sábado, 13 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 48



XLVIII

IDEOLOGIA




S
e o Conde de Monte Cristo vivesse há mais tempo na sociedade parisiense apreciaria em todo o seu valor a visita do Sr. de Villefort.
Bem visto na corte, quer o monarca reinante fosse do ramo mais velho, quer do ramo mais novo e o ministro que governasse fosse doutrinário, liberal ou conservador; reputado hábil por todos, como se reputam geralmente hábeis as pessoas que nunca experimentaram desastres políticos; odiado por muitos, mas calorosamente protegido por alguns, sem, no entanto ser estimado por ninguém, o Sr. de Villefort ocupava uma das mais altas posições na magistratura e mantinha-se nessas alturas como um Harlay ou como um Molé. A sua sala, renovada por uma mulher nova e por uma filha do seu primeiro casamento que contava apenas dezoito anos de idade, nem por isso era menos uma dessas salas severas de Paris onde se praticava o culto das tradições e a religião da etiqueta. A polidez fria, a fidelidade absoluta aos princípios governamentais, um desprezo profundo pelas teorias e pelos teóricos e uma grande aversão aos ideólogos, tais eram os elementos da vida íntima e pública exibidos pelo Sr. de Villefort.
O Sr. de Villefort não era apenas um magistrado, era quase um diplomata. As suas relações com a antiga corte, da qual falava sempre com dignidade e deferência, impunham-no ao respeito da nova, e sabia tantas coisas que não só o tratavam sempre com deferência como ainda o consultavam algumas vezes. Talvez as coisas não se passassem assim se pudessem desembaraçar-se do Sr. de Villefort; mas ele residia, como os antigos senhores feudais rebeldes ao seu suserano, numa fortaleza inexpugnável. Essa fortaleza era o seu cargo de procurador régio, do qual explorava maravilhosamente todas as vantagens e que só deixaria para se fazer eleger deputado e substituir assim a neutralidade pela oposição.
Em geral, o Sr. de Villefort fazia poucas visitas. A mulher visitava por ele. Era hábito aceito na sociedade, onde o levavam à conta das graves e numerosas ocupações de magistrado, embora na realidade não passasse de um cálculo orgulhoso, de uma quinta-essência aristocrática, da aplicação, enfim, deste axioma: “Finge que te estimas e te estimarão”, axioma muitíssimo mais útil na nossa sociedade do que o dos Gregos: “Conhece-te a ti mesmo”, substituído nos nossos dias pela arte menos difícil e mais vantajosa de conhecer os outros.
Para os seus amigos, o Sr. de Villefort era um protetor poderoso; para os seus inimigos, era um adversário oculto, mas encarniçado; para os indiferentes, era a estátua da Lei feita homem: trato altivo, fisionomia impassível, olhar ausente e inexpressivo ou insolentemente penetrante e perscrutador, tal era o homem a quem quatro revoluções habilmente sobrepostas umas sobre as outras tinham primeiro construído e depois cimentado o pedestal.
O Sr. de Villefort possuía fama de ser o homem menos curioso e vulgar de França. Dava um baile todos os anos onde só aparecia um quarto de hora, isto é, quarenta e cinco minutos menos do que o rei nos seus. Nunca ninguém o via nem nos teatros, nem nos concertos, nem em qualquer lugar público. Às vezes, mas raramente, jogava uma partida de whist, mas tinha-se o cuidado de escolher jogadores dignos dele: algum embaixador, algum arcebispo, algum príncipe, algum presidente ou, por último, alguma duquesa idosa.
Eis como era o homem cuja carruagem acabava de parar diante da porta de Monte Cristo.
O criado de quarto anunciou o Sr. de Villefort no momento em que o Conde, inclinado sobre uma grande mesa, seguia num mapa um itinerário de São Petersburgo à China.
O Procurador Régio entrou com o mesmo andar grave e compassado com que entrava no tribunal. Era bem o mesmo homem, ou antes, a continuação do mesmo homem que conhecemos outrora como substituto em Marselha. A natureza, conseqüente com os seus princípios, nada alterara quanto a ele o curso que devia seguir. De delgado, tornara-se magro, de pálido, tornara-se macilento; os seus olhos encovados quase desapareciam agora nas órbitas, e as suas lunetas de aros de ouro pareciam fazer parte do rosto, de tal modo se confundiam com as cavidades oculares. Excetuando a gravata branca, o resto do seu traje era perfeitamente preto, cor fúnebre apenas quebrada pela estreita fita vermelha que lhe passava imperceptível pela botoeira e parecia um traço de sangue feito a pincel.
