terça-feira, 9 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 44



XLIV

A “VENDETTA”




— Por onde deseja que comece, Sr. Conde? — perguntou Bertuccio.
— Por onde quiser — respondeu Monte Cristo — Pois não sei absolutamente nada.
— Mas eu julgava que o Sr. Abade Busoni dissera a Vossa Excelência...
— Sim, contou-me alguns pormenores, sem dúvida, mas se passaram sete ou oito anos e esqueci tudo isso.
— Então posso, sem receio de aborrecer Vossa Excelência...
— Vamos, Sr. Bertuccio, vamos! Me servirá de jornal da noite...
— O caso remonta a 1815.
— Ah, ah, não se pode dizer que foi ontem, 1815! — exclamou Monte Cristo.
— Não, senhor, e, no entanto tenho tão presentes na memória os mais pequenos pormenores como se estivéssemos apenas no dia seguinte. Eu tinha um irmão mais velho, que estava a serviço do imperador. Tinha o posto de tenente num regimento constituído inteiramente por corsos. Esse irmão era o meu único amigo. Tínhamos ficado órfãos, eu aos cinco anos e ele aos dezoito, e ele me criou como se fosse seu filho. Em 1814, no tempo dos Bourbon, ele casou-se. O imperador regressou da Ilha de Elba, o meu irmão voltou imediatamente ao serviço e, ferido ligeiramente em Waterloo, retirou-se com o Exército para la do Loire.
— Mas o que me está contando é a história dos Cem Dias, Sr. Bertuccio, e essa já está contada, se me não engano — observou o Conde.
— Desculpe, Excelência, mas estes primeiros pormenores são necessários e o senhor prometeu-me ser paciente.
— Continue! Continue! Só tenho uma palavra.
— Um dia recebemos uma carta. Devo dizer-lhe que residíamos na aldeiazinha de Rogliano, na extremidade do cabo Corso. A carta era do meu irmão. Dizia-nos que o Exército fora desmobilizado e que regressava por Châteauroux, Clermond-Ferrand, Le Puy e Nímes. Pedia-me que no caso de dispor de algum dinheiro, que o mandasse para Nímes, ao cuidado de um estalajadeiro nosso conhecido, com o qual eu mantinha certas relações.
— De contrabando — acrescentou Monte Cristo.
— Meu Deus, Sr. Conde, é preciso viver!
— Decerto. Continue.
— Eu gostava muito do meu irmão, como já lhe disse, Excelência. Por isso, resolvi não lhe mandar o dinheiro, mas sim levar-lhe eu mesmo. Possuía um milhar de francos, deixei quinhentos com Assunta, a minha cunhada, peguei os outros quinhentos e pus-me a caminho de Nímes. Era coisa fácil, pois tinha a minha barca e um carregamento para transportar. Tudo secundava o meu projeto. Mas uma vez a barca carregada, começaram a soprar ventos contrários e estivemos quatro ou cinco dias sem poder entrar no Rôdano. Por fim conseguimos e subimos até Arles. Deixei a barca entre Bellegarde e Beaucaire e tomei o caminho de Nímes.
— Chegamos, não é verdade?
— Sim, senhor. Desculpe, mas como Vossa Excelência verá, só lhe digo as coisas absolutamente necessárias. Ora, estava-se no momento dos famosos massacres do Meio-Dia. Andavam por lá dois ou três bandidos chamados Trestaillon, Truphemy e Graffan, quem degolavam nas ruas todos aqueles que suspeitavam ser bonapartistas. O Sr. Conde ouviu decerto falar desses assassínios?
— Vagamente. Estava muito longe da França nessa época. Continue.
— Quem entrava em Nímes caminhava literalmente sobre sangue. A cada passo se encontravam cadáveres. Os assassinos, organizados em quadrilhas, matavam, saqueavam e queimavam. Arrepiei-me ao ver aquela carnificina. Não por mim. Eu, simples pescador corso, não tinha grande coisa a temer. Pelo contrário, aqueles tempos eram bons para nós, contrabandistas. Mas temi pelo meu irmão, soldado do Império, de regresso do Exercito do Loire, com o seu uniforme e as suas dragonas, e que, por conseqüência, tinha tudo a recear. Corri até a casa do nosso estalajadeiro. Os meus pressentimentos não me tinham enganado: o meu irmão chegara na véspera a Nímes e fora assassinado à porta daquele a quem ia pedir hospitalidade. Fiz tudo o que era possível para descobrir os assassinos, mas ninguém se atreveu a me dizer os seus nomes, de tal forma eram temidos. Lembrei-me então dessa justiça francesa de que tanto tinham me falado, que não teme nada, e fui ter com o Procurador Régio.
— E esse procurador régio chamava-se Villefort? — perguntou negligentemente Monte Cristo.
— Chamava, Excelência. Viera de Marselha, onde fora substituto. O seu zelo valera-lhe a promoção. Dizia-se que fora dos primeiros a anunciar ao Governo o desembarque da Ilha de Elba.
— Portanto — prosseguiu Monte Cristo — Apresentou-se no seu gabinete.
“— Senhor” — disse-lhe eu — “O meu irmão foi assassinado ontem nas ruas de Nímes, não sei por quem, mas é sua missão sabê-lo. O senhor é aqui chefe da justiça e compete à justiça vingar aqueles que não soube defender.
“— E quem era o seu irmão?” — perguntou o Procurador Régio.
“— O meu irmão era tenente do batalhão corso.
“— Um soldado do usurpador, portanto?
“— Um soldado dos exércitos franceses.
“— Bom — replicou ele — Empunhou a espada, morreu pela espada.
“— Engana-se, senhor, morreu pelo punhal.
“— Que quer que faça? — respondeu o magistrado.
“— O que lhe disse: quero que o vingue.
“— E de quem?
“— Dos seus assassinos.
“— Não sei quem são!
“— Mande procurá-los.
“— Para quê? O seu irmão deve ter tido qualquer questão e bateu-se em duelo. Todos esses antigos soldados se entregam a excessos, de que se saíam bem no tempo do Império, mas de que se saem mal agora. O povo do Meio-Dia não gosta de soldados nem de excessos.
“— Senhor — insisti — Não é por mim que lhe peço. Eu, chorarei ou me vingarei e pronto. Mas o meu pobre irmão tinha mulher. Se me acontecesse também alguma desgraça, essa pobre criatura morreria de fome, pois vivia exclusivamente dos ganhos do meu irmão. Obtenha-lhe uma pensão do Governo...
