quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 45



XLV

A CHUVA DE SANGUE




— Quando entrou, o joalheiro deu um olhar interrogador à sua volta. Mas nada parecia susceptível de lhe despertar suspeitas, se não tinha, assim como nada parecia confirmá-las, se as tinha. Caderousse continuava a cobrir com as mãos as suas notas e o seu ouro. A Carconte sorria ao seu hóspede o mais agradavelmente que lhe era possível.
“— Ah, ah! — exclamou o joalheiro — Parece que estavam com medo de faltar algum coisa e resolveram tornar a contar o seu tesouro depois da minha partida...
“— Engana-se — perguntou Caderousse — Mas a verdade é que o acontecimento que nos proporcionou este dinheiro foi tão inesperado que ainda nos custa a acreditar nele, a tal ponto que quando não temos a prova material diante dos olhos, julgamos sonhar.
“O joalheiro sorriu.
“— Têm viajantes na estalagem? — perguntou.
“— Não — respondeu Caderousse — Não damos dormidas. Estamos tão perto da cidade que ninguém para aqui.
“— Nesse caso vou dar-lhe um grande incômodo.
“— Incomodar-nos, o senhor? Não, meu caro amigo! — protestou amavelmente Carconte — De modo nenhum, juro-lhe.
“— Vejamos, onde me deitam?
“— No quarto lá de cima.
“— Mas não é o vosso quarto?
“— Oh, não importa! Temos outra cama no quarto ao lado desse.
“Caderousse olhou com espanto para a mulher. O joalheiro cantarolou uma cançãozinha enquanto aquecia as costas ao calor de um molho de lenha que a Carconte acendera na chaminé para o seu hóspede se secar. Entretanto, punha a uma ponta da mesa, onde estendera um guardanapo, os magros restos de um jantar, a que juntou dois ou três ovos frescos. Caderousse voltara a guardar as notas na carteira, o ouro no saco e tudo no armário. Passeava de um lado para o outro, sombrio e pensativo, e levantava de vez em quando a cabeça para olhar o joalheiro, que se conservava fumegante diante da lareira, e que à medida que secava de um lado se virava do outro.
“— Pronto — anunciou a Carconte, pousando uma garrafa de vinho em cima da mesa —— Quando quiser já pode jantar.
“— E o senhor? — perguntou Joannês.
“— Eu não janto — respondeu Caderousse.
“— Almoçamos muito tarde — apressou-se a dizer Carconte.
“— Então vou jantar sozinho? — comentou o joalheiro.
“— Nós o serviremos — respondeu a Carconte, com uma prontidão que lhe não era habitual, mesmo para os hóspedes que pagavam.
“De tempos a tempos, Caderousse deitava-lhe um olhar rápido como um relâmpago. A tempestade continuava.
“— Ouça, ouça? — perguntou a Carconte — Fez muito bem em voltar para trás.
“— O que me não impedirá, se durante o jantar a tempestade amainar, de me pôr novamente a caminho — perguntou o joalheiro.
“— É o mistral — disse Caderousse, abanando a cabeça — Temos mau tempo para durar até amanhã.
“E soltou um suspiro.
“— Paciência — declarou o joalheiro, sentando-se à mesa — Tanto pior para os que estão lá fora.
“— Sim, passarão uma má noite — concordou a Carconte.
“O joalheiro começou a jantar e Carconte continuou a dispensar-lhe todas as pequenas atenções de uma hospedeira atenta. Ela, habitualmente tão rabugenta e desabrida, tornara-se um modelo de eficiência e cortesia. Se o joalheiro a tivesse conhecido antes, tão grande mudança não teria, decerto, deixado de lhe inspirar algumas suspeitas. Quanto a Caderousse, não dizia nada; continuava a passear e até parecia hesitar em olhar o hóspede. Quando o jantar terminou, o próprio Caderousse foi abrir a porta.
“— Parece-me que a tempestade amainou — disse.
“Mas naquele momento, como que para o desmentir, um enorme trovão abalou a casa e uma rajada de vento e chuva entrou pela casa dentro e apagou o candeeiro. Caderousse voltou a fechar a porta e a mulher acendeu uma vela no braseiro prestes a extinguir-se.
“— Pronto — disse ela ao joalheiro — Deve estar cansado. Pus lençóis lavados na cama; suba, deite-se e durma bem.