Por mais senhor de si que fosse Monte Cristo, não deixou de examinar com visível curiosidade, ao retribuir-lhe o cumprimento, o magistrado, que, desconfiado por hábito e pouco crédulo, sobretudo quanto aos prodígios sociais, estava mais disposto a ver no nobre estrangeiro — era assim que chamavam a Monte Cristo — um cavalheiro de indústria que viera explorar um novo terreno ou um malfeitor fugido do desterro do que um príncipe do Satanás‚ ou um sultão das Mil e Uma Noites.
— Senhor — disse Villefort, no tom estridente adotado pelos magistrados nos seus períodos oratórios e de que não podem ou não querem desfazer-se no diálogo — Senhor, o assinalado serviço que ontem prestou à minha mulher e ao meu filho impõe-me o dever de lhe agradecer. Venho, portanto cumprir esse dever e exprimir-lhe todo o meu reconhecimento.
E ao pronunciar estas palavras, o olhar severo do magistrado nada perdera da sua arrogância habitual. As palavras que acabava de proferir articulara-as com a sua voz de procurador régio, com a mesma rigidez de pescoço e de ombros que, repetimos, levava os seus aduladores a dizer que ele era a estátua viva da Lei.
— Senhor — replicou por seu turno o Conde com uma frieza glacial — Sinto-me muito feliz por ter podido conservar um filho à sua mãe, pois diz-se que o sentimento da maternidade é o mais santo de todos, e a ventura que experimento dispensava-o, senhor, de cumprir um dever que me honra, sem dúvida, porque sei que o Sr. de Villefort não prodigaliza o favor que me faz, mas que, por mais precioso que seja, não vale no entanto para mim a minha satisfação íntima.
Villefort, surpreendido por esta tirada que não esperava, estremeceu como um soldado que sente debaixo da armadura que o cobre o golpe que lhe vibram, e uma franzidela desdenhosa de lábios indicou que desde o início não tinha o Conde de Monte Cristo na conta de um gentil-homem muito bem-educado.
Em seguida olhou à sua volta para ligar a qualquer coisa o diálogo caído e que ao cair parecia ter-se quebrado. Viu o mapa que Monte Cristo consultava quando ele entrara e perguntou:
— Ocupa-se de geografia, senhor? É um rico estudo, sobretudo para o senhor, que, ao que me afirmam, tem visitado tantos países quantos se encontram Impressos nesse Atlas.
— É verdade, senhor — respondeu o Conde — Pretendo fazer acerca do gênero humano, tomado em conjunto, o que o senhor pratica todos os dias a partir de exceções, isto é, um estudo fisiológico. Pensei que me seria mais fácil descer em seguida do todo para a parte do que da parte para o todo. Existe um axioma algébrico que aconselha a proceder do conhecido para o desconhecido e não do desconhecido para o conhecido... mas sente-se, senhor, peço-lhe.
E Monte Cristo indicou com a mão ao procurador régio uma cadeira, que este foi obrigado a dar-se ao incômodo de puxar pessoalmente para diante, enquanto o Conde teve apenas de se sentar naquela em que estava ajoelhado quando o procurador régio entrara. Assim, o Conde ficou semi-voltado para o visitante, de costas para a janela e com o cotovelo apoiado na carta geográfica que era alvo, naquele momento, do diálogo, o qual tomava, como acontecera em casa de Morcerf e de Danglars, feição absolutamente análoga, senão quanto à situação, pelo menos quanto às personagens.
— Ah, gosta de filosofar! — exclamou Villefort, após um instante de silêncio, durante o qual, como um atleta que encontra um forte adversário, fizera provisão de forças — Palavra de honra, senhor, se, como no seu caso, não tivesse nada que fazer, procuraria ocupação menos aborrecida!
— Sim, é verdade, senhor, gosto de filosofar — admitiu Monte Cristo — Talvez porque o homem não passa de um verme horrível para quem o estuda ao microscópio solar. Mas acaba de dizer, creio, que não tenho nada que fazer. Vejamos, acaso o senhor julga ter alguma coisa que fazer? Ou, para falar mais claramente, acha que aquilo, que faz merece que se lhe chame alguma coisa?
