sábado, 20 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 54



LIV

A ALTA E A BAIXA




A
lguns dias depois deste encontro, Albert de Morcerf foi visitar o Conde de Monte Cristo à sua casa no Champs-Élysées, que já adquirira certos ares de palácio que o Conde, graças à sua imensa fortuna, dava às suas residências, mesmo as mais passageiras. Vinha renovar-lhe os agradecimentos da Sra. Danglars, que já lhe mandara uma carta assinada: “Baronesa Danglars, nascida Herminie de Servieux”.
Albert era acompanhado por Lucien Debray, o qual juntou às palavras do amigo alguns cumprimentos, que não eram oficiais, sem dúvida, mas de cuja origem o Conde, graças à sua perspicácia, não podia duvidar.
Pareceu-lhe até que Lucien o vinha ver movido por um duplo sentido de curiosidade e que metade desse sentimento emanava da Rua da Chaussée-d'Antin. Com efeito, era-lhe lícito supor, sem receio de se enganar, que a Sra. Danglars, não podendo conhecer pelos próprios olhos a intimidade de um homem que oferecia cavalos de trinta mil francos e ia à Ópera com uma escrava grega adornada com um milhão em diamantes, encarregara os olhos pelos quais tinha o hábito de ver de a informar acerca dessa intimidade.
Mas o Conde não pareceu desconfiar da existência da mais pequena correlação entre a visita de Lucien e a curiosidade da baronesa.
— O senhor mantém relações estreitas com o Barão Danglars? — perguntou a Albert de Morcerf.
— Claro, Sr. Conde. Creio que já lhe falei a esse respeito.
— E o compromisso também se mantém?
— Mais do que nunca — interveio Lucien — É assunto arrumado.
E Lucien, julgando sem dúvida que esta frase metida na conversa lhe dava o direito de se alhear dela, colocou o monóculo de tartaruga no olho e, mordendo o castão de ouro do seu pingalim, pôs-se a percorrer a sala, examinando as armas e os quadros.
— Ah! — exclamou Monte Cristo — Mas, a julgar pelo que me disse, não esperava uma decisão tão rápida.
— Que quer, as coisas andam sem que demos por isso. Enquanto não pensamos nelas, pensam elas em nós, e quando nos precatamos ficamos espantados com o caminho que andaram. O meu pai e o Sr. Danglars serviram juntos na Espanha, o meu pai no Exército e o Sr. Danglars nos abastecimentos. Foi lá que o meu pai, arruinado pela Revolução, e o Sr. Danglars, que nunca tivera patrimônio, lançaram os alicerces, meu pai, da sua fortuna política e militar, que é excelente, e o Sr. Danglars, da sua fortuna política e financeira, que é admirável.
— Sim, com efeito — disse Monte Cristo — Creio que durante a visita que lhe fiz o Sr. Danglars me falou disso. E — continuou deitando uma olhadela a Lucien, que folheava um álbum — E ela, é bonita, Mademoiselle Eugênia? Porque creio que se chama Eugênia.
— Muito bonita, ou antes, muito bela — respondeu Albert — Mas de uma beleza que não aprecio. Sou um indigno!
— Fala dela como se já fosse seu marido!
— Oh! — exclamou Albert, olhando à sua volta para ver por sua vez o que fazia Lucien.
— Sabe que não me parece entusiasmado com esse casamento? — observou Monte Cristo, baixando a voz.
— Mademoiselle Danglars é demasiado rica para mim e isso assusta-me — declarou Morcerf.
— Ora, ora, que boa razão! — exclamou Monte Cristo — O senhor também não é rico?
— O meu pai tem qualquer coisa como umas cinqüenta mil libras de rendimento e desse dinheiro talvez me dê dez ou doze mil quando me casar.
— Na verdade é pouco — admitiu o Conde — Sobretudo em Paris. Mas a fortuna não é tudo neste mundo, também vale alguma coisa um belo nome e uma alta posição social. O seu nome é célebre, a sua posição, magnífica, e depois o Conde de Morcerf é um soldado e o mundo gosta de ver a integridade de Bayard aliada à pobreza de Du Guesclin. O desinteresse é o mais belo raio de sol a que possa reluzir uma nobre espada. Eu, muito pelo contrário, acho que essa união não pode ser mais vantajosa: Mademoiselle Danglars o enriquecerá e o senhor enobrecerá!