“Joannês ficou ainda um instante, para se assegurar de que a tempestade não amainava, e quando adquiriu a certeza de que a trovoada e a chuva aumentavam, deu as boas noites aos seus hospedeiros e subiu a escada. Passou-me por cima da cabeça e ouvi os degraus estalarem-lhe debaixo dos pés. Carconte seguiu-o com olhar ávido, enquanto Caderousse, pelo contrário, lhe virava as costas e nem sequer olhava para o seu lado. Todos estes pormenores, que desde então me têm acudido várias vezes ao espírito, não me impressionaram absolutamente nada. No momento em que se passaram, diante dos meus olhos. No fim de contas, não havia nada de mais natural e, excetuando a história do diamante, que me parecia um bocadinho inverosímil, tudo o resto era normalíssimo. Por isso, como estava exausto e eu próprio também desejava aproveitar a primeira aberta do temporal, resolvi dormir umas horas e pôr-me a andar no meio da noite.
“Ouvia, no quarto de cima, o joalheiro tomar por seu turno todas as disposições para passar a noite o melhor possível. A cama não tardou a ranger debaixo dele; acabava de se deitar. Sentia os olhos fecharem-se, mal-grado meu, e como não concebera nenhuma suspeita não tentei lutar contra o sono. Lancei um último olhar à cozinha. Caderousse estava sentado ao lado de uma mesa comprida, num dos bancos de madeira que nas estalagens de aldeia substituem as cadeiras. Virava-me as costas, de forma que não lhe podia ver o rosto. Aliás, mesmo que estivesse na posição contrária também lha não veria, pois tinha a cabeça escondida nas mãos. Carconte olhou-o durante algum tempo, encolheu os ombros e foi sentar-se diante dele.
“Naquele momento a chama moribunda pegou logo a um resto de lenha seca até ali esquecido e um clarão um pouco mais vivo iluminou o sombrio interior. Carconte tinha os olhos cravados no marido, e como ele continuasse sempre na mesma posição, vi-a estender a mão adunca na sua direção e tocar-lhe na testa. Caderousse estremeceu. Pareceu-me que a mulher movia os lábios, mas quer porque falasse muito baixo, quer por os meus sentidos estarem já embotados pelo sono, as suas palavras não chegaram até mim. Já via apenas através de um nevoeiro e com a incerteza precursora do sono, durante a qual julgamos começar a sonhar. Por fim os olhos fecharam-se e perdi a consciência de mim mesmo.
“Encontrava-me mergulhado no sono mais profundo quando fui acordado por um tiro de pistola, seguido de um grito horrível. Passos cambaleantes soaram no sobrado do quarto e uma massa inerte veio cair na escada, precisamente por cima da minha cabeça. Não estava ainda bem senhor de mim quando ouvi gemidos e depois gritos abafados, como os que acompanham uma luta. Um derradeiro grito, mais prolongado do que os outros e que degenerou em gemidos, tirou-me completamente da minha letargia. Soergui-me num braço, abri os olhos, que não viram nada nas trevas, e levei a mão à testa, sobre a qual me parecia cair através das tábuas da escada uma chuva morna e abundante.
“O mais profundo silêncio sucedera àquele barulho horrível. Ouvi os passos de um homem que caminhava por cima da minha cabeça, os quais a certa altura fizeram estalar a escada. O homem desceu à sala inferior, aproximou-se da chaminé e acendeu uma vela.
“O homem era Caderousse. Estava pálido e tinha a camisa toda ensangüentada. Com a vela acesa voltou a subir rapidamente a escada e ouvi de novo os seus passos rápidos e inquietos. Um instante depois tornou a descer. Trazia o estojo na mão. Assegurou-se de que o diamante se encontrava lá dentro, procurou um momento em qual das algibeiras o meteria, e em seguida, decerto por não considerar as algibeiras esconderijo bastante seguro, enrolou-o no seu lenço de assoar encarnado, que atou ao pescoço. Depois, correu ao armário, de onde tirou as notas e o ouro, meteu umas no bolsinho das calças e o outro na algibeira da jaqueta, pegou em duas ou três camisas, correu para a porta e desapareceu na escuridão. Então tudo se tornou claro e lúcido para mim e censurei-me pelo que acabava de acontecer como se fosse o verdadeiro culpado. Pareceu-me ouvir gemidos. O pobre joalheiro podia não estar morto. Talvez estivesse na minha mão, socorrendo-o, reparar parte do mal, não que eu cometera, mas sim que deixara cometer. Apoiei os ombros numa das tábuas mal juntas que separavam a espécie de cubículo em que me encontrava deitado da sala inferior, as tábuas cederam e entrei na cozinha.
