segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 36



XXXVI

O CARNAVAL DE ROMA




Q
uando voltou a si, Franz encontrou Albert bebendo um copo de água. A sua palidez indicava que necessitava muito daquele lenitivo. Quanto ao Conde, vestia já o seu traje de palhaço. Franz olhou maquinalmente para a praça: tudo desaparecera, cadafalso, carrasco e vítima, e só restava o povo, barulhento, irrequieto, alegre. O sino do Monte Citorio, que só tocava por morte do papa e pela abertura da mascherata, tocava dasabaladamente.
— Então — perguntou ao Conde — Que aconteceu?
— Nada, absolutamente nada, como vê. Apenas começou o carnaval; vistamo-nos depressa.
— De fato — observou Franz ao Conde — De toda aquela horrível cena só resta o vestígio de um sonho.
— Porque não passou tudo de um sonho, de um pesadelo que o senhor teve.
— Eu, sim; mas e o condenado?
— Foi um sonho também. Simplesmente, ele ficou adormecido, ao passo que o senhor acordou. Quem poderá dizer qual dos dois é o privilegiado?
— E Peppino, que foi feito dele? — perguntou Franz.
— Peppino é um rapaz sensato, que não tem menor amor-próprio e que, ao contrário do que é habitual nos homens, que ficam furiosos quando lhes não ligam importância, ficou encantado ao ver que a atenção geral incidia sobre o seu camarada. Conseqüentemente, aproveitou essa distração para se esgueirar por entre a multidão e desaparecer, sem sequer agradecer aos dignos padres que o acompanharam. Decididamente, o homem é um animal muito ingrato e egoísta... mas vista-se. Olhe, veja como o Sr. de Morcerf lhe dá o exemplo.
Com efeito, Albert passava maquinalmente as calças de tafetá por cima das calças pretas e das botas de verniz.
— Então, Albert, está resolvido a cometer loucuras? — perguntou Franz — Vamos, responda francamente.
— Não — respondeu o interpelado — Mas na verdade agora sinto-me satisfeito por ter assistido a semelhante espetáculo e compreendo o que dizia o Sr. Conde: uma vez que nos conseguimos habituar a ele, trata-se do único espetáculo que ainda provoca emoções.
— Sem contar que é apenas nesse momento que se podem fazer estudos de caráter — observou o Conde — No primeiro degrau do cadafalso, a morte arranca-nos a máscara que usamos toda a vida e o nosso verdadeiro rosto aparece. Devemos concordar que o de Andrea não era agradável de ver... repugnante patife!... mas vistamo-nos, meus senhores, vistamo-nos!
Franz achou que seria ridículo da sua parte se fazer de rogado e não seguir o exemplo que lhe davam os seus dois companheiros. Vestiu, portanto, o seu traje e pôs a máscara, que certamente não era mais pálida do que o seu rosto. Assim que acabaram de se vestir, desceram. A carruagem os esperava à porta, cheia de confeti e de ramos de flores.
Entraram na fila.
É difícil fazer idéia de um contraste mais completo do que aquele que acabava de se operar. Em vez do anterior espetáculo de morte, sombrio e silencioso, a Praça del Popolo apresentava o aspecto de uma louca e ruidosa orgia. Viam-se aparecer inúmeras máscaras por todos os lados, saindo das portas e descendo das janelas. As carruagens desembocavam de todas as ruas, carregadas de pierros, arlequins, dominós, marqueses, trasteveres, figuras grotescas, cavalheiros, camponeses, etc., todos eles gritando, gesticulando e atirando ovos cheios de farinha, confeti e flores, atacando com palavras e projéteis amigos e estranhos, conhecidos e desconhecidos, sem que ninguém tivesse o direito de se zangar, sem que se fizesse fosse o que fosse a não ser rir.
Franz e Albert eram como homens que, para se distraírem de um grande desgosto, participam numa orgia e que, à medida que bebem e se embriagam, sentem um véu espessar-se entre o passado e o presente. Viam ainda, ou antes, continuavam a sentir em si o reflexo do que tinha visto. Mas, pouco a pouco, a embriaguez geral dominou-os e pareceu-lhes que a sua razão, pouco firme, ia abandoná-los. Experimentavam uma necessidade estranha de participar naquela algazarra, naquele movimento, naquela vertigem. Um punhado de confeti atirado a Morcerf de uma carruagem vizinha e que, cobrindo-o de pó, assim como aos seus dois companheiros, lhe picou o pescoço e toda a porção do rosto não tapada pela máscara, como se lhe tivessem atirado uma centena de alfinetes, acabou de atraí-lo para a luta geral em que já estavam envolvidas todas as máscaras que encontravam. Levantou-se por seu turno na carruagem, meteu ambas as mãos nos sacos e com todo o vigor e pontaria de que foi capaz lançou por sua vez ovos e confeitos nos seus vizinhos.
A partir daí o combate estava travado. A recordação do que tinham visto meia hora antes esfumou-se por completo do espírito dos dois jovens, de tal modo o espetáculo colorido, movimentado e insensato que tinha diante dos olhos os distraiu. Quanto ao Conde de Monte Cristo, nunca parecera, como dissemos, impressionado um só instante.