Albert abanou a cabeça e ficou pensativo.
— Há ainda outra coisa — disse.
— Confesso — prosseguiu Monte Cristo — Que tenho dificuldade em compreender essa repugnância por uma moça rica e bela.
— Oh, meu Deus, esta repugnância, se repugnância existe, não vem toda do meu lado! — declarou Morcerf.
— De que lado mais vem então? Porque o senhor disse-me que o seu pai desejava esse casamento...
— Do lado da minha mãe, e a minha mãe possui uma visão prudente e segura. Ora esta união não lhe sorri. Tem não sei que prevenção contra os Danglars.
— Oh, isso compreende-se! — perguntou o Conde em tom um pouco forçado — A Sra. Condessa de Morcerf, que é a distinção, a aristocracia e a delicadeza em pessoa, hesita um pouco em tocar numa mão plebéia, grosseira e brutal. É natural.
— Não sei se se trata disso, na realidade — respondeu Albert — Mas o que sei é que me parece que este casamento, se se fizer, a tornará infeliz. Já nos devíamos ter reunido para tratar das coisas há seis semanas, mas tenho andado com umas dores de cabeça...
— Reais? — perguntou o Conde, sorrindo.
— Oh, muitíssimo reais! Se não as dores de cabeça, pelo menos o medo, sem dúvida... que já me levou a adiar a reunião por dois meses. Não há pressa, compreende? Ainda não tenho vinte e um anos e Eugênia só tem dezessete. Mas os dois meses expiram para a semana e é preciso ir adiante. Não pode imaginar, meu caro Conde, como estou embaraçado... ah, como o senhor é feliz por ser livre!
— Nesse caso, seja livre também. Quem o impede, se me permite que lhe pergunte?
— Oh, seria uma grande decepção para o meu pai se eu não casasse com Mademoiselle Danglars!
— Então case — respondeu o Conde, com um singular movimento de ombros.
— Pois sim, mas para a minha mãe isso será mais do que decepção, será dor — perguntou Morcerf.
— Então não case — tornou o Conde.
— Verei, tentarei... me dará um conselho, não é verdade? E se lhe for possível me tirará deste embaraço. Oh, para não desgostar a minha excelente mãe creio que seria capaz de me indispor com o Conde!
Monte Cristo virou-se; parecia comovido.
— Eh! — disse a Debray, sentado numa poltrona profunda na extremidade da sala e que segurava na mão direita um lápis e na esquerda uma agenda — Que está fazendo, um esboço de Poussin?
— Eu? — respondeu o outro tranquilamente — Oh, eu fazer um esboço?! Era o que faltava! Gosto demasiado de pintura para me meter nisso... não, faço tudo o que há de mais oposto à pintura; faço contas.
— Contas?...
— Sim. Calculo... isto diz-lhe indiretamente respeito, visconde. Calculo o que a Casa Danglars ganhou com a última alta do Haiti: de duzentos e seis, os fundos subiram para quatrocentos e nove em três dias, e o prudente banqueiro comprara muitos a duzentos e seis. Deve ter ganho trezentas mil libras.
— Esse não é o seu melhor golpe — disse Morcerf — Não ganhou este ano um milhão com os títulos de Espanha?
— Ouça, meu caro — disse Lucien — Está aqui o Sr. Conde de Monte Cristo, que lhe dirá como os Italianos: Danaro e santia, Metà della Metà[1]. E é ainda muito. Por isso, quando me vêm com semelhantes histórias, encolho os ombros.

[1] Dinheiro e santidade, Metade da metade. (N. do T.)

— Mas falava do Haiti? — perguntou Monte Cristo.