“Corri para a vela e depois para a escada. Havia um corpo atravessado nela; era o cadáver de Carconte. O tiro de pistola que ouvira fora disparado contra ela. Tinha a garganta atravessada de lado a lado e, além do sangue que lhe jorrava desse duplo ferimento, também bolsava muito pela boca. Estava morta. Saltei por cima do seu corpo e passei. O quarto oferecia o aspecto da mais horrível desordem. Dois ou três móveis estavam caídos. Os lençóis, aos quais o infeliz joalheiro se agarrara, arrastavam pelo chão. Ele próprio estava caído no sobrado, com a cabeça encostada à parede, no meio de um mar de sangue que lhe brotava de três grandes ferimentos no peito. No quarto tinha cravada uma grande faca de cozinha, de que só se via o cabo. Observei a segunda pistola, que não disparara, provavelmente pela pólvora estar molhada. Aproximei-me do joalheiro; não estava morto, efetivamente. Devido ao barulho que fiz, e, sobretudo ao estremecimento do sobrado, abriu uns olhos alucinados, que conseguiu fixar um instante em mim, agitou os lábios como se quisesse falar e expirou.
“Aquele medonho espetáculo quase me pusera louco. Mas desde o momento em que não podia socorrer ninguém, só uma coisa me preocupava: fugir. Precipitei-me para a escada e enquanto a descia enterrava as mãos nos cabelos e soltava rugidos de terror. Na sala de baixo encontravam-se cinco ou seis guardas fiscais e dois ou três guardas, um autêntico exército armado. Prenderam-me. Nem sequer tentei opor resistência; já não era senhor dos meus sentidos. Procurei falar, mas apenas soltei alguns gritos inarticulados. Vi que os guardas fiscais e os guardas me apontavam a dedo uns aos outros; olhei para mim mesmo e verifiquei que estava todo coberto de sangue. A chuva morna que sentira cair sobre mim através das tábuas da escada era o sangue de Carconte.
“Indiquei com o dedo o lugar onde estivera escondido.
“— Que quer dizer? — perguntou um guarda.
“Um guarda fiscal foi ver.
“— Quer dizer que estava escondido ali — respondeu, e mostrou o buraco por onde eu saíra.
“Compreendi então que me tomavam pelo assassino. Recuperei a voz e as forças e soltei-me das mãos dos dois homens que me seguravam.
“— Não fui eu! Não fui eu! — gritei.
“Dois guardas apontaram-me as suas carabinas.
“— Se fizer um movimento, morre — disseram.
“— Repito-lhes que não fui eu! — tornei a gritar”.
“—Conte essa historia aos juízes de Nímes — responderam — Entretanto, está nas nossas mãos, e se quer um conselho, não oponha resistência.
“Essa não era de modo algum a minha intenção, estava abatido pela surpresa e pelo terror. Algemaram-me, amarraram-me à cauda de um cavalo e levaram-me para Nímes. Fora seguido por um guarda fiscal. Perdera-me de vista nas imediações da casa e desconfiara que passaria lá a noite. Prevenira os camaradas e tinham chegado precisamente a tempo de ouvir o tiro de pistola e prender-me no meio de tais provas de culpabilidade que compreendi imediatamente que seria muito difícil fazer reconhecer a minha inocência. Por isso agarrei-me apenas a uma coisa: o meu primeiro pedido ao juiz de instrução foi para lhe solicitar que mandasse procurar por toda a parte um tal Abade Busoni que naquele dia estivera na Estalagem da Pont Du Gard. Se Caderousse inventara uma história e o abade não existisse, era evidente que estava perdido, a não ser que Caderousse também fosse preso e confessasse tudo.