Imagine-se a grande e bela Rua do Corso, ladeada de uma ponta à outra de palácios de quatro ou cinco andares, com todas as suas varandas guarnecidas de tapeçarias, com todas as suas janelas decoradas; nessas varandas e nessas janelas trezentos mil espectadores, romanos, italianos e estrangeiros vindos das quatro partidas do mundo; todas as aristocracias reunidas: de nascimento, de dinheiro, de espírito; mulheres encantadoras que, sofrendo elas próprias a influência do espetáculo, se inclinam sobre as varandas, se debruçam fora das janelas e fazem chover sobre as carruagens que passam uma saraivada de confeti que lhes retribuem com flores; a atmosfera toda carregada de confeitos que descem e de flores que sobem; depois, nas próprias ruas, uma multidão alegre, incessante, louca, metida em trajes insensatos: couves gigantescas que se passeiam majestosamente, cabeças de búfalos que mugem encimando corpos de homens, cães que parecem caminhar nas patas traseiras, etc.; no meio de tudo isto uma máscara que se levanta e, como na tentação de Santo Antônio idealizada por Callot, alguma Astarte que mostra um rosto encantador, que se quer seguir, mas do qual se é separado por uma espécie de demônios idênticos aos que se vêem nos sonhos, e se terá uma fraca idéia do que é o Carnaval em Roma.
A segunda volta, o Conde mandou parar a carruagem e pediu aos companheiros licença para se separar deles, deixando a carruagem à sua disposição. Franz levantou os olhos: estavam diante do Palácio Rospoli, e à janela do meio, aquela que se encontrava forrada de damasco branco com uma cruz vermelha, estava um dominó azul sob o qual a imaginação de Franz descobriu sem dificuldade a bela grega do Teatro Argentina.
— Meus senhores — disse o Conde ao apear-se — Quando estiverem cansados de ser Atores e quiserem voltar a ser Espectadores, sabem que têm um lugar nas minhas janelas. Entretanto, disponham do meu cocheiro, da minha carruagem e dos meus criados.
Esquecemo-nos de dizer que o cocheiro do Conde estava gravemente vestido com uma pele de urso negro, exatamente igual à de Odry em O Urso e o Paxá, e que os dois lacaios que se mantinham de pé atrás do coche envergavam trajes de macaco verde, perfeitamente adaptados à sua estatura, e usavam máscaras de molas com as quais faziam caretas a quem passava.
Franz agradeceu ao Conde a sua amável oferta. Quanto a Albert, todo ele era galanteios com uma carruagem cheia de camponesas romanas, parada, como a do Conde, para um desses descansos tão vulgares nos desfiles e que ele cobria de flores.
Infelizmente para ele, o cortejo voltou a pôr-se em andamento, e, quando ele descia para a Praça del Popolo, a carruagem que lhe atraíra a atenção subia para o Palácio de Veneza.
— Ah, meu caro, não viu...? — perguntou a Franz.
— O quê?
— Olhe, aquele coche que vai ali, carregada de camponesas romanas.
— Não.
— Pois estou certo de que são mulheres encantadoras.
— Que azar estar mascarado, meu caro Albert — disse Franz — Era a altura de se desforrar das suas decepções amorosas!
— Oh, espero que o Carnaval não termine sem me proporcionar qualquer compensação! — exclamou Albert, meio rindo, meio a sério.
Apesar desta esperança, o dia passou-se todo sem outra aventura além do reencontro, duas ou três vezes renovado, com o coche das camponesas romanas. Num desses encontros, como que por acaso, ou por cálculo, a máscara de Albert soltou-se.
Ao mesmo tempo, ele pegou o resto das flores e atirou-as para o coche.
Sem dúvida uma das mulheres encantadoras que Albert adivinhava sob o traje garrido de camponesa ficou impressionada pela galanteria, pois por sua vez, quando a carruagem dos dois amigos voltou a passar, atirou-lhe um ramo de violetas.
Albert precipitou-se para o ramo. Como Franz não tinha nenhum motivo para crer que fora atirado em sua intenção, deixou Albert apanhá-lo. Albert colocou-o vitoriosamente na lapela e a carruagem continuou a sua corrida triunfal.
— Pronto, aí está um princípio de aventura! — disse-lhe Franz.
— Ria à vontade — respondeu Albert — Mas na verdade estou convencido que sim. Por isso, não largo mais este ramo.
— Acredito! — declarou Franz, rindo — É um sinal de reconhecimento.
O gracejo, aliás, depressa adquiriu o caráter de realidade, pois quando, sempre levados pelo cortejo, Franz e Albert se cruzaram de novo com a carruagem das contadine a que atirara o ramo a Albert bateu as mãos ao ver-lhe a lapela.
— Bravo, meu caro, bravo — disse-lhe Franz — Corre tudo às mil maravilhas! Quer que o deixe! Talvez seja mais agradável para si estar só...
— Não — respondeu Albert — Não precipitemos nada. Não quero me deixar apanhar como um idiota, a uma primeira demonstração, num encontro debaixo do relógio, como dizemos nos bailes da ópera. Se a bela camponesa quiser ir mais longe, a encontraremos amanhã, ou antes, a encontraremos. Então, me dará um sinal da sua existência e verei o que devo fazer.
— Na verdade, meu caro Albert — observou Franz — Você é sábio como Nestor e prudente como Ulisses. E se a sua Circe conseguir transformá-lo num animal qualquer, é porque será muito hábil ou muito poderosa.
Albert tinha razão. A bela desconhecida resolvera, sem dúvida, não levar mais longe o namoro daquele dia; porque embora os jovens dessem ainda várias voltas, não tornaram a ver o coche que procuravam com a vista: desaparecera decerto por uma das ruas adjacentes.
Então dirigiram-se para o Palácio Rospoli, mas o Conde também desaparecera com o dominó azul. As duas janelas forradas de damasco amarelo continuavam, de resto, a ser ocupadas por pessoas que sem dúvida convidara.