“— Cada revolução tem as suas catástrofes — respondeu o Sr. de Villefort — O seu irmão foi vítima desta, foi uma infelicidade, mas o Governo não deve nada à família por isso. Se fossemos julgar todas as vinganças que os partidários do usurpador exerceram sobre os partidários do rei quando por sua vez dispunham do poder, o seu irmão talvez fosse hoje condenado à morte. O que aconteceu é naturalíssimo; é a lei das represálias.
“— O quê, senhor — gritei — Será possível que me fale assim, o senhor, um magistrado?!
“— Todos estes corsos são loucos, palavra de honra! — respondeu o Sr. de Villefort — Julgam ainda que o seu compatriota é imperador. Engana-se no tempo, meu caro. Devia ter vindo dizer-me isso há dois meses. Hoje é demasiado tarde. Retire-se, portanto, porque se não se retirar, mandarei o pôr para fora.
“Olhei—o um instante para ver se haveria alguma coisa a esperar de uma nova súplica. Mas aquele homem era de pedra. Aproximei-me dele e disse-lhe a meia voz:
“— Bom, uma vez que conhece os Corsos, deve saber que cumprem a sua palavra. Acha bom que tenham matado o meu irmão por ser bonapartista, porque o senhor é monárquico. Pois bem, eu que também sou bonapartista, declaro-lhe uma coisa: que o matarei. A partir deste momento declaro-lhe a vendetta. Assim, acautele-se, tome o maior cuidado possível, porque da primeira vez que nos encontrarmos frente a frente soará a sua última hora.
“E dito isto, antes que se recompusesse da surpresa, abri a porta e fugi.
— Ah, ah! — exclamou Monte Cristo — Então o senhor, com essa cara de quem não quebra um prato, faz dessas coisas, Sr. Bertuccio? E a um Procurador Régio, ainda por cima! E ele sabia, ao menos, o que queria dizer a palavra vendetta?
— Sabia-o tão bem que a partir daquele momento nunca mais saiu sozinho. Fechou-se em casa e mandou-me procurar por toda a parte. Felizmente estava tão bem escondido que não conseguiu encontrar-me. Então, o medo apoderou-se dele e receou ficar mais tempo em Nímes. Solicitou a transferência e, como era de fato um homem influente, nomearam-no para Versalhes. Mas, como o senhor sabe, não há distâncias para um corso que jurou vingar-se do seu inimigo, e a sua carruagem, por melhor conduzida que fosse, nunca teve mais do que meio dia de avanço sobre mim, que, no entanto a seguia a pé. O importante não era matá-lo; tive cem vezes oportunidade para isso. Mas era preciso matá-lo sem ser descoberto e, sobretudo sem ser preso. Desde então já não me pertencia: tinha de proteger e sustentar a minha cunhada. Durante três meses vigiei o Sr. de Villefort; durante três meses não deu um passo, um passeio, sem que o meu olhar o não seguisse. Por fim, descobri que vinha misteriosamente a Auteuil. Voltei a segui-lo e vi-o entrar nesta casa onde estamos. Simplesmente, em vez de entrar como entraria qualquer pessoa, pela porta principal, vinha a cavalo ou de carruagem, deixava a carruagem ou o cavalo na estalagem e entrava por aquela portinha que vê ali.
Monte Cristo acenou com a cabeça a confirmar que no meio da escuridão distinguia efetivamente a entrada indicada por Bertuccio.
— Como já não necessitava permanecer em Versalhes, instalei-me em Auteuil e informei-me. Se o queria apanhar, era evidentemente aqui que devia armar a minha cilada. A casa pertencia, como o porteiro disse a Vossa Excelência ao Sr. Marquês de Saint-Méran, sogro de Villefort. O Sr. de Saint-Méran residia em Marselha, por conseqüência, esta casa de campo era-lhe inútil. Dizia-se por isso que a alugara a uma jovem viúva que todos conheciam apenas por “a baronesa”. De fato, uma noite, espreitando por cima do muro, vi uma mulher nova e bonita passear sozinha neste jardim, que nenhuma janela estranha dominava. Olhava com freqüência para o lado da portinha e compreendi que naquela noite esperava o Sr. de Villefort. Quando chegou suficientemente perto para, apesar do escuro, poder distinguir as feições, vi uma mulher nova e bonita, de dezoito ou dezenove anos, alta e loura. Como trazia um simples penteador e nada lhe comprimia a cintura, pude notar que estava grávida e que a gravidez parecia até bastante adiantada. Pouco depois abriu-se a portinha. Entrou um homem. A jovem correu o mais depressa que pode ao seu encontro. Lançaram-se nos braços um do outro, beijaram-se ternamente e dirigiram-se juntos para a casa. Aquele homem era o Sr. de Villefort. Calculei que quando saísse, sobretudo se saísse alta noite, deveria atravessar sozinho o jardim em todo o seu comprimento.
— E soube depois o nome da mulher? — perguntou o Conde.
— Não, Excelência — respondeu Bertuccio — Como vai ver, não tive tempo de descobrir.
— Continue.
— Naquela noite — prosseguiu Bertuccio — Talvez tivesse podido matar o Procurador Régio; mas ainda não conhecia suficientemente o jardim, em todos os seus pormenores, e receava não conseguir fugir se o não matasse depressa e alguém acorresse aos seus gritos. Adiei, pois, a morte para o próximo encontro, e para que nada me escapasse aluguei um quartinho com janela para a rua que corria ao longo do muro do jardim. Três dias depois, por volta das sete horas da tarde, vi sair da casa um criado a cavalo, que tomou a galope o caminho que levava à estrada de Sevres. Presumi que ia a Versalhes e não me enganava. Três horas mais tarde, outro homem a pé, envolto numa capa, abriu a portinha, que se fechou atrás dele. Desci rapidamente. Embora não tivesse visto o rosto de Villefort, reconheci-o pelas pulsações do meu coração. Atravessei a rua e alcancei um marco colocado na esquina do muro e com o auxílio do qual olhara pela primeira vez para o jardim.
“Desta vez não me limitei a olhar, tirei a minha navalha da algibeira, verifiquei se a ponta estava bem afiada e saltei por cima do muro. O meu primeiro cuidado foi correr para a porta. Tinha deixado a chave na fechadura e tomara a simples precaução de lhe dar duas voltas. Nada dificultava a minha fuga por aquele lado. Pus-me a estudar o local. O jardim formava um retângulo, tinha um relvado de fina relva inglesa no meio e aos cantos do relvado havia maciços de árvores de folhagem abundante e todas entrelaçadas de flores de Outono. Para ir da casa à portinha ou da portinha à casa, quer entrasse, quer saísse, o Sr. de Villefort era obrigado a passar junto de um dos maciços.