O espanto de Villefort redobrou depois deste segundo golpe tão rudemente desferido por aquele estranho adversário. Havia muito tempo que o magistrado não ouvia dizer um paradoxo daquele gênero, ou antes, para falar mais exatamente, era a primeira vez que o ouvia.
O procurador régio apressou-se a responder:
— O senhor é estrangeiro e, como é o primeiro a dizer, creio, passou parte da sua vida nos países orientais. Ignora, portanto até que ponto a justiça humana, expedita nesses países bárbaros, tem entre nós aspectos prudentes e rigorosos.
— Certamente, senhor, certamente; é o pede claudo antigo. Sei tudo isso porque me tenho ocupado, sobretudo da justiça de todos os países, e comparei o processo criminal de todas as nações com a justiça natural. E devo dizer-lhe, senhor, que foi ainda a lei dos povos primitivos, isto é, a lei de talião, aquela que encontrei mais conforme com a lei de Deus.
— Se essa lei fosse adotada, senhor — perguntou o procurador régio — Simplificaria muito os nossos códigos e portanto os nossos magistrados não teriam, como o senhor dizia há pouco, grande coisa que fazer.
— Talvez isso venha a acontecer — disse Monte Cristo — Como sabe, as invenções humanas caminham do composto para o simples, e o simples é sempre a perfeição.
— Entretanto — declarou o magistrado — Os nossos códigos existem, com os seus artigos contraditórios, extraídos dos costumes gauleses, das leis romanas e dos usos francos. Ora, o conhecimento de todas essas leis, como decerto admitirá, não se adquire sem demorado trabalho e é necessário um longo estudo para obter esse conhecimento e uma grande capacidade intelectual, uma vez adquirido esse conhecimento, para não o esquecer.
— Sou da mesma opinião, senhor, mas tudo o que sabe acerca do código francês sei eu, não só a respeito desse código, mas também acerca dos códigos de todas as nações. As leis inglesas, turcas, japonesas e hindus me são tão familiares como às leis francesas. Tenho, portanto motivo para dizer que relativamente, como sabe, tudo é relativo, que relativamente a tudo que aprendi, o senhor tem ainda muito que aprender.
— Mas com que fim aprendeu tudo isso? — perguntou Villefort, atônito.
Monte Cristo sorriu.
— Vejo, senhor — respondeu — Que, a despeito da sua reputação de homem superior, encara todas as coisas do ponto de vista material e vulgar da sociedade, começando no homem e acabando no homem, isto é, do ponto de vista mais restrito e mesquinho que é permitido à inteligência humana abarcar.
— Explique-se, senhor — pediu Villefort, cada vez mais atônito — Pois não o compreendo... muito bem.
— Digo, senhor, que com os olhos postos na organização social das nações só se vê as engrenagens da máquina e não o operário sublime que a faz andar; digo que só reconhece na sua frente e à sua volta os titulares dos cargos cujas nomeações foram assinadas por ministros ou por um rei, e que os homens, que Deus colocou acima dos titulares, dos ministros e dos reis, dando-lhes uma missão para continuar em vez de um cargo para preencher, digo que esses escapam à sua curta vista. Aliás, isso é próprio da natureza humana, cujos órgãos são fracos e imperfeitos. Tobias tomava o anjo que vinha restituir-lhe a vista por um jovem vulgar. As nações tomavam Átila, que as devia aniquilar, por um conquistador como todos os conquistadores, e foi necessário que ambos revelassem as suas missões celestes para que os reconhecessem; foi necessário que um dissesse: “Eu sou o anjo do Senhor”; e o outro: “Eu sou o flagelo de Deus”, para que a essência divina de ambos se revelasse.
— Então, o senhor considera-se um desses seres extraordinários que acaba de citar? — perguntou Villefort, cada vez mais espantado e julgando falar com um iluminado ou um louco.
— Por que não? — perguntou friamente Monte Cristo.
— Perdão, senhor — prosseguiu Villefort, atordoado — Mas espero que me desculpe o fato de, ao apresentar-me em sua casa, ignorar que entrava em casa de um homem cujos conhecimentos e cuja inteligência excedem de longe os conhecimentos vulgares e a inteligência habitual dos homens. Entre nós não é costume, talvez por sermos uns infelizes corrompidos pela civilização, que os fidalgos possuidores, como o senhor, de uma fortuna imensa, pelo menos ao que se afirma, note que não pergunto, apenas repito, não é costume, dizia, que esses privilegiados da riqueza percam o seu tempo em especulações sociais, em devaneios filosóficos, próprios, quando muito, para consolar aqueles a quem o destino deserdou de bens terrenos.
