sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 59



LIX

O TESTAMENTO




Q
uando Barrois saiu, Noirtier olhou para Valentine com uma expressão maliciosa que anunciava muitas coisas. A jovem compreendeu aquele olhar, e Villefort também, pois a sua testa ensombrou-se e o seu sobrolho franziu-se. Pegou numa cadeira, instalou-se no quarto do paralítico e esperou. Noirtier assistiu a tudo com absoluta indiferença, mas pelo rabo do olho ordenou a Valentine que não se inquietasse e ficasse também.
Três quartos de hora mais tarde o criado regressou com o tabelião.
— Senhor — disse Villefort, depois dos primeiros cumprimentos — Quem o mandou chamar foi o Sr. Noirtier de Villefort, aqui presente. Uma paralisia geral tirou-lhe o uso dos membros e da voz e só nós, com grande dificuldade, conseguimos apreender alguns fragmentos dos seus pensamentos.
Noirtier apelou com a vista para Valentine, apelo tão grave e imperioso que ela respondeu imediatamente:
— Eu, senhor, compreendo tudo o que quer dizer o meu avô.
— É verdade — acrescentou Barrois — Tudo, absolutamente tudo, como disse ao senhor pelo caminho.
— Permita-me, senhor, e a menina também — disse o tabelião, dirigindo-se a Villefort e a Valentine — Que ponha as minhas reservas. Trata-se de um caso em que um funcionário público não pode proceder inconsideradamente sem assumir uma responsabilidade perigosa. A primeira condição para que um ato seja válido é que o tabelião esteja convencido de que interpretou fielmente a vontade daquele que a exprime. Ora, eu próprio não posso estar certo da aprovação ou da desaprovação de um cliente que não fala. E como o objeto dos seus desejos e das suas repugnâncias não pode, devido ao seu mutismo, ser provado claramente, o meu ministério é mais do que inútil e seria ilegalmente exercido.
O tabelião deu um passo para se retirar. Um imperceptível sorriso de triunfo desenhou-se nos lábios do Procurador Régio. Pela sua parte, Noirtier fitou Valentine com tal expressão de dor que ela se colocou no caminho do tabelião.
— Senhor — disse — A língua que falo com o meu avô é uma língua que se pode aprender facilmente, e assim como eu a compreendo, também posso em poucos minutos conseguir que o senhor a compreenda. De que precisa, senhor, para que a sua consciência fique perfeitamente edificada?
— O que é necessário para que os nossos atos sejam válidos, menina — respondeu o tabelião — Isto é, a certeza da aprovação ou da desaprovação. Pode-se testar doente de corpo, mas tem de se estar são de espírito.
— Muito bem, senhor. Com dois sinais, adquirirá essa certeza, a certeza de que o meu avô nunca esteve mais na plenitude da sua inteligência do que neste momento. O Sr. Noirtier, privado da voz, privado de movimento, abre os olhos quando quer dizer sim e pestaneja várias vezes quando quer dizer não. Sabe agora, senhor, o suficiente para falar com o Sr. Noirtier. Experimente.
O olhar que o velho deitou a Valentine estava tão úmido de ternura e reconhecimento que o próprio tabelião o compreendeu.
— Ouviu e compreendeu o que acaba de dizer a sua neta, senhor? — perguntou o tabelião.
Noirtier fechou suavemente os olhos e abriu-os um instante depois.
— E aprova o que ela disse, isto é, que os sinais indicados por ela são de fato aqueles com o auxílio dos quais o senhor faz compreender o seu pensamento?
— Aprovo — respondeu novamente o velho.
— Foi o senhor que me mandou chamar?
— Fui.
— Para fazer o seu testamento?
— Sim.
— E não quer que me retire sem ter feito esse testamento?
O paralítico pestanejou vivamente e por diversas vezes.
— Então, senhor, compreende agora e a sua consciência já está tranqüila? — perguntou a jovem.
Mas antes de o tabelião ter tempo de responder, Villefort puxou-o à parte.
— Senhor, parece-lhe que um homem possa suportar impunemente um abalo físico tão terrível como o que experimentou o Sr. Noirtier de Villefort sem que o próprio moral tenha sido gravemente atingido?
— Isso não é precisamente o que me inquieta, senhor — respondeu o tabelião — O que pergunto a mim mesmo é como conseguiremos adivinhar-lhe os pensamentos, a fim de lhe provocar as respostas.