“Estávamos em fins de Setembro. O vento soprava com força. Um luar pálido e velado a cada instante por grossas nuvens que deslizavam rapidamente no céu clareava o saibro das alamedas que conduziam a casa, mas não conseguia penetrar nos maciços frondosos, nos quais se poderia esconder um homem sem receio de ser descoberto. Ocultei-me no que ficava mais perto da passagem de Villefort. Mal me instalei, julguei ouvir gemidos no meio das rajadas de vento que curvavam as árvores por cima da minha cabeça. Mas, como sabe, ou antes, não sabe, Sr. Conde, aquele que espera o momento de cometer um assassinato julga sempre ouvir gritos abafados no ar. Passaram duas horas durante as quais, por várias vezes, me pareceu ouvir os mesmos gemidos. Deu-se a meia-noite.
“Quando o último som vibrava ainda, lúgubre e ressoante, vi um clarão iluminar as janelas da escada oculta pela qual descemos há pouco. A porta abriu-se e o homem da capa reapareceu. Chegara o terrível momento. Mas havia tanto tempo que me preparara para ele que nada em mim fraquejou. Puxei da navalha, abri-a e esperei. O homem da capa veio direito a mim. Mas à medida que avançava no espaço descoberto, julguei notar que trazia uma arma na mão direita. Tive medo, não de uma luta, mas sim de um malogro. Quando, porém, chegou apenas a alguns passos de num, verifiquei que o que tomara por uma arma não passava de uma enxada. Ainda não conseguira adivinhar com que fim o Sr. de Villefort trazia uma enxada na mão, quando ele parou na orla do maciço, deitou um olhar à sua volta e começou a abrir um buraco na terra. Foi então que descobri que havia qualquer coisa na capa, que acabava de depositar no relvado para ter os movimentos mais livres.
“Então, confesso, insinuou-se no meu ódio um pouco de curiosidade. Quis ver o que vinha fazer ali Villefort. Fiquei imóvel, sem respirar, e esperei. Depois acudiu-me uma idéia, que se confirmou quando vi o Procurador Régio tirar da capa um cofrezinho de dois pés de comprimento e seis a oito polegadas de largura. Deixei-o depositar o cofre na cova e cobri-lo de terra. Em seguida, calcou com os pés a terra fresca, para fazer desaparecer os vestígios da sua obra noturna. Atirei-me então a ele e cravei-lhe a navalha no peito, dizendo:
“— Sou Giovanni Bertuccio! A tua morte para o meu irmão, o teu tesouro para a sua viúva! Bem vês que a minha vingança é mais completa do que esperava.
“Não sei se ouviu estas palavras; não creio, porque caiu sem soltar um grito. Senti as golfadas do seu sangue jorrarem-me escaldantes sobre as mãos e o rosto; mas estava ébrio, delirava, e aquele sangue refrescava-me em vez de me queimar. Num segundo, desenterrei o cofrezinho com o auxílio da enxada, e depois, para que ninguém notasse que o roubara, enchi por minha vez o buraco de terra, atirei a enxada por cima do muro, corri para a porta, saí e fechei-a com duas voltas pelo lado de fora. Guardei a chave e fugi.
— Bom, pelo que vejo um assassinatozinho, seguido de roubo — observou Monte Cristo.
— Não, Excelência — respondeu Bertuccio — Uma vendetta, segui da de restituição.
— E a importância era avultada, ao menos?
— Não era dinheiro.
— Ah! Sim, já me lembro — disse Monte Cristo — Não se referiu a uma criança?
— Justamente, Excelência. Corri para o rio, sentei-me no talude e, ansioso por saber o que continha o cofre, fiz saltar a fechadura com a navalha. Num cueiro de fina cambraia de linho estava envolta uma criança recém-nascida. O rosto purpúreo e as mãos roxas indicavam que devia ter sucumbido a asfixia causada por ligamentos naturais enrolados à volta do pescoço. No entanto, como ainda não estava fria, hesitei em atirá-la à água que me corria aos pés. Com efeito, passado um instante, julguei notar uma leve pulsação na região do coração. Libertei-lhe o pescoço do cordão que o envolvia e, como fora enfermeiro no hospital de Bástia, fiz o que faria um médico em semelhantes circunstâncias, isto é: insuflei-lhe corajosamente ar nos pulmões, e passado um quarto de hora de esforços inauditos vi a criança respirar e ouvi um grito sair-lhe do peito.
“Soltei por minha vez um grito, mas um grito de alegria.
— “Deus não me amaldiçoou — disse para comigo — Pois permite-me que restitua a vida a uma criatura humana em troca da vida que tirei a outra!
— E que fez dessa criança? — perguntou Monte Cristo — Era uma bagagem bastante embaraçosa para um homem que necessitava fugir.
— Por isso não me passou sequer pela cabeça ficar com ela. Mas sabia que existia em Paris um hospício onde recebiam essas pobres crianças. Quando transpus a barreira, declarei ter achado a criança na estrada e informei-me. O cofre estava ali e era uma prova; o cueiro de cambraia indicava que a criança tinha pais ricos; o sangue que me cobria tanto podia pertencer à criança como a qualquer outro indivíduo. Não me fizeram nenhuma objeção. Indicaram-me o hospício, que ficava mesmo ao fundo da Rua do Inferno, e, depois de tomar a precaução de cortar o cueiro em dois, de maneira que uma das duas letras que o marcavam ficasse na parte que envolvia o corpo da criança, depositei o, meu fardo na roda, toquei e raspei-me a toda a velocidade. Quinze dias mais tarde estava de volta a Rogliano e dizia a Assunta:
“Consola-te, minha irmã; Israel morreu, mas vinguei-o.
“Então ela pediu-me explicações destas palavras e eu contei-lhe tudo o que se passara.
“— Giovanni — disse-me Assunta — Devia ter trazido essa criança. Faríamos as vezes dos pais que perdeu, lhe chamaríamos Benedetto, e graças a essa boa ação Deus nos abençoaria efetivamente.
“Como única resposta entreguei-lhe a metade do cueiro que guardara, a fim de poder reclamar a criança se fossemos mais ricos.
— E com que letras estava marcado o cueiro? — perguntou Monte Cristo.
— Com um H e um N encimados por uma fiada de pérolas de barão.
— Creio, Deus me perdoe, que se serve de termos de heráldica, Sr. Bertuccio! Onde diabo estudou essa matéria?
