XLVI
O CRÉDITO ILIMITADO
N |
o dia seguinte, por volta das duas horas da tarde, uma coche puxada por dois magníficos cavalos ingleses parou diante da porta de Monte Cristo. Um homem de casaca azul, com botões de seda da mesma cor, colete branco atravessado por enorme corrente de ouro e calças cor de avelã, e de cabelo tão preto e descendo-lhe até tão perto das sobrancelhas que se hesitaria em julgá-lo natural, de tal forma parecia pouco de harmonia com as rugas inferiores, que não conseguia ocultar, um homem, enfim, de cinqüenta a cinqüenta e cinco anos e que procurava aparentar quarenta meteu a cabeça pela portinhola, em cuja almofada se via pintada uma coroa de barão, e mandou o seu mandarete perguntar ao porteiro se o Conde de Monte Cristo estava em casa.
Enquanto esperava, o homem pôs-se a observar, com uma atenção tão minuciosa, que se tornava quase impertinente, o exterior da casa, o que se podia distinguir do jardim e a libré de alguns criados que se viam ir e vir. O homem tinha um olhar vivo, mas mais astuto do que espiritual, e lábios tão delgados que em vez de lhe saírem da boca lhe entravam nela. Finalmente, a largura e a proeminência das maçãs-do-rosto, sinal infalível de astúcia, a depressão da testa e a grossura do occipício, que ultrapassava muito as grandes orelhas nada aristocráticas, contribuíam para dar, aos olhos de qualquer fisionomista um caráter quase repelente à figura desta personagem muito recomendável aos olhos do vulgo, pelo seu cabelo magnífico, pelo enorme diamante que trazia na camisa e pela fita vermelha que se estendia de uma botoeira à outra da casaca.
O mandarete bateu no postigo do porteiro e perguntou:
— É aqui que mora o Sr. Conde de Monte Cristo?
— Sim, é aqui que mora Sua Excelência — respondeu o porteiro — Mas...
E consultou Ali com a vista, o qual lhe fez um sinal negativo.
— Mas?... — insistiu o mandarete.
— Mas Sua Excelência não está visível — respondeu o porteiro.
— Nesse caso, aqui está o cartão do meu amo, o Sr. Barão Danglars. Entregue-o ao Conde de Monte Cristo e diga-lhe que ao ir para a Câmara, o meu amo se desviou do caminho para ter a honra de vê-lo.
— Eu não falo com Sua Excelência — perguntou o porteiro — Mas o criado de quarto lhe dará o recado.
O mandarete voltou para a carruagem.
— Então? — perguntou Danglars.
O rapaz, muito envergonhado devido à lição que acabava de receber, transmitiu ao amo a resposta que lhe dera o porteiro.
— Ora essa! — exclamou Danglars — É algum príncipe esse cavalheiro a quem tratam por Excelência e a quem só o criado de quarto tem o direito de falar? Não faz mal, como tem um crédito sobre mim, o verei quando precisar de dinheiro!
E Danglars recostou-se no fundo da carruagem, depois de gritar ao cocheiro, de forma que se pudesse ouvir do outro lado da rua:
— À Câmara dos Deputados!
Através de uma persiana do seu pavilhão, Monte Cristo, prevenido a tempo, vira e estudara o barão com o auxílio de um excelente binóculo com não menos atenção do que o Sr. Danglars pusera na análise da casa, do jardim e das librés.
— Decididamente — murmurou com uma expressão de repugnância, guardando o binóculo no seu estojo de marfim — Decididamente aquele homem é uma criatura horrível. Como é possível não reconhecer nele, desde a primeira vez que se vê, a serpente de cabeça achatada, o abutre de crânio abaulado e o bútio de bico cortante? Ali! — gritou, e depois bateu numa campainha de cobre.
Ali apareceu.
— Chame Bertuccio — ordenou-lhe.
No mesmo momento, Bertuccio entrou.
— Vossa Excelência ia mandar me chamar? — perguntou o intendente.