— Oh, o Haiti é outra coisa! O Haiti é o écart‚ da agiotagem francesa. Pode-se gostar da bouillotte, adorar o whist, ser doido pelo Boston[2], e no entanto renunciar a tudo isso. Mas volta-se sempre ao écart. É um acepipe. Assim, o Sr. Danglars vendeu ontem a quatrocentos e nove e embolsou trezentos mil francos. Se tivesse esperado para hoje, os fundos desceriam novamente a duzentos e cinco, e em vez de ganhar trezentos mil francos, perderia vinte ou vinte e cinco mil.

[2] Écart‚ bouillotte, whist e boston são jogos de cartas. (N. do T.)

— E por que motivo os fundos desceram de quatrocentos e nove para duzentos e cinco? — perguntou Monte Cristo — Peço-lhe desculpa, mas sou muito ignorante de todas essas intrigas de bolsa.
— Porque — respondeu Albert, rindo — As notícias sucedem-se e não se assemelham...
— Demônio, o Sr. Danglars arrisca trezentos mil francos num dia! É obra! Mas então deve ser enormemente rico... — observou Monte Cristo.
— Não é ele que joga! — atalhou vivamente Lucien — É a Sra. Danglars, que é realmente uma mulher intrépida.
— Mas você, que é razoável e sabe alguma coisa de estabilidade de notícias, uma vez que está na fonte, deveria impedi-la dessas loucuras — disse Morcerf, sorrindo.
— Como o conseguiria se o marido não o consegue? — perguntou Lucien — Conhece o temperamento da baronesa; ninguém tem influência sobre ela e só faz absolutamente o que quer.
— Oh, se estivesse no seu lugar!... — insinuou Albert.
— Que faria?
— Curava-a desse vício. Seria um favor que prestaria ao seu futuro genro.
— Mas como?
— Meu Deus, de maneira muito fácil: dava-lhe uma lição!
— Uma lição?...
— Sim. A sua posição de secretário do ministro dá-lhe uma grande autoridade no tocante às notícias. Se você não abrir a boca, os cambistas não estenografarão correndo as suas palavras. Faça-a perder uma centena de milhar de francos, sucessivamente, e verá que isso a torna prudente.
— Não compreendo... — balbuciou Lucien.
— Pois é simples — respondeu o rapaz, com uma ingenuidade que não tinha nada de simulada — Anuncie-lhe uma bela manhã qualquer coisa inaudita, uma notícia telegráfica que só você possa saber. Que Henrique IV, por exemplo, foi visto ontem em casa de Gabrielle. Isso fará subir os fundos, ela fará a sua jogada de bolsa em conformidade e perderá certamente quando Beauchamp escrever no dia seguinte no seu jornal: “É sem fundamento que as pessoas bem informadas afirmam que o rei Henrique IV foi visto anteontem em casa de Gabrielle. Essa notícia é completamente inexata; o rei Henrique IV não saiu da Ponte Nova”.
Lucien desatou a rir desdenhosamente. Mas Monte Cristo, embora aparentando indiferença, não perdera uma palavra do diálogo e o seu olhar perscrutador julgara mesmo ter descoberto um segredo no embaraço do secretário particular.
E em conseqüência desse embaraço, que escapara completamente a Albert, Lucien abreviou a sua visita. Sentia-se evidentemente pouco à vontade. Ao acompanhá-lo à saída, o Conde disse-lhe algumas palavras em voz baixa, às quais ele respondeu:
— Com muito gosto, Sr. Conde. Aceito.
O Conde voltou para junto do jovem Morcerf.
— Não acha, pensando melhor — disse-lhe — Que fez mal em falar como falou da sua sogra diante do Sr. Debray?
— Por favor, Conde — pediu Morcerf — Suplico-lhe que não diga antecipadamente essa palavra.
— Realmente, e sem exagero, a condessa é a tal ponto contrária a esse casamento?
— A tal ponto que a baronesa raras vezes vai lá a casa e que a minha mãe não esteve, creio, duas vezes na vida em casa da Sra. Danglars.
