terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 37




XXXVII

AS CATACUMBAS DE SÃO SEBASTIÃO




F
ranz talvez nunca tivesse experimentado na sua vida uma impressão tão nítida, uma passagem tão rápida da alegria à tristeza, como naquele momento. Dir-se-ia que Roma, sob o sopro mágico de algum demônio da noite, acabava de se transformar num vasto túmulo. Por um caso que aumentava ainda mais a intensidade das trevas, a Lua, que estava em quarto minguante, só devia aparecer por volta das onze horas da noite. As ruas que o jovem percorria estavam, portanto mergulhadas na mais profunda escuridão. De resto, o trajeto era curto. Ao cabo de dez minutos a sua carruagem, ou antes, a do Conde, parou diante do Hotel de Espanha.
O jantar esperava; mas como Albert prevenira de que não contava regressar tão cedo, Franz sentou-se à mesa sem ele. Mestre Pastrini, que estava habituado a vê-los jantar juntos, perguntou o motivo da sua ausência; mas Franz limitou-se a responder que Albert recebera na antevéspera um convite que aceitara. A extinção súbita dos moccoletti, a escuridão que substituíra a luz, o silêncio que sucedera ao barulho, tinham deixado no espírito de Franz uma certa tristeza que não estava isenta de inquietação. Jantou, portanto muito silenciosamente, apesar da solicitude oficiosa do seu hospedeiro, que entrou duas ou três vezes para perguntar se não precisava de nada.
Franz estava resolvido a esperar Albert até o mais tarde possível. Pediu, pois a carruagem apenas para as onze horas e solicitou a mestre Pastrini que o mandasse prevenir imediatamente se Albert voltasse ao hotel, fosse qual fosse o motivo. Às onze horas, Albert ainda não regressara, Franz vestiu-se e saiu, depois de prevenir o hoteleiro de que passaria a noite na casa do duque de Bracciano.
A casa do duque de Bracciano, é uma das mais encantadoras casas de Roma, e sua mulher, umas das últimas herdeiras dos Colona, faz-lhe as honras na perfeição. Resulta daí que as festas que ele dá gozam de celebridade européia. Franz e Albert tinham chegado a Roma com cartas de recomendação para ele. Por isso as primeiras palavras do duque foram para perguntar a Franz o que era feito do seu companheiro de viagem. Franz respondeu-lhe que se tinham separado no momento em que se iam apagar os moccoli e que o perdera de vista na Via Macello.
— E ainda não regressou? — perguntou o duque.
— Esperei-o até agora — respondeu Franz.
— Sabe aonde ia?
— Não, exatamente. Creio, porém que se tratava de qualquer coisa como uma entrevista amorosa.
— Diabo — disse o duque — É mau dia, ou antes, é má noite para uma pessoa se demorar lá fora! Não é verdade, Sra. Condessa?
Estas últimas palavras dirigiam-se à condessa G.... que acabava de chegar e passeava pelo braço do Sr. Torlonia, irmão do duque.
— Acho, pelo contrário, que se trata de uma noite encantadora — respondeu a condessa — Aqueles que estão aqui só se queixarão de uma coisa: de que passar demasiado depressa.
— Por isso — perguntou o duque, sorrindo — Não me refiro às pessoas que estão aqui. Essas só correm um perigo: os homens, de se apaixonarem pela senhora; as mulheres de adoecerem de inveja ao verem-na tão bela. Refiro-me às pessoas que andam pelas ruas de Roma.
— Meu Deus — perguntou a Condessa — Quem anda pelas ruas de Roma a estas horas, a não ser que seja para ir ao baile?
— O nosso amigo Albert de Morcerf, Sra. Condessa, que deixei atrás da sua desconhecida por volta das sete horas da noite — respondeu Franz — E que desde então nunca mais vi.
— Como, e não sabe onde está?
— Não faço a menor idéia.
— Está armado?
— Foi vestido de palhaço.