— Ia, sim, senhor — respondeu o Conde — Viu os cavalos que estiveram parados diante da minha porta?
— Decerto, Excelência. São mesmo muito bonitos.
— Como é possível — prosseguiu Monte Cristo, franzindo o sobrolho — Que depois de lhe pedir que me arranjasse os dois mais belos cavalos de Paris, haja em Paris dois cavalos tão bonitos como os meus e que esses cavalos não estejam nas minhas cavalariças?
Perante o sobrolho franzido e o tom severo daquela voz, Ali baixou a cabeça.
— A culpa não é sua, meu bom Ali — disse o Conde em árabe, com uma doçura que se não julgaria poder encontrar nem na sua voz, nem no seu rosto — Você não entende de cavalos ingleses.
A serenidade reapareceu no rosto de Ali.
— Sr. Conde — disse Bertuccio — Os cavalos a que se refere não estavam à venda.
Monte Cristo encolheu os ombros:
— Fique sabendo, Sr. Intendente, que tudo está sempre à venda para quem pode pagar o preço.
— O Sr. Danglars pagou-os por dezesseis mil francos, Sr. Conde.
— Nesse caso, era oferecer-lhe trinta e dois mil. É banqueiro e um banqueiro nunca perde a oportunidade de duplicar o seu capital.
— O Sr. Conde fala sério? — perguntou Bertuccio.
Monte Cristo fitou o intendente como um homem surpreendido por se atreverem a interrogá-lo.
— Esta tarde vou fazer uma visita. Quero que esses dois cavalos estejam atrelados à minha carruagem com um arreio novo.
Bertuccio cumprimentou e retirou-se. Mas parou ao pé da porta para perguntar:
— A que horas conta Vossa Excelência fazer essa visita?
— Às cinco horas — respondeu Monte Cristo.
— Permito-me observar a Vossa Excelência que já são duas horas — arriscou o intendente.
— Bem sei — limitou-se a responder Monte Cristo.
Depois, virando-se para Ali:
— Mande passar todos os cavalos diante da senhora para que escolha a parelha que mais lhe agradar e peça-lhe que mande me dizer se quer jantar comigo. Nesse caso, o jantar será servido nos seus aposentos. Vai. Quando descer, mande-me o meu criado de quarto.
Ali acabava de desaparecer quando o criado de quarto entrou por seu turno.
— Sr. Baptistin — disse-lhe o Conde — Há um ano que está ao meu serviço; é o tempo de experiência que imponho habitualmente ao meu pessoal. O senhor serve-me.
Baptistin inclinou-se.
— Resta saber se eu lhe sirvo.
— Oh, Sr. Conde! — apressou-se a dizer Baptistin.
— Ouça-me até o fim — prosseguiu o Conde — O senhor ganha por ano mil e quinhentos francos, isto é, o soldo de um bom e bravo oficial que arrisca todos os dias a vida, e tem uma mesa que muitos chefes de repartição, pobres servidores infinitamente mais ocupados do que o senhor, lhe invejariam. Criado, tem o senhor mesmo criados que lhe cuidam da roupa e das suas coisas. Além dos seus mil e quinhentos francos de ordenado, o senhor rouba-me, nas compras que faz para a minha toilette, mais cerca de mil e quinhentos francos por ano...
— Oh, Excelência!
— Não me queixo disso, Sr. Baptistin; é razoável. No entanto, desejo que as coisas fiquem por aí. O senhor não arranjaria em parte alguma um lugar como o que a sua boa fortuna lhe proporcionou. Nunca bato no meu pessoal, nunca praguejo, nunca me encolerizo, perdôo sempre um erro, mas nunca uma negligência ou um esquecimento. As minhas ordens são habitualmente curtas, mas claras e precisas. Prefiro repeti-las duas vezes, e até três, a vê-las mal interpretadas. Sou bastante rico para saber tudo o que quero saber, e sou muito curioso, previno-o. Se souber, portanto, que falou a meu respeito bem ou mal, comentou os meus atos ou vigiou a minha conduta, sairá da minha casa imediatamente. Nunca previno os meus criados mais do que uma vez. Está prevenido, pode-se retirar!
