terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 57



LVII

O CAMPO DE LUZERNA




O
s nossos leitores devem nos permitir reconduzi-los a este campo, que confina com a casa do Sr. de Villefort e onde, atrás do portão invadido por ramos de castanheiros, reencontraremos personagens já nossas conhecidas. Desta vez, Maximilien foi o primeiro a chegar. É ele quem, de olho colado ao tapume, espreita para o jardim impenetrável, à espera de ver aparecer uma sombra entre as árvores e de ouvir o rangido de umas botinas de seda no saibro das alamedas. Por fim, o rangido tão desejado soou, mas em vez de uma sombra foram duas sombras as que se aproximaram.
A demora de Valentine fora ocasionada por uma visita da Sra. Danglars e de Eugênia, visita que se prolongara para além da hora em que Valentine era esperada. Então, para não faltar ao encontro, a jovem propusera a Mademoiselle Danglars um passeio no jardim, a fim de mostrar a Maximilien que não era culpada do atraso que sem dúvida o fazia sofrer.
O rapaz compreendeu tudo com a rapidez de intuição peculiar aos apaixonados e o seu coração descontraiu-se. Aliás, sem lhe chegar ao alcance da voz, Valentine dirigiu o passeio de maneira que Maximilien a pudesse ver passar e repassar, e de cada vez que passava e repassava deitava para o outro lado do portão, sem que a sua companheira o notasse, um olhar que o rapaz recebia e em que lhe dizia:
“Tenha paciência, meu amigo, mas bem vê que a culpa não é minha”.
E Maximilien aceitava efetivamente o caso com paciência, ao mesmo tempo que admirava o contraste entre as duas jovens: entre a loura de olhos lânguidos e busto inclinado como um belo salgueiro e a morena de olhos orgulhosos e busto direito como um álamo. Depois, da comparação entre duas naturezas tão opostas, toda a vantagem ia para Valentine, pelo menos no coração do rapaz...
Ao cabo de meia-hora de passeio as duas jovens afastaram-se e Maximilien compreendeu que chegara o final da visita da Sra. Danglars.
Com efeito, pouco depois Valentine reapareceu sozinha. Com receio de que algum olhar indiscreto a seguisse no regresso, caminhava devagar e, em vez de se dirigir diretamente para o portilo, foi sentar-se num banco, depois de disfarçadamente observar cada tufo de folhagem e de mergulhar a vista no fundo de todas as alamedas. Tomadas estas precauções, correu para o portão.
— Boa tarde, Valentine — disse uma vez.
— Boa tarde, Maximilien. O fiz esperar, mas não viu a causa?
— Vi. Reconheci Mademoiselle Danglars. Não a julgava tão íntima dessa moça.
— E quem lhe disse que éramos íntimas, Maximilien?
— Ninguém. Mas pareceu-me que isso saltava à vista, dada a forma como davam o braço uma à outra e conversavam. Dir-se-ia duas amigas de colégio trocando confidências.
— E trocávamos efetivamente confidências — reconheceu Valentine — Ela confessava-me a sua repugnância por um casamento com o Sr. de Morcerf e eu, pela minha parte, confessava-lhe que considerava uma infelicidade casar com o Sr. d’Epinay.
— Querida Valentine!
— Aqui tem, meu amigo — continuou a jovem — Porque motivo notou essa aparência de abandono entre mim e Eugênia. É que enquanto falava do homem que não posso amar pensava no homem que amo.
— Como é boa em tudo, Valentine, e possui uma coisa que Mademoiselle Danglars nunca terá: o encanto indefinido que está para a mulher como o perfume está para a flor e o sabor para o fruto. Porque não basta uma flor ser bela, nem um fruto ser agradável à vista.
— É o seu amor que o leva a ver as coisas assim, Maximilien.
— Não, Valentine, juro-lhe. Olhe, observava ambas há pouco e dou-lhe a minha palavra de honra de que, embora prestando justiça à beleza de Mademoiselle Danglars, não compreendia que um homem se apaixonasse por ela.
— Porque, como dizia, Maximilien, eu estava aqui e a minha presença tornava-o injusto.
