, levantando-se.
— Oh, não! — exclamou a condessa — Não me deixe. Conto com você para me acompanhar até em casa e não permito que saia daqui.
— Como, é verdade que tem medo? — perguntou-lhe Franz ao ouvido.
— Ouça — respondeu ela — Byron jurou-me que acreditava em vampiros, disse-me que os vira e descreveu-me o seu rosto. Pois bem, são exatamente assim: cabelo preto, grandes olhos brilhantes, como se neles ardesse uma chama estranha, palidez mortal... além disso, note que não está com uma mulher como todas as mulheres, está com uma estrangeira... uma grega, uma cismática... sem dúvida alguma feiticeira como ele. Peço-lhe, não vá embora. Dedique-se amanhã às suas investigações, se quiser, mas hoje não o deixo sair daqui.
Franz insistiu.
— Ouça — disse ela levantando-se — Vou embora. Não posso ficar até ao fim do espetáculo, tenho a casa cheia de gente. Será tão pouco galante que me recuse a sua companhia?
Não havia outra resposta a dar a não ser pegar no chapéu, abrir a porta e oferecer o braço à condessa. Foi o que ele fez.
A condessa estava realmente muito impressionada, e o próprio Franz não conseguia afugentar certo terror supersticioso, tanto mais natural quanto é certo que o que era na condessa o produto de uma sensação instintiva, era nele o resultado de uma recordação.
Franz sentiu que ela tremia ao subir para a carruagem. Acompanhou-a à casa. Não havia ninguém nem era de modo algum esperada. Franz mostrou-lhe o seu desagrado.
— Na verdade — respondeu-lhe ela — Não me sinto bem e quero estar só. A vista desse homem perturbou-me muito.
Franz tentou gracejar.
— Não ria — disse-lhe ela — Aliás, está rindo sem vontade. Prometa-me uma coisa.
— O quê?
— Prometa-me.
— Prometo-lhe tudo o que quiser exceto renunciar a descobrir quem é aquele homem. Tenho motivos que lhe posso revelar para desejar saber quem é, de onde vem e para onde vai.
— De onde vem, ignoro-o; mas para onde vai, posso dizer-lhe: vai para o Inferno sem dúvida nenhuma.
— Voltemos à promessa que queria exigir de mim, condessa — disse Franz.
— Oh, consiste em regressar diretamente ao hotel e não procurar ver esse homem esta noite! Há certas afinidades entre as pessoas que deixamos e as pessoas que procuramos. Não sirva de condutor entre esse homem e mim. Amanhã, corra atrás dele, se quiser; mas nunca me apresente, se não quiser fazer-me morrer de medo. E agora, boa noite. Procure dormir. Eu sei que não conseguirei pregar o olho.
Ditas estas palavras, a condessa deixou Franz, que ficou indeciso, sem saber se ela estivera divertindo-se às suas custas, ou se realmente sentira o medo que dissera ter.
No regresso ao hotel, Franz encontrou Albert de roupão e pijama, voluptuosamente recostado numa poltrona e fumando um charuto.
— Ah, é você! — disse-lhe — Palavra que só o esperava amanhã.
— Meu caro Albert — respondeu Franz — Ainda bem que tenho oportunidade de lhe dizer de uma vez para sempre que tem a mais falsa das idéias a respeito das mulheres italianas. Parece-me, no entanto que as suas desilusões amorosas deveriam ter-lha feito perder.
— Que quer, essas mulheres endiabradas são impossíveis de compreender! Pegam-nos na mão, apertam-na, falam-nos baixinho, convidam-nos a acompanhá-las a casa... enfim, com um quarto de semelhante maneira de proceder uma parisiense perderia a reputação.
— Bom, precisamente por não terem nada a esconder e viverem às claras é que as mulheres são tão livres no belo país onde ressoa o si, como diz Dante. Aliás, você bem viu que a condessa estava realmente cheia de medo.
— Medo de quê? Do respeitável cavalheiro que estava defronte de nós com aquela bonita grega? Pois eu quis vê-los de perto e quando saíram cruzei-me com eles no corredor. Não sei onde diabo vocês foram buscar todas essas idéias do outro mundo! Trata-se de um homem simpatissíssimo e muito elegante, com todo o ar de se vestir na França, no Blin ou no Humann. Um bocadinho pálido, é verdade, mas você bem sabe que a palidez é um sinal de distinção.
Franz sorriu. Albert tinha grandes pretensões de ser pálido.