Baptistin inclinou-se e deu três ou quatro passos para se retirar.
— A propósito — prosseguiu o Conde — Ia me esquecendo de dizer que todos os anos deposito determinada importância em nome do meu pessoal. Aqueles que despeço perdem inevitavelmente esse dinheiro, que aproveita aos que ficam e que a ele terão direito depois da minha morte. Está aqui há um ano, a sua fortuna começou, continue-a.
Esta alocução feita diante de Ali, que permanecia impassível atendendo a que não percebia uma palavra de francês, produziu no Sr. Baptistin um efeito que compreenderão todos aqueles que estudaram a psicologia do criado francês.
— Procurarei conformar-me em todos os pontos com os desejos de Vossa Excelência — disse — Aliás, me guiarei pelo Sr. Ali.
— Oh, de modo nenhum! — perguntou o Conde, com uma frieza de mármore — Ali tem muitos defeitos de mistura com as suas qualidades. Não siga, portanto o seu exemplo, porque Ali é uma exceção. Não tem salário, não é um criado, é o meu escravo, o meu cão. Se faltasse ao seu dever, não o despediria, matava-o.
Baptistin arregalou os olhos.
— Duvida? — perguntou Monte Cristo.
E repetiu a Ali as mesmas palavras que acabava de dizer em francês a Baptistin.
Ali ouviu, sorriu, aproximou-se do amo, pôs um joelho no chão e beijou-lhe respeitosamente a mão. Este corolariozinho da lição levou ao cúmulo a estupefação do Sr. Baptistin, o Conde fez sinal a Baptistin para sair e a Ali para segui-lo. Ambos passaram ao gabinete do Conde, onde conversaram demoradamente.
Às cinco horas o Conde tocou três vezes a campainha.
Um toque chamava Ali, dois toques Baptistin, e três toques Bertuccio.
O intendente entrou.
— Os meus cavalos? — perguntou Monte Cristo.
— Estão atrelados à carruagem, Excelência — respondeu Bertuccio — Devo acompanhar o Sr. Conde?
— Não, apenas o cocheiro, Baptistin e Ali.
O Conde desceu e encontrou atrelados à carruagem os cavalos que admirara de manhã na carruagem de Danglars. Ao passar por eles deitou-lhe uma olhadela.
— São lindos, de fato — declarou — E fez bem em comprá-los. Só é pena que tenha sido um bocadinho tarde...
— Excelência — atalhou Bertuccio — Tive muita dificuldade em os conseguir e ficaram muito caros.
— São por isso menos belos? — perguntou o Conde, encolhendo os ombros.
— Se Vossa Excelência está satisfeito, é quanto basta — disse Bertuccio — Aonde vai, Excelência?
— À Rua da Chaussée-d’Antin, a casa do Sr. Barão Danglars.
Esta conversa passava-se no alto da escadaria. Bertuccio deu um passo para descer o primeiro degrau.
— Espere, senhor — disse Monte Cristo, detendo-o — Preciso de um terreno à beira-mar, na Normandia, por exemplo, entre o Havre e Bolonha. Dou-lhe espaço, como vê, conviria que o terreno tivesse um portinho, uma enseadazinha, uma baiazinha, onde pudesse entrar e ficar a minha corveta, que não precisa de mais de quinze pés de água. O navio estará sempre pronto a fazer-se ao mar, a qualquer hora do dia ou da noite que lhe dê ordem para isso. Informe-se junto de todos os tabeliães de uma propriedade nas condições que lhe disse. Quando souber de alguma, ir vê-la, e se lhe agradar, compre-a em seu nome. A corveta deve estar a caminho de Fécamp, não é verdade?
— Vi-a fazer-se ao mar na própria tarde em que saímos de Marselha.
— E o iate?
— O iate tem ordem para permanecer em Martigues.
— Bem, comunique de vez em quando com os dois patrões que os comandam a fim de não adormecerem.