— Não devia tê-lo deixado ir — disse o duque a Franz — Pois conhece Roma melhor do que ele.
— Pois sim, mas seria o mesmo que tentar deter o número três dos barberi, que hoje ganhou a corrida — respondeu Franz — De resto, que poderia lhe acontecer?
— Sei lá! A noite está muito escura e o Tibre fica muito perto da Via Macello.
Franz sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo ao ver o duque e a condessa tão de acordo com as suas inquietações pessoais.
— Por isso deixei recado no hotel de que tinha a honra de passar a noite em sua casa, Sr. Duque — disse Franz — Para me virem anunciar o seu regresso.
— Olhe — atalhou o duque — Creio precisamente que um dos meus criados anda à sua procura.
O duque não se enganava Ao ver Franz, o criado aproximou-se dele.
— Excelência — disse — O dono do Hotel de Espanha manda dizer-vos que está lá à vossa espera um homem com uma carta do visconde de Morcerf.
— Com uma carta do visconde?! — exclamou Franz.
— Exatamente.
— E quem é esse homem?
— Ignoro-o.
— Porque não veio trazê-la aqui?
— O mensageiro não me deu nenhuma explicação.
— E onde está o mensageiro?
— Foi-se embora assim que me viu entrar na sala do baile para o prevenir.
— Oh, meu Deus, vá depressa — rogou a condessa a Franz — Pobre rapaz, pode ter ocorrido algum acidente.
— Vou imediatamente — respondeu Franz.
— Voltará, para nos dar notícias? — perguntou a condessa.
— Voltarei, se o caso não for grave. De contrário, não sei o que será de mim próprio.
— Em todo o caso, prudência — recomendou a condessa.
— Oh, esteja tranqüila!
Franz pediu o chapéu e partiu a toda a pressa. Mandara embora a carruagem e ordenara ao cocheiro que viesse buscá-lo às duas horas, mas, por sorte, o Palácio Bracciano, que dá por um lado para a Rua do Corso e por outro para a Praça dos Santos Apóstolos, fica apenas a dez minutos a pé do Hotel de Espanha.
Ao aproximar-se do hotel, Franz viu um homem de pé no meio da rua e não duvidou um só instante que fosse o mensageiro de Albert. O homem estava envolto numa grande capa. Foi ao seu encontro, mas com grande espanto de Franz, o homem foi o primeiro a dirigir-lhe a palavra.
— Que quer de mim, Excelência? — perguntou dando um passo atrás, como um homem que se põe em guarda.
— Não é o senhor que me traz uma carta do visconde de Morcerf? — perguntou Franz.
— Vossa Excelência está hospedado no hotel de Pastrini?
— Estou.
— E Vossa Excelência é o companheiro de viagem do visconde?
— Sou.
— Como se chama Vossa Excelência?
— Barão Franz d’Epinay.
— Então é de fato a Vossa Excelência que esta carta é dirigida.
— Tem resposta? — perguntou Franz, tirando-lhe a carta da mão.
— Tem. Pelo menos o seu amigo a espera.
— Venha ao meu quarto para lha dar.
— Prefiro esperá-la aqui — replicou, rindo, o mensageiro.
— Por quê?
— Vossa Excelência compreenderá porquê quando ler a carta.
— E o encontrarei aqui?
— Sem dúvida nenhuma.
Franz entrou. Na escada encontrou mestre Pastrini.
— Então? — perguntou-lhe o hoteleiro.
— Então o quê? — respondeu Franz.
— Viu o homem que desejava falar-lhe da parte do seu amigo? — inquiriu Pastrini.
— Vi, sim, e entregou-me esta carta — respondeu Franz — Mande alumiar-me até ao quarto, por favor.
O hoteleiro ordenou a um criado que precedesse Franz com uma vela. O jovem notara em mestre Pastrini um ar assustado, ar que só contribuíra para aumentar o seu desejo de ler a carta de Albert. Por isso, aproximou-se da vela assim que ela foi acesa e desdobrou o papel. A carta fora escrita pelo punho de Albert e estava assinada por ele. Franz releu-a duas vezes, de tal forma estava longe de esperar o que continha. Ei-la reproduzida textualmente:


Caro amigo.
Assim que receber a presente, faça favor de tirar da minha carteira, que encontrará na gaveta quadrada da minha escrivaninha a minha carta de crédito. Junte-lhe a sua se ela não for suficiente. Corra a casa de Torlonia, levante imediatamente quatro mil piastras e entregue-as ao portador. É urgente que esta importância me seja enviada sem qualquer demora. Não insisto mais, mas conto consigo como você poderia contar comigo.
Seu amigo,

ALBERT DE MORCERF

P.S. — I believe now to italian banditti [1]


[1] “Agora acredito em bandidos italianos”. (N. do T.)

Por baixo destas linhas estavam escritas por mão desconhecida estas poucas palavras em italiano:


Se alle sei della mattina le quattro mile piastre non sono nelle mie mani, alla sette il conte Alberto avia cessato di vivere [2].

LUIGI VAMPA


[2] “Se às seis da manhã as quatro mil piastras não estiverem em meu poder, às sete o Visconde Alberto deixará de viver”. (N. do T.)

Esta segunda assinatura explicou tudo a Franz, que compreendeu a repugnância do mensageiro em subir ao seu quarto.
A rua parecia-lhe mais segura do que os aposentos de Franz. Albert caíra nas mãos do famoso chefe de bandidos, em cuja existência durante muito tempo se recusara a acreditar.
Não havia tempo a perder. Correu à escrivaninha, abriu a gaveta indicada, tirou a carteira e desta a carta de crédito. A carta fora emitida pelo total de seis mil piastras, mas destas seis mil piastras Albert levantara já três mil. Quanto a Franz, não tinha nenhuma carta de crédito. Como residia em Florença e viera a Roma para passar apenas sete ou oito dias, trouxera uma centena de luíses, e desses cem luíses restavam-lhe quando muito cinqüenta.
Faltavam, portanto setecentas a oitocentas piastras para que os dois, Franz e Albert, pudessem reunir a importância exigida. Claro que num caso assim Franz podia contar com a amabilidade do Sr. Torlonia. Preparava-se, pois para regressar ao Palácio Bracciano sem perda de um instante quando de súbito uma idéia luminosa lhe atravessou o espírito. Lembrou-se do Conde de Monte Cristo.
Franz ia mandar chamar mestre Pastrini quando o viu aparecer em pessoa à entrada da porta.
— Meu caro Sr. Pastrini — disse-lhe vivamente — Acha que o Conde estará nos seus aposentos?
— Está sim, Excelência. Acaba de entrar.
— Já terá tido tempo de se deitar?
— Duvido.
— Então, toque-lhe à porta, peço-lhe, e rogue-lhe que me receba.
Mestre Pastrini apressou-se a cumprir as instruções que lhe davam. Cinco, minutos depois estava de volta.
— O Conde espera Vossa Excelência — disse.
Franz atravessou o patamar e um criado introduziu-o junto do Conde. Este encontrava-se num gabinetezinho que Franz ainda não vira e que estava rodeado de divãs. O Conde veio ao seu encontro.
— Que bom vento o traz aqui a esta hora? — perguntou — Virá por acaso pedir-me de cear? Seria muita amabilidade da sua parte.
— Não, venho falar-lhe de um assunto grave.
— De que assunto? — perguntou o Conde, fitando Franz com o profundo que lhe era habitual.
— Estamos sós?
O Conde foi até à porta e voltou.
— Perfeitamente sós — disse.
Franz apresentou-lhe a carta de Albert.
— Leia — pediu-lhe.
O Conde leu a carta.
— Ah, ah!... — exclamou.
— Leu também o post-scriptum?
— Li. Bem vejo:


Se alle sei della mattina le quattro mile piastre non sono nelle mie mani, alla sette il conte Alberto avia cessato di vivere.