— Por isso — disse-lhe Franz — Estou convencido de que as idéias da condessa acerca desse homem não têm sentido. Falou ao pé de si e você ouviu algumas das suas palavras?
— Falou, mas em grego moderno. Reconheci o idioma por algumas palavras desfiguradas. Devo dizer-lhe, meu caro, que no colégio era fortíssimo em grego.
— Portanto falava grego moderno?
— É provável.
— Não tenho qualquer dúvida — murmurou Franz — É ele.
— O que você disse?
— Nada. Que fazia você aqui?
— Preparava-lhe uma surpresa.
— Qual?
— Sabe que é impossível arranjar um coche?
— Olha que descoberta! Então não fizemos inutilmente tudo o que era humanamente possível fazer para arranjá-la?
— Pois bem, tenho uma idéia maravilhosa.
Franz olhou para Albert como se não tivesse grande confiança na sua imaginação.
— Meu caro — observou Albert — Honra-me com um olhar que merecia bem que lhe pedisse uma reparação.
— Estou pronto a dar-lhe, caro amigo, se a idéia for tão engenhosa como diz.
— Escute.
— Estou escutando.
— Não há meio de se arranjar carruagem, não é verdade?
— É.
— Nem cavalos?
— Também não.
— Mas podemos arranjar uma carroça...
— Talvez.
— E uma junta de bois...
— É provável.
— Pois, meu caro, temos o problema resolvido! Mandarei decorar a carroça, vestimo-nos de ceifeiros napolitanos e representamos ao natural o magnífico quadro de Léopold Robert. Se, para maior semelhança, a condessa concordasse a usar o traje de uma mulher de Pouzzole ou de Sorrento, isso completaria a mascarada, e ela é bastante bonita para a tomarem pelo original da Femme l’enfant.
— Por Deus, desta vez tem razão, Sr. Albert! — exclamou Franz.
— É uma idéia verdadeiramente original.
— E muito nacionalista, inspirada nos reis indolentes, meu caro, nada mais, nada menos! Ah, Srs. Romanos, julgavam que íamos correr a pé pelas suas ruas, como lazzaroni, por não terem coches e cavalos?... Pois bem, os inventaremos!
— Já contou a alguém essa idéia genial?
— Ao nosso hoteleiro. Quando entrei, mandei chamá-lo e expus-lhe os meus desejos. Garantiu-me que não havia nada mais fácil. Eu queria mandar dourar os cornos dos bois, mas ele me disse que para isso seriam precisos três dias. Teremos, portanto de passar sem essa ninharia.
— Onde está ele?
— Quem?
— O nosso hoteleiro?
— À procura do que pretendemos. Amanhã talvez fosse já um bocadinho tarde.
— De forma que nos dará resposta ainda esta noite?
— Assim espero.
Neste momento a porta abriu-se e mestre Pastrini meteu a cabeça.
— Permesso? — pediu.
— Claro que pode entrar! — exclamou Franz.
— Então, arranjou-nos a carroça e os bois que pretendíamos? — perguntou Albert.
— Arranjei melhor do que isso — respondeu o hoteleiro, com ar de quem está plenamente satisfeito consigo mesmo.
— Calma, meu caro anfitrião — observou Albert — Olhe que o ótimo é inimigo do bom.
— Confiem em mim, Excelências — perguntou mestre Pastrini em tom convicto.
— Mas, enfim, que há? — perguntou Franz por seu turno.
— Sabem — disse o hoteleiro — Que o Conde de Monte Cristo ocupa o mesmo andar que os senhores?
— Sabemos — respondeu Albert — Pois é graças a ele que estamos instalados como dois estudantes da Rua Saint-Nicolas-du-Chardounet.
— Pois sabendo da dificuldade em que se encontram, manda oferecer-lhes dois lugares na sua carruagem e dois lugares nas suas janelas do Palácio Rospoli.
Albert e Franz entreolharam-se.
— Mas — perguntou Albert — Deveremos aceitar a oferta desse estrangeiro, de um homem que não conhecemos?
— Que homem é esse Conde de Monte Cristo? — perguntou Franz ao hoteleiro.
— Um grandíssimo fidalgo siciliano ou maltês, não sei ao certo, mas nobre como um Borghese e rico como uma mina de ouro.
— Parece-me — observou Franz a Albert — Que se esse homem tivesse tão boas maneiras como diz o nosso hoteleiro, deveria enviar-nos o seu convite de outra maneira, quer escrevendo-nos, quer...
Neste momento bateram à porta.
— Entre — disse Franz.