— E quanto ao navio a vapor?
— O que está em Châlons?
— Sim.
— As mesmas ordens que para os dois navios à vela.
— Muito bem!
— Logo que a propriedade esteja comprada, instalarei mudas de cavalos de dez em dez léguas na estrada do Norte e na estrada do Meio-Dia.
— Vossa Excelência pode contar comigo.
O Conde fez um sinal de satisfação, desceu os degraus e entrou na carruagem, a qual, levada pelo trote magnífico da parelha, só parou diante do palácio do banqueiro.
Danglars presidia a uma comissão nomeada para estudar a instalação de uma via férrea quando lhe anunciaram a visita do Conde de Monte Cristo. A sessão estava, de resto, quase terminando.
Ao ouvir o nome do Conde, levantou-se.
— Meus senhores — disse, dirigindo—se aos colegas, muitos dos quais eram respeitáveis membros de uma ou de outra Câmara — Perdoem-me deixá-los assim, mas imaginem que a Casa Thomson & French, de Roma, me recomenda um tal Conde de Monte Cristo, a quem abre em minha casa um crédito ilimitado. É a brincadeira mais engraçada que os meus correspondentes estrangeiros até agora se permitiram ter para comigo! Compreendem, fiquei cheio de curiosidade e ainda estou. Passei esta manhã pela casa do pretenso conde. Se fosse um verdadeiro conde, não seria tão rico, como calculam. O cavalheiro não estava visível. Que lhes parece? Não acham que mestre Monte Cristo se dá ares de alteza ou de mulher bonita? Fora isso, a casa situada na Champs-Élysées, e que lhe pertence, segundo estou informado, pareceu-me bem. Mas um crédito ilimitado — prosseguiu Danglars, soltando um riso desagradável — Torna muito exigente o banqueiro junto do qual o crédito é aberto. Tenho, portanto pressa de ver o nosso homem. Julgo-me mistificado. Mas os meus correspondentes não sabem com quem estão metidos. Rirá melhor quem rir no fim.
Ditas estas palavras, com uma ênfase que dilatou as narinas do Sr. Barão, este deixou os seus hóspedes e passou a uma sala pintada de branco e dourado, famosa na Chaussée-d'Antin. Fora para lá que ordenara levassem o visitante, a fim de o deslumbrar logo de entrada. O Conde estava de pé, examinando cópias de Albane e Fattore, que tinham feito passar aos olhos do banqueiro por originais e que por isso mesmo destoavam gritantemente dos adornos de todas as cores que guarneciam o teto.
Ao ouvir o ruído que Danglars fez ao entrar o Conde virou-se.
Danglars cumprimentou com uma leve inclinação de cabeça e fez sinal ao Conde para se sentar numa cadeira de braços forrada de cetim branco e guarnecida de pregaria dourada. O Conde sentou-se.
— É o Sr. de Monte Cristo que tenho a honra de falar?
— E eu — respondeu o Conde — Ao Sr. Barão Danglars, cavaleiro da Legião de Honra e membro da Câmara dos Deputados?
Monte Cristo repetia todos os títulos que encontrara no cartão do barão. Danglars acusou o toque e mordeu os lábios.
— Desculpe-me, senhor, não o ter tratado logo pelo título por que me foi anunciado, mas como vivemos sob um governo popular e sou um representante dos interesses do povo...
— Embora conservando o hábito de se fazer tratar por barão, perdeu o de tratar os outros por conde — concluiu Monte Cristo.
— Oh, não é por mim, senhor! — respondeu negligentemente Danglars — Nomearam-me barão e fizeram-me cavaleiro da Legião de Honra por alguns serviços prestados, mas...
— Mas abdicou dos seus títulos, como fizeram outrora os Srs. de Montmorency e de Lafayette? Era um belo exemplo a seguir.
— Que, no entanto não segui inteiramente — admitiu Danglars, embaraçado — Mas compreende, os criados...