LUIGI VAMPA


— Que diz a isso? — perguntou Franz.
— Tem a importância que lhe pedem?
— Tenho, menos oitocentas piastras.
O Conde dirigiu-se à sua escrivaninha, abriu-a e puxou uma gaveta cheia de ouro:
— Espero — disse a Franz — Que me não faça a injúria de se dirigir a outro em vez de a mim.
— Bem vê que, pelo contrário, vim direito ao senhor — respondeu Franz.
— Agradeço—lhe. Tome.
E fez sinal a Franz para que se servisse do dinheiro que estava na gaveta.
— É de fato necessário mandar essa importância a Luigi Vampa? — perguntou o rapaz, olhando por seu turno fixamente para o Conde.
— Demônio! — exclamou este — Julgue por si mesmo. O post-scriptum é claro.
— Parece-me que se o senhor se desse ao incômodo de procurar, encontraria algum meio capaz de simplificar muito a negociação — observou Franz.
— Qual? — perguntou o Conde, atônito.
— Por exemplo, se fossemos procurar Luigi Vampa juntos, estou certo de que não nos recusaria a libertação de Albert.
— A mim? Que influência julga que tenho sobre esse bandido?
— Não acaba de lhe prestar um desses serviços que se não esquecem?
— Qual?
— Não acaba de salvar a vida a Peppino?
— Ah, ah!... quem lhe disse isso?
— Que importa? Sei-o.
O Conde ficou um instante calado e de sobrolho franzido.
— Se eu fosse procurar Vampa você me acompanharia?
— Se a minha companhia lhe não for muito desagradável.
— Pois seja. O tempo está bom e um passeio pelos campos de Roma só nos pode fazer bem.
— É preciso levar armas?
— Para quê?
— Dinheiro?
— É inútil. Onde está o homem que trouxe esse bilhete?
— Na rua.
— Espera a resposta?
— Espera.
— Precisamos saber mais ou menos aonde vamos. Vou chamá-lo.
— Inútil, ele não quis subir.
— Ao seu quarto, talvez; mas ao meu, não levantará obstáculos.
O Conde foi à janela do gabinete, que dava para a rua, e assobiou de certa forma. O homem da capa afastou-se da parede e avançou até ao meio da rua.
— Salite! — disse o Conde, no tom em que daria uma ordem a um criado.
O mensageiro obedeceu sem demora nem hesitação, com pressa até, galgou os quatro degraus do pórtico e entrou no hotel. Cinco segundos depois estava à porta do gabinete.
— Ah, és tu, Peppino! — disse o Conde.
Mas Pepino, em vez de responder, caiu de joelhos, pegou na mão do Conde e beijou-a repetidas vezes.
— Ah, ah! — exclamou o Conde — Ainda não esqueceste que te salvei a vida. É estranho, pois já se vão oito dias.
— Não, Excelência, e nunca o esquecerei — respondeu Peppino em tom de profundo reconhecimento.
— Nunca é muito tempo! Mas enfim já é muito que o acredites. Levante-se e responda.
Peppino deitou uma olhadela inquieta a Franz.
— Oh, pode falar diante de Sua Excelência! — tranqüilizou-o o Conde — É um dos meus amigos.
— Permite-me que lhe dê este título, não é verdade? — perguntou o Conde em francês, virando-se para Franz — É necessário para conquistar a confiança deste homem.
— Pode falar diante de mim — declarou Franz — Sou um amigo do Conde.
— Ainda bem — disse Peppino, virando-se por seu turno para o Conde — Interrogue-me, Excelência, e responderei.
— Como foi que o visconde Albert caiu nas mãos de Luigi?
— Excelência, a coche do francês cruzou-se várias vezes com a de Teresa.
— A amante do chefe?
— Sim. O francês fez-lhe olhos ternos e Teresa divertiu-se a corresponder-lhe. O francês deitou-lhe flores e ela retribuiu-lhe. Tudo isto, evidentemente, com o consentimento do chefe, que ia no mesmo coche.
— Como, Luigi Vampa estava no coche das camponesas romanas?! — exclamou Franz.
— Era ele quem a conduzia, mascarado de cocheiro — respondeu Peppino.
— Depois? — perguntou o Conde.
— Bom, depois o francês tirou a máscara, e Teresa, sempre com o consentimento do chefe, fez o mesmo. O francês pediu uma entrevista e Teresa concedeu-lha. Simplesmente, em vez de Teresa, foi Beppo quem ele encontrou nos degraus da Igreja de San-Giacomo.
— Como — interrompeu-o novamente Franz — Aquela camponesa que lhe tirou o moccoletto?...
— Era um rapaz de quinze anos — respondeu Peppino — Mas o seu amigo não tem de se envergonhar por ter sido apanhado, Beppo tem apanhado muitos outros.
— E Beppo levou-o para fora das muralhas? — perguntou o Conde.