Naquele momento, o mesmo sino que tocara para a abertura da mascherata tocou para o encerramento. A fila do Corso rompeu-se imediatamente e num instante todas as carruagens desapareceram nas ruas transversais. Franz e Albert encontravam-se então defronte da Via delle Maratte. O cocheiro meteu por ela sem dizer nada, alcançou a Praça de Espanha contornou o Palácio Poli e parou diante do hotel.
Mestre Pastrini veio receber os seus hóspedes à porta.
O primeiro cuidado de Franz foi informar-se acerca do Conde e exprimir o seu pesar por o não terem ido buscar a tempo, mas Pastrini tranqüilizou-o dizendo-lhe que o Conde de Monte Cristo reservara segunda carruagem para si e essa carruagem fora buscá-lo às quatro horas no Palácio Rospoli. Além disso, estava encarregado de oferecer da parte dele aos dois amigos a chave do seu camarote no Teatro Argentina.
Franz consultou Albert acerca das suas disposições, mas Albert tinha grandes projetos a pôr em prática antes de pensar em ir ao teatro. Por isso, em vez de responder, informou-se se mestre Pastrini lhe poderia arranjar um alfaiate.
— Para que quer o nosso hóspede um alfaiate?
— Para nos fazer daqui até amanhã, trajes de camponeses romanos tão elegantes quanto possível — respondeu Albert.
Mestre Pastrini abanou a cabeça.
— Fazer-lhes daqui até amanhã dois trajes?! — exclamou — Ora aí está, com perdão de Vossas Excelências, um pedido à francesa. Dois trajes! Se daqui a oito dias não encontrariam com certeza um alfaiate que consentisse em pregar seis botões num colete, nem que lhe pagassem os botões a um escudo cada um!
— Quer dizer que devo desistir de arranjar os trajes que desejo?
— Não, porque arranjaremos os trajes prontos. Deixe-me tratar disso e amanhã encontrarão quando acordarem uma coleção de chapéus, jaquetas e calções que os deixará satisfeitos.
— Meu caro — disse Franz a Albert — Confiemos no nosso hoteleiro, que já nos provou ser homem de recursos. Jantemos, pois tranquilamente e depois do jantar vamos ver A Italiana no Argel.
— Seja A Italiana no Argel — admitiu Albert — Mas não se esqueça, mestre Pastrini, que eu e este senhor — continuou, indicando Franz — Atribuímos a mais alta importância a termos amanhã os trajes que pedimos.
O hoteleiro garantiu mais uma vez aos seus hóspedes que não tinham de se preocupar fosse com o que fosse e que os seus desejos seriam satisfeitos. Assim Franz e Albert subiram aos seus quartos para despirem os trajes de palhaços.
Ao despir o seu, Albert tirou com o maior cuidado o ramo de violetas: era o seu sinal de reconhecimento para o dia seguinte. Os dois amigos sentaram-se à mesa; mas enquanto jantavam, Albert não pode deixar de notar a diferença notável que existia entre os méritos respectivos dos cozinheiros de mestre Pastrini e do Conde de Monte Cristo. Ora, a verdade obrigou Franz a confessar, apesar das prevenções que parecia ter contra o Conde, que a comparação não era nada a favor do chefe de Pastrini.
À sobremesa, o criado perguntou a que horas os dois jovens desejavam a carruagem. Albert e Franz entreolharam-se, receando sinceramente abusar, mas o criado tranqüilizou-os:
— Sua Excelência, o Conde de Monte Cristo — disse — Deu ordens terminantes para que a carruagem ficasse todo o dia às ordens de Suas Senhorias. Suas Senhorias podem, portanto dispor dela sem receio de abusar.
Os jovens resolveram aproveitar até ao fim a cortesia do Conde e mandarem atrelar os cavalos enquanto eles iam trocar por um traje de noite o seu traje de dia, que estava um bocadinho amarrotado pelos numerosos combates em que tinham participado. Tomada esta precaução, dirigiram-se para o Teatro Argentina e instalaram-se no camarote do Conde.
Durante o primeiro Ato, a Condessa G... entrou no dela e o seu primeiro olhar foi para o lado onde na véspera vira o Conde, de modo que viu Franz e Albert no camarote daquele acerca de quem exprimira a Franz, havia vinte e quatro horas, opinião bastante estranha.
O seu binóculo visava-o tão intensamente que Franz se convenceu ser uma crueldade tardar mais tempo a satisfazer a curiosidade da Condessa. Por isso, usando do privilégio concedido aos espectadores dos teatros italianos, que consiste em transformar salas de espetáculo em salas de recepção, os dois amigos deixaram o seu camarote e foram apresentar as suas homenagens à Condessa. Mal entraram no camarote, ela fez sinal a Franz para se sentar no lugar de honra.
Por sua vez, Albert sentou-se atrás.
— Então — disse a Condessa quase sem dar tempo a Franz de se sentar — Parece que não tiveram nada mais urgente que fazer do que travar conhecimento com o novo Lorde Ruthwen e tornarem-se os melhores amigos do mundo...
— Sem que estejamos tão adiantados como diz numa intimidade recíproca não posso negar, Sra. Condessa — respondeu Franz — Que abusamos todo o dia da sua amabilidade.
— Como, todo o dia?
— É como lhe digo: esta manhã aceitamos o seu café da manhã, durante toda a mascherata, percorremos o Corso na sua carruagem e finalmente à noite assistimos ao espetáculo no seu camarote.