— Então, senhor, terá porventura chegado à situação eminente que ocupa sem ter admitido, e mesmo sem ter encontrado, exceções, nem nunca exercitou o seu olhar, que, no entanto bem necessitaria de sagacidade e segurança, a adivinhar num relance que homem tem diante de si? — perguntou o Conde — Um magistrado não deverá ser, não o melhor aplicador da lei, não o mais astuto intérprete das nebulosidades da chicana, mas sim uma sonda de aço para experimentar os corações ou uma pedra-de-toque para ensaiar o ouro de que cada alma é sempre feita, com mais ou menos mistura?
— Confunde-me, senhor — declarou Villefort — Palavra de honra que nunca ouvi ninguém falar como o senhor.
— Porque tem permanecido constantemente encerrado no círculo das condições gerais e nunca se atreveu a subir, num batimento de asa, às esferas superiores que Deus povoou de seres invisíveis ou excepcionais.
— E o senhor admite que essas esferas existem e que os seres excepcionais e invisíveis se juntam a nós?
— Porque não? O senhor vê o ar que respira e sem o qual não poderia viver?
— Então, não vemos esses seres a que se refere?
— Claro que os vemos quando Deus permite que se materializem; tocamos-lhes, acotovelamo-los, falamos-lhes e eles nos respondem.
— Ah! — exclamou Villefort, sorrindo — Confesso que gostaria muito de ser prevenido quando um desses seres se encontrasse em contato comigo.
— O seu desejo já foi satisfeito, senhor. Foi prevenido há pouco, e mais uma vez agora o previno.
— Assim. O senhor mesmo?...
— Sou um desses seres excepcionais, sim, senhor, e creio que até hoje nenhum homem se encontrou numa posição semelhante à minha. Os reinos dos reis são limitados, quer por montanhas, quer por rios, quer por uma mudança de costumes, quer por uma mutação de linguagem. Mas o meu reino é do tamanho do mundo, pois não sou nem italiano, nem francês, nem hindu, nem americano, nem espanhol; sou cosmopolita. Nenhum país pode dizer que me viu nascer. Só Deus sabe que terra me verá morrer. Adoto todos os usos, falo todas as línguas. Julga-me francês, não é verdade, porque falo o francês com a mesma facilidade e a mesma pureza que o senhor? Pois bem, Ali o meu núbio, julga-me árabe; Bertuccio, o meu intendente, julga-me romano, e Haydée, a minha escrava, julga-me grego. Portanto, como decerto compreende, não pertencendo a nenhum país, não pedindo proteção a nenhum governo e não reconhecendo nenhum homem como meu irmão, nem um só dos escrúpulos que detêm os poderosos ou dos obstáculos que paralisam os fracos me paralisa ou detém. Só tenho dois adversários; não direi dois vencedores, porque com persistência submeto-os: são a distância e o tempo. O terceiro, e o mais terrível, é a minha condição de homem mortal. É a única coisa que me pode deter no caminho que sigo e antes de atingir o alvo que busco; tudo o mais está previsto. Aquilo a que os homens chamam os caprichos do destino, isto é, a ruína, a mudança, as eventualidades, tenho-os todos previstos, e se alguns podem me atingir, nenhum pode me derrubar. A não ser que morra, serei sempre o que sou. Aqui tem porque lhe digo coisas que nunca ouviu, mesmo da boca dos reis, porque os reis necessitam de si e os outros homens temem-no. Quem é que não diz para consigo, numa sociedade tão ridiculamente organizada como a nossa: “Talvez um dia tenha qualquer problema com o procurador régio...”
— Mas o senhor mesmo pode dizer isso a si próprio, porque desde o momento em que reside na França está naturalmente submetido às leis francesas.
— Bem sei, senhor — respondeu Monte Cristo — Mas quando tenho de ir a um país, começo por estudar, por meios que me são próprios, todos os homens de quem posso ter alguma coisa a esperar ou a temer, e acabo por os conhecer tão bem e até talvez melhor do que eles se conhecem a si próprios. Daí que o procurador régio, fosse quem fosse, com quem tivesse problemas ficasse certamente mais embaraçado do que eu.
