XXXIX
OS CONVIVAS
N |
a casa da Rua Helder em que Albert de Morcerf marcara encontro em Roma com o Conde de Monte Cristo, tudo se preparava na manhã de 21 de Maio para honrar a palavra do jovem.
Albert de Morcerf habitava num pavilhão situado a um canto de um grande pátio e defronte de outro edifício destinado às dependências de serviço. Apenas duas janelas do pavilhão davam para a rua; as outras abriam, três para o pátio e as duas restantes para o jardim. Entre o pátio e o jardim erguia-se, construída com o mau gosto da arquitetura imperial, a residência moderna e ampla do Conde e da Condessa de Morcerf.
A toda a largura da propriedade erguia-se, dando para a rua, um muro encimado, de distância em distância, por vasos de flores, e cortado ao meio por um grande portão de lanças douradas, que servia para as ocasiões solenes. Uma portinha quase pegada ao cubículo do porteiro dava passagem ao pessoal e aos donos da casa, quando entravam ou saíam a pé.
Na escolha do pavilhão destinado a residência de Albert adivinhava-se a delicada precaução de uma mãe que, não querendo separar-se do filho, compreendera, no entanto que um rapaz da idade do visconde necessitava de completa liberdade. Por outro lado, devemos dizê-lo, também se reconhecia nisso o egoísmo inteligente do rapaz, a quem agradava a vida livre e ociosa dos filhos-família, aos quais douravam, como aos pássaros, a gaiola.
Pelas duas janelas que deitavam para a rua, Albert de Morcerf podia proceder às suas explorações exteriores. A vista do exterior é tão necessária aos jovens que querem ver sempre o mundo atravessar-lhes o horizonte, ainda que esse horizonte seja apenas o da rua! Depois, uma vez a exploração concluída, se essa exploração lhe parecia merecer um exame mais aprofundado, Albert de Morcerf podia, para se dedicar às suas investigações, sair por uma portinha que emparelhava com a que indicamos junto do cubículo do porteiro, e que merece uma menção especial.
Era uma portinha que se diria esquecida de toda gente desde o dia em que a casa fora construída, e que se julgara condenada para sempre, de tal modo parecia discreta e poeirenta, mas cuja fechadura, assim como os gonzos, cuidadosamente lubrificados, denunciavam uma serventia misteriosa e continuada. Aquela portinha dissimulada fazia concorrência às outras duas e zombava do porteiro, à vigilância e jurisdição do qual escapava, pois abria-se como a famosa porta da caverna das Mil e Uma Noites, como o Sésamo encantado de Ali Babá, por meio de algumas palavras cabalísticas ou de algumas arranhadelas convencionadas, pronunciadas pelas mais meigas vozes ou dadas pelos dedos mais afilados deste mundo.
Ao fim de um corredor vasto e calmo, com o qual comunicava a portinha e que fazia de antecâmara, abria-se à direita a sala de jantar de Albert, que dava para o pátio, e à esquerda a sua salinha de visitas, que dava para o jardim. Maciços de plantas trepadeiras abriam-se em leque diante das janelas e ocultavam do Pátio e do jardim o interior de ambas as divisões, as únicas que, por se situarem no térreo, estavam expostas aos olhares indiscretos.
No primeiro andar havia, além das duas divisões correspondentes às do térreo, uma terceira situada sobre a antecâmara. As três divisões serviam de sala, quarto de dormir e boudoir. A sala de baixo não passava de uma espécie de divã argelino destinado aos fumadores.
O boudoir do primeiro andar comunicava com o quarto de dormir e, através de uma porta invisível, com a escada. Como se vê, estavam tomadas todas as precauções.
Por cima de o primeiro andar ficava um vasto atelier, que se aumentara deitando abaixo paredes e tabiques, pandemônio que o artista disputava ao Dandy. Aliás, se refugiavam e empilhavam todos os sucessivos caprichos de Albert: as trombetas de caça, os baixos e as flautas, uma orquestra completa, pois Albert tivera por instantes, não o gosto, mas sim o capricho da música; os cavaletes, as paletas e os pastéis, porque à fantasia da música sucedera a fatuidade da pintura; finalmente, os floretes, as luvas de boxe, os espadões e as bengalas de todos os gêneros. Porque, enfim, seguindo as tradições dos jovens à moda da época em que nos encontramos, Albert de Morcerf cultivava com infinitamente mais perseverança do que dedicara à música e à pintura as três artes que completam a educação masculina, ou seja, a esgrima, o boxe e o pau, e recebia sucessivamente naquela divisão, destinada a lodos os exercícios do corpo, Grisicr, Cooks e Charles Leboucher.
O resto dos móveis daquela sala privilegiada eram velhas arcas do tempo de Francisco I, cheias de porcelanas da China, de vasos do Japão, de faianças de Luca della Robbia e de travessas de Bernard de Palissy, poltronas antigas onde talvez se tivessem sentado Henrique IV ou Sully, Luís XIII ou Richelieu, porque duas dessas poltronas, ornadas com um brasão de armas onde brilhavam sobre azul as três flores-de-lis da França, encimadas por uma coroa real, tinham vindo, visivelmente, dos armazéns do Louvre, ou pelo menos do de algum palácio real. Para cima dessas poltronas, de fundos escuros e severos, encontravam-se atirados em desordem ricos tecidos de cores vivas, tingidos ao sol da Pérsia ou saídos dos dedos de mulheres de Calcutá ou Chandernagor. O que faziam ali aqueles tecidos, não sabemos dizer; esperavam, recreando os olhos, um destino que o seu próprio proprietário desconhecia, e enquanto esperavam iluminavam o apartamento com os seus reflexos sedosos e dourados.
No lugar mais em evidência via-se um piano de madeira-rosa construído por Roller & Blanchet, um desses pianos à medida das nossas salas liliputianas, mas que apesar disso encerram uma orquestra no seu pequeno e sonoro arcaboiço e gemem sob o peso das obras-primas de Beethoven, Weber, Mozart, Haydn, Grétry e Porpora.