— Sim, para os seus criados deve ser monsenhor, para os jornalistas, senhor, e para os seus representados, cidadão. São cambiantes muito aplicáveis ao governo constitucional. Compreendo perfeitamente.
Danglars beliscou os lábios. Viu que naquele terreno não era da força de Monte Cristo e tentou, portanto regressar a outro que lhe fosse mais familiar.
— Sr. Conde — disse, inclinando-se — Recebi uma carta da Casa Thomson & French...
— Ainda bem, Sr. Barão. Permita-me que o trate como o tratam os seus criados. É um mau hábito adquirido em países onde ainda existem barões precisamente porque já se não fazem. Ainda bem, dizia, porque assim não terei necessidade de me apresentar pessoalmente, o que é sempre embaraçoso. Recebeu, portanto, dizia, uma carta?
— Sim — respondeu Danglars — Mas confesso-lhe que lhe não compreendi perfeitamente o sentido.
— Essa é boa!
— E tive até a honra de passar por sua casa para lhe pedir algumas explicações.
— Pois aqui me tem, senhor, pronto a ouvi-lo.
— Tenho essa carta comigo, creio — disse Danglars, procurando-a na algibeira — Sim, aqui está... esta carta abre ao Sr. Conde de Monte Cristo um crédito ilimitado na minha casa.
— E que vê o Sr. Barão de obscuro aí?
— Nada, senhor. Apenas a palavra “ilimitado...”
— Não é uma palavra francesa?... Compreende, a carta foi escrita por anglo-alemães.
— Oh, certamente, senhor! No tocante à sintaxe não há nada a dizer, mas o mesmo não acontece no tocante à contabilidade.
— Porventura a Casa Thomson & French não é perfeitamente segura, na sua opinião, Sr. Barão? — perguntou Monte Cristo com o ar mais ingênuo que conseguiu arranjar — Diabo, isso me contrariaria, pois tenho alguns fundos colocados nela!
— Oh, é perfeitamente segura — respondeu Danglars, com um sorriso quase zombeteiro — Mas o sentido da palavra ilimitado, em matéria de finanças, é tão vago...
— Que é ilimitado, não é verdade? — concluiu Monte Cristo.
— Era precisamente isso que queria dizer, senhor. O vago é duvidoso, e lá diz o ditado: “Na dúvida, abstenha-se”.
— O que significa — prosseguiu Monte Cristo — Que se a Casa Thomson & French está disposta a cometer loucuras, a Casa Danglars não quer seguir-lhe o exemplo.
— Como assim, Sr. Conde?
— Sim, sem dúvida. Os Srs. Thomson & French negociam sem fixar os limites do seu crédito, mas o Sr. Danglars tem um limite para o seu; é um homem sensato, como há pouco dizia.
— Senhor — respondeu orgulhosamente o banqueiro — Ainda ninguém recorreu em vão à minha caixa!
— Nesse caso — perguntou friamente Monte Cristo — Parece que serei eu o primeiro.
— Quem lhe disse isso?
— As explicações que me pode, senhor, e que se assemelham muito a hesitações...
Danglars mordeu os lábios. Era a segunda vez que era batido por aquele homem, e desta vez no seu terreno. A sua cortesia zombeteira era apenas afetada e raiava quase a impertinência.
Monte Cristo, pelo contrário, sorria com a maior descontração deste mundo e possuía, quando queria, um certo ar ingênuo que lhe dava muitas vantagens.
— Enfim, senhor — disse Danglars, após um momento de silêncio — Vou tentar fazer-me compreender, pedindo-lhe que fixe pessoalmente a quantia que conta levantar do meu banco.
— Mas, senhor — perguntou Monte Cristo, decidido a não perder uma polegada de terreno na discussão — Se pedi um crédito ilimitado sobre o senhor, foi precisamente por não saber de que dinheiro precisaria.
O banqueiro julgou chegado, finalmente, o momento de atacar a fundo. Recostou-se na sua cadeira e disse, com um sorriso grosseiro e orgulhoso:
— Oh, senhor, não tenha medo de pedir! Poderá então convencer-se de que o crédito da Casa Danglars, por muito limitado que seja, pode satisfazer as maiores exigências. Mesmo que pedisse um milhão...