— Exatamente. Um coche esperava-o ao fundo da Via Macello. Beppo meteu-se nela e convidou o francês a subir. Ele não esperou que o convidassem duas vezes. Ofereceu galantemente a direita a Beppo e sentou-se a seu lado. Beppo anunciou-lhe então que ia conduzi-lo a uma vivenda situada a uma légua de Roma. O francês garantiu a Beppo que estava pronto a segui-lo até ao fim do mundo. O cocheiro subiu imediatamente a Rua da Ripetta e alcançou a Porta de São Paulo. A duzentos passos no campo, como o francês se mostrasse demasiado atrevido Beppo encostou-lhe um par de pistolas à garganta. Ato contínuo, o cocheiro deteve os cavalos, virou-se no seu lugar e fez outro tanto. Ao mesmo tempo, quatro dos nossos que estavam escondidos nas margens do Almo correram para as portinholas. O francês bem queria defender-se, até ia estrangulando Beppo, segundo ouvi dizer, mas não podia fazer nada contra cinco homens armados. Teve de se render. Mandaram-no descer da carruagem, levaram-no pela margem do ribeiro e conduziram-no à presença de Teresa e de Luigi, que o esperavam nas Catacumbas de São Sebastião.
— Bom — disse o Conde, virando-se para Franz — Trata-se de uma história como outra qualquer. Que diz o senhor, que é mais versado do que eu nessas coisas?
— Digo que acharia a história deveras divertida — respondeu Franz — Se tivesse acontecido a outro em vez de ao pobre Albert.
— A verdade — declarou o Conde — É que se o senhor não me tivesse encontrado no hotel, a aventura custaria um bocadinho cara ao seu amigo. Mas tranqüilize-se, tudo quanto lhe custar será um pouco de medo.
— Vamos buscá-lo? — perguntou Franz.
— Decerto, tanto mais que se encontra num lugar deveras pitoresco. Conhece as catacumbas de São Sebastião?
— Não, nunca fui até lá, mas tencionava ir um dia.
— Pois aproveite a oportunidade. Seria difícil encontrar outra melhor. Tem a sua carruagem?
— Não.
— Não tem importância. Costumo ter uma atrelada dia e noite.
— Completamente atrelada?
— Sim. Sou um homem muito caprichoso. Confesso-lhe que às vezes me levanto, no fim de jantar ou a meio da noite, e apetece-me partir para qualquer parte do mundo e parto.
O Conde tocou a campainha e entrou o seu criado de quarto.
— Mande sair a carruagem da cocheira — ordenou — E veja se as pistolas estão nas bolsas. É inútil acordar o cocheiro, Ali conduzirá.
Pouco depois ouviu-se o ruído da carruagem, que parava diante da porta.
O Conde puxou o relógio.
— Meia-Noite e meia — disse — Se partíssemos daqui às cinco horas da manhã ainda chegávamos a tempo, mas talvez a demora fizesse passar uma má noite ao seu companheiro. É melhor, portanto correr a arrancá-lo das mãos dos infiéis. Continua decidido a acompanhar-me?
— Mais do que nunca.
— Então, venha.
Franz e o Conde saíram, seguidos de Peppino.
Encontraram a carruagem à porta. Ali ocupava o lugar do cocheiro. Franz reconheceu o escravo mudo da gruta de Monte Cristo.
Franz e o Conde subiram para a carruagem, que era um cupé. Peppino sentou-se ao lado de Ali e partiram a galope. Ali recebera as suas instruções antecipadamente, pois meteu pela Rua do Corso, atravessou o Campo Vaccino, subiu a Estrada de São Gregório e chegou à Porta de São Sebastião. Aí, o porteiro tentou levantar algumas dificuldades, mas o Conde de Monte Cristo apresentou uma autorização do Governador de Roma para entrar na cidade e sair a toda a hora do dia ou da noite. A barreira foi, portanto levantada, o porteiro recebeu um luís pelo trabalho e passaram.
A estrada que a carruagem seguia era a antiga Via Ápia, toda ladeada de túmulos. De vez em quando, ao luar que começava a brilhar, parecia a Franz ver como que uma sentinela destacar-se de uma ruína. Mas imediatamente, a um sinal trocado entre Peppino e a sentinela, esta reentrava na sombra e desaparecia.
Um pouco antes do Circo de Caracala, a carruagem parou, Peppino veio abrir a portinhola e o Conde e Franz desceram.
— Dentro de dez minutos chegaremos — disse o Conde ao companheiro.
Depois chamou Peppino à parte, deu-lhe uma ordem em voz baixa e Peppino partiu depois de se munir de um archote que tirou da caixa do cupé. Passaram-se mais cinco minutos, durante os quais Franz viu o pastor se meter por um caminho no meio das ondulações do terreno que formam o solo revolvido da planície de Roma e desaparecer no meio das altas ervas avermelhadas que parecem a juba eriçada de algum leão gigantesco.
— Agora, devemos segui-lo — disse o Conde.
Franz e o Conde penetraram por seu turno no mesmo caminho, que ao fim de cem passos os conduziu por uma vertente íngreme ao fundo de um valezinho.
Não tardaram a ver dois homens conversando na sombra.
— Devemos continuar a avançar ou esperar? — perguntou Franz ao Conde.
— Caminhemos. Peppino deve ter prevenido a sentinela da nossa chegada.
Com efeito, um dos homens era Peppino e o outro um bandido colocado em guarda avançada. Franz e o Conde aproximaram-se. O bandido cumprimentou-os.