— O que significa — prosseguiu Villefort, com hesitação — Que, dada a fraqueza da natureza humana, todo o homem, na sua opinião, cometeu... faltas?
— Faltas... ou crimes — respondeu negligentemente Monte Cristo.
— E que só o senhor, entre os homens que não reconhece como seus irmãos, conforme disse — prosseguiu Villefort, com a voz ligeiramente alterada — E que só o senhor é perfeito?
— Não, perfeito, não — respondeu o Conde — Apenas impenetrável. Mas mudemos de assunto, senhor, se esta conversa lhe desagrada. Não estou mais ameaçado pela sua justiça do que o senhor o está pela minha vista dupla.
— Não, não, senhor! — disse vivamente Villefort, que sem dúvida temia parecer abandonar o terreno — Não! Graças à sua brilhante e quase sublime conversação, o senhor elevou-me acima dos níveis correntes; já não conversamos, dissertamos. Ora, deve saber como os catedráticos de Teologia da Sorbone, ou os filósofos nas suas disputas, dizem por vezes uns aos outros, cruéis verdades. Supondo que discutimos teologia social e filosofia teológica, lhe direi isto, por mais rude que seja: meu irmão, sacrifica ao orgulho; está acima dos outros, mas acima de si há Deus.
— Acima de todos, senhor! — respondeu Monte Cristo em tom tão profundo que Villefort estremeceu involuntariamente — Tenho o meu orgulho em relação aos homens, serpentes sempre prontas a erguer-se contra aquele que passa por elas sem as esmagar com o pé. Mas deponho este orgulho diante de Deus, que me tirou do nada para fazer de mim o que sou.
— Então, Sr. Conde, admiro-o — declarou Villefort, que pela primeira vez neste estranho diálogo empregava esta fórmula aristocrática para com o estrangeiro que até ali só tratara por senhor — Sim, digo-lhe que se é realmente forte, realmente superior, realmente santo ou impenetrável, o que, tem razão, significa pouco mais ou menos o mesmo, seja sublime, senhor. E a lei das dominações. Mas tem com certeza uma ambição qualquer?
— Tenho uma, senhor.
— Qual?
— Também eu, como acontece a qualquer homem uma vez na vida, fui levado por Satanás para a mais alta montanha da Terra. Chegado lá, ele mostrou-me o mundo inteiro e, como dissera uma vez a Cristo, disse-me a mim “Vejamos, filho dos homens, que queres para me adorar?” Refleti longamente, porque havia muito tempo uma terrível ambição me devorava efetivamente o coração. Depois respondi: “Escuta, sempre ouvi falar da Providência, e, no entanto nunca a vi, nem nada que se lhe parecesse, o que me leva a crer que não existe. Quero ser a Providência, porque o que conheço de mais belo, de maior e de mais sublime no mundo é recompensar e punir”. Mas Satanás baixou a cabeça e suspirou: “Enganas-se”, disse, “A Providência existe. Somente não a vê porque, filha de Deus, é invisível como o seu pai. Nunca viu nada que se lhe assemelhasse, porque ela utiliza meios ocultos e caminha por vias indefinidas. Tudo o que posso fazer por ti é tornar-te um dos agentes dessa Providência.” Fechou-se o negócio. Talvez perca nele a minha alma, mas não importa — declarou Monte Cristo — E se tivesse de fazer novamente o negócio, o faria.
Villefort olhava Monte Cristo com sublime espanto.
— O Sr. Conde tem família? — perguntou.
— Não, senhor, estou só no mundo.
— É pena!
— Por quê? — perguntou Monte Cristo.
— Porque poderia ver um espetáculo capaz de quebrar o seu orgulho. Só teme a morte, diz o senhor?
— Não digo que a temo, digo que só ela me pode deter.
— E a velhice?
— A minha missão será cumprida antes de chegar a velhice.
— E a loucura?
— Estive quase a enlouquecer, e o senhor conhece o axioma: non bis in idem. É um axioma criminal em, portanto da sua especialidade.