— Ao seu serviço, Sr. Conde, onde se aprendem todas as coisas.
— Continue. Estou com curiosidade de saber dois pormenores.
— Quais, senhor?
— O que foi feito desse rapazinho... não me disse que era um rapazinho, Sr. Bertuccio?
— Não, Excelência. Não me lembro de dizer tal coisa.
— Ah! Julgava ter ouvido, mas decerto enganei-me.
— Não, não se enganou, porque era efetivamente um rapazinho. Mas Vossa excelência desejava, dizia, saber dois pormenores. Qual é o segundo?
— O segundo é o crime de que o acusavam quando pediu um confessor e o Abade Busoni o foi encontrar na prisão de Nímes.
— Essa história talvez seja demasiado longa, Excelência.
— Que importa? São apenas dez horas, sabe que não durmo e suponho que da sua parte também não tenha grande vontade de dormir.
Bertuccio inclinou-se e retomou a sua narrativa.
— Em parte para expulsar as recordações que me assediavam e em parte para prover as necessidades da pobre viúva, entreguei-me com ardor à profissão de contrabandista, tornada mais fácil devido ao afrouxamento do cumprimento das leis que se segue sempre às revoluções. As costas do Meio-Dia, sobretudo, estavam mal guardadas devido aos eternos motins que se verificavam ora em Avinhão, ora em Nímes, ora em Uzes. Aproveitamos aquela espécie de trégua que nos era concedida pelo Governo para estabelecer relações com todo o litoral. Desde o assassinato do meu irmão nas ruas de Nímes nunca mais quisera entrar na cidade. Daí resultou que o estalajadeiro com que tínhamos negócios, vendo que já o não procurávamos, viera ter conosco e fundara uma sucursal da estalagem na estrada de Bellegarde a Beaucaire, a que dera o nome de Pont du Gard. Tínhamos assim, quer do lado de Aigues-Mortes, quer de Martigues, quer de Boucé uma dúzia de entrepostos onde depositávamos as mercadorias e, se necessário, encontrávamos refúgio contra os guardas fiscais e os guardas. A profissão de contrabandista é muito rendosa quando se pratica com alguma inteligência, secundada por certa atividade. Quanto a mim, vivia nas montanhas, pois tinha dobradas razões para temer guardas e guardas fiscais, atendendo a que qualquer comparência perante os juízes podia originar uma investigação, a que essa investigação é sempre uma excursão pelo passado e a que no meu passado se podia encontrar então algo mais grave do que charutos contrabandeados ou barris de aguardente circulando sem guias de trânsito.
“Por isso, preferindo mil vezes a morte à prisão, fazia coisas espantosas e que por mais de uma vez me demonstraram que o excessivo cuidado que tomamos com a pele é quase o único obstáculo ao êxito dos nossos projetos, que exigem decisão rápida e execução enérgica e determinada. Com efeito; desde que estejamos dispostos a sacrificar a vida, deixamos de ser como os outros homens, ou antes, os outros homens é que deixam de ser como nós, e quem toma semelhante resolução sente decuplicar imediatamente as suas forças e alargar-se o seu horizonte.
— Deixe-se de filosofia, Sr. Bertuccio! — interrompeu-o o Conde — Mas, pelos vistos, o senhor tem feito um pouco de tudo na sua vida...
— Oh, perdão, Excelência, pela filosofia!
— Não, não! Só lhe chamei a atenção porque às dez e meia da noite é um bocadinho tarde para filosofar... tirando isso, não tenho mais nenhuma objeção a fazer, atendendo a que a acho exata, o que se não pode dizer de todas as filosofias.
— As minhas incursões tornaram-se, portanto cada vez mais numerosas e também mais frutuosas. Assunta era poupada e a nossa fortunazinha aumentava. Um dia, antes de partir para uma viagem, disse-me ela: “Vai, que no seu regresso te reservo uma surpresa”. Interroguei-a inutilmente, não me quis dizer mais nada e parti. A viagem durou perto de seis semanas. Fomos a Luca carregar azeite e a Liorne algodão inglês. Desembarcamos e descarregamos sem qualquer contratempo, fizemos o nosso negócio e regressamos alegremente. Quando entrei em casa, a primeira coisa que vi no lugar mais em evidência do quarto de Assunta, num berço suntuoso, relativamente ao resto da casa, foi uma criança de sete a oito meses. Soltei um grito de alegria. Os únicos momentos de tristeza que experimentara desde o assassínio do Procurador Régio tinham-me sido causados pelo abandono daquela criança.
“A pobre Assunta adivinhara tudo e aproveitara a minha ausência para munida de metade do cueiro, tendo inscrito, para não faltar nada, o dia e a hora exata em que a criança fora depositada no hospício, ir a Paris reclamá-la pessoalmente. Nenhuma objeção lhe fora feita e a criança fora-lhe entregue. Confesso, Sr. Conde, que ao ver a pobre criatura dormindo no seu berço, meu peito se dilatou e as lágrimas me saltaram aos olhos.
“— Na verdade, Assunta, és uma digna mulher e a Providência te abençoará! — gritei.
— Isso já é menos exato do que a sua filosofia — comentou Monte Cristo — No fundo, trata-se apenas de uma questão de fé.
— Infelizmente, Excelência — prosseguiu Bertuccio — Tem toda a razão e foi aquela mesma criança que Deus encarregou de me castigar. Nunca natureza mais perversa se declarou mais prematuramente, e, no entanto ninguém poderá dizer que foi mal educado, pois a minha cunhada tratava-o como o filho de um príncipe. Era um rapaz de rosto encantador, com olhos de um azul-claro como esses tons de faiança chinesa que também se harmonizam com o branco leitoso do tom geral. Apenas o cabelo, de um louro demasiado vivo, lhe dava ao rosto um aspecto estranho, que duplicava a vivacidade do seu olhar e a malícia do seu sorriso. Infelizmente, há um provérbio que diz que os russos ou são muito bons ou são muito maus. O provérbio não mente no que diz respeito a Benedetto, que desde a juventude se mostrou muito mau. Também é verdade que a ternura da sua mãe adotiva encorajou as suas primeiras inclinações. O garoto, para quem a minha pobre cunhada ia ao mercado da cidade, situada a quatro ou cinco léguas de casa, comprar os primeiros frutos e as guloseimas mais delicadas, preferia, às laranjas de Palma de Maiorca e às conservas de Gênova, as castanhas roubadas ao vizinho saltando as sobes, ou as maçãs secas do seu celeiro, embora tivesse à sua disposição as castanhas e as maçãs do nosso pomar.