— Conhecem-no, portanto?
— Sim e não.
— Como assim?
— É uma longa história.
— Que me contar?
— Lhe causaria demasiado medo.
— Mais uma razão.
— Espere ao menos que a história tenha um desenlace.
— Seja, gosto das histórias completas. Entretanto, como entraram em contato? Quem os apresentou?
— Ninguém. Foi ele, pelo contrário, que se apresentou a nós.
— Quando?
— Ontem à noite, depois de deixá-la.
— Por intermédio de quem?
— Oh, meu Deus, pelo intermédio prosaiquíssimo do nosso hoteleiro!
— Está portanto hospedado no Hotel de Espanha como os senhores?
— Não só no mesmo hotel, mas também no mesmo andar.
— Como se chama? Porque sem dúvida sabem o seu nome...
— Perfeitamente. Conde de Monte Cristo.
— Que nome é esse? Não é um nome de família.
— Não, é o nome de uma ilha que ele comprou.
— E é conde?
— Conde toscano.
— Enfim, engoliremos isso como os outros — declarou a condessa, que pertencia a uma das mais antigas famílias dos arredores de Veneza — Mas que espécie de homem é ele?
— Pergunte ao visconde de Morcerf.
— Ouviu, senhor? Remetem-me para si — disse a condessa.
— Seríamos demasiado exigentes se não o achássemos encantador, minha senhora — respondeu Albert — Um amigo de dez anos não faria por nós mais do que ele tem feito, e com uma graça, uma delicadeza, uma cortesia que indicam realmente tratar-se de um homem de sociedade.
— Bom — disse a condessa, rindo — Verão que o meu vampiro acaba por ser muito simplesmente algum novo rico que quer que lhe perdoem os seus milhões e se meteu na pele de Lara para não o confundirem com o Sr. de Rothschild. E ela, viram-na?
— Ela, quem? — perguntou Franz, sorrindo.
— A bela grega de ontem.
— Não. Ouvimos, se não me engano, o som da sua guzla, mas ela conservou-se absolutamente invisível.
— Isto é, quando diz invisível, meu caro Franz — observou Albert — É apenas para adensar o mistério, não é verdade? Quem acha que era o dominó azul que estava na janela forrada de damasco branco?
— E onde estava essa janela forrada de damasco branco? — perguntou a condessa.
— No Palácio Rospoli.
— O Conde tinha portanto três janelas no Palácio Rospoli?
— Tinha. Passou na Rua do Corso?
— Sem dúvida.
— Não notou duas janelas forradas de damasco amarelo e uma janela forrada de damasco branco com uma cruz vermelha? Essas três janelas eram do Conde.
— Ah, sim?... Mas então esse homem é um nababo! Sabem quanto custam três janelas como essas para os oito dias de Carnaval e no Palácio Rospoli, isto é, na melhor situação do Corso?
— Duzentos ou trezentos escudos romanos...
— Diga dois ou três mil.
— Demônio!
— É a sua ilha que lhe dá tão bom rendimento?
— A sua ilha? Não lhe rende nem um chavo.
— Nesse caso, porque a comprou?
— Por capricho.
— Trata-se, portanto de um original?
— Efetivamente — declarou Albert — Pareceu-me bastante excêntrico. Se morasse em Paris e freqüentasse os nossos espetáculos, dir-lhe-ia, meu caro, que se tratava de um brincalhão de mau gosto cheio de pose ou de um pobre diabo que a literatura não soube aproveitar. Na realidade, teve esta manhã duas ou três saídas dignas de Didier ou de Antony.
Neste momento entrou uma visita e, segundo o uso, Franz cedeu o seu lugar ao recém-chegado. Esta circunstância, além da troca de lugares, teve ainda como resultado mudar o tema da conversa.
Uma hora mais tarde, os dois amigos regressaram ao hotel. Mestre Pastrini ocupara-se já das suas máscaras para o dia seguinte e prometeu-lhes que ficariam satisfeitos com a sua inteligente atividade.
Com efeito, no dia seguinte às nove horas entrava no quarto de Franz com um alfaiate carregado com oito ou dez trajes de camponês romano. Os dois amigos escolheram dois iguais, mais ou menos à medida do seu corpo, e encarregaram o hoteleiro de lhes mandar pregar uns vinte metros de fitas em cada chapéu e de lhes arranjar dois desses encantadores lenços de seda de barras transversais e cores vivas com que os homens do povo têm o hábito, nos dias de festa, de apertar a cintura.
Albert tinha pressa de ver como lhe ficaria o seu novo traje, o qual se compunha de uma jaqueta e de uns calções de veludo azul, meias bordadas, sapatos de fivela e colete de seda. Aliás, Albert só podia ser beneficiado com este traje pitoresco. E quando cingiu com aquela espécie de faixa a cintura elegante, e o chapéu, ligeiramente inclinado para um lado, lhe deixou cair sobre o ombro ondas de fitas, Franz foi obrigado a confessar que o traje representa quase sempre muito na superioridade física que concedemos a certos povos. Os turcos, dantes tão pitorescos com as suas longas túnicas de cores vivas, não são agora ridículos com as suas sobrecasacas azuis abotoadas e os seus barretes gregos que lhes dão o ar de garrafas de vinho de cápsula vermelha?
Franz felicitou Albert, que, de resto, de pé diante do espelho, sorria com um ar de satisfação que não tinha nada de equívoco.
Estavam nisto quando o Conde de Monte Cristo entrou.