Um criado de libré perfeitamente elegante apareceu à entrada do quarto.
— Da parte do Conde de Monte Cristo para o Sr. Franz d’Epinay e para o Sr. Visconde Albert de Morcerf — disse.
E apresentou ao hoteleiro duas cartas que este entregou aos jovens.
— O Sr. Conde de Monte Cristo — continuou o criado — Manda pedir a esses senhores licença para se apresentar como vizinho amanhã de manhã nos seus aposentos. Ele terá a honra de se informar junto desses senhores a que horas estarão visíveis.
— Palavra — disse Albert a Franz — Não há nada a reprovar-lhe. Está tudo certo.
— Diga ao conde — respondeu Franz ao criado — Que seremos nós que teremos a honra de visitá-lo.
O criado retirou-se.
— Ora aí está o que se chama rivalizar em cortesia — observou Albert — Decididamente, tinha razão, mestre Pastrini: o seu Conde de Monte Cristo é um homem de inexcedível correção.
— Então aceitam a sua oferta? — perguntou o hoteleiro.
— Claro que aceitamos — respondeu Albert — Confesso-lhes no entanto que tenho pena da nossa carroça e dos ceifeiros, e se não houvesse a janela do Palácio Rospoli para compensar o que perdemos, creio que voltaria à minha primeira idéia. Que diz a isto, Franz?
— Digo que são também as janelas do Palácio Rospoli que me decidem — respondeu Franz a Albert.
Com efeito, a oferta de dois lugares a uma janela do Palácio Rospoli recordara a Franz a conversa que ouvira nas ruínas do Coliseu entre o desconhecido e o trasteveriano, conversa durante a qual o homem da capa se comprometera a obter o adiamento da execução do condenado. Ora, se o homem da capa era, como tudo levava Franz a crer, o mesmo cuja aparição na sala do Argentina tanto o impressionara, o reconheceria sem dúvida nenhuma e então nada o impediria de satisfazer a sua curiosidade a seu respeito.
Franz passou parte da noite sonhando com as suas duas aparições e desejando que amanhecesse. Com efeito, no dia seguinte tudo se esclareceria. E desta vez, a não ser que o seu anfitrião de Monte Cristo possuísse o anel de Giges e, graças a esse anel, a faculdade de se tornar invisível, era evidente que não lhe escaparia. Por isso, acordou antes das oito horas.
Quanto a Albert, como não tinha os motivos de Franz para madrugar, dormia ainda a sono solto. Franz mandou chamar o hoteleiro, que se apresentou com a sua obsequiosidade habitual.
— Mestre Pastrini — perguntou-lhe — Não deve haver hoje uma execução?
— Deve, Excelência. Mas se me pergunta isso para ter uma janela, lembrou-se muito tarde.
— Não — respondeu Franz — Aliás, se tivesse muito empenho em assistir a esse espetáculo, creio que arranjaria lugar no monte Píncio.
— Oh, supus que Vossa Excelência não quisesse misturar-se com toda essa canalha no que é de certo modo o anfiteatro natural das execuções!
— É provável que não vá — disse Franz — Mas gostaria de saber alguns pormenores.
— Quais?
— Gostaria de saber o número dos condenados, os seus nomes e o gênero do seu suplício.
— A pergunta não podia ser mais oportuna, Excelência! Acabam precisamente de me trazer as tavolette.
— Que são as tavolette?
—As tavolette são tabuinhas que se colocam em todas as esquinas de rua da cidade na véspera das execuções e nas quais se indicam os nomes dos condenados, o motivo da sua condenação e a forma do seu suplício. Tal aviso tem por fim convidar os fiéis a rogar a Deus que dê aos culpados um arrependimento sincero.
— E trazem-lhe as tavolette para que junte as suas preces às dos fiéis? — perguntou Franz com ar de dúvida.
— Não, Excelência. Eu é que me entendi com o colocador e ele traz-me as tavolette como me traz os cartazes dos espetáculos, para se alguns dos meus hóspedes desejarem assistir à execução estarem prevenidos.
— Mas que atenção tão delicada! — exclamou Franz.
— Oh, posso-me gabar de fazer tudo o que está ao meu alcance para satisfazer os nobres estrangeiros que me honram com a sua confiança! — declarou mestre Pastrini, sorrindo.
— Bem vejo, meu caro anfitrião! E é o que repetirei a quem o quiser ouvir, pode ter a certeza. Entretanto, gostaria de ler uma dessas tavolette.