“Passaram dois meses durante os quais, devo dizê-lo em louvor do meu juiz, todas as buscas foram feitas para encontrar aquele que eu reclamava. Já perdera toda a esperança. Caderousse não fora apanhado. Ia ser julgado na primeira audiência, quando, em 8 de Setembro, isto é, três meses e cinco dias depois do sucedido, o Abade Busoni pelo qual já não esperava, se apresentou na cadeia dizendo que soubera que um recluso lhe desejava falar. Recebera a noticia em Marselha, disse, e apressara-se a satisfazer o meu desejo. Compreende decerto com que alvoroço o recebi. Contei-lhe tudo de que fora testemunha e referi-me, temeroso, à história do diamante. Contra a minha expectativa, era verdadeira de ponta a ponta, e também contra a minha expectativa, acreditou plenamente em tudo o que lhe disse. Foi então que, levado pela sua doce caridade, reconhecendo nele um profundo conhecimento dos costumes da minha terra e pensando que o perdão do único crime que cometera talvez pudesse sair dos seus lábios tão caridosos, lhe contei, sob segredo de confissão, a aventura de Auteuil em todos os seus pormenores. O que fizera por impulso obteve o mesmo resultado que obteria se o fizesse por cálculo. A confissão do primeiro assassínio, que nada me obrigava a revelar-lhe, provou-lhe que não cometera o segundo, e quando me deixou provou-lhe que não cometera o segundo, E, ordenou-me que esperasse e prometeu-me fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para convencer os juízes da minha inocência.
“Tive a prova de que efetivamente se ocupara de mim quando vi a minha prisão suavizar-se gradualmente e soube que seria julgado a seguir às audiências já marcadas. Entretanto, a Providência permitiu que Caderousse fosse preso no estrangeiro e extraditado para a França. Confessou tudo, mas lançou a premeditação e, sobretudo a instigação para cima da mulher. Condenaram-no a prisão perpétua nas galés e a mim puseram-me em liberdade.
— E foi então — disse Monte Cristo — Que me procurou, munido de uma carta do abade Busoni?
— Foi, Excelência. Ele tomara por mim um interesse visível.
“— A sua condição de contrabandista o perderá — disse-me — Se conseguir sair daqui, deixe-a.
“— Mas, Sr. Abade, como quer que viva e sustente a minha pobre cunhada?
“— Um dos meus penitentes — respondeu-me — Tem uma grande estima por mim e encarregou-me de lhe arranjar um homem de confiança. Quer ser esse homem? O recomendarei.
“— Oh, Sr. Abade, que bondade a sua! — exclamei.
“— Mas jure que nunca terei de me arrepender?
“Estendi a mão para jurar.
“— É inútil — disse ele — Conheço e gosto dos Corsos. Aqui está a minha recomendação.
“E escreveu aquelas linhas que entreguei ao Sr. Conde e mediante as quais Vossa Excelência teve a bondade de me tomar ao seu serviço. Agora, pergunto com orgulho a Vossa Excelência, alguma vez teve razão de queixa de mim?
— Não — respondeu o Conde — E, confesso-o com prazer, tem sido um bom servidor, Bertuccio, embora pouco confiado.
— Eu, Sr. Conde?!
— Você, sim. Como é possível que tenha uma cunhada e um filho adotivo e nunca me tenha falado de uma nem de outro?
— Porque, infelizmente, Excelência, ainda lhe não contei a parte mais triste da minha vida. Parti para a Córsega. Tinha pressa, como deve compreender, de tornar a ver e confortar a minha pobre cunhada. Mas quando cheguei a Rogliano encontrei a casa de luto. Houvera uma cena terrível, de que os vizinhos ainda hoje se recordam! A minha pobre cunhada, segundo os meus conselhos; resistia às exigências de Benedetto, que a cada instante queria que ela lhe desse todo o dinheiro que houvesse em casa. Uma manhã, ameaçou-a e desapareceu durante todo o dia. Ela chorou, porque a querida Assunta tinha para o miserável um coração de mãe.
“Quando anoiteceu, esperou-o sem se deitar. Às onze horas, quando ele regressou com dois dos seus amigos, companheiros habituais de todas as suas tropelias, ela estendeu-lhe os braços. Mas eles apoderaram-se dela e um dos três, receio que aquele infernal rapaz, um dos três gritou: “Experimentemos a tortura e talvez se resolva a dizer onde está o dinheiro”. Precisamente naquele dia, o vizinho Wasílio fora a Bástia e a mulher ficara sozinha em casa. Ninguém, exceto ela, poderia ver ou ouvir o que se passasse na casa da minha cunhada. Dois seguraram a pobre Assunta, que, não acreditando na possibilidade de semelhante crime, sorria aos que iam ser seus carrascos. O terceiro foi fechar portas e janelas, voltou e todos os três juntos, abafando os gritos de terror que aqueles preparativos, mais sérios, lhe arrancavam, aproximaram os pés de Assunta do braseiro com que contavam para a obrigar a dizer onde escondera o nosso pequeno tesouro. Mas na luta o fogo pegou-se às roupas e eles largaram-na para não se queimarem a si próprios. Envolta em chamas, ela correu para a porta, mas a porta estava fechada.
