segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 56



LVI

ANDRÉA CAVALCANTI




O
 Conde de Monte Cristo entrou na sala contígua, que Baptistin designara por sala azul, e onde o acabava de preceder um rapaz de ar decidido, vestido com certa elegância, e que um cabriolé de praça deixara meia-hora antes à porta do palácio. Baptistin não tivera dificuldade em reconhecê-lo: era sem dúvida o rapaz alto, de cabelos louros, barba ruça, olhos pretos e pele resplandecente de brancura que lhe fora indicado pelo amo.
Quando o Conde entrou na sala, o jovem estava negligentemente recostado num sofá e fustigava distraidamente a bota com uma chibatinha de castão de ouro. Ao ver Monte Cristo levantou-se vivamente.
— O senhor é o Conde de Monte Cristo? — perguntou.
— Sou, sim, senhor — respondeu este — E creio ter a honra de falar ao Sr. Visconde Andréa Cavalcanti...
— Visconde Andréa Cavalcanti — repetiu o rapaz, acompanhando estas palavras de um cumprimento cheio de desenvoltura.
— Deve ter uma carta que o acredite junto de mim... — disse Monte Cristo.
— Não lhe falei logo dela por causa da assinatura, que me pareceu estranha.
— Simbad, o Marinheiro, não é verdade?
— Exatamente. Ora como nunca conheci outro Simbad, o Marinheiro, senão o das Mil e Uma Noites...
— Bom, trata-se de um dos seus descendentes, um dos seus amigos, muito rico, um inglês mais do que original, quase louco, cujo verdadeiro nome é Lorde Wilmore.
— Isso assim já me explica tudo — declarou Andréa — Agora corre tudo às mil maravilhas. É o mesmo inglês que conheci em... sim, perfeitamente!... Sr. Conde, estou às suas ordens.
— Se o que acaba de me dizer é verdade — replicou o Conde sorrindo — Espero que não se importe de me dar alguns pormenores a respeito da sua pessoa e da sua família.
— Com muito prazer, Sr. Conde — respondeu o jovem, com uma volubilidade que provava a solidez da sua memória — Sou, como disse, o Visconde Andréa de Cavalcanti, filho do Major Bartolomeo Cavalcanti, descendente dos Cavalcanti inscritos no Livro de Ouro de Florença. A nossa família, apesar de ser ainda muito rica, pois o meu pai tem meio milhão de rendimento, passou por muitas dificuldades, e eu próprio, senhor, fui aos cinco ou seis anos raptado por um preceptor infiel, de forma que há quinze anos que não vejo o autor dos meus dias. Desde que cheguei à idade de rapaz e que sou livre e senhor de mim que o procuro inutilmente. Por fim, a carta do seu amigo Simbad anunciou-me que ele estava em Paris e autorizou-me a dirigir-me ao senhor para obter mais informações.
— Na verdade, senhor, tudo o que me acaba de contar é interessantíssimo — declarou o Conde, observando com sombria satisfação aquele rosto decidido, dotado de uma beleza semelhante à do anjo mau — E fez muitíssimo bem em respeitar integralmente as indicações do meu amigo Simbad, porque o seu pai está de fato aqui e procura-o.
Desde que entrara na sala o Conde não perdera de vista o rapaz. Admirara a segurança do seu olhar e a firmeza da sua voz. Mas ao escutar estas palavras tão naturais: “O seu pai está de fato aqui e procura-o”, o jovem Andréa deu um salto e exclamou:
— O meu pai! O meu pai está aqui?...
— Sem dúvida — respondeu Monte Cristo — O seu pai, Major Bartolomeo Cavalcanti.
A expressão de terror que surgira no rosto do rapaz desapareceu quase imediatamente.
— Ah, sim, é verdade, o Major Bartolomeo Cavalcanti!... E diz, Sr. Conde, que ele está aqui, meu querido pai?
— Sim, senhor. E acrescento até que o deixei agora mesmo e que a história que me contou a respeito do filho querido raptado outrora me impressionou muito. Na verdade, os seus sofrimentos, os seus temores e as suas esperanças dariam um poema comovente. Enfim, recebeu um dia notícias que lhe anunciavam que os raptores do filho estavam dispostos a entregá-lo ou a indicar onde se encontrava mediante um resgate bastante grande e nada conteve esse bom pai. O resgate foi enviado para a fronteira do Piemonte, com um passaporte todo visado para a Itália. O senhor encontrava-se no Sul da França, não é verdade?