— Senhor — prosseguiu Villefort — Há ainda outra coisa a temer, além da morte, da velhice ou da loucura; há, por exemplo, a apoplexia, esse raio que nos fere sem nos destruir, e depois do qual, no entanto, tudo acaba. Continuamos a ser nós e, todavia já não somos nós. Como Ariel, éramos quase um anjo; de um momento para o outro passamos a ser uma massa inerte que, como Calibão, muito se assemelha ao animal. A isto chama-se muito simplesmente na língua humana, como lhe dizia, uma apoplexia. Vê, se lhe agradar, continuar esta conversa em minha casa, Sr. Conde, num dia em que lhe apeteça defrontar um adversário capaz de o compreender e ansioso por o refutar, e lhe mostrarei meu pai, o Sr. Noirtier de Villefort, um dos mais ardentes jacobinos da Revolução Francesa, isto é, a mais brilhante audácia posta ao serviço da mais poderosa organização; um homem que, como o senhor, talvez não tivesse visto todos os reinos da Terra, mas ajudou a destruir um dos mais poderosos; um homem que, como o senhor, se pretendia um dos enviados, não de Deus, mas sim do Ser Supremo, não da Providência, mas sim da Fatalidade. Pois bem, senhor, a ruptura de um vaso sanguíneo num lobo do cérebro destruiu tudo isso, não num dia, não numa hora, mas sim num segundo. Na véspera, o Sr. Noirtier, antigo jacobino, antigo senador, antigo carbonário, ria da guilhotina, ria do canhão, ria do punhal; pois o mesmo Sr. Noirtier que brincara às revoluções, o Sr. Noirtier para quem a França não passava de um vasto tabuleiro de xadrez do qual peões, torres, cavalos e rainha deviam desaparecer para que o rei levasse mate; o Sr. Noirtier, tão temível, era no dia seguinte o pobre Sr. Noirtier, um velho imóvel, à mercê dos caprichos da pessoa mais fraca da casa, ou seja, da sua netinha Valentine; um cadáver mudo e gelado, enfim, que vive sem sofrimento, apenas para dar tempo à matéria de chegar sem sobressaltos à sua inteira decomposição.
— Infelizmente, senhor — disse Monte Cristo — Esse espetáculo não é estranho nem aos meus olhos nem ao meu pensamento. Sou um nadinha médico e tenho, como os meus colegas, procurado mais de uma vez a alma na matéria viva ou na matéria morta; e, como a Providência, ela permaneceu invisível a meus olhos, embora presente no meu coração. Cem autores, desde Sócrates, desde Sêneca, desde Santo Agostinho, desde Gall, fizeram em prosa ou em verso a comparação que o senhor acaba de fazer; mas apesar disso compreendo que sofrimentos de um pai possam operar grandes transformações no espírito do filho. Irei, senhor, uma vez que se digna convidar-me, contemplar, em beneficio da minha humildade, esse terrível espetáculo que muito deve entristecer a sua casa.
— Assim seria, sem dúvida, se Deus me não tivesse amplamente recompensado. Diante do velho que desce, arrastando-se para a sepultura, perfilam-se duas crianças, que entram na vida: Valentine, filha do meu primeiro casamento com Mademoiselle de Saint-Méran, e Edouard, o filho a quem o senhor salvou a vida.
— E que conclui dessa compensação, senhor? — perguntou Monte Cristo.
— Concluo, senhor — respondeu Villefort — Que o meu pai, desorientado pelas paixões, cometeu algumas dessas faltas que escapam à justiça humana, mas que caem sob a alçada da justiça de Deus, e que Deus, querendo punir apenas uma pessoa, só feriu a ele.
Com o sorriso nos lábios, Monte Cristo soltou no fundo do coração um rugido, que faria fugir Villefort, se Villefort o pudesse ouvir.
— Adeus, senhor — despediu-se o magistrado, que havia algum tempo se levantara e falava de pé — Deixo-o, levando de si uma recordação de estima, que espero lhe possa ser agradável quando me conhecer melhor, pois não sou um homem vulgar, muito pelo contrário. Além disso, conquistou na Sra. de Villefort uma amiga eterna.
O Conde inclinou-se e limitou-se a acompanhar Villefort até à porta do gabinete. O magistrado alcançou a sua carruagem precedido de dois lacaios, que, a um sinal do amo, se apressaram a abrir-la. Depois, quando o procurador régio desapareceu:
— Vamos — disse Monte Cristo, arrancando com esforço um sorriso do peito opresso — Vamos, basta de veneno, e agora que o meu coração está cheio dele, vamos procurar o antídoto.
E tocando uma vez a campainha, disse a Ali, quando este acorreu:
— Subo aos aposentos da senhora. A carruagem que esteja pronta dentro de meia-hora!





continua...




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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