Depois, por toda a parte, ao longo das paredes, por cima das portas e no teto, espadas, punhais, adagas, maças, machados e armaduras completas, douradas, marchetadas e embutidas; herbários, blocos de minerais e aves empalhadas que abriam para um vôo imóvel as asas cor de fogo e o bico que nunca fechavam. Desnecessário dizer que aquela sala era a divisão predileta de Albert.
Contudo, no dia do encontro, o jovem, em fato de meia cerimônia, estabeleceu o seu quartel-general na salinha do térreo. Ali, em cima de uma mesa rodeada à distancia por um divã largo e fofo, encontravam-se todos os tabacos conhecidos, desde o tabaco louro de São Petersburgo até ao tabaco negro do Sinai, passando pelo Marilândia, pelo Porto Rico e pelo latakieh, os quais resplandeciam em boiões de faiança craquel‚ e, como preferem os Holandeses. Ao lado deles, em caixas de madeira aromática, alinhavam-se por ordem de tamanho e qualidade os puros, os regalas, os havanos e os manilas; finalmente, num armário aberto, uma coleção de cachimbos alemães, de chibuques de pipo de âmbar e ornados de coral e de narguilés incrustados de ouro, com longos tubos de marroquim enrolados como serpentes esperavam o capricho ou a preferência dos fumadores. Albert presidira pessoalmente ao arranjo, ou antes à desordem simétrica que depois do café os convivas de um almoço moderno gostam de contemplar através do fumo que lhes sai da boca e sobe ao teto em longas e caprichosas espirais.
Às dez horas menos um quarto entrou um criado, um pequeno groom de quinze anos que só falava inglês e se chamava John, único criado de Morcerf. Claro que nos dias comuns o cozinheiro do palácio estava à sua disposição, e nas grandes ocasiões o mandarete do conde também o estava.
O criado, que gozava de plena confiança do seu jovem amo, trazia na mão um maço de jornais, que depositou numa mesa, e uma porção de cartas, que entregou a Albert. Este deitou um olhar distraído às diversas missivas, escolheu duas de caligrafia elegante e sobrescritos perfumados, abriu-as e as leu com certa atenção.
— Como vieram estas cartas? — perguntou.
— Uma veio pelo correio e a outra foi trazida pela criada de quarto da Sra. Danglars.
— Manda dizer à Sra. Danglars que aceito o lugar que me oferece no seu camarote... espere... depois, durante o dia, passará pela casa da Rosa, lhe dirá que, como me convida, irei cear com ela quando sair da ópera. Leva-lhe seis garrafas de vinho sortidas, de Chipre, de Xerez e de Málaga, e um barril de ostras de Ostende... compra as ostras no Borel e não te esqueças de dizer que são para mim.
— A que horas quer o senhor ser servido?
— Que horas são?
— Dez horas menos um quarto.
— Bom, serve às dez e meia exatas. Debray talvez seja obrigado a ir ao seu ministério... De resto... — Albert consultou a sua agenda — É exatamente a hora que indiquei ao Conde, 21 de Maio às dez e meia da manhã, e embora não confie muito na sua promessa, quero ser pontual. A propósito, sabe se a Sra. Condessa está acordada?
— Se o Sr. Visconde deseja, irei informar-me.
— Pois sim... peça-lhe uma das suas frasqueiras, porque a minha está incompleta, e diga-lhe que terei a honra de passar pelos seus aposentos por volta das três horas, a fim de lhe pedir licença para lhe apresentar uma pessoa.
O criado saiu, Albert atirou-se para cima do divã, rasgou a cinta de dois ou três jornais, viu os espetáculos, fez uma careta ao verificar que se representava uma ópera e não um bailado, procurou em vão um opiato para os dentes de que lhe tinham falado e pôs de parte os três jornais mais lidos de Paris, murmurando no meio de um bocejo prolongado:
— Na verdade, estes jornais estão cada vez mais maçantes.
Neste momento parou à porta uma carruagem ligeira e passado um instante o criado voltou para anunciar o Sr. Lucien Debray.
Tratava-se de um rapagão louro, pálido, de olhos cinzentos e ousados, lábios delgados e frios, casaca azul de botões de ouro cinzelados, gravata branca e monóculo de tartaruga suspenso de um fio de sêda, e que devido a um esforço do nervo superciliar e do nervo zigomático conseguia fixar de vez em quando na cavidade do olho direito.
Entrou sem sorrir, sem falar e com ar semi-oficial.
— Bom dia, Lucien... bom dia! — cumprimentou-o Albert — Assusta-me, meu caro, com a sua pontualidade! Que digo? Pontualidade?... Você, que esperava fosse o último a chegar, aparece às dez menos cinco, quando o encontro está marcado para as dez e meia! É miraculoso! Terá por acaso caído o ministério?
— Não, caríssimo — respondeu o rapaz enterrando-se no divã — Sossegue, continuamos a cambalear, mas nunca caímos, e começo a crer que vamos muito simplesmente a caminho da inamovibilidade, sem contar que os negócios da Península acabarão por nos consolidar por completo.
— Ah, sim, é verdade, vão expulsar D. Carlos de Espanha!
— Não, caríssimo, não confundamos as coisas. Levamo-lo apenas para o outro lado da fronteira da França e lhe oferecemos uma hospitalidade real em Burges.
— Em Burges?
— Sim, e não tem de que se queixar, que diabo! Burges foi a capital de Carlos VII. Como, não sabia? Em Paris todos sabem disso desde ontem, e anteontem já a coisa transpirara na Bolsa, pois o Sr. Danglars, não faço a mais pequena idéia por que meio esse homem sabe as notícias ao mesmo tempo que nós, pois o Sr. Danglars jogou na alta e ganhou um milhão.
— E você uma nova condecoração, ao que parece, pois vejo-lhe mais uma fita, azul, ao peito.
— Ora, mandaram-me uma comenda de Carlos III — respondeu negligentemente Debray.