“Um dia, teria Benedetto cinco ou seis anos, o vizinho Wasilio, que, conforme os hábitos da nossa terra, não fechava nem a sua bolsa nem as suas jóias, porque, como o Sr. Conde sabe melhor do que ninguém, na Córsega não há ladrões... um dia, o vizinho Wasilio queixou-se de que lhe desaparecera um luís da bolsa. Pensamos que tivesse contado mal, mas ele afirmara que não. Nesse dia, Benedetto saíra de casa logo de manhã e estávamos numa grande inquietação, quando à tardinha o vimos chegar com um macaco que achara, dizia ele, preso a uma árvore. Havia um mês que a paixão do terrível garoto, que não sabia que mais inventar, era ter um macaco. Um saltimbanco que passara por Rogliano e possuía vários desses animais, cujas piruetas o tinham divertido muito, é que lhe inspirara, sem dúvida, o malfadado capricho.
“— Não há macacos nos nossos bosques — disse-lhe eu — E, sobretudo macacos amarrados. Diz-me, portanto como arranjaste esse.
“Benedetto manteve a mentira e acompanhou-a de pormenores que honravam mais a sua imaginação do que a sua veracidade. Irritei-me e ele desatou a rir, ameacei-o, e ele deu dois passos atrás.
“— Não pode me bater — disse — Não tem esse direito, não é o meu pai.
“Ignoramos sempre quem lhe revelara o fatal segredo, que, entretanto tínhamos ocultado com o maior cuidado. Como quer que fosse, tal resposta, em que o garoto se revelou por completo, quase me assustou e o meu braço erguido caiu, efetivamente, sem tocar no culpado. O pequeno triunfou e aquela vitória deu-lhe tal audácia que a partir dali todo o dinheiro de Assunta, cujo amor por ele parecia aumentar à medida que se tornava menos digno, se foi em caprichos que ela não sabia contrariar, em loucuras que ela não tinha a coragem de impedir. Quando eu estava em Rogliano, as coisas ainda iam razoavelmente; mas assim que eu partia, Benedetto apoderava-se da casa e tudo corria mal. Apesar de contar apenas onze anos, escolhia todos os seus camaradas entre os rapazes de dezoito ou vinte anos, dos piores de Bastia e de Corte, e já, devido a algumas travessuras que mereciam nome mais sério, fôramos advertidos pela justiça.
“Assustei-me. Qualquer investigação poderia ter conseqüências funestas. Ia precisamente ser obrigado a ausentar-me da Córsega numa expedição importante. Pensei demoradamente e, no pressentimento de evitar qualquer desgraça, decidi levar Benedetto comigo. Esperava que a vida ativa e dura de contrabandista e a disciplina rigorosa de bordo modificassem aquele caráter prestes a corromper-se, se não estivesse já horrivelmente corrompido. Chamei, portanto Benedetto de parte e propus-lhe que me acompanhasse, rodeando a proposta de todas as promessas que podem seduzir um garoto de doze anos. Deixou-me ir até ao fim, e quando acabei desatou a rir.
“— Enlouqueceu, meu tio? — perguntou, tratava-me assim quando estava de bom humor — “Eu trocar a vida que levo pela que você leva, a minha boa e excelente ociosidade pelo horrível trabalho que lhe é imposto? Passar a noite no frio e o dia no calor, esconder-me constantemente, não poder me mostrar para não ser corrido a tiro de espingarda, e tudo isso para ganhar algum dinheiro?... Dinheiro tenho eu todo o que quero! A minha mãe Assunta me dá assim que lhe peço. Bem vê, portanto, que seria um imbecil se aceitasse a sua proposta.
“Fiquei estupefato com semelhante audácia e semelhante raciocínio. Benedetto voltou para junto dos seus camaradas e o vi de longe a me apontar para eles como um idiota.
— Encantadora criança! — murmurou Monte Cristo.
— Oh, se me pertencesse — respondeu Bertuccio — Se fosse meu filho, ou pelo menos meu sobrinho, o teria trazido ao bom caminho, porque a consciência dá-nos força! Mas a idéia de bater numa criança cujo pai matara tornava-me todo e qualquer castigo impossível. Dava bons conselhos à minha cunhada, que nas nossas discussões tomava constantemente a defesa do pobrezinho, e como me confessasse que por várias vezes lhe tinham desaparecido importâncias consideráveis, indiquei-lhe um lugar onde poderia esconder o nosso pequeno tesouro. Quanto a mim, a minha resolução estava tomada. Benedetto sabia perfeitamente ler, escrever e contar, porque quando por acaso se dispunha a trabalhar aprendia num dia o que os outros aprendiam numa semana. Mas, dizia eu, a minha resolução estava tomada: tencionava matriculá-lo como secretário em qualquer navio de longo curso e, sem o prevenir de nada, mandar deitar-lhe a mão uma bela manhã e levá-lo para bordo. Assim, e recomendando-o ao comandante, todo o seu futuro dependeria dele. Tudo planejado, parti para França.
“Daquela vez todas as nossas operações deveriam efetuar-se no golfo de Lion, o que era cada vez mais difícil, pois estávamos em 1829. A tranqüilidade encontrava-se perfeitamente restabelecida, e por conseqüência o serviço de vigilância das costas tornara-se mais regular e rigoroso do que nunca. A vigilância fora ainda aumentada momentaneamente devido à feira de Beaucaire, que acabava de abrir. Os princípios da expedição decorreram sem contratempos. Amarramos a nossa barca, que tinha um fundo duplo, onde escondíamos as mercadorias de contrabando, no meio de uma quantidade de barcos que cobriam as duas margens do Rôdano, de Beaucaire a Arles. Uma vez chegados, começamos a descarregar de noite as nossas mercadorias proibidas e a passá-las para a cidade por intermédio de pessoas relacionadas conosco ou de estalajadeiros em casa dos quais tínhamos depósitos. Quer porque o êxito nos tivesse tornado imprudentes, quer por termos sido denunciados, uma tarde, por volta das cinco horas, quando nos preparávamos para merendar, o nosso grumete apareceu muito assustado dizendo que vira uma patrulha de guardas fiscais dirigir-se para o nosso lado.