— É, sim, senhor — respondeu Andréa, com ar bastante embaraçado — Sim, estava no Sul da França.
— E uma carruagem devia esperá-lo em Nice?
— Exatamente, senhor. Essa carruagem levou-me de Nice a Gênova, de Gênova a Turim, de Turim a Chambéry, de Chambéry a Pont-de-Beauvoisin e de Pont-de-Beauvoisin a Paris.
— Ótimo! Ele esperava encontrá-lo a todo o momento no caminho, por ser essa a estrada que ele próprio seguia. Foi até por isso que o seu itinerário foi traçado assim.
— Mas — observou Andréa — Se me tivesse encontrado, o querido pai, duvido que me reconhecesse; mudei um bocado desde que ele me perdeu de vista.
— Oh, a voz do sangue!... — exclamou Monte Cristo.
— Sim, é verdade, não pensei na voz do sangue.
— Agora — prosseguiu Monte Cristo — Só uma coisa preocupa o Marquês Cavalcanti: o que o senhor fez enquanto estava separado dele, como foi tratado pelos seus raptores, se lhe dispensaram todas as atenções que lhe eram devidas pelo seu nascimento e finalmente se o sofrimento moral a que esteve exposto, sofrimento cem vezes pior do que o sofrimento físico, lhe não enfraqueceu de algum modo as faculdades de que a natureza tão generosamente o dotou e se se considera capaz de reassumir e manter dignamente por si mesmo na sociedade o lugar que lhe compete.
— Senhor — balbuciou o rapaz, desorientado — Espero que nenhum falso relatório...
— Que diz? Ouvi falar do senhor pela primeira vez ao meu amigo Wilmore, o filantropo. Soube que o encontrara numa posição desagradável, mas ignoro qual e não lhe fiz nenhuma pergunta. Não sou curioso. As suas desgraças interessaram-no e engraçou consigo. Disse-me que lhe queria restituir a posição social que perdera, que procuraria o seu pai e que havia de o encontrar. E de fato procurou-o e encontrou-o, ao que parece, uma vez que ele está aqui. Finalmente, preveniu-me ontem da sua chegada e deu-me ainda outras instruções relativas à sua fortuna. E mais nada. Sei que o meu amigo Wilmore é um original, mas como é ao mesmo tempo um homem que sabe o que faz, rico como uma mina de ouro, e que por conseqüência se pode entregar às suas originalidades sem que elas o arruínem, prometi seguir as suas instruções. Agora, senhor, não se ofenda com a minha pergunta: como serei obrigado a auxiliá-lo um pouco, gostaria de saber se as desgraças por que passou, desgraças independentes da sua vontade e que não diminuem de modo algum a consideração que me merece, o não tornaram um tanto estranho a essa sociedade em que a sua fortuna e o seu nome o chamam a fazer tão boa figura...
— Senhor — respondeu o rapaz, recuperando o sangue-frio à medida que o Conde falava — Tranqüilize-se quanto a isso. Os raptores que me afastaram do meu pai e que sem dúvida tinham como objetivo vender-me mais tarde a ele, como fizeram, calcularam que para tirar bom partido de mim era necessário deixar-me todo o meu valor pessoal, e até aumentá-lo, se fosse possível. Recebi portanto uma educação bastante boa e fui tratado pelos ladrões de crianças mais ou menos como o eram na Ásia Menor os escravos, de que os seus senhores faziam gramáticos, médicos e filósofos para os venderem mais caros no mercado de Roma.
Monte Cristo sorriu com satisfação; ao que parece, não esperava tanto do Sr. Andréa Cavalcanti.
— Aliás — prosseguiu o jovem — Se houvesse em mim qualquer falha de educação, ou antes, de hábito da sociedade, teriam, suponho, a indulgência de me desculpar em consideração para com as infelicidades que acompanharam o meu nascimento e perseguiram a minha juventude.