— Sendo assim — disse o Conde — Sinto-me tentado a falar-lhe de coração nas mãos. O Sr. Danglars é meu banqueiro e o Sr. de Villefort cumulou-me de gentilezas como agradecimento de um serviço que um feliz acaso me permitiu prestar-lhe. Adivinho debaixo de tudo isso um alude de jantares e festas mundanas. Ora, para não parecer que tiro faustosamente partido de tudo isso, e até para ter o mérito de me antecipar, se o meu amigo concordar, projetei reunir na minha casa de campo de Auteuil o Sr. e a Sra. Danglars e o Sr. e a Sra. de Villefort. Se o convidasse para esse jantar, assim como o Sr. Conde e a Sra. Condessa de Morcerf, não pareceria tratar-se de uma espécie de encontro matrimonial, ou pelo menos a Sra. Condessa de Morcerf não veria as coisas dessa maneira, sobretudo se o Sr. Barão Danglars me desse a honra de levar a filha? Então a sua mãe me tomaria horror, o que não quero de maneira nenhuma que aconteça. Pretendo, pelo contrário, e diga-lho todas as vezes que tiver oportunidade disso, ter o melhor lugar possível no seu espírito.
— Palavra de honra, Conde — disse Morcerf — Que lhe estou muito grato por ter comigo essa franqueza, e aceito a exclusão que me propõe. Diz que deseja ocupar o melhor lugar possível no espírito da minha mãe, pois parece-me que já ocupa nele um lugar privilegiado.
— Acha? — perguntou Monte Cristo com interesse.
— Oh, tenho a certeza! Depois de nos deixar, no outro dia, conversamos uma hora a seu respeito. Mas voltemos àquilo de que estávamos a falar; se a minha mãe pudesse saber dessa atenção da sua parte, e eu me arriscaria a dizer-lhe, estou certo de que lhe ficaria reconhecidíssima. É certo que, pela sua parte, o meu pai ficaria furioso...
O Conde desatou a rir.
— Pronto, está prevenido — disse a Morcerf — Mas creio que não será só o seu pai quem ficará furioso; o Sr. e a Sra. Danglars vão me considerar um homem muito incorreto. Sabem que tenho consigo certa intimidade, que o senhor é mesmo o meu mais antigo conhecimento parisiense, e quando o não virem em minha casa me perguntarão porque não o convidei. Pense ao menos em arranjar um compromisso anterior que tenha alguma aparência de probabilidade e escreva-me um bilhete para informar-me. Como sabe, com os banqueiros só o preto no branco tem valor.
— Farei melhor do que isso, Sr. Conde — disse Albert — A minha mãe quer ir respirar o ar do mar. Em que dia será o seu jantar?
— No sábado.
— Hoje é terça-feira; se partirmos amanhã à tarde, depois de amanhã estaremos em Tréport... sabe, Sr. Conde, que é um homem encantador por pôr assim as pessoas à vontade?
— Eu? Na realidade, dá-me mais valor do que aquele que tenho. Desejo ser-lhe agradável e mais nada.
— Em que dia fará os convites?
— Hoje mesmo.
— Muito bem! Corro a casa do Sr. Danglars e anuncio-lhe que saímos de Paris amanhã, minha mãe e eu. Como não o vi não sei nada do seu jantar.
— Não diga disparates! E o Sr. Debray, que acaba de o ver aqui em casa?
— Tem razão!
— Pelo contrário, esteve aqui e eu convidei-o aqui, sem cerimônia, mas o senhor respondeu-me muito simplesmente que não podia aceitar o convite porque partia para Tréport.
— Pronto, está combinado! Mas irá visitar a minha mãe ainda hoje?
— Ainda hoje é difícil. Além disso, iria cair no meio dos seus preparativos de partida.
— Faça então melhor do que isso. Por ora é apenas um homem encantador, seja um homem adorável...
— Que tenho de fazer para alcançar essa sublimidade?
— Que tem de fazer?
— É o que pergunto.