— Nada mais fácil — respondeu o hoteleiro, abrindo a porta — Mandei colocar uma neste andar.
Saiu, desprendeu a tavolette e apresentou-a a Franz.
Eis a tradução literal do cartaz patibular:


Faz-se saber a todos que na terça-feira, 12 de Fevereiro, Primeiro Dia de Carnaval, serão, por sentença do Tribunal da Rota, executados na Praça del Popolo o réu Andrea Rondolo, culpado de assassínio na pessoa respeitabilíssima e veneradíssima de D. César Terlini, cônego da Igreja de São João de Latrão, e o réu Peppino, também conhecido por Rocca Priori, culpado de cumplicidade com o detestável bandido Luigi Vampa e os homens da sua quadrilha.
O primeiro será mazzolato.
E o segundo decapitado.
Suplica-se às almas caridosas que peçam a Deus o arrependimento sincero dos dois infelizes condenados.


Era exatamente o que Franz ouvira na antevéspera, nas ruínas do Coliseu, e o programa em nada fora alterado: os nomes dos condenados, o motivo do seu suplício e o gênero da sua execução eram exatamente os mesmos.
Assim, segundo todas as probabilidades, o trasteveriano não era outro senão o bandido Luigi Vampa e o homem da capa Simbad, o Marinheiro, que em Roma, como em Porto-Vecchio e em Tunes, se continuava a dedicar às suas filantrópicas expedições.
Entretanto o tempo passava, eram já nove horas, e Franz ia acordar Albert quando, com grande espanto seu, o viu sair completamente vestido do quarto. O carnaval não lhe safa da idéia e acordara-o mais cedo do que o amigo esperava.
— Bom — disse Franz ao hoteleiro — Agora que já estamos prontos os dois, acha, meu caro Sr. Pastrini, que podemos nos apresentar nos aposentos do Conde de Monte Cristo?
— Com certeza! O Conde de Monte Cristo tem o hábito de ser muito madrugador e estou certo de que se encontra acordado há mais de duas horas.
— E parece-lhe que não haverá indiscrição em nos apresentarmos nos seus aposentos agora?
— Nenhuma.
— Nesse caso, Albert, se está pronto...
— Inteiramente pronto — respondeu Albert.
— Então, vamos agradecer ao nosso vizinho a sua cortesia.
— Vamos!
Franz e Albert só tinham de atravessar o patamar. O hoteleiro se adiantou e tocou por eles. Um criado veio abrir.
— Sígnori Francesi — disse o hoteleiro.
O criado inclinou-se e fez-lhes sinal para entrarem.
Atravessaram duas divisões mobiliadas com um luxo que não esperavam encontrar no hotel de mestre Pastrini, e chegaram por fim a uma sala de uma elegância perfeita. Cobria o chão um tapete turco e os móveis mais confortáveis ofereciam as suas almofadas bem cheias e os seus encostos inclinados para trás. Das paredes pendiam magníficos quadros de mestres, intercalados com troféus de armas esplêndidas. Diante das portas adejavam grandes reposteiros de tapeçaria.
— Se Suas Excelências quiserem sentar, vou prevenir o Sr. Conde — disse o criado.
E desapareceu por uma das portas.
Quando a porta se abriu chegou aos ouvidos dos dois amigos o som de uma guzla, mas extinguiu-se imediatamente. A porta, fechada quase ao mesmo tempo que fora aberta, apenas deixara por assim dizer penetrar na sala uma lufada de harmonia.
Franz e Albert entreolharam-se e percorreram com a vista os móveis, os quadros e as armas. Tudo aquilo lhes pareceu, à segunda vista, ainda mais magnífico do que à primeira.
— Então que diz a isto? — perguntou Franz ao amigo.
— Digo, meu caro, que o nosso vizinho é algum corretor que jogou na baixa dos fundos espanhóis ou algum príncipe que viaja incógnito.
— Cale-se! — atalhou Franz — Isso é o que vamos saber, pois ele vem aí.
Com efeito, o ruído de uma porta girando nos gonzos acabava de chegar aos ouvidos dos visitantes. E quase ao mesmo tempo o reposteiro abriu-se e deu passagem ao proprietário de todas aquelas riquezas.
Albert avançou ao seu encontro, mas Franz ficou pregado no seu lugar.
Aquele que acabava de entrar era nem mais nem menos do que o homem da capa do Coliseu, o desconhecido do camarote e o anfitrião misterioso de Monte Cristo.







 continua...


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 "A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer." (Thomas Hardy)