— Excelência — disse Peppino, dirigindo-se ao Conde — Se quiser fazer o favor de me acompanhar, a abertura das catacumbas fica a dois passos daqui.
— Está bem — concordou o Conde — Vá na frente.
Com efeito, atrás de um maciço de silvas e no meio de algumas rochas via-se uma abertura pela qual mal cabia um homem. Peppino foi o primeiro a esgueirar-se através da fenda. Mas mal se davam alguns passos a passagem subterrânea alargava. Então, deteve-se, acendeu o archote e virou-se para ver se o seguiam.
O Conde fora o primeiro a penetrar naquela espécie de respiradouro; Franz vinha atrás dele. O terreno descia suavemente e alargava-se à medida que avançavam. No entanto, Franz e o Conde eram ainda obrigados a caminhar curvados e com dificuldade passariam a par. Percorreram ainda cento e cinqüenta passos assim e depois foram detidos pelo grito de “Quem vem lá?”.
Ao mesmo tempo, viram no meio da escuridão brilhar no cano de uma carabina o reflexo do seu próprio archote.
— Ami! — respondeu Peppino.
Avançou sozinho e disse algumas palavras em voz baixa à segunda sentinela que, como a primeira, cumprimentou e fez sinal aos visitantes noturnos que podiam continuar o seu caminho.
Atrás da sentinela ficava uma escada de uns vinte degraus. Franz e o Conde desceram-nos e encontraram-se numa espécie de cruzamento mortuário do qual divergiam cinco caminhos, como os raios de uma estrela. As paredes, cobertas de nichos sobrepostos com a forma de túmulos, indicavam que se entrara finalmente nas catacumbas. Numa das cavidades, cuja extensão era impossível distinguir, viam-se de dia alguns raios de luz.
O Conde pousou a mão no ombro de Franz.
— Quer ver um acampamento de bandidos em repouso? — perguntou-lhe.
— Certamente — respondeu Franz.
— Então, venha comigo... Peppino, apague o archote.
Peppino obedeceu e Franz e o Conde encontraram-se mergulhados na mais profunda escuridão. Apenas cerca de cinqüenta passos adiante deles continuaram a dançar ao longo das paredes alguns clarões avermelhados, mais visíveis desde que Peppino apagara o archote.
Avançaram silenciosamente, com o Conde a guiar Franz, como se possuísse a singular faculdade de ver nas trevas. Aliás, o próprio Franz distinguia mais facilmente o caminho à medida que se aproximava dos reflexos que lhe serviam de guias.
Três arcadas, das quais a do meio servia de porta, deram-lhes passagem. As arcadas deitavam de um lado para a galeria onde estavam o Conde e Franz e do outro para uma grande sala quadrada, toda cercada de nichos idênticos àqueles a que já nos referimos. No meio da sala erguiam-se quatro pedras que noutros tempos tinham servido de altar, como indicava a cruz que ainda as encimava.
Uma única lanterna pousada num fuste de coluna iluminava com uma luz pálida e vacilante a estranha cena que se oferecia aos olhos dos dois visitantes ocultos na sombra. Um homem estava sentado, com o cotovelo apoiado na coluna, e lia de costas voltadas para as arcadas, pela abertura das quais os recém-chegados o observavam.
Era o chefe da quadrilha, Luigi Vampa.
À roda dele, reunidos a seu bel-prazer, deitados nas suas capas ou encostados a uma espécie de banco de pedra que rodeava por completo o columbário, distinguia-se uma vintena de bandidos. Todos tinham a carabina ao alcance da mão.
Ao fundo, silenciosa, quase invisível e como se fosse, uma sombra, uma sentinela passeava de um lado para o outro diante de uma espécie de abertura que só se distinguia porque as trevas pareciam mais espessas nesse lugar.
Quando o Conde achou que Franz já apreciara suficientemente aquele quadro pitoresco, levou o dedo aos lábios para lhe recomendar silêncio, subiu os três degraus que levavam da galeria ao columbário, entrou na sala pela arcada do meio e dirigiu-se para Vampa, que estava tão profundamente absorto na leitura que não ouviu o ruído dos seus passos.
— Quem vem lá? — gritou a sentinela, maquinalmente, ao ver à luz da lanterna uma espécie de sombra crescer atrás do chefe.
Ao ouvir este grito, Vampa levantou-se vivamente e tirou ao mesmo tempo uma pistola da cintura. Num ápice todos os bandidos estavam de pé e vinte canos de carabina visavam o Conde.
— Então — disse este tranquilamente, numa voz cheia de calma, e sem que um só músculo do seu rosto estremecesse — Então, meu caro Vampa, parece-me demasiado aparato para receber um amigo!
— Baixem as armas! — gritou o chefe, fazendo um gesto imperioso com uma das mãos, enquanto com a outra tirava respeitosamente o chapéu.