— Hoje está livre como o ar; venha jantar comigo. Será um jantar íntimo, apenas com o senhor, a minha mãe e eu. Mal viu a minha mãe; assim terá ensejo de vê-la de perto. É uma mulher notabilíssima e só lamento uma coisa: que não exista outra igual com menos vinte anos. Haveria brevemente, juro-lhe, uma condessa e uma viscondessa de Morcerf. Quanto ao meu pai, não o encontrará. Está de serviço esta noite e janta com o referendário-mor. Vá, falaremos de viagens. O senhor, que já viu o mundo inteiro, nos contará as suas aventuras, a história dessa bela grega que estava na outra noite consigo na Ópera, a quem chama sua escrava, mas que trata como uma princesa. Falaremos em italiano e espanhol. Vamos, aceite; a minha mãe agradecerá.
— Mil agradecimentos — respondeu o Conde — O convite é dos mais cativantes e lamento vivamente não o poder aceitar. Não estou livre, como pensa; tenho, pelo contrário, um encontro importante.
— Cautela! Ensinou-me há pouco como, a propósito de um jantar, nos podemos descartar de uma coisa desagradável. Quero uma prova. Felizmente não sou banqueiro como o Sr. Danglars, mas previno-o de que sou tão incrédulo como ele.
— Vou dá-la — disse o Conde.
E tocou.
— Hum!... — murmurou Morcerf — Já por duas vezes recusou jantar com a minha mãe... tem alguma coisa contra ela, Conde?
Monte Cristo estremeceu.
— Não diga isso — perguntou — Aliás, aí está a minha prova.
Baptistin entrou e ficou junto da porta, de pé e à espera.
— Não estava prevenido da sua visita, pois não?
— Demônio, o senhor é um homem tão extraordinário que não me atrevo a responder negativamente.
— Mas pelo menos não podia adivinhar que me convidaria para jantar...
— Oh, quanto a isso é provável.
— Muito hem. Escute, Baptistin: que lhe disse esta manhã quando o chamei ao meu gabinete de trabalho?
— Que mandasse fechar a porta do Sr. Conde assim que dessem cinco horas.
— E depois?
— Então, Sr. Conde... — protestou Albert.
— Não, não, quero absolutamente desembaraçar-me dessa reputação misteriosa que me arranjou, meu caro visconde. É muito difícil fazer eternamente de Manfredo. Quero viver numa casa de vidro. E depois... continue, Baptistin.
— E depois que só receberia o Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti e o filho.
— Como ouviu, o Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti, um homem da mais velha nobreza italiana e de que Dante se deu ao incômodo de ser o Hozier... talvez se lembre ou talvez se não lembre, no canto X de O Inferno... além dele, o filho, um jovem encantador, pouco mais ou menos da sua idade, visconde, que usa o mesmo título que o senhor e faz a sua entrada na sociedade parisiense à sombra dos milhões do pai. O major traz-me esta noite seu filho Andréa, o contino, como dizemos em Itália. Confia-mo. E eu o ajudarei, se lhe encontrar algum mérito. E o senhor, me ajudará a mim?
— Sem dúvida! Esse major Cavalcanti é, portanto... um velho amigo seu? — perguntou Albert.
— De modo nenhum. É um digno fidalgo, muito delicado, muito modesto, muito discreto, como há muitos em Itália; descendentes de numerosas gerações de velhas famílias. Vi-o várias vezes, quer em Florença, quer em Bolonha, quer em Luca, e ele preveniu-me da sua chegada. Os conhecimentos de viagem são exigentes: exigem de nós, em qualquer parte, a amizade que lhes testemunhamos uma vez por acaso; como se o homem civilizado, que sabe viver uma hora com qualquer pessoa, não tivesse sempre o seu pensamento reservado! Esse bom major Cavalcanti vai rever Paris, que só viu de passagem, durante o Império, quando se foi fazer gelar em Moscou. Lhe darei um bom jantar e ele me deixará o filho. Prometerei velar por ele, mas o deixarei fazer todas as loucuras que lhe apetecer e ficaremos quites.
— Ótimo! — exclamou Albert — Não há dúvida que o senhor é um precioso mentor. Adeus, pois; estaremos de volta no domingo. A propósito, recebi notícias de Franz.
— Sim? E continua a dar-se bem na Itália? — perguntou Monte Cristo.
— Penso que sim. Mas sente a sua falta. Diz que o senhor era o sol de Roma e que sem a sua presença o tempo está triste. Não sei até se vai ao ponto de dizer que chove.