— Bom — disse Monte Cristo negligentemente — Fará como quiser, visconde, pois é senhor de si e isso diz-lhe respeito; mas se estivesse no seu lugar, dou-lhe a minha palavra de honra que, pelo contrário, não diria uma palavra acerca de todas essas aventuras. A sua história é um romance, e a sociedade, que adora os romances metidos entre duas capas de papel amarelo, desconfia estranhamente daqueles que vê encadernados em pergaminho vivo, mesmo dourado, como o senhor o pode ser. O problema para que me permito chamar-lhe a atenção, Sr. Visconde, é este: assim que contar a alguém a sua comovente história, ela correrá pela sociedade completamente deturpada. Se verá obrigado a armar em Antony, e o tempo dos Antonies está um pouco ultrapassado. Talvez obtenha um êxito de curiosidade, mas ninguém gosta de ser centro de observações e alvo de comentários. Se cansaria, por certo.
— Creio que tem razão, Sr. Conde — concordou o jovem, empalidecendo, malgrado seu, sob o olhar inflexível de Monte Cristo — Seria um grave inconveniente.
— Oh, também não se deve exagerar! — perguntou Monte Cristo — Porque assim, para evitar um inconveniente, cairíamos numa loucura. Não, trata-se de traçar um simples plano de conduta; e no caso de um homem inteligente como o senhor, esse plano é tão mais fácil quanto é certo estar de acordo com os seus interesses. Dever-se combater por meio de testemunhas e de amizades respeitáveis tudo o que o seu passado tenha de obscuro.
Andréa perdeu visivelmente o à-vontade.
— Me ofereceria de boa vontade como seu fiador e garante — disse Monte Cristo — Mas é em mim um hábito moral desconfiar dos meus melhores amigos e uma necessidade procurar levar os outros a também duvidar. Por isso, desempenharia no caso um papel que me não iria o caráter, como dizem os trágicos, e me arriscaria a ser assobiado, o que seria inútil.
— No entanto, Sr. Conde — atalhou Andréa, com audácia — Em consideração para com Lorde Wilmore, que me recomendou ao senhor...
— Sim, claro — prosseguiu Monte Cristo — Mas Lorde Wilmore não me deixou ignorar, caro Sr. Andréa, que o senhor teve uma juventude um tanto tempestuosa. Oh, não lhe peço nenhuma confissão! — exclamou o Conde, ao ver o gesto que fazia Andréa — Aliás, foi para que não necessitasse de ninguém que mandamos vir de Luca o Sr. Marquês Cavalcanti, seu pai. Vai vê-lo... é um bocadinho emproado, um bocadinho bombástico, mas trata-se de uma questão de uniforme, e quando se souber que esteve dezoito anos ao serviço da Áustria tudo se lhe desculpar. Em geral, não somos exigentes com os austríacos. Em suma, trata-se de um pai muito aceitável, garanto-lhe.
— Tranqüiliza-me, senhor. Separamo-nos há tanto tempo que não conservo nenhuma recordação dele.
— E depois, como sabe, uma grande fortuna desculpa muitas coisas.
— O meu pai é, portanto realmente rico, senhor?
— Milionário... quinhentas mil libras de rendimento.
— Quer dizer que me vou encontrar numa posição... agradável? — perguntou o rapaz, com ansiedade.
— Das mais agradáveis, meu caro senhor. Ele concede-lhe cinqüenta mil libras de rendimento por ano durante todo o tempo que o senhor estiver em Paris.
— Nesse caso, não ficarei aqui para sempre?
— Bom... quem pode adivinhar o futuro? O homem põe e Deus dispõe...
Andréa suspirou.
— Mas enfim, durante todo o tempo que estiver em Paris, desde que nenhuma circunstância me obrigue a afastar daqui, esse dinheiro de que me falava há pouco me será assegurado.
— Perfeitamente!
— Por meu pai? — perguntou Andréa, com inquietação.
— Sim, mas garantido por Lorde Wilmore, que lhe abriu, a pedido do seu pai, um crédito de cinco mil francos por mês no banco do Sr. Danglars, um dos mais seguros banqueiros de Paris.
— E o meu pai tenciona ficar muito tempo em Paris? — perguntou Andréa, preocupado.
— Apenas uns dias — respondeu Monte Cristo — O seu serviço não lhe permite ausentar-se mais de duas ou três semanas.
— Oh, querido pai! — exclamou Andréa, visivelmente encantado com tão pronta partida.
— Por isso — disse Monte Cristo, simulando enganar-se com o tom daquelas palavras — Por isso, não quero demorar um instante o momento de se reunirem. Está preparado para abraçar o digno Sr. Cavalcanti?
— Decerto não o põe em dúvida, espero...
— Pois bem, entre então nessa sala, meu caro amigo, e encontrará o seu pai, que o espera.
Andréa fez um rasgado cumprimento ao Conde e entrou na sala.