— Não... mas diga-me... uma questão de mera curiosidade resultante de certas idéias que tenho a respeito de Mademoiselle Danglars...
— Oh, e decerto muito injustas, mesmo sem eu saber quais! Quando os homens nos julgam, nós, pobres mulheres, não devemos esperar indulgência.
— Como se, entre elas, as mulheres fossem justas umas para com as outras!
— Porque quase sempre há paixão nos nossos julgamentos. Mas voltemos à sua pergunta.
— É por amar alguém que Mademoiselle Danglars receia o seu casamento com o Sr. de Morcerf?
— Maximilien, já lhe disse que não era amiga de Eugênia.
— Mas, meu Deus, mesmo sem serem amigas, as moças fazem confidências umas às outras! Admita que lhe fez algumas perguntas a tal respeito... ah, já a vejo sorrir!...
— Sendo assim, Maximilien, não serve de nada haver este tapume entre nós...
— Vejamos, que lhe disse ela?
— Disse-me que não amava ninguém — respondeu Valentine — Que tinha horror ao casamento; que a sua maior alegria seria levar uma vida livre e independente, e que quase desejaria que o pai perdesse a fortuna para se tornar artista como a sua amiga Mademoiselle Louise d'Armilly.
— Está vendo?...
— E então, que prova isso? — perguntou Valentine.
— Nada — respondeu Maximilien sorrindo.
— Nesse caso, porque sorri também agora? — quis saber Valentine.
— Pronto, desta vez também a apanhei a espreitar, Valentine! — exclamou Maximilien.
— Quer que me vá embora?
— Oh, não, não! Mas voltemos a nós.
— Sim, é melhor, porque não podemos estar juntos mais de dez minutos.
— Meu Deus! — exclamou Maximilien, consternado.
— Tem razão, Maximilien — admitiu Valentine, com melancolia — Tem em mim uma pobre amiga, Maximilien. Que existência o faço passar, pobre amigo, tão bem talhado para ser feliz! Censuro-me por isso amargamente, acredite.
— Não se preocupe, Valentine. Sinto-me feliz assim e julgo-me recompensado desta espera eterna por vê-la durante cinco minutos, por ouvir duas palavras da sua boca e por esta convicção profunda, eterna, de que Deus não criou dois corações tão em harmonia como os nossos, e, sobretudo não os reuniu quase milagrosamente, para os separar.
— Obrigada, Maximilien. Tenha esperança pelos dois; isso já me torna meio feliz.
— Que mais lhe aconteceu, Valentine, para que me deixe tão depressa?
— Não sei. A Sra. de Villefort mandou-me pedir que fosse aos seus aposentos para ouvir uma comunicação da qual depende, segundo ela, parte da minha fortuna. Meu Deus, que fiquem com ela, com a minha fortuna! Sou demasiado rica. E que depois de se apoderarem dela me deixem tranqüila e livre. Também me amaria se fosse pobre, não é verdade, Maximilien?
— Oh, eu a amarei sempre! Que me importaria riqueza ou pobreza se a minha Valentine estivesse junto de mim e tivesse a certeza de que ninguém a roubaria? Mas essa comunicação, Valentine, não receia que seja alguma notícia relacionada com o seu casamento?
— Não creio.
— No entanto, ouça-me, Valentine, e não se assuste, pois enquanto viver não serei de outra.
— Julga tranqüilizar-me dizendo-me isso, Maximilien?
— Desculpe! Tem razão, sou um bruto. Mas o que lhe queria dizer era que há dias encontrei o Sr. de Morcerf.
— E depois?
— O Sr. Franz é seu amigo, como você sabe.
— Pois sei. E depois?
— E depois?... Ele recebeu uma carta de Franz em que lhe anuncia o seu próximo regresso.
Valentine empalideceu e apoiou a mão no portão.
— Ah, meu Deus, se fosse isso!... — murmurou — Mas não, a comunicação não viria da Sra. de Villefort.
— Porquê?
— Porque... não sei porquê... mas parece-me que a Sra. de Villefort, embora se lhe não oponha francamente, não vê com bons olhos o casamento.
— Nesse caso, Valentine, parece-me que vou adorar a Sra. de Villefort!