— Bem vê que é impossível — insistiu Villefort.
Valentine e o velho ouviam esta conversa. Noirtier pousou um olhar tão fixo e tão firme em Valentine que esta compreendeu que tal olhar exigia evidentemente uma resposta.
— Senhor — interveio — Não se preocupe com isso. Por mais difícil que seja, ou antes, que lhe pareça descobrir o pensamento do meu avô, o revelarei de forma a desfazer todas as dúvidas a esse respeito. Há seis anos que convivo de perto com o Sr. Noirtier e ele próprio que diga se, nesses seis anos, um só dos seus desejos ficou sepultado no seu coração por não conseguir dá-lo a entender.
— Não — respondeu o velho.
— Experimentemos então — disse o tabelião — Aceita esta menina como a sua intérprete?
O paralítico tez sinal que sim.
— Muito bem. Vejamos então, senhor, que deseja de mim, qual é o ato que pretende praticar...
Valentine recitou todas as letras do alfabeto até à letra T.
Uma eloqüente olhadela de Noirtier deteve-a nessa altura.
— O senhor pede a letra T — disse o tabelião — A escolha é visível.
— Espere — pediu Valentine, que em seguida se virou para o avô e recitou — Ta... te...
O velho deteve-a na segunda destas sílabas. Então, Valentine pegou no dicionário e folheou as páginas diante do olhar atento do tabelião.
— Testamento — disse, parando o dedo a um sinal de olhos de Noirtier.
— Testamento! — exclamou o tabelião — É evidente, o senhor quer testar.
— Quero — confirmou Noirtier várias vezes.
— Convenhamos que é maravilhoso, senhor! — disse o tabelião, estupefato, a Villefort.
— De fato — replicou este — E ainda mais maravilhoso ser o testamento. Porque, enfim, não creio que os artigos se alinhem no papel, palavra por palavra, sem a inteligente inspiração da minha filha. Ora, Valentine talvez seja um pouco interessada nesse testamento e por isso uma intérprete não muito conveniente das obscuras vontades do Sr. Noirtier de Villefort.
— Não, não! — contrapôs o paralítico.
— Como, Valentine não é interessada no seu testamento? — estranhou Villefort.
— Não — repetiu Noirtier.
— Senhor — interveio o tabelião, que, encantado com a experiência, prometia a si mesmo contar em sociedade os pormenores daquele episódio pitoresco — Senhor, nada me parece mais fácil agora do que o que há pouco olhava como uma coisa impossível. O testamento será muito simplesmente um testamento místico, quer dizer, previsto e autorizado pela lei desde que seja lido diante de sete testemunhas, aprovado pelo testador diante delas e fechado pelo tabelião, sempre diante delas. Quanto ao prazo, durará apenas mais tempo do que um testamento ordinário. Vêm primeiro as fórmulas consagradas, e que são sempre as mesmas, e quanto aos pormenores, na sua maioria, serão fornecidos pelo próprio estado dos negócios do testador e pelo senhor, que, tendo-os gerido, os conhece. Mas mesmo assim, para que o ato seja inatacável, vamos dar-lhe a mais completa autenticidade. Um dos meus colegas me servirá de ajudante e, contra o que é hábito, assistirá ao ditado. Está satisfeito, senhor? — acrescentou o tabelião, dirigindo-se ao velho.
— Estou — respondeu Noirtier, radiante por ser compreendido.
“Que irá ele fazer?”, perguntou a si próprio, Villefort, a quem a alta posição que ocupava impunha a maior reserva e que, aliás, não podia adivinhar qual era o objetivo do pai. Virou-se para mandar buscar o segundo tabelião designado pelo primeiro.
Mas Barrois, que ouvira tudo e adivinhara o desejo do amo, já saíra.
Então, o Procurador Régio mandou dizer à mulher que subisse. Passado um quarto de hora todos estavam reunidos no quarto do paralítico e chegara o segundo tabelião.
Os dois funcionários públicos chegaram a acordo em poucas palavras. Leram a Noirtier uma fórmula de testamento vaga, vulgar; depois, para começar, por assim dizer, a investigação acerca da sua inteligência, o primeiro tabelião disse-lhe, virando-se para ele:
— Quando se faz um testamento, senhor, é a favor de alguém...