O Conde seguiu-o com a vista e, assim que o viu desaparecer, apertou uma mola correspondente a um quadro, o qual, afastando-se da moldura, deixava ver a sala através de um interstício habilmente dissimulado.
Andréa fechou a porta atrás de si e avançou para o major, que se levantou assim que ouviu o ruído dos passos que se aproximavam.
— Ah, senhor e querido pai! — disse Andréa em voz alta e de maneira que o Conde o ouvisse através da porta fechada — É de fato o senhor?
— Boas noites, meu querido filho — respondeu gravemente o major.
— Que felicidade tornar a vê-lo depois de tantos anos de separação! — disse Andréa, continuando a olhar para a porta.
— Com efeito, a separação foi longa...
— Não nos abraçamos, senhor? — prosseguiu Andréa.
— Como queiras, meu filho — respondeu o major.
E os dois homens abraçaram-se como os atores se abraçam no Teatro Francês, isto é, passando a cabeça por cima do ombro.
— Ei-nos pois reunidos! — exclamou Andréa.
— Sim, ei-nos reunidos — repetiu o major.
— Para nunca mais nos separarmos?
— Evidentemente. Creio, meu querido filho, que consideras agora a França uma segunda pátria...
— De fato, ficaria desesperado se tivesse de deixar Paris — perguntou o rapaz.
— E eu, compreenda, não saberia viver fora de Luca. Regressarei, pois a Itália logo que possa.
— Mas antes de partir, queridíssimo pai, decerto me entregará documentos com os quais me seja fácil demonstrar a que família pertenço.
— Sem dúvida nenhuma. Vim aqui propositadamente para isso e tive tanta dificuldade em te encontrar, a fim de os entregar, que se tivéssemos de recomeçar a procurar-nos iria nisso o resto da minha vida.
— E esses documentos?
— Estão aqui.
Andréa pegou avidamente na certidão de casamento do pai e na sua certidão de batismo e depois de abrir ambos os documentos com uma ansiedade perfeitamente natural num bom filho, leu-os com uma rapidez e uma segurança que denotavam uma vista bem exercitada e o mais vivo interesse. Quando acabou, brilhava-lhe nos olhos uma indefinível expressão de alegria. E fitando o major com um sorriso estranho:
— Que significa isto? Que não há galés na Itália? — observou em excelente toscano.
O major empertigou-se.
— Porque diz isso? — inquiriu.
— Porque conseguem forjar impunemente documentos destes. Por menos de metade, meu queridíssimo pai, na França mandava-os a ares para Toulon por cinco anos.
— Como? — perguntou o lucano, tentando tomar um ar majestoso.
— Meu caro Sr. Cavalcanti — disse Andréa, apertando o braço do major — Quanto lhe dão para ser meu pai?
O major ia a responder, mas Andréa interrompeu-o.
— Cale-se! — disse, baixando a voz — Vou dar-lhe o exemplo da confiança. A mim dão-me cinqüenta mil francos por ano para ser seu filho; logo, deve compreender que não seria eu quem estaria disposto a negar que o senhor é meu pai.
O major olhou com inquietação à sua volta.
— Eh, esteja tranqüilo, estamos sós! — disse Andréa — Além disso, falamos em italiano.
— Bom, a mim dão-me cinqüenta mil francos pagos de uma vez — declarou o lucano.
— Sr. Cavalcanti, acredita em contos de fadas? — perguntou Andréa.
— Dantes não acreditava, mas agora não tenho outro remédio.
— Isso quer dizer que teve provas?
O major tirou da algibeira das calças um punhado de ouro.
— Palpáveis, como vê...
— Pensa, portanto, que posso acreditar nas promessas que me fizeram?
— Acho que sim.
— E que o Conde as cumprirá?
— Ponto por ponto. Mas para isso, compreenda, temos de desempenhar o nosso papel.
— Que quer dizer?
— Eu, de terno pai...
— E eu de filho respeitoso.
— Uma vez que eles desejam que você descenda de mim...
— Eles, quem?
— Com a breca, não sei nada a tal respeito! Eles... aqueles que lhe escreveram. Não recebeu uma carta?
— Recebi.
— Eu também.
— De quem?
— De um tal Abade Busoni.
— Que não conhece?
— Que nunca vi.
— Que dizia essa carta?
— Você não me atraiçoa?...
— Deus me livre! Os nossos interesses são os mesmos.
— Então leia.
E o major passou uma carta ao rapaz.
Andréa leu em voz baixa:



É pobre e espera-o uma velhice infeliz. Quer ser, senão rico, pelo menos independente? Parta imediatamente para Paris e vá reclamar ao Sr. Conde de Monte Cristo, Avenida Champs-Élysées, nº. 30, o filho que teve da Marquesa de Corsinari e que lhe foi raptado aos cinco anos de idade.
Esse filho chama-se Andréa Cavalcanti.
Para que não duvide das intenções do signatário de lhe ser prestável, encontrara aqui junto:
1º — Uma ordem de pagamento de duas mil e quatrocentas libras toscanas sobre o Sr. Gozzi, de Florença;
2º — Uma carta de apresentação para o Sr. Conde de Monte Cristo, sobre o qual lhe credito a importância de quarenta e oito mil francos.
Esteja em casa do Conde no dia 26 de Maio às sete horas da noite.

ABADE BUSONI.


— É isso.
— É isso o quê? Que quer dizer? — perguntou o major.
— A carta que recebi é mais ou menos idêntica.
— Sim?
— Sim.
— E também é do abade Busoni?
— Não.
— De quem é, então.
— De um inglês, um tal Lorde Wilmore, que usa o nome de Simbad, o Marinheiro.
— E que você conhece tão bem como eu conheço o Abade Busoni?
— Evidentemente. Mas eu estou mais adiantado do que você.
— Viu-o?
— Sim, uma vez.
— Onde?
— Ah, precisamente isso é que lhe não posso dizer! Ficaria a saber tanto como eu, o que é inútil.
— E essa carta dizia-lhe?...
— Leia.


É pobre e tem um futuro miserável. Quer ter um nome, ser livre e ser rico?


— Com a breca, como se semelhante pergunta se fizesse! — exclamou o rapaz, balouçando-se nos calcanhares.



Tome a sege de posta, que encontrará pronta saindo de Nice pela porta de Gênova. Passe por Turhn, Chambély e Pont-de-Beauvoisin. Apresente-se em casa do Sr. Conde de Monte Cristo, Avenida Champs-Élysées, no dia 26 de Maio, às sete horas da noite, e pergunte-lhe pelo seu pai.
O senhor é filho do Marquês Bartolomeu Cavalcanti e da Marquesa Oliva Corsinari, como certificarão os documentos que lhe serão entregues pelo Marquês e que lhe permitirão apresentar-se sob esse nome na sociedade parisiense. Quanto à sua categoria social, um rendimento de cinqüenta mil libras por ano lhe permitirá mantê-la.
Junto uma ordem de pagamento de cinco mil libras sobre o Sr. M. Ferrea, banqueiro em Nice, e uma carta de apresentação para o Conde de Monte Cristo, encarregado por mim de prover às suas necessidades.

SIMBAD, O MARINHEIRO.