— Oh, não tenha pressa, Maximilien! — perguntou Valentine, com um sorriso triste.
— Bom, se o casamento lhe é antipático, não daria ouvidos a qualquer outra proposta, quanto mais não fosse para o romper?
— Não tenha ilusões a esse respeito, Maximilien. Não são os maridos que ela detesta, é o casamento.
— Como? O casamento! Se detesta assim tanto o casamento, por que motivo se casou?
— Não está me compreendendo, Maximilien. Quando há um ano falei em retirar-me para um convento, ela, apesar das observações que achou dever fazer, aceitou a minha sugestão com alegria. O meu próprio pai concordou, instigado por ela, estou certa. Só o meu pobre avô me reteve. Não pode imaginar, Maximilien, quanta expressão há nos olhos do pobre velho, que só a mim ama no mundo e que, Deus me perdoe se é uma blasfêmia, só por mim é amado no mundo. Se soubesse como me olhou quando soube a minha resolução, o que havia de censuras naquele olhar e de desespero nas lágrimas que lhe corriam, sem queixumes, sem suspiros, ao longo das faces imóveis! Ah, Maximilien, experimentei qualquer coisa como um remorso! Lancei-me a seus pés gritando: “Perdão! Perdão, avô! Farão de mim o que quiserem, mas nunca o deixarei”. Então, ergueu os olhos ao céu. Maximilien, poderei sofrer muito, mas aquele olhar do meu velho avô recompensou-me antecipadamente do que sofrerei.
— Querida Valentine! É um anjo e não sei realmente como mereci, espadeirando beduínos a torto e a direito, a menos que Deus os tenha considerado infiéis, não sei, repito, como mereci que se interessasse por mim. Mas enfim, vejamos, Valentine, que interesse tem a Sra. de Villefort em que não se case?
— Não me ouviu dizer há pouco que era rica, Maximilien, demasiado rica? Da parte da minha mãe tenho perto de cinqüenta mil libras de rendimento; o meu avô e a minha avó, o Marquês e a Marquesa de Saint-Méran, devem deixar-me outro tanto, e o Sr. Noirtier tem visivelmente a intenção de me tornar a sua única herdeira. De tudo isto resulta, portanto que, comparado comigo, o meu irmão Edouard, que não espera do lado da Sra. de Villefort nenhuma fortuna, é pobre. Ora, a Sra. de Villefort adora essa criança, e se eu entrasse para o convento toda a minha fortuna, concentrada em meu pai, que herdaria do marquês, da marquesa e de mim, reverteria a favor do filho.
— Oh, como é estranha essa cupidez numa jovem e bela mulher!
— Note que não se trata dela, Maximilien, mas sim do filho, e que o que lhe censura como um defeito é quase uma virtude do ponto de vista do amor materno.
— Mas vejamos, Valentine, e se cedesse parte dessa fortuna a esse filho? — sugeriu Morrel.
— E como fazer semelhante proposta, sobretudo a uma mulher que não se cansa de salientar à boca cheia o seu desinteresse? — perguntou Valentine.
— Valentine, o meu amor sempre foi para mim uma coisa sagrada, e como toda a coisa sagrada cobri-o com o véu do meu respeito e encerrei-o no meu coração. Ninguém no mundo, nem mesmo a minha irmã, suspeita da existência deste amor, que não confiei a quem quer que seja. Valentine, permite-me que fale deste amor a um amigo?
Valentine estremeceu.
— A um amigo?... — repetiu — Oh, meu Deus, Maximilien, tremo só de o ouvir falar assim! A um amigo?... E quem é esse amigo?
— Escute, Valentine: nunca sentiu por ninguém uma dessas simpatias irresistíveis que fazem com que, embora vendo essa pessoa pela primeira vez, julgue conhecê-la há muito tempo, a ponto de perguntar a si própria onde e quando a viu, de forma que, na impossibilidade de se recordar, quer do lugar quer do tempo, acabe por se convencer ter sido num mundo anterior ao nosso e que tal simpatia não passa de uma recordação que desperta?
— Já.
— Pois aí tem o que senti a primeira vez que vi aquele homem extraordinário.
— Um homem extraordinário?...
— Sim.
— Que conhece há muito tempo?