“Não era precisamente a patrulha que nos preocupava; a cada instante, sobretudo naquele momento, companhias inteiras percorriam as margens do Rôdano. O que nos preocupava eram as precauções que, no dizer do pequeno, a patrulha tomava para não ser vista. Levantamo-nos imediatamente, mas era demasiado tarde; a nossa barca, evidentemente o alvo das buscas, estava cercada. Entre os guardas fiscais notei alguns guardas; e, tão medroso diante deles como era habitualmente corajoso diante de qualquer outro corpo militar, desci ao porão e, esgueirando-me por uma escotilha, deixei-me levar pelo rio e depois nadei entre duas águas, só respirando a grandes intervalos, até que alcancei, sem ser visto, uma vala que acabavam de abrir e que punha em comunicação o Rôdano com o canal que vai de Beaucaire a Aigues-Mortes. Uma vez lá, estava salvo, pois podia seguir sem ser visto ao longo da vala. Cheguei portanto ao canal sem contratempos. Não fora por acaso e sem premeditação que seguira aquele caminho, já falei a Vossa Excelência de um estalajadeiro, de Nímes que abrira na estrada de Bellegarde a Beaucaire uma pequena hospedaria.
— Sim, lembro-me perfeitamente — respondeu Monte Cristo — Se me não engano, esse digno homem era até vosso associado.
— Exato — confirmou Bertuccio — Mas havia sete ou oito anos cedera o estabelecimento a um antigo alfaiate de Marselha, o qual, depois de se arruinar na sua profissão, resolvera tentar enriquecer noutra. Desnecessário dizer que os entendimentos que tínhamos com o primeiro proprietário foram mantidos com o segundo. Era, portanto a esse homem que esperava pedir asilo!
— E como se chamava esse homem? — perguntou o Conde, que parecia começar a interessar-se pela história de Bertuccio.
— Chamava-se Gaspard Caderousse e era casado com uma mulher da aldeia de Carconte, que só conhecíamos pelo nome da sua terra. Tratava-se de uma pobre mulher atacada da febre dos pântanos, que ia morrendo de definhamento. Quanto ao homem, era um latagão de quarenta a quarenta e cinco anos, que por mais de uma vez, em circunstâncias difíceis, nos dera provas da sua presença de espírito e da sua coragem.
— E diz — atalhou Monte Cristo — Que essas coisas se passavam por volta do ano de...
— De 1829, Sr. Conde.
— Em que mês?
— No mês de Junho.
— No princípio ou no fim?
— No dia 3 à tarde.
— Ah! — exclamou Monte Cristo — Com que então no dia 3 de Junho de 1829. Bem, continue.
— Era, portanto a Caderousse que contava pedir asilo. Mas, como habitualmente, mesmo em circunstâncias normais, não entravamos pela porta que dava para a estrada, resolvi não contrariar esse costume e saltei a sebe do jardim, deslizei agachado através das oliveiras raquíticas e das figueiras bravas e alcancei, receando que Caderousse tivesse algum viajante na estalagem, uma espécie de desvão em que por mais de uma vez passara a noite como se dormisse na melhor cama. Esse desvão ficava separado da sala comum do térreo da estalagem apenas por um tabique de madeira, no qual, em nossa intenção, tinham sido abertos buracos a fim de, através deles, espreitarmos o momento oportuno de darmos, a saber, a nossa presença nas imediações. Contava, se Caderousse estivesse sozinho, preveni-lo da minha chegada, acabar na casa dele a refeição interrompida pelo aparecimento dos guardas fiscais e aproveitar a tempestade que se avizinhava para voltar às margens do Rôdano e verificar o que acontecera à barca e aos que lá tinham ficado. Esgueirei-me, portanto para o desvão, e fiz bem, pois nesse mesmo momento Caderousse entrava no estabelecimento com um desconhecido.
“Fiquei quieto e esperei, não com a intenção de surpreender os segredos do meu hospedeiro, mas sim porque não podia fazer outra coisa. Aliás, a mesma coisa já acontecera outras vezes. O homem que acompanhava Caderousse era evidentemente estranho ao Meio-Dia da França. Tratava-se de um desses feirantes que vêm vender jóias à feira de Beaucaire e que, durante o mês que dura a feira, aonde afluem vendedores e compradores de todas as partes da Europa, fazem às vezes cem ou cento e cinqüenta mil francos de transações.
“Caderousse entrou, apressado, à frente do outro. Depois, vendo a sala de baixo vazia, como de costume, e guardada apenas pelo seu cão, chamou a mulher:
“— Eh, Carconte! Aquele digno padre não nos enganou; o diamante é bom.
“Ouviu-se uma exclamação de alegria e quase imediatamente a escada estalou debaixo de passos pesados devido à fraqueza e à doença.
“— Que disse? — perguntou a mulher, mais pálida do que uma morta.
“— Digo que o diamante é bom. Aqui está este senhor, um dos primeiros joalheiros de Paris, que está pronto a dar-nos cinqüenta mil francos por ele. Apenas, para ter certeza de que o diamante é de fato nosso, deseja que lhe conte, como já lhe contei, de que forma miraculosa a pedra veio parar em nossas mãos. Entretanto, senhor, faça favor de sentar-se, e como o tempo está carregado, vou buscar-lhe qualquer coisa para se refrescar.
“O joalheiro examinava com atenção o interior da estalagem e a pobreza visível daqueles que lhe queriam vender um diamante que parecia saído do tesouro de um príncipe.
“— Conte, minha senhora — pediu, querendo sem dúvida aproveitar a ausência do marido para que nenhum sinal da parte dele influenciasse a mulher e para verificar se as duas histórias encaixavam bem uma na outra.
“— Meu Deus, foi uma bênção do Céu que estávamos muito longe de esperar! — disse a mulher, com volubilidade — Imagine, meu caro senhor, que o meu marido conheceu em 1814 ou 1815 um marinheiro chamado Edmond Dantés. Esse pobre rapaz, que Caderousse esquecera por completo, não o esqueceu a ele e deixou-lhe ao morrer o diamante que o senhor acaba de ver.
“— Mas como se tomou ele possuidor do diamante? — perguntou o joalheiro — Já o tinha antes de ser preso?
“— Não, senhor — respondeu a mulher — Mas parece que conheceu na prisão um inglês muito rico, e como na prisão o seu companheiro de cela adoeceu e Dantés o tratou como se fosse seu irmão, o inglês, ao sair do cativeiro, deixou ao pobre Dantés, que, menos feliz do que ele, morreu na prisão, esse diamante que ele nos legou por seu turno ao morrer e que encarregou o digno abade que aqui esteve esta manhã de nos entregar.
“— É de fato a mesma coisa — murmurou o joalheiro — E no fim de contas a história pode ser verdadeira, por mais inverossímil que pareça à primeira vista. Só falta ajustarmos, portanto o preço, acerca do qual não estamos de acordo.