— Vamos, não arme em indiferente e confesse que teve prazer em a receber.
— Reconheço que sim. Como complemento de toilette, um crach fica bem numa casaca preta abotoada; é elegante.
— E — acrescentou Morcerf sorrindo — Dá um ar de Príncipe de Gales ou de duque de Reichstadt.
— Aqui tem porque me vê tão cedo, caríssimo.
— Porque tem a comenda de Carlos III e queria dar-me essa boa notícia?
— Não, porque passei a noite a expedir cartas: vinte e cinco despachos diplomáticos. Regressei para casa de manhã, ao romper do dia, e quis dormir, mas começou-me a doer a cabeça e levantei-me para montar a cavalo uma hora. No Bosque de Bolonha o aborrecimento e a fome apoderaram-se de mim, dois inimigos que raramente andam juntos, mas que, no entanto se aliaram contra mim, uma espécie de aliança Carlo-republicana. Lembrei-me então de que havia banquete em sua casa, esta manhã e cá estou: tenho fome, alimente-me; aborreço-me, divirta-me.
— É o meu dever de anfitrião, caro amigo — declarou Albert, tocando para chamar o criado, enquanto Lucien fazia saltar com a ponta do pingalim de castão de ouro, com uma turquesa incrustada, os jornais desdobrados — Entretanto, meu caro Lucien, aqui tem charutos de contrabando, claro. Convido-o a saboreá-los e a convidar o seu ministro a vender-nos uns assim, em vez dessa espécie de folhas de nogueira que condena os bons cidadãos a fumar.
— Nessa não caio eu! Desde o momento que lhes viessem do Governo, não quereriam mais e achá-los-iam execráveis. Aliás, isso não é da conta do Interior, é da conta das Finanças. Dirija-se ao Sr. Humann, Seção de Impostos Indiretos, corredor A, nº. 26.
— Na verdade — disse Albert — Você surpreende-me com toda a vastidão dos seus conhecimentos... mas tire um charuto!
— Ah, caro visconde — observou Lucien, acendendo um manila numa vela cor-de-rosa que ardia num castiçal de prata dourada e recostando-se no divã — Ah, meu caro visconde, como é feliz por não ter nada que fazer! Na verdade, não avalia a sua felicidade!
— E que faria você, meu caro pacificador de reinos — perguntou Morcerf com ironia — Se não fizesse nada? Como secretário particular de um ministro, lançado simultaneamente na grande cabala européia e nas pequenas intrigas de Paris; com reis e, melhor do que isso, rainhas a proteger, partidos a reunir, eleições a dirigir; fazendo mais do seu gabinete, com a sua pena e o seu telégrafo, do que Napoleão fazia dos seus campos de batalha, com a sua espada e as suas vitórias; possuidor de vinte e cinco mil libras de rendimento, além do seu lugar; de um cavalo pelo qual Château-Renaud lhe ofereceu quatrocentos luíses e que você lhe não quis vender; de um alfaiate que nunca lhe estraga umas calças; freqüentador da ópera, do Jockey-Club e do Teatro das Variedades... como, será possível que não encontre em tudo isso com que se distrair? Seja, distraí-lo-ei eu!
— De que maneira?
— Proporcionando-lhe um novo conhecimento.
— De homem ou de mulher?
— De homem.
— Oh, já conheço muitos!
— Mas não conhece nenhum como este a que me refiro.
— De onde vem? Do fim do mundo?
— Talvez de mais longe.
— Diabo, espero que não seja ele quem traz o nosso almoço!
— Não, esteja tranqüilo. O nosso almoço está sendo feito nas cozinhas maternas. Mas está de fato com fome?
— Estou, confesso, por mais humilhante que seja dizê-lo. Mas jantei ontem em casa do Sr. de Villefort... e não sei se já reparou, meu caro amigo, que se janta muito mal em casa de toda essa gente dos tribunais; dir-se-ia estão sempre com remorsos.
— Meu Deus, deprecia os jantares dos outros como se jantasse bem em casa dos seus ministros!
— Pois sim, mas ao menos não convidamos pessoas de categoria, e se não fossemos obrigados a fazer as honras da nossa mesa a alguns labregos que pensam e, sobretudo que votam bem, fugiríamos como da peste de comer em nossa casa, acredite.
— Então, meu caro, beba segundo copo de xerez e coma outro biscoito.
— Com muito prazer. O seu vinho de Espanha é excelente. Como vê fizemos muito bem em pacificar esse país.
— Pois sim, mas D. Carlos?
— Ora, D. Carlos beberá vinho de Bordéus, e daqui a dez anos casaremos o filho com a rainhazinha.
— O que lhe valerá o Tosão de Ouro, meu caro, se ainda estiver no ministério.
— Parece-me, Albert, que você adotou por sistema, esta manhã, alimentar-me de fumo.
— Veja que é ainda o que melhor entretém o estômago, concorde. Mas olhe, acabo precisamente de ouvir a voz de Beauchamp na antecâmara. E como, decerto, não tardarão a discutir, esperará com mais paciência.
— Discutir a propósito de quê?
— A propósito dos jornais.
— Oh, caro amigo — disse Lucien com soberano desprezo — Mas eu leio os jornais!
— Mais uma razão para discutirem ainda mais.
— O Sr. Beauchamp! — anunciou o criado.
— Entre, entre! Que pena terrível! — disse Albert, levantando-se e indo ao encontro do rapaz — Olhe, aqui tem Debray, que o detesta sem o ler, pelo menos segundo diz.
— E tem toda a razão — perguntou Beauchamp — É como eu, critico-o sem saber o que ele faz. Bons dias, comendador.
— Ah, já sabe disso?! — respondeu o secretário particular, trocando com o jornalista um aperto de mão e um sorriso.
— Pois claro! — volveu-lhe Beauchamp.
— E que dizem por ai a tal respeito?
— Por ai, onde? O que não falia são curiosos neste ano da graça de 1838.