Depois, virando-se para a singular personagem que dominava toda a cena:
— Perdão, Sr. Conde, mas estava tão longe de esperar a honra da sua visita que não o reconheci.
— Em todo o caso, parece-me que tem a memória curta, Vampa — perguntou o Conde — Pois não só se esquece do rosto das pessoas como também das condições estabelecidas com elas.
— Que condições esqueci, Sr. Conde? — perguntou o bandido, como um homem que cometeu um erro só deseja repará-lo.
— Não combinamos — disse o Conde — Que tanto a minha pessoa como a dos meus amigos seriam sagradas para si?
— E em que faltei ao tratado, Excelência?
— Raptou esta noite e trouxe para cá o Visconde Albert de Morcerf. Pois bem — prosseguiu o Conde num tom que fez estremecer Franz — Esse jovem é um dos meus amigos, esse jovem está hospedado no mesmo hotel que eu, esse jovem andou na Rua do Corso durante oito dias no meu próprio coche, e, no entanto, repito-lhe, você raptou-o, trouxe-o para cá e — acrescentou o Conde tirando a carta da algibeira — Pediu resgate por ele como se fosse um qualquer.
— Porque não me preveniram disso? — perguntou o chefe, virando-se para os seus homens, que recuaram todos diante do seu olhar — Porque me expuseram assim a faltar à minha palavra para com um homem como o Sr. Conde, que tem a vida de todos nós nas suas mãos? Pelo, sangue de Cristo, se tivesse a certeza de que um de vocês sabia que o rapaz era amigo de Sua Excelência, estourava-lhe os miolos por minha própria mão!
— Vê? — disse o Conde virando-se para Franz — Bem lhe disse que havia qualquer equívoco nisto.
— Não está sozinho? — perguntou Vampa, com inquietação.
— Estou com a pessoa a quem esta carta foi dirigida e a quem quis provar que Luigi Vampa é homem de palavra. Aproxime-se, Excelência — disse a Franz — Aqui está Luigi Vampa que lhe vai dizer pessoalmente que está arrependido do erro que acaba de cometer.
Franz aproximou-se.
O chefe deu alguns passos ao seu encontro.
— Seja bem-vindo entre nós, Excelência — cumprimentou — Ouviu o que acaba de dizer o Conde e o que lhe respondi. Acrescentarei que não desejaria, pelas quatro mil piastras em que fixei o resgate do seu amigo, que semelhante coisa tivesse acontecido.
— Mas onde está o prisioneiro? — perguntou Franz, olhando à sua volta com inquietação — Não o vejo...
— Espero que não lhe tenha acontecido nada — disse o Conde, franzindo o sobrolho.
— O prisioneiro está ali — informou Vampa, indicando com a mão o recanto diante do qual passeava o bandido que se encontrava de sentinela — E eu próprio vou lhe anunciar que está livre.
O chefe dirigiu-se para o local designado por si como sendo o que servia de prisão a Albert e Franz e o Conde seguiram-no.
— Que faz o prisioneiro? — perguntou Vampa à sentinela.
— Garanto ao meu capitão que não sei — respondeu o interpelado — Há uma hora que não o ouço mexer-se.
— Venha, Excelência! — disse Vampa.
O Conde e Franz subiram sete ou oito degraus, sempre precedidos pelo chefe, que correu um ferrolho e empurrou uma porta. Então, à luz de uma lanterna idêntica à que iluminava o columbário, viram Albert, envolto numa capa que lhe emprestara um dos bandidos, deitado a um canto e dormindo profundamente.
— Sim, senhor! — exclamou o Conde sorrindo com o sorriso que lhe era peculiar — Nada mal para um homem que devia ser fuzilado às sete horas da manhã.
Vampa olhava Albert adormecido, com certa admiração. Via-se que não era insensível àquela prova de coragem.
— Tem razão, Sr. Conde — declarou — Este homem deve ser seu amigo.
Depois, aproximou-se de Albert e tocou-lhe no ombro.
— Excelência! — chamou — Quer fazer o favor de acordar?
Albert estendeu os braços, esfregou os olhos e abriu-os.
— Ah, ah! — bocejou — É você, capitão? Demônio, não lhe custava nada deixar-me dormir. Estava vivendo um sonho encantador: sonhava que dançava o galope em casa de Torlonia com a condessa G...!
Puxou o relógio, que conservara, para saber as horas.
— Uma e meia da madrugada! — exclamou — Mas por que diabo me acordara a esta hora?
— Para lhe dizer que está livre, Excelência.
— Meu caro — perguntou Albert com uma tranqüilidade de espírito perfeita — Fixe bem daqui em diante esta máxima de Napoleão, o Grande: “Acordem-me só se houver más notícias”. Se me tivesse deixado dormir, terminava o meu galope e lhe ficaria reconhecido toda a vida... pagaram o meu resgate?
— Não, Excelência.
— Então como é que estou livre?
— Alguém a quem não posso recusar nada veio reclamá-lo.
— Aqui?
— Aqui.