“Atirou-se à janela; mas a janela encontrava-se barricada. Então, a vizinha ouviu gritos horríveis; era Assunta, que pedia socorro. Mas a sua voz não tardou a ser abafada; os gritos transformaram-se em gemidos, e no dia seguinte, depois de uma noite de terror e angústia, quando a mulher de Wasílio se atreveu a sair de casa e mandou abrir a porta da nossa com autorização do juiz, encontraram Assunta meio queimada, mas respirando ainda, os armários arrombados e o dinheiro desaparecido. Quanto a Benedetto, deixara Rogliano para sempre. Nunca mais o vi desde esse dia e nem sequer ouvi falar dele. Foi depois de saber estas tristes notícias que procurei, Vossa Excelência, já não tinha de lhe falar de Benedetto, que desaparecera, nem da minha cunhada, que morrera.
— E que pensou desse acontecimento? — Perguntou Monte Cristo.
— Que era o castigo do crime que cometera — respondeu Bertuccio — Ah, esses Villefort eram uma raça maldita!
— Também me parece — murmurou o Conde, em tom lúgubre.
— E agora — prosseguiu Bertuccio — Vossa Excelência compreende, não é verdade, por que motivo esta casa, que não tornei a ver desde então, este jardim, onde me encontrei de súbito, e este lugar, onde matei um homem, me causaram as sombrias emoções cuja origem desejou conhecer. Porque, enfim, não tenho a certeza de que diante de mim, aí, a meus pés, o Sr. de Villefort não esteja deitado na cova que abrira para o filho.
— Com efeito, tudo é possível — disse Monte Cristo, levantando-se do banco onde estava sentado — Até — acrescentou baixinho — Que o Procurador Régio não tenha morrido. O Abade Busoni fez bem em mandá-lo ter comigo e o senhor fez bem em me contar a sua história, pois assim não terei maus pensamentos a seu respeito. Quanto ao malfadado Benedetto, nunca procurou encontrar-lhe o rastro? Nunca tentou saber que fora feito dele?
— Nunca. Se soubesse onde estava, em vez de ir ter com ele, fugiria como se foge de um monstro. Não, felizmente nunca mais ouvi falar dele. Espero que tenha morrido.
— Não espere, Bertuccio — disse o Conde — Os maus não morrem assim, pois Deus parece tomá-los sob a sua proteção para os tornar instrumento das suas vinganças.
— Pois seja — concordou Bertuccio — Tudo o que peço ao Céu é nunca mais tornar a vê-lo. Agora — continuou o intendente, baixando a cabeça — Sabe tudo, Sr. Conde, e é o meu juiz, como Deus o será lá  em cima. Não me dirá algumas palavras de consolação?
— Tem razão, com efeito, e posso dizer-lhe o que lhe diria o Abade Busoni: aquele que abateu, esse Villefort, merecia ser castigado pelo que lhe fizera e talvez por outra coisa ainda. Benedetto, se vive, servirá, como lhe disse, para qualquer vingança divina e depois será castigado por seu turno. Quanto a você, só tem na realidade uma coisa a censurar-se: pergunte a si mesmo por que motivo, depois de arrancar a criança da morte, não a entregou à mãe. É esse o seu crime, Bertuccio.
— Sim, senhor, foi esse o meu crime, o meu verdadeiro crime, porque me comportei como um covarde. Uma vez que conseguira trazer a criança à vida, só tinha uma coisa a fazer, como o senhor disse, era restituí-la à mãe. Mas para isso teria de fazer indagações, de chamar a atenção, de me entregar, talvez. Ora eu não queria morrer, tinha amor à vida pela minha cunhada, pelo amor-próprio inato entre nós de ficarmos firmes e vitoriosos na nossa vingança. Ou talvez me agarrasse à vida simplesmente por amor à própria vida. Oh, eu não sou um bravo como era o meu pobre irmão!