— Ora, nos meios crítico-políticos de que você é um dos expoentes.
— Diz-se que é justíssimo e que você semeou suficiente vermelho para que nascesse um bocadinho de azul.
— Vamos, vamos, nada mal — disse Lucien — Porque não é dos nossos, meu caro Beauchamp? Com o espírito que possui, faria carreira em três ou quatro anos.
— Por isso só espero uma coisa para seguir o seu conselho: um ministério que se agüente seis meses. Agora, apenas uma palavrinha, meu caro Albert, para deixar respirar o pobre Lucien. Almoçamos ou jantamos? Tenho de ir à Câmara. Como vêem, nem tudo são rosas na nossa profissão.
— Almoçaremos apenas. Esperamos unicamente mais duas pessoas e nos sentaremos à mesa assim que chegarem.
— Que espécie de pessoas espera você para almoçar? — perguntou Beauchamp.
— Um gentil-homem e um diplomata — respondeu Albert.
— Então, é caso para termos de esperar duas horinhas pelo gentil-homem e duas horonas pelo diplomata. Voltarei à sobremesa. Guardem-me morangos, café e charutos. Comerei uma costeleta na Câmara.
— Não vale a pena, Beauchamp, porque ainda que o gentil homem fosse um Montmorency e o diplomata um Metternich, almoçaremos às dez e meia precisas. Entretanto, faça como Debray, saboreie o meu xerez e os meus biscoitos.
— Pronto, seja, fico. Tenho absoluta necessidade de me distrair esta manhã.
— Bom, aí está você como Debray! No entanto, parece-me que quando o ministério está triste a oposição deve estar alegre.
— E porque, caro amigo, não imagina o que me ameaça. Tenho de ouvir esta manhã um discurso do Sr. Danglars na Câmara dos Deputados e à noite a mulher dele falar da tragédia de um Par de França. Diabo leve o governo constitucional! Se tínhamos, como se diz, o direito de escolha, por que cargas d’água escolhemos este governo?
— Compreendo, você precisa se abastecer de hilaridade.
— Não diga mal dos discursos do Sr. Danglars — interveio Debray — Ele vota em vocês, faz oposição.
— Infelizmente, muito mal! Por isso, espero que o mandem discursar para o Luxemburgo, para que toda a gente ria à vontade.
— Meu caro — disse Albert a Beauchamp — Bem se vê que os negócios da Espanha estão resolvidos; você está esta manhã de um azedume revoltante. Lembre-se, porém, de que a crônica parisiense fala de um casamento entre mim e Mademoiselle Eugênia Danglars. Em consciência, não posso, pois deixá-lo falar mal da eloqüência de um homem que me deve dizer um dia: “Sr. Visconde como sabe, dou dois milhões à minha filha”.
— Fique calado! — replicou Beauchamp — Esse casamento nunca se realizará. O rei pode fazê-lo barão e poderá fazê-lo Par, mas não o fará gentil-homem e o conde de Morcerf é uma espada demasiado aristocrática para consentir, em troca de dois pobres milhões, num casamento desigual. O visconde de Morcerf só deve casar com uma marquesa.
— Dois milhões! Não deixa de ser uma bonita maquia... — observou Morcerf.
— E o capital social de um teatro de bulevar ou de um caminho de ferro do Jardim Botânico à Rapée.
— Deixe-o falar, Morcerf, e case-se — aconselhou negligentemente Debray — Casa com a etiqueta de um saco, não é verdade? Pois que lhe importa! É preferível que a etiqueta tenha um brasão a menos e um zero a mais. Você tem sete melras nas suas armas; dá três à sua mulher e ainda fica com quatro. É uma a mais do que o Sr. de Guise, que foi quase rei de França e cujo primo co-irmão era imperador da Alemanha.
— Palavra que me parece que você tem razão, Lucien — respondeu distraidamente Albert.
— Tenho com certeza! De resto, todo o milionário é nobre como um bastardo, isto é, pode sê-lo...
— Cale-se! Não diga isso, Debray — interveio, rindo, Beauchamp — Pois acaba de chegar Château-Renaud, que, para o curar da sua mania de paradoxar, lhe traspassará o corpo com a espada de Reinaldo de Montauban, seu antepassado.
— Isso seria rebaixar-se — perguntou Lucien — Pois eu sou plebeu e bem plebeu.
— Bom, se o ministério se põe a querer cantar como Béranger, aonde iremos parar, meu Deus? — observou Beauchamp.
— O Sr. de Château-Renaud! O Sr. Maximilien Morrel! — disse o criado anunciando dois novos convivas.
— Completos então! — exclamou Beauchamp — Podemos então almoçar, porque, se me não engano, só esperava mais duas pessoas, não é verdade, Albert?
— Morrel! — murmurou Albert, surpreendido — Morrel! Quem será?
Mas antes de chegar a qualquer conclusão, o Sr. de Château-Renaud, um simpático rapaz de trinta anos, gentil-homem da cabeça aos pés, isto é, com a figura de Guiche e o espírito de um Mortemart, pegara na mão de Albert e dizia-lhe:
— Permita-me, meu caro, que lhe apresente o Sr. Capitão de Sipaios Maximilien Morrel, meu amigo e meu salvador. Aliás, o homem apresenta-se bastante bem por si mesmo. Cumprimente o meu herói, visconde.
E afastou-se para deixar ver o alto e nobre rapaz de testa ampla, olhar penetrante e bigodes negros, que os nossos leitores se lembram de ter visto em Marselha numa circunstância bastante dramática para que ainda a não tenham esquecido.
Um rico uniforme, meio francês, meio oriental, admiravelmente envergado, salientava-lhe o peito amplo, Condecorado com a cruz da Legião de Honra, e a curva audaciosa da cintura. O jovem oficial inclinou-se com elegante delicadeza. Morrel era gracioso em cada um dos seus movimentos porque era forte.