— Como? — perguntou Monte Cristo.
— Disse que mesmo que pedisse um milhão — repetiu Danglars com a arrogância da estupidez.
— E que faria eu com um milhão? — perguntou o Conde — Meu Deus, senhor, se se tratasse apenas de um milhão não estaria aqui! Não me incomodaria em abrir um crédito por semelhante miséria! Um milhão? Mas se trago sempre um milhão na carteira ou no meu estojo de viagem!
E Monte Cristo tirou de uma agendazinha onde trazia os cartões de visita duas ordens de pagamento de quinhentos mil francos cada uma, pagáveis ao portador, sobre o Tesouro. Um homem como Danglars devia ser desancado e não espicaçado. A bordoada produziu o seu efeito: o banqueiro cambaleou e sentiu vertigens. Depois, pousou em Monte Cristo dois olhos embrutecidos e com as pupilas horrivelmente dilatadas.
— Vamos — disse Monte Cristo — Confesse que desconfia da Casa Thomson & French... Meu Deus, é muito simples! Previ o caso e, apesar de não perceber nada de negócios, tomei as minhas precauções. Aqui estão, portanto mais duas cartas idênticas à que lhe foi endereçada. Uma é da Casa Arestein & Eskoles, de Viena, sobre o Sr. Barão de Rothschild, e a outra é da Casa Baring, de Londres, sobre o Sr. Laffitte. Diga-me uma só palavra, senhor, e o livrarei de qualquer preocupação, dirigindo-me a uma ou a outra destas duas casas.
Pronto, Danglars estava vencido. Abriu, visivelmente trêmulo, a carta de Viena e a carta de Londres, que o Conde lhe estendia com a ponta dos dedos, e verificou a autenticidade das assinaturas com uma minúcia que seria insultante para Monte Cristo se não fizesse parte da estupefação do banqueiro.
— Oh, senhor, estão aqui três assinaturas que valem muitos milhões — declarou Danglars, levantando-se como que para cumprimentar o poder do ouro personificado naquele homem que tinha diante de si — Três créditos ilimitados sobre as nossas casas! Perdoe-me, Sr. Conde, mas, embora deixando de ser desconfiado, ainda estou atônito.
— Bom, não é caso para uma casa como a sua se surpreender assim — declarou Monte Cristo, com toda a urbanidade — Pode, portanto abonar-me algum dinheiro, não é verdade?
— Fale, Sr. Conde, estou às suas ordens.
— Bom — prosseguiu Monte Cristo — Agora que já nos conhecemos... porque nos entendemos, não é verdade?
Danglars acenou afirmativamente com a cabeça.
— E já não tem nenhuma desconfiança? — continuou Monte Cristo.
— Oh, Sr. Conde, nunca tive! — exclamou o banqueiro.
— Pois não, desejava apenas uma prova e mais nada. Bom, agora que já nos entendemos — repetiu o Conde — Agora que já não tem nenhuma desconfiança, fixemos, se assim o deseja, uma importância geral para o primeiro ano: seis milhões, por exemplo.
— Seja seis milhões! — concordou Danglars, sufocado.
— Se precisar de mais — prosseguiu maquinalmente Monte Cristo — Pedirei mais, mas não conto ficar mais de um ano na França e durante esse ano creio que não excederei essa verba... enfim, veremos... para começar, agradecia-lhe que me mandasse entregar amanhã quinhentos mil francos. Estarei em casa até ao meio-dia, mas se não estiver, deixarei um recibo ao meu intendente.
— O dinheiro estará na sua casa amanhã às dez horas da manhã, Sr. Conde — respondeu Danglars — Quere-o em ouro, em notas ou em prata?
— Metade em ouro e metade em notas, por favor.
E o Conde levantou-se.