— Sim — respondeu Noirtier.
— Tem alguma idéia da importância a quanto monta a sua fortuna?
— Tenho.
— Vou dizer várias importâncias, que irão subindo gradualmente. Me deterá quando atingir aquela que julgue ser a sua.
— Sim.
Havia neste interrogatório uma espécie de solenidade. Aliás, nunca a luta da inteligência contra a matéria fora talvez mais visível. E se não era um sublime, como íamos a dizer, era pelo menos um curioso espetáculo formara-se roda à volta de Noirtier. O segundo tabelião estava sentado a uma mesa, pronto para escrever. O primeiro estava de pé diante de Noirtier e interrogava-o.
— A sua fortuna ultrapassa os trezentos mil francos, não é verdade?
Noirtier tez sinal que sim.
— Possui quatrocentos mil francos? — perguntou o tabelião.
Noirtier ficou imóvel.
— Quinhentos mil?
A mesma imobilidade.
— Seiscentos mil? Setecentos mil? Oitocentos mil? Novecentos mil?
Noirtier fez sinal que sim.
— Possui novecentos mil francos?
— Possuo.
— Em imóveis? — perguntou o tabelião.
Noirtier fez sinal que não.
— Em títulos de dívida pública?
Noirtier fez sinal que sim.
— Esses títulos estão em seu poder?
Uma olhadela dirigida a Barrois fez sair o velho servidor, que regressou pouco depois com uma caixinha.
— Permite-me que abra esta caixa? — perguntou o tabelião.
Noirtier fez sinal que sim. Aberta a caixa, encontraram-se títulos de dívida pública no valor de novecentos mil francos. O primeiro tabelião passou, um após outro, cada título ao colega. A soma era a indicada por Noirtier.
— Está certa — disse o segundo tabelião — É evidente que a inteligência se encontra em toda a sua capacidade e extensão.
O primeiro tabelião virou-se então para o paralítico e disse-lhe:
— O senhor possui, portanto novecentos mil francos de capital, que, dada a forma como estão investidos, lhe devem dar quarenta mil de rendimento, aproximadamente...
— É verdade — respondeu Noirtier.
— A quem deseja deixar essa fortuna?
— Oh — interveio a Sra. de Villefort — Quanto a isso não há  qualquer dúvida! O Sr. Noirtier ama unicamente a neta, Mademoiselle Valentine de Villefort. E ela que cuida dele há seis anos. Soube cativar com os seus cuidados assíduos a afeição do avô e quase direi o seu reconhecimento. É, portanto justo que receba a paga da sua dedicação.
Os olhos de Noirtier lançaram um relâmpago, como que significando que não se deixava enganar pelo falso assentimento dado pela Sra. de Villefort às intenções que ela lhe supunha.
— É então a Mademoiselle Valentine de Villefort que lega esses novecentos mil francos? — perguntou o tabelião, que julgava nada mais haver a fazer do que registrar aquela cláusula, mas que, no entanto, tinha de se assegurar do assentimento de Noirtier e desejava que esse assentimento fosse verificado por todas as testemunhas da estranha cena.
Valentine dera um passo atrás e chorava de olhos baixos. O velho fitou-a um instante com expressão de profunda ternura; depois, virou-se para o tabelião e piscou os olhos de forma bastante significativa.
— Não? — disse o tabelião — Como, não é Mademoiselle Valentine de Villefort quem institui sua herdeira universal?
Noirtier fez sinal que não.
— Não está enganado? — insistiu o tabelião, atônito — Quer mesmo dizer não?
— Não! — repetiu Noirtier — Não!
Valentine levantou a cabeça. Estava estupefata, não por ser deserdada, mas sim por ter provocado o sentimento que habitualmente dita semelhantes atos. Mas Noirtier olhou-a com tão profunda expressão de ternura que ela exclamou:
— Oh, meu bom avô, bem vejo que só me priva da sua fortuna! Mas me deixará sempre o seu coração?
— Oh, sim, certamente! — disseram os olhos do paralítico, fechando-se com uma expressão que não podia enganar Valentine.
— Obrigada! Obrigada! — murmurou a jovem.
Entretanto, a rejeição fizera nascer no coração da Sra. de Villefort uma esperança inesperada. Aproximou-se do velho e perguntou:
— Então, é ao seu neto Edouard de Villefort que deixa a sua fortuna, caro Sr. Noirtier?