— Senhor — disse Albert com afetuosa cortesia — O Sr. Barão de Château-Renaud sabia antecipadamente todo o prazer que me proporcionaria apresentando-me. Uma vez que é um dos seus amigos, seja também dos nossos.
— Ótimo! — declarou Château-Renaud — E deseje, meu caro visconde, que se a ocasião se proporcionar ele faça por si o que fez por mim.
— Que foi que fez? — perguntou Albert.
— Oh, não vale a pena falar disso! — protestou Morrel — Este senhor exagera.
— Como, não vale a pena falar disto?! — indignou-se Château-Renaud — Não vale a pena falar da vida?... Na verdade, o que diz é demasiado filosófico, meu caro Sr. Morrel... bom, para si, que expõe a vida todos os dias, está bem, mas para mim, que a exponho um vez por acaso...
— O que vejo de mais claro em tudo isso, barão, é que o Sr. Capitão Morrel lhe salvou a vida.
— Oh, meu Deus, sim, sem dúvida nenhuma! — confirmou Château-Renaud.
— E em que ocasião? — perguntou Beauchamp.
— Beauchamp, meu amigo, bem sabe que morro de fome — atalhou Debray — Não me venha pois com histórias...
— De acordo — respondeu Beauchamp — Mas eu não impeço ninguém de se sentar à mesa... Château-Renaud nos contará o que se passou enquanto comemos.
— Meus senhores — interveio Morcerf — São apenas dez e um quarto, notem bem, e esperamos um último conviva.
— Ah, é verdade, um diplomata! — exclamou Debray.
— Um diplomata ou outra coisa, não sei. O que sei é que o encarreguei por minha conta de uma embaixada de que se desempenhou tanto a meu contento que, se eu fosse rei, o teria feito imediatamente cavaleiro de todas as minhas ordens, ainda que tivesse ao mesmo tempo à minha disposição o Tosão de Ouro e a Jarreteira [1].
[1] A Ordem da Jarreteira é a mais alta e mais antiga ordem militar britânica e foi instituída pelo rei inglês Eduardo III em 1348.
— Bom, já que não vamos ainda para a mesa — disse Debray — Sirva-se de um copo de xerez para nós e conte-nos isso, barão.
— Como todos sabem, tive a idéia de ir à África.
— Foi um caminho que os seus antepassados lhe traçaram, meu caro Château-Renaud — observou galantemente Morcerf.
— Pois sim, mas duvido que fosse, como eles, para libertar o túmulo de Cristo.
— Tem razão, Beauchamp — concordou o jovem aristocrata — A minha intenção era simplesmente dar uns tirinhos de pistola como amador. O duelo repugna-me, como sabe, desde que as duas testemunhas que escolhera para conciliar uma questão me obrigaram a partir o braço a um dos meus melhores amigos, exatamente ao pobre Franz d’Epinay, que todos conhecem.
— Ah, sim, é verdade! — exclamou Debray — Vocês bateram-se há tempo... a que propósito?
— Diabo me leve se me recordo! — respondeu Château-Renaud — Mas do que me lembro perfeitamente é que, envergonhado de deixar dormir um talento como o meu, quis experimentar contra os árabes umas pistolas novas que acabavam de me oferecer. Conseqüentemente, embarquei para Orão. De Orão segui para Constantina e cheguei exatamente a tempo de ver levantar o cerco. Retirei, como os outros. Durante quarenta e oito horas suportei bastante bem a chuva de dia e a neve de noite. Por fim, na manhã do terceiro dia, o meu cavalo morreu de frio. Pobre animal, acostumado às mantas e ao fogão de aquecimento da cavalariça!... Um cavalo árabe que se sentiu, nem mais, nem menos, um bocadinho deslocado quando reparou com dez graus de frio na Arábia.
— É por isso que você me quer comprar o meu cavalo inglês — comentou Debray — Julga que suportará melhor o frio do que o seu árabe.
— Engana-se, porque jurei nunca mais voltar a África.
— Quer dizer que teve medo? — perguntou Beauchamp.
— Palavra que tive, confesso — respondeu Château-Renaud — E havia motivo para isso! O meu cavalo morrera; eu retirava, portanto a pé. Apareceram seis árabes a galope dispostos a cortar-me a cabeça; abati dois com os meus dois tiros de espingarda, outros dois com os meus dois tiros de pistola, tiros em cheio, mas restavam dois e estava desarmado. Um agarrou-me pelos cabelos, é por isso que os uso curtos agora; nunca se sabe o que pode acontecer... e o outro encostou-me o iatagã [2] ao pescoço. Sentia já o frio agudo do ferro quando o cavalheiro que vêem aqui carregou por seu turno sobre eles, matou o que me agarrava pelos cabelos com um tiro de pistola e rachou a cabeça ao que se preparava para me cortar o pescoço com uma sabrada. O cavalheiro resolvera salvar um homem naquele dia e o acaso quis que fosse eu. Quando for rico, encarregarei Klagmann ou Marochetti de fazerem uma estátua ao Acaso.
[2] Um iatagã (também chamado de atagã) é um facão longo ou sabre curto, desprovido de guarda e cuja lâmina descreve uma curva em dois sentidos diferentes. Muito utilizado pelos muçulmanos para execuções ou em combate, o tamanho pode variar.
— É verdade — confirmou Morrel, sorrindo — Estávamos a 5 de Setembro, isto é, no aniversário do dia em que o meu pai foi miraculosamente salvo. Por isso, tanto quanto me é possível, comemoro todos os anos esse dia com qualquer ação...
— Heróica, não é verdade? — interrompeu-o Château-Renaud — Em resumo, fui eu o escolhido. Mas isto não é tudo. Depois de me salvar do ferro, salvou-me do frio, dando-me, não metade da sua capa, como fazia São Martinho, mas sim toda inteira. E depois salvou-me da fome dividindo comigo... adivinham o quê?
— Uma empada do Félix! — perguntou Beauchamp.
— Não, o seu cavalo, do qual comemos ambos um naco deveras apetitoso. Que duro!