— Meus senhores — disse-lhes — Como por mais agradável que seja um companheiro de prazer a liberdade é ainda mais agradável, venho dizer-lhes que hoje e nos dias seguintes deixo à sua disposição a carruagem de que se serviram ontem. O nosso hoteleiro deve ter-lhes dito que tenho três ou quatro alugadas no hotel; portanto, essa não me faz falta e podem servir-se dela livremente, quer para as suas saídas de prazer, quer para as de negócios. Nos encontraremos, se tivermos alguma coisa a dizer uns aos outros, no Palácio Rospoli.
Os dois jovens quiseram fazer-lhe qualquer observação, mas na realidade não tinham nenhum motivo aceitável para recusar uma oferta que, aliás lhes era agradável. Acabaram, pois por aceitar.
O Conde de Monte Cristo ficou cerca de um quarto de hora com eles, falando de todas as coisas com extrema facilidade. Encontrava-se, como já tinham podido notar, muito ao corrente da literatura de todos os países. Uma olhadela às paredes da sua sala provara a Franz e a Albert que era amador de quadros. Algumas palavras despretensiosas que deixou escapar por acaso provaram-lhes que as ciências lhe não eram estranhas. Parecia, sobretudo ter-se ocupado especialmente da química.
Os dois amigos não tinham a pretensão de oferecer ao Conde o café da manhã que lhes dera, e seria um gracejo de muito mau gosto servir-lhe, em troca da sua excelente refeição, a comida muitíssimo medíocre de mestre Pastrini. Assim lhe disseram com toda a franqueza e ele recebeu as suas desculpas como homem que apreciava a sua delicadeza.
Albert estava entusiasmado com as maneiras do Conde, que só a sua ciência o impedia de o considerar um autêntico fidalgo. Sobretudo a liberdade de dispor inteiramente da carruagem enchia-o de alegria. Tinha os seus planos a respeito das graciosas camponesas, e como elas lhe tinham aparecido na véspera numa carruagem elegantíssima, não lhe desagradava continuar a parecer nesse ponto em pé de igualdade com elas.
Os dois jovens desceram à uma e meia. O cocheiro e os lacaios tinham tido a idéia de vestir os casacos das librés debaixo das suas peles de animais, o que lhes dava aspecto ainda mais grotesco do que na véspera e lhes valeu muitas felicitações de Franz e Albert.
Albert colocara, sentimentalmente na lapela, o seu ramo de violetas já murchas. Mal soou o sino, partiram e precipitaram-se na Rua do Corso pela Via Vitioria.
À segunda volta, um ramo de violetas frescas partiu de um coche carregada de palhaças e veio cair no coche do Conde. Albert teve assim a indicação de que, tal como ele e o amigo, as camponesas da véspera também tinham mudado de traje, e de que, quer por acaso, quer por um sentimento idêntico àquele que os impelira, enquanto eles, galantemente, tinham escolhido o traje delas, elas pela sua parte haviam escolhido o deles.
Albert pôs o ramo fresco no lugar do outro, mas conservou o ramo murcho na mão, e quando se cruzou de novo com a coche, levou-o apaixonadamente aos lábios, o que pareceu divertir muito, não só a que lhe atirara, mas também as suas loucas companheiras.
O dia não foi menos animado do que a véspera. É até provável que um profundo observador tivesse notado um aumento de barulho e alegria. Viram, por momentos, o Conde à sua janela, mas quando a carruagem tornou a passar ele já desaparecera. Não é necessário dizer que a troca de galanteios entre Albert e a palhaça dos ramos de violetas durou todo o dia.
À noite, quando regressaram, Franz encontrou uma carta da embaixada em que lhe anunciavam que teria a honra de ser recebido no dia seguinte por Sua Santidade. Em todas as viagens que fizera anteriormente a Roma, solicitara e obtivera o mesmo favor. E tanto por devoção como por reconhecimento, não quisera passar pela capital do mundo cristão sem depositar as suas respeitosas homenagens aos pés de um dos sucessores de São Pedro que tem dado o raro exemplo de todas as virtudes.
Naquele dia não se tratava, portanto para ele de pensar no Carnaval; porque apesar da bondade de que o Santo Padre rodeia a sua grandeza, é sempre com um respeito cheio de profunda emoção que as pessoas se inclinam diante do nobre e santo velho chamado Gregório XVI.
Quando saiu do Vaticano, Franz foi direito ao hotel e evitou até passar pela Rua do Corso. Levava consigo um tesouro de pensamentos piedosos para os quais o contato com as loucas alegrias da mascherata seria uma profanação.
Albert regressou às cinco horas e dez minutos. Vinha eufórico. A palhacinha tornara a envergar o seu traje de camponesa e ao passar pelo coche de Albert tirara a máscara.
Era encantadora.
Franz apresentou a Albert as suas mais sinceras felicitações, e ele recebeu-as como homem a quem são devidas. Reconhecera, dizia, por certos sinais de elegância inimitável, que a sua bela desconhecida pertencia à mais alta aristocracia. Estava decidido a escrever-lhe no dia seguinte.
Ao receber tal confidência, Franz notou que Albert parecia ter qualquer coisa a pedir-lhe, mas que, no entanto, hesitava em fazer-lhe o pedido. Insistiu, declarando-lhe antecipadamente que estava pronto a fazer em benefício da sua felicidade todos os sacrifícios que estivessem na sua mão, mas Albert fez-se de rogado exatamente o tempo exigido por uma amistosa delicadeza. Por fim, confessou a Franz que lhe prestaria um grande favor se no dia seguinte lhe cedesse a coche só para ele. Albert atribuía à ausência do amigo a extrema bondade que tivera a bela camponesa em tirar a máscara.