— Hum!... — resmungou o major — É demasiado bom...
— Então não é?
— Viu o Conde?
— Acabo de deixá-lo.
— E ele confirmou?
— Tudo.
— Compreende alguma coisa disso?
— Palavra que não.
— Anda aí um lorpa no meio de tudo isso...
— Em todo o caso, não é você nem eu, não é verdade?
— Não, claro.
— Sendo assim...
— Pouco nos importa, não é verdade?
— Era precisamente o que queria dizer. Vamos até ao fim e joguemos pelo seguro.
— Seja. Verá que sou digno de ser seu parceiro.
— Nunca duvidei um só instante, meu querido pai.
— Lisonjeia-me, meu querido filho.
Monte Cristo escolheu este momento para entrar na sala. Ao ouvirem o ruído dos seus passos, os dois homens lançaram-se nos braços um do outro. O Conde encontrou-os abraçados.
— Então, Sr. Marquês — disse Monte Cristo — Parece que encontrou um filho de acordo com o seu coração.
— Ah, Sr. Conde, sufoco de alegria!
— E o senhor, meu rapaz?
—Ah, Sr. Conde, sufoco de felicidade!
— Feliz pai! Feliz filho! — sentenciou o Conde.
— Só uma coisa me entristece — disse o major — A necessidade que tenho de deixar Paris com urgência.
— Mas, meu caro Sr. Cavalcanti — atalhou Monte Cristo — Espero que não parta sem que o tenha apresentado a uns amigos...
— Estou às suas ordens, Sr. Conde — respondeu o major.
— E agora, meu rapaz, confesse-se.
— A quem?
— Mas ao senhor seu pai! Diga-lhe alguma coisa acerca do estado das suas finanças.
— Demônio, tocou-me na corda sensível! — exclamou Andréa.
— Ouviu, major? — perguntou Monte Cristo.
— Claro que ouvi.
— Pois sim, mas compreendeu?
— Maravilhosamente.
— Diz que precisa de dinheiro, o querido pequeno.
— E que quer que lhe faça?
— Que lhe dê, ora essa!
— Eu?
— O senhor, sim.
Monte Cristo passou entre os dois homens.
— Tome — disse a Andréa, metendo-lhe um maço de notas na mão.
— Que é isto?
— A resposta do seu pai.
— Do meu pai?
— Sim. Não acaba de lhe dizer que precisava de dinheiro?
— Acabo, sim, e depois?
— E depois ele encarregou-me de lhe entregar isso.
— Por conta dos meus rendimentos?
— Não, para as suas despesas de instalação.
— Oh, querido pai!
— Silêncio! — ordenou Monte Cristo — Bem vê que não quer que se saiba que foi ele quem lhe deu o dinheiro.
— Aprecio a delicadeza — disse Andréa, metendo as notas na algibeira das calças.
— Pronto — disse Monte Cristo — Agora retirem-se.
— E quando teremos a honra de tornar a vê-lo Sr. Conde? — perguntou Cavalcanti.
— Ah, sim, quando teremos essa honra? — perguntou também Andréa.
— No Sábado, se quiserem... sim, no Sábado... tenho a jantar na minha casa de Auteuil, na Rua de la Fontaine, nº. 28, várias pessoas, e entre elas o Sr. Danglars, vosso banqueiro. Os apresentarei ao barão, pois é necessário que ele conheça ambos para vos entregar o vosso dinheiro.
— Grande uniforme? — perguntou a meia voz o major.
— Grande uniforme. Uniforme, condecorações e calção.
— E eu? — perguntou Andréa.
— Oh, o senhor o mais simples possível! Calça preta, botas de verniz, colete branco, casaca preta ou azul, gravata comprida. Escolha Blin ou Véronique para se vestir. Se não sabe o seu endereço, Baptistin o dará. Quanto menos afetar pretensão no seu traje, sendo rico como é, melhor efeito causará. Se comprar cavalos, adquira-os no Devedeux. E se comprar faeton, compre-o no Baptiste.
— A que horas devemos aparecer? — perguntou o rapaz.
— Por volta das seis e meia.
— Muito bem, assim faremos — declarou o major, levando a mão ao chapéu.
Os dois Cavalcanti cumprimentaram o Conde e saíram.
O Conde aproximou-se da janela e viu-os atravessar o pátio de braço dado.
— Estão ali, na verdade, dois grandes miseráveis — disse para consigo — Que pena não serem realmente pai e filho!
E após um instante de sombria reflexão:
— Vamos a casa dos Morrel — disse — Creio que o nojo me nauseia ainda mais do que o ódio.




 continua...





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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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