“— Como é que não estamos de acordo? — interveio Caderousse — Julgava que tinha aceitado o preço que lhe pedi...
“— Não — disse o joalheiro — Eu ofereci quarenta mil francos.
“— Quarenta mil! — gritou a Carconte — Não espera que o vendamos por esse preço. O abade disse-nos que valia cinqüenta mil francos, e sem engaste.
“— E como se chamava esse abade? — perguntou o infatigável curioso.
“— Abade Busoni — respondeu a mulher.
“— Era então um estrangeiro?
“— Era um italiano dos arredores de Mântua, segundo creio.
“— Mostre-me o diamante — pediu o joalheiro — Quero vê-lo outra vez. Muitas vezes julgam-se mal as pedras à primeira vista.
“Caderousse tirou da algibeira um estojozinho de chagrém preto, abriu-o e passou-o ao joalheiro. Ao ver o diamante, que era do tamanho de uma avelã, lembro-me como se ainda o estivesse vendo, os olhos de Carconte cintilaram de cupidez.
— E que pensou de tudo isso, senhor escutador às portas? — perguntou Monte Cristo — Acreditou nessa bela fábula?
— Acreditei, Excelência. Não considerava Caderousse um mau homem e julgava-o incapaz de cometer um crime. Ou mesmo um roubo.
— Isso honra mais o seu coração do que a sua experiência, Sr. Bertuccio. Conheceu esse tal Edmond Dantés a que se referiam?
— Não, Excelência, nunca ouvira falar dele até ali, e depois disso só ouvi falar uma vez, ao próprio Abade Busoni, quando o vi nas prisões de Nímes.
— Bom, continue.
— O joalheiro tirou o anel das mãos de Caderousse e depois, da algibeira, uma pinça de aço e uma balancinha de cobre. Seguidamente, abriu os grampos de ouro que prendiam a pedra ao anel, extraiu o diamante do seu alvéolo e pesou-o cuidadosamente na balança.
“— Vou até aos quarenta e cinco mil francos — declarou — Não dou nem mais um soldo. De resto, como era esse o valor do diamante, foi exatamente a importância que trouxe comigo.
“— Oh, não seja por isso — disse Caderousse — Voltarei consigo a Beaucaire e dará os cinco mil francos.
“— Não — respondeu o joalheiro, restituindo o anel e o diamante a Caderousse — Isso não vale mais e já fiz mal em oferecer tal importância, pois a pedra tem um defeito em que não reparei da primeira vez. Mas não importa, só tenho uma palavra; disse quarenta e cinco mil francos e não me desdigo.
“— Ao menos volte a colocar o diamante no anel — pediu azedamente a Carconte.
“— É justo — concordou o joalheiro, e recolocou a pedra no engaste.
“— Bom, bom, o venderemos a outro — disse Caderousse, guardando o estojo na algibeira.
“— Claro — replicou o joalheiro — Mas a outro não será tão fácil vendê-lo como a mim. Outro não se contentará com as informações que me deram. Não é natural que um homem como o senhor possua um diamante de cinqüenta mil francos. Ele irá prevenir os magistrados e será necessário descobrir o Abade Busoni. Ora, os abades que dão diamantes de dois mil luíses são raros... a justiça começará por lhe deitar a mão e metê-lo na cadeia, e se o considera em inocente e o puserem em liberdade depois de três ou quatro meses de cativeiro, o anel terá se perdido no arquivo e lhe darão uma pedra falsa, que valerá três francos em vez de um diamante que vale cinqüenta mil. Sim, a pedra talvez valha os cinqüenta mil, mas tem de concordar, bom homem, que se correm certos riscos em comprá-la.
“Caderousse e a mulher interrogaram-se com o olhar.
“— Não — disse Caderousse — Não somos tão ricos que possamos perder cinco mil francos.
“— Como queira, meu caro amigo — respondeu o joalheiro — Mas como vê, já vinha preparado com a massa...
“E tirou de uma das algibeiras um punhado de ouro, que fez brilhar aos olhos deslumbrados do estalajadeiro, e da outra um maço de notas. Travava-se visivelmente um rude combate no espírito de Caderousse. Era evidente que o estojo de chagrém que virava e revirava na mão não lhe parecia corresponder, como valor, à enorme quantia que lhe fascinava os olhos. Virou-se para a mulher.
“— O que você diz? — perguntou-lhe em voz baixa.
“— Venda-o — respondeu ela — Se voltar a Beaucaire sem o diamante, nos denunciará; e como disse, quem sabe se alguma vez tornaremos a ver o Abade Busoni.
“— Pronto, seja! — exclamou Caderousse — Fique lá com o diamante pelos quarenta e cinco mil francos. Mas a minha mulher quer um fio de ouro e eu um par de fivelas de prata.
“O joalheiro tirou da algibeira uma caixa comprida e achatada, que continha várias amostras dos objetos pedidos.
“— Como vê — observou — Sou honesto nos negócios. Escolham.
“A mulher escolheu um fio de ouro, que podia valer cinco luíses, e o marido um par de fivelas, que podia valer quinze francos.
“— Espero que não se arrependam — disse o joalheiro.
“— O abade disse que valia cinqüenta mil francos... — murmurou Caderousse.
“— Vamos, vamos, me de o diamante! Que homem terrível! — exclamou o joalheiro, tirando-lhe o diamante da mão — Dou-lhe quarenta e cinco mil francos, que lhe podem proporcionar um rendimento de duas mil e quinhentas libras, isto é, uma fortuna que eu próprio gostaria de ter, e ainda não está contente?
“— E os quarenta e cinco mil francos onde estão? — perguntou Caderousse com voz rouca.
“— Ei-los — respondeu o joalheiro. E contou em cima da mesa quinze mil francos em ouro e trinta mil em notas.
“— Esperem que acenda o candeeiro — disse a Carconte — Não está muito claro e podem se enganar...
“Com efeito, anoitecera durante a discussão, e com a noite viera a tempestade, que ameaçava rebentar havia meia-hora. Ouvia-se ribombar surdamente o trovão ao longe, mas nem o joalheiro, nem Caderousse, nem a Carconte pareciam preocupados com isso, dominados como estavam todos os três pelo demônio do ganho. Eu próprio experimentava uma estranha fascinação perante todo aquele ouro e todas aquelas notas. Parecia-me sonhar, e como acontece nos sonhos, sentia-me acorrentado ao meu lugar. Caderousse contou e recontou o ouro e as notas e depois passou-os à mulher, que contou e recontou por seu turno. Entretanto, o joalheiro fazia cintilar o diamante à luz do candeeiro e o diamante lançava relâmpagos que faziam esquecer aqueles que, precursores da tempestade, começavam a incendiar as janelas.