— Apenas há oito ou dez dias.
— E chama seu amigo a um homem que conhece há oito ou dez dias? Oh, Maximilien, julgava-o mais ávaro do belo nome de amigo!
— Logicamente tem razão, Valentine. Mas diga o que disser, nada me fará mudar de opinião acerca deste sentimento instintivo. Creio que esse homem estará envolvido em tudo o que me acontecer de bom no futuro, futuro que às vezes o seu olhar profundo parece conhecer e a sua mão poderosa dirigir.
— Trata-se portanto de um adivinho? — perguntou, sorrindo, Valentine.
— Palavra que muitas vezes me sinto tentado a crer que adivinha... o bem, sobretudo — respondeu Maximilien.
— Oh, apresente-me esse homem, Maximilien! — pediu Valentine, tristemente — Quero que me diga se serei amada o suficiente para me sentir recompensada de tudo o que tenho sofrido.
— Pobre amiga! Mas você conhece-o!
— Eu?
— Sim. É aquele que salvou a vida à sua madrasta e ao filho.
— O Conde de Monte Cristo?
— O próprio.
— Oh, esse nunca poderá ser meu amigo, pois é o demasiado da minha madrasta! — exclamou Valentine.
— O Conde, amigo da sua madrasta, Valentine? O meu instinto não se enganaria a esse ponto. Estou certo de que está enganada.
— Oh, se soubesse, Maximilien! Já não é Edouard quem reina em casa, é o Conde. Solicitado pela Sra. de Villefort, que vê nele o repositório dos conhecimentos humanos; admirado, ouça bem, admirado pelo meu pai, que diz nunca ter ouvido formular com mais eloqüência idéias mais elevadas; idolatrado por Edouard, que, apesar do seu medo dos grandes olhos negros do Conde, corre para ele assim que o vê chegar e lhe abre a mão, onde encontra sempre qualquer brinquedo admirável, o Sr. de Monte Cristo não está aqui em casa do meu pai, o Sr. de Monte Cristo não está aqui em casa da Sra. de Villefort, o Sr. de Monte Cristo está aqui em sua casa.
— Nesse caso, querida Valentine, se as coisas são assim como diz, deve já sentir, ou em breve sentirá, os efeitos da sua presença. Encontra Albert de Morcerf na Itália e arranca-o das mãos dos bandidos; conhece a Sra. Danglars e oferece-lhe um presente real; a sua madrasta e o seu irmão passam-lhe diante da porta e o seu núbio salva-lhes a vida. Trata-se de um homem que recebeu, evidentemente, o poder de influir nas coisas. Nunca vi gostos mais simples aliados a tão grande magnificência. O seu sorriso é tão afetuoso quando me dirige que esqueço que os outros acham o seu sorriso amargo. Diga-me, Valentine, ele já lhe sorriu assim? Se sorriu, será feliz.
— A mim? — perguntou a jovem — Meu Deus, Maximilien, nem se quer me olha! Ou antes, se passo por acaso, desvia a vista de mim. Ou não é generoso, ou não possui esse olhar profundo que lê no fundo dos corações, como o Maximilien supõe erradamente. Porque se fosse generoso, vendo-me sozinha e triste nesta casa, me protegeria com a influência que exerce. Se, como você, desempenha o papel de Sol, me aqueceria o coração com um dos seus raios. Diz que gosta de si, Maximilien... meu Deus, que sabe o senhor a tal respeito? Os homens mostram bom rosto a um oficial de cinco pés e seis polegadas de altura, como o senhor, e ainda por cima possuidor de um grande bigode e de um comprido sabre, mas julgam poder esmagar sem receio uma pobre moça que chora.
— Oh, Valentine, está enganada, juro-lhe!