O batimento de pálpebras foi terrível, quase exprimia ódio.
— Não — disse o tabelião — Então, é ao senhor seu filho aqui presente?
— Não — replicou o velho.
Os dois tabeliões entreolharam-se estupefatos. Villefort e a mulher sentiram-se corar, um de vergonha e o outro de cólera.
— Mas que lhe fizemos nós, avô? — perguntou Valentine — Já não gosta de nós?
O olhar do velho passou rapidamente pelo filho e pela nora e deteve-se em Valentine com expressão de profunda ternura.
— Sendo assim — disse ela — Se de fato me amas, avô, procura conjugar esse amor com o que faz neste momento. Conhece-me, sabe que nunca pensei na sua fortuna. Aliás, dizem que sou rica pelo lado da minha mãe, demasiado rica até. Vamos, explica-te.
Noirtier cravou o olhar ardente na mão de Valentine.
— A minha mão? — perguntou ela.
— Sim — respondeu Noirtier.
— A sua mão! — repetiram todos os presentes.
— Ah, senhores, bem vêem que tudo isto é inútil e que o meu pobre pai está louco! — disse Villefort.
— Oh, compreendo! — exclamou de súbito Valentine — O meu casamento, não é, avô!
— Sim, sim, sim! — repetiu três vezes o paralítico, e os olhos relampejavam-lhe cada vez que abria as pálpebras.
— Está zangado conosco por causa do casamento, não é?
— É.
— Mas isso é absurdo? — interveio Villefort.
— Perdão, senhor — perguntou o tabelião — Mas, pelo contrário, é muito lógico e parece-me encadear-se perfeitamente.
— Não quer que case com o Sr. Franz d’Epinay?
— Não, não quero — exprimiu o olhar do velho.
— E deserda a sua neta por ela casar contra a sua vontade? — perguntou o tabelião.
— Deserdo — respondeu Noirtier.
— Portanto, sem esse casamento ela seria sua herdeira?
— Sim.
Fez-se um profundo silêncio à volta do velho.
Os dois tabeliões consultavam-se; Valentine, com as mãos juntas, fitava o avô com um sorriso reconhecido; Villefort mordia os lábios delgados e a Sra. de Villefort não conseguia reprimir um sentimento de prazer, que, malgrado seu, se lhe refletia no rosto.
— Mas — disse por fim Villefort, o primeiro a quebrar o silêncio — Parece-me que sou o único juiz das vantagens que militam a favor da dessa união. Único senhor da mão da minha filha, quero que ela case com o Sr. Franz d’Epinay e casará!
Valentine caiu, chorando, numa cadeira.
— Senhor — prosseguiu o tabelião, dirigindo-se ao velho — Que tenciona fazer da sua fortuna no caso de Mademoiselle Valentine casar com o Sr. Franz?
O velho permaneceu imóvel.
— Tenciona dispor dela?
— Tenciono — respondeu Noirtier.
— A favor de alguém da sua família?
— Não.
— A favor dos pobres, então?
— Sim.
— Mas — observou o tabelião — Sabe que a lei se opõe a que despoje inteiramente o seu filho?
— Sei.
— Só disporá, portanto da parte que a lei o autoriza a dispor.
Noirtier ficou imóvel.
— Continua a querer dispor de tudo?
— Continuo.
— Mas depois da sua morte contestarão o testamento!
— Não.
— O meu pai conhece-me, senhor — interveio Villefort — E sabe que a sua vontade será sagrada para mim. De resto, compreende que na minha posição não posso pleitear contra os pobres.
O olhar de Noirtier exprimiu triunfo.
— Que decide, senhor? — perguntou o tabelião a Villefort.
— Nada, senhor. Trata-se de uma resolução firme no espírito do meu pai e sei que o meu pai não muda de resolução. Resigno-me, portanto. Esses novecentos mil francos sairão da família para ir enriquecer os hospitais; mas não cederei a um capricho de velho e o farei de acordo com a minha consciência.
E Villefort retirou-se com a mulher, deixando ao pai a liberdade de testar como entendesse.
O testamento foi lavrado no mesmo dia. Foram buscar as testemunhas, o velho aprovou o documento, fecharam-no na sua presença e depositaram-no no cartório do Sr. Deschamps, tabelião da família.




 continua....




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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