Bertuccio escondeu o rosto nas mãos e Monte Cristo pousou nele um longo e indefinível olhar. Em seguida, depois de um instante de silêncio, tornado ainda mais solene devido à hora e ao local:
— Para terminarmos dignamente esta conversa, que será a última acerca das suas aventuras, Sr. Bertuccio — disse o Conde, num tom de melancolia que lhe não era habitual — Fixe bem as minhas palavras, que ouvi muitas vezes serem proferidas pelo próprio Abade Busoni. Para todos os males há dois remédios: o tempo e o silêncio. Agora, Sr. Bertuccio, deixe-me passear um instante no jardim. O que é para si uma emoção pungente, por ter sido ator nesta cena, será para mim uma sensação quase agradável e que duplicará o valor desta propriedade. As árvores, como o Sr. Bertuccio vê, só agradam porque dão sombra, e a própria sombra só agrada porque está cheia de sonhos e visões. Comprei um jardim julgando comprar um mero recinto murado e mais nada, e de repente o recinto revela-se um jardim cheio de fantasmas, de modo algum incluídos na escritura. Ora eu gosto de fantasmas. Talvez porque nunca ouvi dizer que os mortos tenham feito tanto mal em seis mil anos como os vivos fazem num dia. Volte para casa, Sr. Bertuccio, e vá dormir em paz. Se o seu confessor, no momento supremo, for menos indulgente do que foi o Abade Busoni, mande-me chamar, se eu for ainda deste mundo, e encontrarei para si palavras que embalarão a sua alma quando estiver prestes a pôr-se a caminho para fazer essa árdua viagem chamada eternidade.
Bertuccio inclinou-se respeitosamente diante do Conde e retirou-se, suspirando.
Monte Cristo ficou só. Deu quatro passos em frente e murmurou:
— Aqui, ao pé deste plátano, a cova onde a criança foi depositada; lá adiante, a portinha por onde se entrava no jardim, àquele canto, a escada oculta que leva ao quarto. Parece-me que não necessito anotar tudo isto, pois tenho diante dos meus olhos, à minha volta e debaixo dos meus pés, a planta em relevo, a planta viva.
Depois de uma última volta ao jardim, o Conde dirigiu-se para a carruagem. Bertuccio, que o achou pensativo, subiu sem dizer nada para o lugar ao lado do cocheiro.
A carruagem retomou o caminho de Paris.
Naquela mesma noite, após chegar à casa da Champs-Élysées, o Conde de Monte Cristo visitou todo o edifício como o faria um homem familiarizado com ele há longos anos. Nem uma só vez, embora fosse à frente, abriu uma porta por outra ou tomou por uma escada ou por um corredor que o não levasse diretamente aonde contava ir. Ali acompanhava-o na sua revista noturna. O Conde deu a Bertuccio várias ordens com vista ao embelezamento ou à nova arrumação da casa e, puxando do relógio, disse ao núbio, atento:
— São onze e meia. Haydée não deve tardar. As mulheres francesas foram avisadas?
Ali estendeu a mão para os aposentos destinados à bela grega, que ficavam de tal forma isolados que, ocultando a porta com uma tapeçaria, se podia visitar toda a casa sem suspeitar que havia ali uma sala e dois quartos habitados. Ali, dizíamos, estendeu a mão para os aposentos, fez o número três com os dedos da mão esquerda e, apoiando a cabeça nessa mesma mão, depois de aberta, fechou os olhos como se dormisse.
— Ah! — exclamou o Conde de Monte Cristo, habituado àquela linguagem — São três e estão à espera no quarto, não é?
— Sim — respondeu Ali, agitando a cabeça de alto a baixo.
— A senhora deve vir cansada, esta noite — continuou Monte Cristo — E sem duvida quererá dormir. Que não a façam falar. As criadas francesas devem cumprimentar apenas a sua nova ama e retirar-se. Providenciará para que a criada grega não comunique com as criadas francesas.
Ali inclinou-se.
Pouco depois ouviu-se chamar o porteiro, o portão abriu-se, uma carruagem rodou na alameda e deteve-se diante da escadaria. O Conde desceu. A portinhola já estava aberta. Estendeu a mão a uma mulher nova, envolta num manto de seda verde, todo bordado a ouro, que lhe cobria a cabeça.
A jovem pegou na mão que lhe estendiam e beijou-a com certo amor, laivado de respeito. Trocaram algumas palavras, ternamente da parte da jovem e com meiga gravidade da parte do Conde, na língua sonora que o velho Homero pôs na boca dos deuses.
Em seguida, precedida por Ali, que levava uma tocha de cera cor-de-rosa, a jovem, que não era outra senão a bela grega, companheira habitual de Monte Cristo na Itália, foi conduzida aos seus aposentos e o Conde retirou-se para o pavilhão que reservara para si. À meia-noite e meia hora todas as luzes estavam apagadas na casa e dir-se-ia que todos dormiam.





continua...




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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