Como se compreende, Franz não era egoísta ao ponto de levantar dificuldades a Albert no meio de uma aventura que prometia ao mesmo tempo ser tão agradável para a sua curiosidade e tão lisonjeira para o seu amor-próprio. Conhecia bastante bem a perfeita indiscrição do seu digno amigo e tinha a certeza de que ele o manteria ao corrente dos mais pequenos pormenores da sua boa fortuna. E como, desde que havia dois ou três anos que percorria a Itália em todos os sentidos, nunca tivera sequer a oportunidade de esboçar um namoro assim em seu proveito, Franz estava ansioso por saber como se passavam as coisas em semelhante caso. Prometeu, portanto a Albert que no dia seguinte se limitaria a admirar o espetáculo das janelas do Palácio Rospoli.
Com efeito, no dia seguinte viu passar e tornar a passar Albert. Trazia um ramo enorme que sem dúvida encarregara de ser o portador da sua epístola amorosa. Tal probabilidade transformou-se em certeza quando Franz tornou a ver o mesmo ramo, notável devido a um círculo de camélias brancas, nas mãos de uma encantadora palhaça vestida de cetim cor-de-rosa.
Por isso, a noite já não foi de alegria, foi de delírio. Albert estava certo de que a bela desconhecida lhe responderia pela mesma via. Franz foi ao encontro dos seus desejos dizendo-lhe que todo aquele barulho o fatigava e que estava decidido a empregar o dia seguinte a rever o seu álbum e a tomar apontamentos.
Aliás, Albert não se enganara nas suas previsões: no dia seguinte à noite, Franz viu-o entrar-lhe no quarto num salto, agitando maquinalmente uma folha de papel segura por uma ponta.
— Então, enganei-me? — perguntou.
— Ela respondeu? — inquiriu Franz.
— Leia.
Esta palavra foi pronunciada com uma entonação impossível de reproduzir. Franz pegou no bilhete e leu:


Terça-Feira à noite, às sete horas, desça da sua carruagem defronte da Via dei Pontefici e siga a camponesa romana que lhe tirar o seu moccoletto. Quando chegar ao primeiro degrau da Igreja de San-Giacomo tome o cuidado para que ela o possa reconhecer de atar uma fita cor-de-rosa no ombro do seu traje de palhaço.
Daqui até lá não me verá mais.
Constância e discrição.


— Que pensa disso, caro amigo? — perguntou Albert a Franz quando este terminou a leitura.
— Penso — respondeu Franz — Que a coisa toma todo o caráter de uma aventura deveras agradável.
— É também a minha opinião — disse Albert — E receio muito que você tenha de ir sozinho ao Baile do Duque de Bracciano.
Franz e Albert tinham recebido naquela mesma manhã um convite do célebre banqueiro romano.
— Cautela, meu caro Albert — recomendou-lhe Franz — Toda a aristocracia estará na casa do duque, e se a sua bela desconhecida pertence de fato à aristocracia, não poderá dispensar-se de comparecer.
— Compareça ou não, mantenho a minha opinião acerca dela — perguntou Albert — Não leu o bilhete?
— Li.
— Conhece a pobre educação que recebem na Itália as mulheres do mezzo cito? Chama-se assim à burguesia.
— Conheço — tornou a responder Franz.
— Então, releia o bilhete, examine a letra e descubra-me um erro de língua ou de ortografia.
Com efeito, a letra era encantadora e a ortografia impecável.
— Você é um predestinado — disse Franz a Albert, restituindo-lhe o bilhete pela segunda vez.
— Ria à vontade e graceje o quanto quiser — declarou Albert — Estou apaixonado.
— Oh, meu Deus, assusta-me! — exclamou Franz — E vejo que não só irei sozinho ao baile do Duque de Bracciano, como ainda poderei muito bem regressar sozinho à Florença.
— A verdade é que se a minha desconhecida for tão amável como é bela, declaro-lhe que me fixo em Roma durante pelo menos seis semanas. Adoro Roma e, além disso, sempre tive uma predileção acentuada pela arqueologia.
— Vamos, mais um encontro ou dois como esse e não desespero de o ver membro da Academia de Inscrições e Belas-Letras.
Albert preparava-se sem dúvida para discutir seriamente os seus direitos à cadeira acadêmica, mas vieram anunciar aos dois jovens que o jantar estava servido. Ora, em Albert o amor não era de modo algum contrário ao apetite. Apressou-se, pois assim como o amigo, a sentar-se à mesa, resolvido a retomar a discussão depois do jantar.
Mas depois do jantar anunciaram-lhes o Conde de Monte Cristo. Havia dois dias que os jovens o não viam. Mestre Pastrini dissera-lhes que um negócio o chamara a Civita-Vecchia. Partira na véspera à noite e regressara havia apenas uma hora.
O Conde foi encantador. Quer porque se contivesse, quer porque a ocasião não despertasse nele as fibras acrimoniosas que certas circunstâncias tinham já feito vibrar duas ou três vezes e o haviam levado a proferir palavras amargas; a verdade é que foi pouco mais ou menos como toda a gente. Aquele homem constituía para Franz um autêntico enigma. O Conde não podia duvidar de que o jovem viajante o reconhecera. E, no entanto nem uma só palavra desde o seu novo encontro parecia indicar na sua boca que se recordava de o ter visto em outro lugar. Pela sua parte, ainda que Franz desejasse aludir ao seu primeiro encontro, continha-o o receio de ser desagradável para com um homem que o cumulara, a si e ao amigo, de atenções. Continuou, portanto a manter a mesma reserva que ele.