— Vejamos, Maximilien, se não fosse assim, isto é, se ele me tratasse diplomaticamente, como homem que, de uma maneira ou de outra, se quer introduzir na casa, me honraria, nem que fosse uma só vez, com esse sorriso que tanto me elogia. Mas não, viu-me infeliz, sabe que não lhe posso ser útil para nada, e nem sequer me presta atenção. Quem sabe até se, para fazer a corte ao meu pai, à Sra. de Villefort ou ao meu irmão, me não perseguir também assim que o possa fazer? Francamente; não sou mulher que se despreze assim, sem motivo; o senhor mesmo mo disse... oh, perdoe-me! — continuou a jovem, ao ver a impressão que as suas palavras causavam a Maximilien — Sou má e estou para aqui a lhe dizer acerca desse homem coisas que nem sequer sabia ter no coração. Olhe, não nego que essa influência de que fala existe e que ele a exerce também sobre mim; mas exerce-a de uma maneira nociva e corruptora de bons pensamentos, como vê.
— Está bem, Valentine, não falemos mais disso — perguntou Morrel, suspirando — Não lhe direi nada.
— Que infelicidade a minha, meu amigo, aflijo-o, bem vejo! — exclamou Valentine — Oh, não poderá apertar-lhe a mão e pedir-lhe perdão! Mas enfim, não pretendo mais do que ser convencida... diga-me, que fez por você esse Conde de Monte Cristo?
— Embaraça-me muito, confesso-lhe, Valentine, perguntando-me o que fez o Conde por mim. Ostensivamente, nada, bem sei. Por isso, como já lhe disse, a minha atenção por ele é absolutamente instintiva e não tem nada de racional. O Sol fez-me porventura alguma coisa? Não. Apenas me aquece e é à sua luz que a vejo, Valentine. Tal ou tal perfume fez alguma coisa por mim? Não. Mas o seu aroma impressiona agradavelmente um dos meus sentidos. Não posso responder mais nada quando me perguntam por que elogio esse perfume. A minha amizade por ele é tão estranha como a sua por mim. Uma voz íntima diz-me que há mais do que acaso nesta amizade imprevista e recíproca. Encontro correlação até nas suas mais simples ações, até nos seus mais secretos pensamentos, com as minhas ações e os meus pensamentos. Vai rir novamente de mim, Valentine, mas desde que conheço esse homem mete-—se na minha cabeça a idéia absurda de que tudo o que me acontece provem dele. No entanto, vivi trinta anos sem necessitar de semelhante protetor, não é verdade! Não importa. Olhe, por exemplo: convidou-me para jantar, no Sábado, o que é natural no ponto em que as nossas relações se encontram, não acha? Imagina o que soube depois? O seu pai está convidado para esse jantar e a sua madrasta também. Me encontrarei lá com eles e quem sabe o que resultará no futuro desse encontro? Aparentemente, trata-se de tudo quanto há de mais simples; contudo, vejo nisso algo que me espanta, mas em que deposito uma confiança estranha. Digo para comigo que o Conde, esse homem singular que adivinha tudo, quis que me encontrasse com o Sr. e a Sra. de Villefort, e às vezes procuro, juro-lhe, ler nos seus olhos se ele adivinhou o meu amor.
— Meu bom amigo — disse Valentine — O tomaria por um visionário e recearia sinceramente pelo seu bom senso se apenas lhe ouvisse semelhantes raciocínios. O quê vê outra coisa a não ser o acaso nesse encontro?! Vamos, reflita. Meu pai, que nunca sai, esteve quase por dez vezes recusando esse convite à Sra. de Villefort, a qual, pelo contrário, está ansiosa por ver a casa desse nababo extraordinário e dificilmente conseguiu que ele a acompanhasse. Não, não, acredite que não tenho, excetuando o senhor, Maximilien, outro auxílio a esperar neste mundo a não ser o do meu avô, um cadáver, nem outro apoio a procurar que não seja na minha pobre mãe, um fantasma!
— Sinto que tem razão, Valentine, e que a lógica está do seu lado — respondeu Maximilien — Mas a sua meiga voz, que tanto poder tem sempre sobre mim, hoje não me convence.
— Nem a sua — perguntou Valentine — E confesso que se não tem outro exemplo para me dar...
— Tenho mais um — respondeu Maximilien, hesitante — Mas na verdade, Valentine, sou forçado a confessar eu próprio que é ainda mais absurdo do que o primeiro.
— Paciência! — exclamou Valentine, sorrindo.