— O quê, o cavalo? — perguntou, rindo, Morcerf.
— Não, o sacrifício — respondeu Château-Renaud — Perguntem a Debray se sacrificaria o seu inglês por um estranho.
— Por um estranho, não; mas por um amigo, talvez — disse Debray.
— Adivinhei que se tornaria meu amigo, Sr. Barão — declarou Morrel — Aliás, como já tive a honra de lhes dizer, heroísmo ou não, sacrifício ou não, naquele dia devia uma oferenda à má sorte em recompensa do favor que outrora nos fizera a boa.
— A história a que o Sr. Morrel se refere — continuou Château-Renaud — É uma história admirável que ele lhes contará um dia, quando o conhecerem melhor. Por hoje, abasteçamos o estômago e não a memória. A que horas almoça você, Albert?
— Às dez e meia.
— Exatas? — perguntou Debray, puxando do relógio.
— Oh, espero que me concedam os cinco minutos da praxe, porque também espero um salvador! — perguntou Morcerf.
— De quem?
— Meu, ora essa! — respondeu Morcerf — Ou julgam que não posso ser salvo como qualquer outro e que só os árabes cortam cabeças? O nosso almoço é um almoço filantrópico e teremos à mesa, pelo menos assim espero, dois benfeitores da humanidade.
— Como havemos de resolver isso se só temos um Prêmio Montyon [3]? — perguntou Debray.
[3] Prêmios de Montyon (Prix Montyon) é uma série dos prêmios concedidos anualmente pelo Académie Française. Foram dotados pelo francês benfeitor Baron de Montyon.
— Ora, o darão a alguém que não tenha feito nada para merecê-lo — sugeriu Beauchamp — Não é assim que habitualmente a Academia se tira de apuros?
— E de onde vem ele? — perguntou Debray — Desculpe a insistência, bem sei que já respondeu a esta pergunta, mas tão vagamente que me permito fazê-la segunda vez.
— Na realidade, não sei — confessou Albert — Quando o convidei, há três meses, estava em Roma. Mas desde então sabe-se lá onde terá andado!
— E acha-o capaz de ser pontual? — perguntou Debray.
— Acho-o capaz de tudo — respondeu Morcerf.
— Note que com os cinco minutos de tolerância já só faltam dez minutos.
— Bom, eu os aproveitarei para lhes dizer qualquer coisa acerca do meu conviva.
— Perdão — atalhou Beauchamp — Haverá assunto para um folhetim no que vai contar?
— Sem dúvida, e dos mais curiosos — respondeu Morcerf.
— Diga então, pois já vi que não ponho os pés na Câmara e preciso de qualquer coisa que me compense.
— Eu estava em Roma no último Carnaval... — começou Albert.
— Já sabemos isso — interrompeu-o Beauchamp.
— Sim, mas o que não sabem é que fui raptado por bandidos.
— Já não há bandidos — interveio Debray.
— Isso é que há, e até hediondos, isto é, admiráveis, pois achei-os belos a ponto de meterem medo.
— Vamos, meu caro Albert — tornou a intervir Debray — Confesse que o seu cozinheiro está atrasado, que as ostras não chegaram ainda de Marennes ou de Ostende e que a exemplo da Sra. de Maintenon pretende substituir o prato por uma história. Seja franco, meu caro, pois somos suficientemente bons amigos para lhe perdoar e escutar a sua história, por mais fabulosa que seja.
— E eu repito que por mais fabulosa que seja lhes garanto que é verdadeira de uma ponta a outra. Os bandidos tinham-me, portanto raptado e conduzido para um lugar tristíssimo a que chamam as catacumbas de São Sebastião.
— Conheço-as — declarou Château-Renaud — Estive quase a apanhar a febre lá.
— Pois eu fiz melhor do que isso — perguntou Morcerf — Apanhei-as realmente. Disseram-me que era seu prisioneiro e que teria de pagar um resgate, uma miséria, quatro mil escudos romanos, vinte e quatro mil libras tornesas... infelizmente, eu não tinha mais de mil e quinhentos; encontrava-me no fim da viagem e o meu crédito estava esgotado. Escrevi a Franz... por Deus, já me esquecia, Franz estava lá e podem perguntar-lhe se altero uma vírgula! Escrevi pois a Franz dizendo-lhe que se não chegasse até às seis da manhã com os quatro mil escudos, às seis e dez iria me juntar aos bem-aventurados santos e aos gloriosos mártires na companhia dos quais tinha a honra de me encontrar. Porque o Sr. Luigi Vampa, assim se chamava o meu chefe de bandidos, cumpriria, peço-lhos que acreditem, escrupulosamente a sua palavra.
— Mas Franz chegou com os quatro mil escudos? — perguntou Château-Renaud — Que diabo, ninguém se atrapalha por causa de quatro mil escudos quando se chama Franz d’Epinay ou Albert de Morcerf!
— Não, chegou pura e simplesmente acompanhado do conviva que lhes anunciei e que espero apresentar-lhes.
— Bom, mas então esse cavalheiro era algum Hércules matando Caco ou algum Perseu libertando Andrômeda?
— Não, é um homem pouco mais ou menos da minha estatura.
— Armado até aos dentes?
— Nem sequer tinha uma agulha de fazer malha.
— Mas tratou do seu resgate?
— Disse duas palavrinhas ao ouvido do chefe e fiquei livre.
— E ainda por cima lhe apresentou desculpas por o ter raptado — insinuou Beauchamp.
— Exatamente — confirmou Morcerf.
— Mas então esse homem era Ariosto?
— Não, era simplesmente o Conde de Monte Cristo.
— Não existe nenhum Conde de Monte Cristo — declarou Debray.
— Pois não — acrescentou Château-Renaud, com o sangue frio de um homem que sabe de cor e salteado o nobiliário europeu — Quem é que conhece de alguma parte um Conde de Monte Cristo?
— Talvez venha da Terra Santa — disse Beauchamp — Um dos seus avôs pode ter possuído o Calvário, como os Mortemarts foram senhores do Mar Morto.