O Conde soubera que os dois amigos tinham querido comprar um camarote no Teatro Argentina e lhos haviam respondido que estava tudo vendido. Trazia-lhes por isso a chave do seu. Pelo menos era esse o motivo aparente da sua visita.
Franz e Albert fizeram-se um bocadinho rogados, alegando o receio de o privarem do camarote. Mas o Conde respondeu-lhes que como ia naquela noite ao Teatro Palli, o seu camarote no Teatro Argentina se perderia se eles o não aproveitassem. Este tato determinou os dois amigos a aceitarem.
Franz habituara-se pouco a pouco à palidez do Conde, que tanto o impressionara da primeira vez que o vira. Não podia deixar de prestar justiça à beleza do seu rosto severo, cuja palidez constituía o seu único defeito ou talvez a sua principal qualidade. Autêntico herói de Byron, Franz não podia, não diremos vê-lo, mas apenas pensar nele, sem imaginar aquele rosto pálido e sombrio sobre os ombros de Manfredo ou sob o barrete de Lara. Tinha na testa essa ruga que indica a presença incessante de um pensamento amargo; possuía uns olhos ardentes que penetravam até as profundezas das almas, e nem sequer lhe faltava, para completar o quadro, os lábios orgulhosos e zombeteiros que dão às palavras que preferem o caráter especial que as leva a gravarem-se profundamente na memória daqueles que as escutam.
O Conde já não era novo. Tinha pelo menos quarenta anos e, no entanto adivinhava-se sem custo que estava preparado para levar a melhor ao jovem com quem deparasse. Na realidade, numa derradeira semelhança com os heróis fantásticos do poeta inglês, o Conde parecia possuir o dom da fascinação.
Albert não se cansava de salientar a sorte que ele e Franz tinham tido em encontrar semelhante homem. Franz era menos entusiasta, mas mesmo assim sofria a influência que exerce qualquer homem superior no espírito daqueles que o rodeiam. Pensava no projeto de ir a Paris que já por duas ou três vezes o Conde manifestara e não duvidava que com o seu caráter excêntrico, o seu rosto característico e a sua fortuna colossal, o Conde produziria o maior efeito. E, contudo não desejaria encontrar-se em Paris quando ele lá fosse.
A noite passou-se como se passam habitualmente as noites no teatro na Itália, não escutando os cantores, mas sim fazendo visitas e conversando. A condessa G... queria reatar a conversa sobre o Conde, mas Franz anunciou-lhe que tinha coisa muito mais recente a comunicar-lhe e, apesar das demonstrações de falsa modéstia a que se entregou Albert, contou à Condessa o grande acontecimento que havia três dias era objeto das preocupações dos dois amigos.
Como tais namoros não são raros na Itália, pelo menos a julgar pelo que dizem os viajantes, a condessa não se mostrou nada incrédula e felicitou Albert pelas primícias de uma aventura que prometia terminar de forma tão satisfatória. Separaram-se prometendo reencontrar-se no baile do duque de Bracciano, para o qual Roma em peso fora convidada. A dama do ramo cumpriu a sua promessa: nem no dia seguinte nem no outro deu a Albert sinal de existência.
Chegou por fim terça-feira, o último e o mais ruidoso dos dias de Carnaval.
Na terça-feira os teatros abrem às dez horas da manhã, porque depois das oito horas da noite entra-se na Quaresma. Na terça-feira, todos aqueles que por falta de tempo, de dinheiro ou de entusiasmo ainda não participaram nas festas anteriores, juntam-se à bacanal, deixam-se arrastar pela orgia e contribuem com a sua parte de barulho e movimento para o movimento e o barulho gerais.
Das duas às cinco horas, Franz e Albert seguiram no cortejo, trocando punhados de confeti com as carruagens da fila oposta e os peões que circulavam entre as patas dos cavalos e as rodas das carruagens sem que acontecesse no meio de tão medonha barafunda um único acidente, uma única disputa, uma única rixa. Nestas coisas, não há nenhum povo como o italiano. As festas são para ele verdadeiras festas.
O autor desta história, que residiu na Itália cinco ou seis anos, não se recorda de ter visto alguma vez uma solenidade perturbada por um só desses acontecimentos que servem sempre de corolário às nossas.
Albert triunfava no seu traje de palhaço. Tinha no ombro um laço de fita cor-de-rosa cujas pontas lhe caíam até às curvas das pernas para não haver qualquer confusão entre ele e Franz, este conservara o seu traje de camponês romano.
Quanto mais o dia avançava, maior era o tumulto. Não havia em todas aquelas ruas, em todas aquelas carruagens, em todas aquelas janelas uma boca que se mantivesse calada, um braço que se conservasse ocioso. Era verdadeiramente uma tempestade humana, composta por uma trovoada de gritos e uma saraivada de confeitos, flores, ovos, laranjas e ramos.
Às três horas, o barulho de foguetes lançados simultaneamente da Praça do Povo e do Palácio de Veneza sobrepôs-se com dificuldade ao tumulto ensurdecedor e anunciou que as corridas iam começar. As corridas, como os moccolli, são um dos episódios característicos dos últimos dias de Carnaval. Ao soar o estrépito dos foguetes, as carruagens romperam imediatamente as fileiras e refugiaram-se nas ruas transversais mais próximas do lugar onde se encontravam.