— E, no entanto — continuou Morrel — Ele nem por isso é menos concludente para mim, homem todo de inspiração e sentimento, e que tenho algumas vezes, desde que há dez anos sou militar, devido a vida a um desses impulsos íntimos que nos ditam um movimento de avanço ou recuo para que a bala que nos devia matar passe a nosso lado.
— Querido Maximilien, porque não atribuir às minhas preces esse desvio das balas? Quando está ausente, não é por mim nem por minha mãe que peço a Deus, é por si.
— Sim, desde que a conheço — respondeu Morrel, sorrindo — Mas antes de conhecê-la, Valentine?
— Bom, já que me não quer dever nada, vejamos esse exemplo que o senhor mesmo confessa ser absurdo...
— Pois sim. Espreite pelas tábuas e veja ali adiante, naquela árvore, o cavalo novo em que vim.
— Oh, que lindo animal! — exclamou Valentine — Porque não o trouxe para junto do portão? Lhe falaria e ele me ouviria.
— É efetivamente, como vê, um animal bastante valioso — disse Maximilien — Ora, como sabe, Valentine, a minha fortuna é pequena e eu sou o que se chama um homem sensato. Pois bem, vi num alquilador aquele magnífico Médeah, como lhe chamo, e perguntei quanto custava. Responderam-me que custava quatro mil e quinhentos francos. Como compreende, tive de me abster de achá-lo bonito durante mais tempo e saí, confesso, bastante impressionado, porque o cavalo me olhara meigamente, acariciara-me com a cabeça e caracolara debaixo de mim da forma mais altaneira e encantadora que se possa imaginar. Naquela mesma noite recebia alguns amigos em casa: o Sr. de Château-Renaud, o Sr. Debray e mais cinco ou seis patuscos que a Valentine tem a felicidade de não conhecer, mesmo de nome. Alguém propôs uma bouillotte. Nunca jogo, pois não sou suficientemente rico para poder perder, nem bastante pobre para desejar ganhar. Mas estava em minha casa, compreende, e não tinha outra coisa a fazer senão mandar buscar cartas, e foi o que fiz.
“Quando nos sentávamos à mesa chegou o Sr. de Monte Cristo. Tomou o seu lugar, jogamos e ganhei. Quase me não atrevo a dizer-lhe isto, Valentine: ganhei... cinco mil francos. Nos separamos à meia-noite. Incapaz de me conter, meti-me num cabriolé e fiz-me conduzir a casa do meu alquilador. Palpitante, febril, toquei. Quem veio abrir deve ter-me tomado por um louco. Corri para o outro lado da porta mal abriram. Entrei na cavalariça e olhei para as manjedouras. Que sorte! Médeah tasquinhava o seu feno. Corri para uma sela, coloquei-lha eu próprio, pus-lhe o freio e Medeah prestou-se com a melhor boa vontade do mundo a esta operação! Depois, depositei os quatro mil e quinhentos francos nas mãos do alquilador estupefato, saí e passei a noite a passear na Champs-Élysées. Vi luz na janela do Conde e pareceu-me distinguir a sua sombra atrás das cortinas. Agora, Valentine, juraria que o Conde soube que eu desejava o cavalo e perdeu de propósito para eu ganhar.
— Meu querido Maximilien, é na verdade, demasiado imaginativo — perguntou Valentine — Não me amará muito tempo... um homem que compõe assim poesia seria incapaz de estiolar sem motivo numa paixão monótona como a nossa... mas, valha-me Deus, estão me chamando... não ouve?!
— Valentine — pediu Maximilien através do buraco do tapume — Dê-me o seu dedo mindinho para que o beije...
— Maximilien, tínhamos prometido que seríamos um para o outro duas vozes, duas sombras!
— Como queira, Valentine.
— Ficaria feliz se fizesse o que deseja?
— Oh, sim!
Valentine subiu para um banco e passou, não o dedo mindinho pela abertura, mas sim a mão toda por cima do tapume.
Maximilien soltou um grito e, subindo por seu turno para o marco, pegou naquela mão adorada e aplicou-lhe os lábios ardentes. Mas a mãozinha fugiu-lhe imediatamente por entre as suas e o rapaz ouviu correr Valentine, talvez assustada com a sensação que acabava de experimentar.




 continua...





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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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