“— Então, está certo? — perguntou o joalheiro.
“— Está — respondeu Caderousse — Dê-me a carteira e arranja um saco, Carconte.
“Carconte foi a um armário e regressou com uma velha carteira de couro, da qual tirou algumas cartas ensebadas e no lugar das quais guardou as notas, e com um saco que continha duas ou três moedas de seis libras, que constituíam provavelmente toda a riqueza do miserável casal.
“— Embora nos tenha roubado talvez uma dezena de milhar de francos, quer jantar conosco? É de boa vontade — ofereceu Caderousse.
“— Obrigado — respondeu o joalheiro — Começa a ficar tarde e tenho de regressar a Beaucaire. A minha mulher já deve estar preocupada... com mil demônios! — exclamou depois de tirar o relógio da algibeira — São quase nove horas, não estarei em Beaucaire antes da meia-noite! Adeus, meus filhos. Se por acaso tornarem a ser visitados pelo Abade Busoni, lembrem-se de mim...
“— Daqui a oito dias o senhor não estará em Beaucaire, pois a feira termina na próxima semana — observou Caderousse.
“— Pois não, mas não tem importância. Escrevam-me para Paris, com este endereço Sr. Joannês, Palais-Royal, Galeria de Pierre, nº. 45. Virei aqui se o negócio valer a pena.
“Soou um trovão, acompanhado de um relâmpago tão intenso que quase se sobrepôs à luz do candeeiro.
“— Oh, oh! — exclamou Caderousse — Vai pôr-se a caminho com este tempo?
“— As trovoadas não me metem medo — perguntou o joalheiro.
“— E os ladrões? — perguntou a Carconte — A estrada nunca é muito segura durante a feira.
“— Oh, quanto aos ladrões, tenho isto para eles! — respondeu Joannês, e tirou da algibeira um par de pistolinhas carregadas até à boca — Estes cães ladram e mordem ao mesmo tempo. Seriam pros dois primeiros que cobiçassem o seu diamante, Caderousse.
“Caderousse e a mulher trocaram um olhar sombrio. Dir-se-ia que lhes acudira ao mesmo tempo qualquer pensamento terrível.
“— Então, boa viagem! — disse Caderousse.
“— Obrigado! — agradeceu o joalheiro. Pegou a bengala, que deixara encostada a um velho baú, e saiu. No momento em que abriu a porta entrou tal rajada de vento que quase apagou o candeeiro — Oh, vem aí um rico tempo, e duas léguas debaixo de temporal!...
“— Fique — insistiu Caderousse — Pode muito bem dormir aqui.
“— Sim, fique — insistiu também a Carconte, com voz trêmula — Nós o trataremos como deve ser.
“— Não, tenho de ir dormir a Beaucaire. Adeus”.
“Caderousse foi lentamente até à porta.
“— Não se vê céu nem terra — disse o joalheiro, já fora da casa — Viro à direita ou à esquerda?
“— À direita — respondeu Caderousse — Não tem como se enganar: a estrada tem árvores de um lado e do outro.
“— Bom, vou indo — disse o joalheiro, cuja voz já mal se ouvia ao longe.
“— Fecha a porta — recomendou a Carconte — Não gosto de portas abertas quando troveja.
“— E quando há dinheiro em casa, não é verdade? — acrescentou Caderousse, dando duas voltas à chave.
“Em seguida dirigiu-se para o armário, do qual tirou o saco e a carteira, e puseram-se ambos a contar pela terceira vez o seu ouro e as suas notas. Nunca vira expressão igual à daquelas duas caras, cuja cupidez transparecia à luz fraca do candeeiro. A mulher, sobretudo, estava hedionda. O tremor febril que habitualmente a agitava redobrara. O seu rosto, de pálido, tornara-se lívido. Os seus olhos encovados chamejavam”.
“— Porque o convidou para dormir aqui? — perguntou com voz abafada.
“— Para... para não ter de regressar a Beaucaire com este, tempo — respondeu Caderousse, estremecendo.
“— Ah!... — exclamou a mulher, com uma expressão impossível de descrever — Julguei que fosse por outra coisa...
“— Mulher! Mulher! — gritou Caderousse — Porque tem semelhantes idéias e porque, tendo-as, não as guarda para si?
“— Tanto faz — disse a Carconte passado um instante de silêncio — Você não é um homem...
“— O que disse? — perguntou Caderousse.
“— Se fosse um homem, ele não sairia daqui.
“— Mulher!
“— A estrada dá uma volta, e ele é obrigado a seguir pela estrada, ao passo que ao longo do canal existe um caminho mais curto.
“— Mulher, você ofende a Deus! Espere, escute...
“Com efeito, ouviu-se um formidável trovão, ao mesmo tempo que um relâmpago azulado iluminava toda a sala, e a tempestade, diminuindo lentamente, pareceu afastar-se, como que contrariada, da casa maldita.
“— Jesus! — exclamou a Carconte, benzendo-se. No mesmo instante, e no meio do silêncio aterrorizado que se segue habitualmente a uma trovoada, ouviu-se bater à porta.
“Caderousse e a mulher estremeceram e entreolharam-se assustados.
“— Quem é? — gritou Caderousse, levantando-se e reunindo num só monte o ouro e as notas espalhadas em cima da mesa, e que cobriu com ambas as mãos.
“— Sou eu! — respondeu uma voz.
“— Eu, quem?
“— Por Deus! Joannês, o joalheiro!
“— O que você dizia? Que ofendia Deus? — observou a Carconte, com um sorriso medonho — Pois aí o tem, e é Deus que o envia!
“Caderousse deixou-se cair, pálido e arquejante, na sua cadeira. Carconte, pelo contrário, levantou-se e dirigiu-se com passo firme para a porta que abriu.
“— Entre, caro Sr. Joannês — disse.
“— Dir-se-ia, palavra, que parece que o Diabo não quer que regresse esta noite a Beaucaire — observou o joalheiro, escorrendo água por todos os lados — As asneiras mais pequenas são as melhores, meu caro Sr. Caderousse. Ofereceu-me hospitalidade; aceito-a e volto para dormir em sua casa.
“Caderousse balbuciou algumas palavras e enxugou o suor que lhe escorria da testa.
“Carconte voltou para fechar a porta atrás do joalheiro e deu duas voltas na chave.





 continua...




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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