— Por Deus, que pessoa tão amável!
Albert olhou à sua volta e viu Franz.
— Como, foi você, meu caro Franz, que levou a sua dedicação a este ponto? — perguntou.
— Não fui eu — respondeu Franz — Mas sim o nosso vizinho, o Sr. Conde de Monte Cristo.
— Com a breca, Sr. Conde — disse alegremente Albert, endireitando a gravata e os punhos — O senhor é um homem realmente precioso, e espero que me considere um seu devedor eternamente grato, primeiro pelo empréstimo da carruagem e depois por isto! — e estendeu a mão ao Conde, que estremeceu no momento de lhe dar a sua, mas que mesmo assim não a recusou.
O bandido olhava toda esta cena com ar estupefato. Estava evidentemente habituado a ver os seus prisioneiros tremer diante dele, mas havia ali um cujo temperamento brincalhão não se alterara absolutamente nada. Quanto a Franz, estava encantado por Albert ter sustentado, mesmo perante um bandido, a honra nacional.
— Meu caro Albert — disse-lhe — Se se despachar, ainda teremos tempo de ir acabar a noite em casa de Torlonia. Retomará o seu galope no ponto em que o interrompeu, de modo que não guardará nenhum rancor ao Sr. Luigi, que em todo este caso se comportou realmente como um cavalheiro.
— Ah, não há dúvida que tem razão! — concordou Albert.
— Poderemos estar lá antes das duas horas. Sr. Luigi — continuou — Há alguma formalidade a cumprir para se despedir de Vossa Excelência?
— Nenhuma, senhor — respondeu o bandido — Está livre como o ar.
— Nesse caso, boa e alegre vida. Venham, senhores, venham!
E Albert, seguido de Franz e do Conde, desceu a escada e atravessou a grande sala quadrada. Todos os bandidos estavam de pé e de chapéu na mão.
— Peppino — disse o chefe — Dê-me o archote.
— Que vai fazer? — perguntou o Conde.
— Acompanhá-los — respondeu o capitão — É a mais pequena honra que posso prestar a Vossa Excelência.
E tomando o archote das mãos do pastor, caminhou adiante dos visitantes, não como um criado que se desempenha de uma tarefa servil, mas sim como um rei que precede embaixadores.
Chegado à porta, inclinou-se.
— E agora, Sr. Conde — disse — Renovo-lhe as minhas desculpas e espero que me não guarde qualquer ressentimento pelo que acaba de acontecer.
— Não, meu caro Vampa — respondeu o Conde — De resto, resgata os seus erros de forma tão galante que quase nos sentimos tentados a agradecer-lhe tê-los cometido.
— Meus senhores — prosseguiu o chefe virando-se para os jovens — Talvez o convite não lhes pareça muito atraente, mas se alguma vez lhes apetecer fazerem-me segunda visita onde quer que esteja serão bem-vindos.
Franz e Albert cumprimentaram.
O Conde foi o primeiro a sair e Albert seguiu-o. Franz ficou para trás.
— Vossa Excelência tem alguma coisa a pedir-me? — perguntou Vampa, sorrindo.
— Tenho, confesso — respondeu Franz — Gostaria de saber que obra lia com tanta atenção quando chegamos.
Os Comentários de César — respondeu o bandido — É o meu livro predileto.
— Então, não vem? — perguntou Albert.
— Pronto, aqui estou! — respondeu Franz.
E saiu por seu turno do respiradouro. Deram alguns passos na planície.
— Ah, perdão! — exclamou Albert, voltando para trás — Dá-me licença, capitão?
E acendeu o charuto no archote de Vampa.
— Agora, Sr. Conde, o mais depressa possível — pediu — Tenho uma vontade enorme de ir acabar a noite em casa do duque de Bracciano.
Encontraram a carruagem onde a tinham deixado. O Conde disse uma única palavra em árabe a Ali e os cavalos partiram a galope. Eram precisamente duas horas no relógio de Albert quando os dois amigos entraram na sala de dança.
A sua entrada foi um acontecimento. Mas como vinham juntos, todas as preocupações que pudessem existir acerca de Albert cessaram imediatamente.
— Minha senhora — disse o Visconde de Morcerf dirigindo-se à Condessa — Ontem teve a bondade de me prometer um galope. Venho um bocadinho tarde pedir o cumprimento dessa graciosa promessa, mas está aqui o meu amigo, que é incapaz de mentir como sabe, que lhe garantirá que a culpa não foi minha.
E como neste momento a música dava o sinal da valsa, Albert passou o braço à roda da cintura da Condessa e desapareceu com ela no turbilhão dos dançarinos.
Entretanto, Franz pensava no singular arrepio que percorrera todo o corpo do Conde Monte Cristo no momento em que fora de certo modo obrigado a dar a mão a Albert.





  
 continua... 


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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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