— Mudou, portanto de idéia a meu respeito o seu amigo Franz?
— Pelo contrário, persiste em considerá-lo fantástico no mais alto grau. Por isso sente a sua falta.
— Encantador rapaz! — exclamou Monte Cristo — Senti viva simpatia por ele logo na primeira noite em que o vi à procura de qualquer coisa para cear e se dignou aceitar comer comigo. E filho do general de Epinay, não é?
— Exatamente.
— O mesmo que foi miseravelmente assassinado em 1815?
— Pelos bonapartistas.
— É isso! Palavra que gosto muito dele. Não há também projetos de casamento para ele?
— Há. Deve casar com Mademoiselle de Villefort.
— Deveras?
— Tal como eu devo casar com Mademoiselle Danglars — perguntou Albert, rindo.
— O senhor ri.
— Pois rio.
— Porque ri?
— Rio porque me parece ver desse lado tanta simpatia pelo casamento como existe deste lado entre Mademoiselle Danglars e eu. Mas realmente, meu caro Conde, estamos a falar de mulheres como as mulheres falam de homens; é imperdoável!
Albert levantou-se.
— Já vai embora?
— A pergunta é boa! Há duas horas que o maço e ainda tem a delicadeza de me perguntar se me vou embora! Na verdade, Conde, o senhor é o homem mais cortês do mundo. E os seus criados, como estão bem treinados! O Sr. Baptistin, sobretudo. Nunca vi nenhum como ele. Os meus parecem seguir todos o exemplo dos do Teatro Francês, que precisamente por só terem uma palavra a dizer vêm sempre dizê-la na ribalta. Portanto, se se desfizer do Sr. Baptistin, peço-lhe que se lembre de mim e me dê a preferência.
— Pois sim, visconde.
— Não é tudo, espere. Dê os meus cumprimentos ao seu discreto lucano, ao Sr. Major Cavalcanti. E se por acaso ele pretender casar o filho, arranje-lhe uma mulher muito rica e muito nobre, pelo menos pelo lado da mãe, e muito baronesa pelo lado do pai... o ajudarei nisso, se quiser.
— Oh, oh! — exclamou o Conde de Monte Cristo — Então as coisas já chegaram a esse ponto?
— Já.
— Bom, não quero prometer nada...
— Ah, Conde, que favor me prestaria e como o estimaria cem vezes ainda mais se, graças a si, ficasse solteiro nem que fosse só mais dez anos! — exclamou Morcerf.
— Tudo é possível — respondeu gravemente Monte Cristo.
E despedindo-se de Albert voltou para dentro e tocou três vezes a campainha.
Bertuccio apareceu.
— Sr. Bertuccio, tome nota de que recebo no sábado na minha casa de Auteuil.
Bertuccio estremeceu levemente.
— Muito bem, senhor.
— Necessito de ti — continuou o Conde — Para que tudo seja preparado conveniente. Aquela casa é muito bonita ou pelo menos pode ser muito bonita.
— Seria preciso mudar tudo para se conseguir isso, Sr. Conde, porque o papel das paredes está velho.
— Mude, portanto tudo, com uma única exceção: o quarto de damasco vermelho. Esse deixe-o absolutamente tal como está.
Bertuccio inclinou-se.
— Não toque também no jardim. Mas no pátio, por exemplo, faça tudo o que quiser. Até me será agradável que o não possam reconhecer.
— Farei o possível para que o Sr. Conde fique satisfeito. Entretanto, ficaria mais tranqüilo se o Sr. Conde me quisesse dizer as suas intenções para o jantar.
— Na verdade, meu caro Sr. Bertuccio — disse o Conde — Desde que se encontra em Paris acho-o desorientado, medroso... então já me não conhece?
— Mas, enfim, Vossa Excelência poderia dizer-me quem recebe!
— Ainda não sei nada a tal respeito e o senhor também não tem necessidade de o saber. Lúculo janta em casa de Lúculo e mais nada.
Bertuccio inclinou-se e saiu.





 continua...




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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