— Perdão — interveio Maximilien — Mas creio poder tirá-los de apuros, meus senhores. Monte Cristo é uma ilhazinha de que ouvi muitas vezes falarem os marinheiros ao serviço do meu pai; um grão de areia no meio do Mediterrâneo, um átomo no infinito.
— É perfeitamente isso, senhor — confirmou Albert — Pois bem, desse grão de areia, desse átomo, é senhor e rei aquele de quem lhes falo. Talvez tenha comprado o título de conde em qualquer parte da Toscana.
— É portanto rico o seu conde?
— Creio que sim.
— Mas isso é coisa que se deve ver, parece-me...
— Engana-se, Debray.
— Não compreendo.
— Leu As Mil e Uma Noites?
— Meu Deus, que pergunta!
— Sabe porventura se as pessoas que aparecem na obra são ricas ou pobres? Se os seus grãos de trigo não são rubis ou diamantes? Têm o ar de pescadores miseráveis, não é verdade? Consideramo-los como tal e de repente abrem-nos uma caverna misteriosa onde encontramos um tesouro capaz de comprar a Índia?
— E depois?
— Depois, o meu Conde de Monte Cristo é um desses pescadores. Tem mesmo um nome derivado disso: chama-se Simbad, o Marinheiro, e possui uma caverna cheia de ouro.
— E você viu essa caverna, Morcerf? — perguntou Beauchamp.
— Eu, não, mas Franz a viu. No entanto, cale-se! Não se deve tocar nesse assunto diante dele. Franz desceu à caverna de olhos vendados e foi servido por mudos e mulheres ao pé das quais parece que Cleópatra não passaria de uma reles cortesã. Apenas a respeito das mulheres ficou com as suas dúvidas, pois elas só entraram depois de ele comer haxixe. Portanto, é muito possível que o que tomou por mulheres não fosse mais do que um mero grupo de estátuas.
Os presentes olharam Morcerf com uma expressão que queria dizer.
“Então, meu caro, endoideceu ou está brincando conosco?”
— Com efeito — interveio Morrel, pensativo — Também ouvi contar a um velho marinheiro chamado Penelon qualquer coisa semelhante ao que acaba de dizer o Sr. de Morcerf.
— Ora ainda bem que o Sr. Morrel me ajuda! — exclamou Albert — Contraria-os, não é verdade, que ele atire assim um novelo de fio para o meu labirinto?
— Perdão, caro amigo, mas é que você conta-nos coisas tão inverossímeis... — murmurou Debray.
— Por quê? Porque os vossos embaixadores e os vossos cônsules não vos disseram nada a tal respeito? Coitados, não lhes chega o tempo para incomodarem os seus compatriotas que viajam.
— Bom, agora zanga-se e atira-se aos nossos pobres agentes. Meu Deus, com que quer que o protejam? A Câmara diminui-lhos todos os dias os honorários, a ponto de já se não arranjar ninguém para tais cargos. Quer ser embaixador, Albert? Posso mandar nomeá-lo para Constantinopla.
— Não! Para que à primeira intervenção que fizesse a favor de Maomé Ali o sultão me mandar o cordão e os meus secretários me estrangularem?
— Bem vê... — começou Debray.
— Pois vejo, mas tudo isso não impede o meu Conde de Monte Cristo de existir!
— Por Deus, toda a gente existe... olha o grande milagre!
— Toda a gente existe, sem dúvida, mas não em semelhantes condições. Nem toda a gente possui escravos negros, galerias de quadros principescas, armas riquíssimas, cavalos de seis mil francos cada um, amantes gregas!
— Viu-a, a amante grega?
— Vi. Vi-a e ouvi-a. Vi-a no Teatro Vallo e ouvi-a um dia em que almocei em casa do Conde.
— Come, portanto, o seu homem extraordinário?
— Palavra que se come é tão pouco que nem vale a pena falar disso.
— Verão, é um vampiro...
— Riam à vontade. Essa era também a opinião da condessa G... que, como sabem, conheceu Lorde Ruthwen.
— Bonito! — exclamou Beauchamp — Ora aí está como um homem que não é jornalista conseguiu descobrir o equivalente da famosa serpente do mar Constitutionnel. Um vampiro! Não há dúvida que é perfeito.
— Olhos amarelados, cuja pupila diminui e se dilata à vontade — disse Debray — Ângulo facial desenvolvido, testa magnífica, tez lívida, barba preta, dentes brancos e agudos, cortesia a condizer...
— Ora aí está é precisamente isso, Lucien! — confirmou Morcerf — Descreveu-o com toda a exatidão. Sim, e cortesia fria, incisiva. Esse homem causou-me muitas vezes arrepios. Um dia, por exemplo, quando assistíamos juntos a uma execução, senti-me mal mais de vê-lo e ouvir falar friamente de todos os suplícios do mundo do que de ver o carrasco cumprir a sua função e ouvir os gritos do supliciado.
— Não o levou às ruínas do Coliseu para lhe sugar o sangue, Morcerf? — perguntou Beauchamp.
— Ou, depois de libertá-lo, não o obrigou a assinar qualquer pergaminho cor de fogo pelo qual lhe cedesse a sua alma, como Esaú, o seu morgadio?
— Zombem! Zombem à vontade, meus senhores! — exclamou Morcerf um bocadinho irritado — Quando olho para vocês, belos parisienses, freqüentadores assíduos do Bulevar de Gand, passeantes do Bosque de Bolonha, e me lembro daquele homem... bom, parece-me que não somos da mesma espécie.
— O que muito me agrada! — declarou Beauchamp.
— A verdade — acrescentou Château-Renaud — É que o seu Conde de Monte Cristo me parece um perfeito cavalheiro nas horas vagas, excetuando os seus pequenos entendimentos com os bandidos italianos.
— Não há bandidos italianos! — exclamou Debray.
— Nem vampiros! — acrescentou Beauchamp.