— Devo confessar-lhe uma coisa, Sr. Conde — disse Danglars, por seu turno — Julgava ter noções exatas sobre todas as grandes fortunas da Europa, e no entanto a sua, que me parece considerável, era-me, confesso, absolutamente desconhecida. É recente?
— Não, senhor — respondeu Monte Cristo — Pelo contrário, é antiqüíssima. Era uma espécie de tesouro de família no qual era proibido tocar e cujos juros acumulados triplicaram o capital. A data fixada pelo testador chegou apenas há alguns anos, e, portanto só há alguns anos entrei na posse dessa fortuna. A sua ignorância a tal respeito é, pois absolutamente natural. De resto, dentro de algum tempo saberá melhor o que possuo...
E o Conde acompanhou estas palavras com um dos sorrisos pálidos que tanto medo metia a Franz d’Epinay.
— Com os seus gostos e as suas intenções, senhor — continuou Danglars — Vai decerto exibir na capital um luxo que nos esmagará a todos, pobres pequenos milionários. Entretanto, como me parece apreciador, porque quando entrei observava os meus quadros, peço-lhe licença para lhe mostrar a minha galeria. São todos quadros antigos, todos quadros de mestres garantidos como tal. Não gosto dos modernos.
— Tem razão, senhor, porque têm geralmente um grande defeito: o de não terem tido ainda tempo de envelhecer.
— Também lhe posso mostrar algumas estátuas de Thorwaldsen, de Bartoloni e de Canova, todos artistas estrangeiros. Como vê, não aprecio os artistas franceses.
— Tem o direito de ser injusto com eles, senhor, visto serem seus compatriotas.
— Mas tudo isto fica para mais tarde, para quando nos conhecermos melhor. Por hoje me limitarei, se me permite, a apresentá-lo à Sra. Baronesa Danglars. Desculpe a minha insistência, Sr. Conde, mas um cliente como o senhor faz quase parte da família.
Monte Cristo inclinou-se em sinal de que aceitava a honra que o financeiro lhe desejava conceder.
Danglars tocou. Apareceu um lacaio de libré resplandecente.
— A Sra. Baronesa está nos seus aposentos? — perguntou Danglars.
— Está sim, Sr. Barão — respondeu o lacaio.
— Sozinha?
— Não, a senhora tem visitas.
— Não será indiscrição apresentá-lo diante de outras pessoas, pois não, Sr. Conde? Não guarda o incógnito?
— Não, Sr. Barão — respondeu Monte Cristo, sorrindo — Acho que não tenho esse direito.
— E quem está com a senhora? O Sr. Debray? — perguntou Danglars, com uma bonomia que fez sorrir intimamente Monte Cristo, já esclarecido acerca dos transparentes segredos familiares do financeiro.
— É, sim, o Sr. Debray, Sr. Barão — respondeu o lacaio.
Danglars acenou com a cabeça. Depois, virando-se para Monte Cristo:
— O Sr. Lucien Debray — disse — É um velho amigo nosso, secretário particular do ministro do Interior. Quanto à minha mulher, desceu casando comigo, pois pertence a uma família antiga: era uma Serviêres, viúva em primeiras núpcias do Sr. Coronel Marquês de Nargonne.
— Não tenho a honra de conhecer a Sra. Danglars, mas já conheço o Sr. Lucien Debray.
— Sim? — admirou-se Danglars — E onde o conheceu?
— Em casa do Sr. de Morcerf — disse a Danglars.
— Ah, conhece o viscondezinho?
— Encontramo-nos em Roma, no Carnaval.
— Ah, sim, ouvi dizer qualquer coisa a respeito de uma aventura singular com bandidos, assaltantes nas ruínas!... Parece que foi salvo milagrosamente. Creio que ele contou qualquer coisa a esse respeito à minha mulher e à minha filha, no seu regresso da Itália.
— A Sra. Baronesa espera-os, senhor — veio anunciar o lacaio.
— Vou à frente para lhe indicar o caminho — declarou Danglars, inclinando—se.
— E eu o sigo — respondeu Monte Cristo.
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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]
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