Todas estas evoluções se efetuam, de resto, com inconcebível perícia e maravilhosa rapidez, e isso sem que a Polícia se dê ao menor incômodo de indicar a cada um o seu lugar ou de traçar a cada um o seu caminho.
Os peões encontraram-se às paredes dos palácios e em seguida ouviu-se um grande barulho de cavalos e bainhas de sabre. Um esquadrão de carabineiros a quinze de frente percorria a galope e a toda a largura a Rua do Corso, que varria para abrir lugar aos barberi. Quando o esquadrão chegou ao Palácio de Veneza, o rebentamento de outra girândola de foguetes anunciou que a rua estava livre. Quase imediatamente, no meio de um clamor imenso, universal, inaudito, viram-se passar como sombras sete ou oito cavalos excitados pelos clamores de trezentas mil pessoas e pelas castanhas de ferro que lhes saltavam no dorso. Depois, o canhão do Castelo de Santo Ângelo disparou três tiros. Estes destinavam-se a anunciar que o número três ganhara.
Ato contínuo, sem outro sinal além daquele, as carruagens puseram-se de novo em movimento e refluíram para o Corso, transbordando de todas as ruas como torrentes por instantes contidas que se lançam ao mesmo tempo no leito do rio que alimentam, e a vaga imensa recomeçou, mais rápida do que nunca, o seu curso entre as duas margens de granito.
Apenas um novo elemento de barulho e movimento se viera ainda juntar à multidão: os vendedores de moccoli acabavam de entrar em cena.
Os maccolli ou moccoletti são velas que variam de tamanho, desde o círio pascal até ao rolo de pavio, e que provocam nos atores da grande representação com que termina o Carnaval romano duas preocupações opostas:
1ª — A de conservar aceso o seu mocoletto;
2ª — A de apagar o moccoletto dos outros.
Passa-se com o moccoletto o mesmo que com a vida: o homem ainda só encontrou um meio de a transmitir, e esse meio recebe-o de Deus. Mas descobriu mil meios de a tirar, e a verdade é que nessa operação suprema o Diabo o tem ajudado um bocadinho. O moccoletto acende-se chegando-se a uma chama qualquer.
Mas como descrever as mil maneiras inventadas para apagar o moccoletto, os foles gigantescos, os apagadores monstros, os leques sobre-humanos? Todas as pessoas se apressaram a comprar moccoletti, Franz e Albert como os outros.
A noite aproximava-se rapidamente, e em breve, ao grito de “Moccoli!” repetidos pelas vozes estridentes de um milhar de vendedores, duas ou três estrelas começaram a brilhar por cima da multidão. Foi como que um sinal. Ao cabo de dez minutos, cinqüenta mil luzes cintilaram, descendo o Palácio de Veneza para a Praça do Povo e subindo da Praça do Povo para o Palácio de Veneza. Dir-se-ia a festa dos fogos-fátuos.
Não se pode fazer idéia do aspecto de conjunto; só visto.
Suponha o leitor que todas as estrelas se desprendiam do céu e se juntavam na Terra numa dança insensata, tudo acompanhado de gritos como nunca ouvido humano escutou no resto da superfície do Globo.
E, sobretudo nesse momento que desaparecem as diferenças sociais. O facchino mistura-se com o príncipe, o príncipe com o trastevere e o trastevere com o burguês, todos soprando, apagando e reacendendo. Se o velho Éolo aparecesse em semelhante altura, seria proclamado rei dos moccolli, e Aquilão, herdeiro presuntivo da coroa.
Esta corrida louca e resplandecente durou aproximadamente duas horas. A Rua do Corso estava iluminada como em pleno dia. Distinguiam-se as feições dos espectadores até ao terceiro e quarto andares.
Albert puxava do relógio de cinco em cinco minutos. Por fim, os ponteiros marcaram às sete horas. Os dois amigos encontravam-se precisamente nas imediações da Via dei Pontefici, Albert saltou do coche com o seu moccoletto na mão.
Dois ou três mascarados quiseram aproximar-se dele para o apagarem ou tirarem; mas como hábil pugilista que era, Albert fê-los rolar um após outro a dez passos de distância e continuou o seu caminho para a Igreja de San-Giacomo.
Os degraus estavam cheios de curiosos e de máscaras que lutavam para ver quem arrancaria as velas das mãos uns dos outros. Franz seguia Albert com a vista e viu-o pôr o pé no primeiro degrau. Depois, quase imediatamente, uma máscara com o traje bem conhecido da camponesa do ramo estendeu o braço e, sem que desta vez ele oferecesse qualquer resistência, tirou-lhe o moccoletto.
Franz estava demasiado longe para ouvir as palavras que trocaram; mas sem dúvida não tiveram nada de hostil, pois viu afastar-se Albert e a camponesa de braço dado. Durante algum tempo seguiu-os no meio da multidão, mas na Via Macello perdeu-os de vista.
De súbito, soou o toque do sino que dá o sinal do encerramento do Carnaval.
No mesmo instante, todos os moccoli se apagaram como que por encanto. Dir-se-ia que uma única e imensa lufada de vento aniquilara tudo.
Franz encontrou-se no meio da escuridão mais profunda.
Ao mesmo tempo, todos os gritos cessaram, como se o sopro poderoso que extinguira as luzes tivesse extinguido ao mesmo tempo os ruídos. Ouviu-se apenas o rodar das carruagens que reconduziam as máscaras a suas casas e viram-se unicamente as raras luzes que brilhavam atrás das janelas.
O Carnaval terminara.





  
continua...


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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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