— Nem Conde de Monte Cristo! — insistiu Debray — Ouça, meu caro Albert, estão a dar dez e meia.
— Confesse que teve um pesadelo e vamos almoçar — sugeriu Beauchamp.
Mas a vibração do relógio ainda se não extinguira quando a porta se abriu e Germain, o mandarete do Conde de Morcerf que este pusera à disposição do filho, anunciou:
— Sua Excelência o Conde de Monte Cristo!
Todos os presentes deram, mal-grado seu, um salto denunciador da preocupação que a história de Morcerf lhes insinuara na alma. O próprio Albert não conseguiu conter uma emoção súbita. Ninguém ouvira carruagem na rua, nem passos na antecâmara; a própria porta se abrira sem ruído.
O Conde apareceu no limiar, vestido com a maior simplicidade, mas o leão mais exigente não encontraria na sua indumentária nada que lhe pudesse criticar. Era tudo de um gosto requintado, tudo provinha das mãos dos mais elegantes fornecedores, tanto a casaca e o chapéu como a camisa. Parecia contar apenas trinta e cinco anos e o que mais impressionou toda a gente foi a extrema semelhança com o retrato que dele traçara Debray.
O Conde avançou, sorrindo, para o meio da sala, direito a Albert, o qual foi ao seu encontro e lhe estendeu a mão rapidamente.
— A pontualidade — disse Monte Cristo — É a cortesia dos reis, segundo afirmava, creio, um dos vossos soberanos. Mas seja qual for a sua boa vontade, nem sempre é a dos viajantes. Espero, no entanto, meu caro visconde, que desculpe, em benefício da minha boa vontade, os dois ou três segundos de atraso com que julgo comparecer ao encontro. Quinhentas léguas não se percorrem sem qualquer contrariedade, sobretudo na França, onde, ao que parece, é proibido bater nos postilhões.
— Sr. Conde — respondeu Albert — Estava a anunciar a sua visita a alguns dos meus amigos que reuni a propósito da promessa que se dignou fazer-me, e que tenho a honra de lhe apresentar. O Sr. Barão de Château-Renaud, cuja nobreza remonta aos doze pares e cujos antepassados se sentaram à Távola Redonda; o Sr. Lucien Debray, secretário particular do Ministro do Interior; o Sr. Beauchamp, terrível jornalista, o terror do Governo francês, mas de quem por certo, apesar da sua celebridade nacional, nunca ouviu falar na Itália, atendendo a que o seu jornal não entra lá; finalmente, o Sr. Maximilien Morrel, Capitão dos Sipaios.
Ao ouvir este nome, o Conde, que até ali cumprimentara cortesmente, mas com frieza e uma impassibilidade muito inglesa, deu, mal-grado seu, um passo em frente, e um leve tom de vermelhão passou como um relâmpago pelas suas faces pálidas.
— O senhor usa o uniforme dos novos vencedores franceses; é um belo uniforme — disse.
Seria impossível dizer que sentimento dava à voz do Conde tão profunda vibração e que fazia brilhar, como que a seu pesar, os seus olhos tão belos, tão calmos e tão límpidos, quando não havia qualquer motivo para os velar.
— Nunca tinha visto os nossos africanos, senhor? — perguntou Albert.
— Nunca — respondeu o Conde, de novo perfeitamente senhor de si.
— Pois, senhor, sob aquele uniforme pulsa um dos corações mais bravos e nobres do Exército.
— Oh, Sr. Visconde! — protestou Morrel.
— Não me interrompa, capitão... — perguntou Albert, que continuou — De fato, acabamos de saber que este senhor praticou uma proeza tão heróica que, embora o tenha visto hoje pela primeira vez, lhe peço o favor de me deixar apresentar-lhe como meu amigo.
E mais uma vez, ao serem proferidas estas palavras, se pôde notar em Monte Cristo o olhar estranhamente fixo, o rubor furtivo e a leve tremura de pálpebras que nele denotavam emoção.
— Ah, senhor, se é um nobre coração, tanto melhor! — exclamou o Conde.
Esta espécie de fervor, que se devia mais ao próprio pensamento do Conde do que ao que acabava de dizer Albert, surpreendeu toda a gente e, sobretudo Morrel, que olhou atônito para Monte Cristo. Mas ao mesmo tempo a entonação era tão delicada e por assim dizer tão suave que, por muito estranha que fosse a exclamação, era impossível alguém zangar-se por via dela.
— Por que duvidaria? — perguntou Beauchamp a Château-Renaud.
— Na verdade — respondeu este, que com a sua experiência da sociedade e a perspicácia do seu olhar aristocrático devassara em Monte Cristo tudo o que era devassável nele — Na verdade, Albert não nos enganou: o Conde é uma pessoa singular... que lhe parece, Morrel?
— Para dizer o que sinto — respondeu este — Tem um olhar tão franco e uma voz tão simpática, que me agrada, apesar da observação extravagante que fez a meu respeito.
— Meus senhores — disse Albert — Gemain anuncia-me que estão servidos. Meu caro Conde, permita-me que lhe indique o caminho.
Passaram silenciosamente à sala de jantar e cada um ocupou o seu lugar.
— Meus senhores — disse o Conde ao sentar-se — Permitam-me uma confissão, que será a minha desculpa por todas as inconveniências que poderei dizer: sou estrangeiro, mas estrangeiro a tal ponto que é a primeira vez que venho a Paris. A vida francesa me é, portanto, completamente desconhecida e até agora quase só tenho praticado a vida oriental, a mais antipática às boas tradições parisienses. Peço-lhes, pois que me desculpem se encontrarem em mim alguma coisa demasiado turca, demasiado napolitana ou demasiado árabe. E agora, meus senhores, almocemos.
— Como diz tudo aquilo! — murmurou Beauchamp — É decididamente um grande senhor.
— Sim, um grande senhor — concordou Debray.
— Um grande senhor de todos os países, Sr. Debray — sublinhou Château-Renaud.
"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]
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