sábado, 6 de agosto de 2011

O Hobbit - Capítulo 5



— Capítulo V —
Adivinhas No Escuro




QUANDO BILBO ABRIU OS OLHOS, duvidou que o tivesse feito, pois tudo continuava tão escuro como antes de abri-los. Não havia ninguém por perto. Imaginem só o pavor que ele sentiu! Não conseguia ouvir nada, ver nada, e não sentia nada exceto o chão de pedra. Muito devagar ele se levantou e, de quatro, tateou o chão, até tocar a parede do túnel, mas não encontrou nada nem acima nem abaixo: absolutamente nada, nenhum sinal de anões. Sua cabeça rodava, e ele não tinha idéia nem mesmo da direção em que estavam correndo quando caiu.
Tentou adivinhar da melhor maneira possível e arrastou-se por um bom trecho, até que de repente sua mão tocou o que parecia ser um minúsculo anel de metal frio no chão do túnel.
Era um ponto decisivo em sua carreira, mas ele não sabia. Colocou o anel no bolso quase sem pensar, com certeza não parecia ter nenhuma utilidade especial naquele momento.
Não foi muito longe, sentou-se no chão frio e entregou-se à mais completa infelicidade por um longo tempo. Imaginou-se fritando ovos com toucinho na cozinha de sua casa — pois sentia por dentro que já estava mais que na hora de fazer alguma refeição — mas isso só fez com que ficasse ainda mais arrasado.
Não conseguia pensar no que fazer, não conseguia imaginar o que acontecera, nem por que tinha sido deixado para trás, nem por que, se tinha sido deixado para trás, os orcs não o tinham capturado, nem mesmo por que sentia a cabeça tão dolorida. A verdade era que ficara deitado e imóvel, desaparecido e desacordado, num canto muito escuro por um longo tempo.
Depois de algum tempo, tateou em busca de seu cachimbo. Não estava quebrado, e isso já era alguma coisa. Então pegou a bolsa, e havia um pouco de fumo nela, e isso era mais alguma coisa. Então procurou fósforos, mas não encontrou nenhum, e isso destruiu completamente suas esperanças. Era melhor assim, como acabou concordando, quando pôs a cabeça no lugar. Sabe-se lá o que fósforos acesos e o cheiro do fumo teriam trazido dos buracos escuros daquele lugar horrível. Mesmo assim, naquela hora sentiu-se aniquilado. Mas, enquanto tateava em todos os bolsos e apalpava-se de cima a baixo em busca dos fósforos, sua mão acabou tocando o punho da pequena espada, o pequeno punhal que conseguira dos trolls e do qual se esquecera completamente, por sorte, os orcs também não haviam percebido a arma já que Bilbo a usava dentro das calças.
Sacou-a. A espada emitiu um brilho fraco e pálido diante de seus olhos.
“Então esta também é uma espada élfica”, pensou ele, “E os orcs não estão muito perto, mas também não longe o suficiente”. Mas, de certa forma, sentiu-se consolado. Era esplêndido estar usando uma espada feita em Gondolin para as guerras dos orcs celebradas por tantas canções e, além disso, Bilbo notara que essas armas exerciam grande impacto sobre os orcs que atacavam de repente.
“Voltar?”, pensou ele. “Não adianta nada! Ir para os lados? Impossível! Ir em frente? A única coisa a fazer! Adiante, então!”.
Levantou-se e avançou, segurando à frente a pequena espada e tateando a parede, o coração batendo como um tambor.
Agora, com certeza, Bilbo estava no que se pode chamar de aperto.
Mas vocês devem se lembrar de que o aperto não era tão grande para ele como teria sido para mim ou para vocês. Os hobbits não são como as pessoas comuns e, afinal, se as tocas deles são lugares alegres e adequadamente arejados, bem diferentes dos túneis dos orcs, ainda assim eles estão mais acostumados a túneis do que nós, além de não perderem o senso de direção debaixo da terra — não quando suas cabeças já se recuperaram de uma pancada. Além disso, conseguem se mover sem muito barulho, escondem-se com facilidade, se recuperam maravilhosamente de quedas e contusões e têm um cabedal de sabedoria e frases sábias que a maioria dos homens nunca ouviu ou esqueceu há muito tempo.
De qualquer modo, eu não gostaria de estar no lugar do Sr. Bolseiro. O túnel parecia não ter fim. Tudo o que ele sabia é que o túnel prosseguia para baixo e que se mantinha na mesma direção, apesar de uma ou duas curvas. De vez em quando, havia passagens que conduziam para os lados, que ele percebia à luz débil da espada ou tocando a parede com as mãos. Bilbo não lhes dava atenção, exceto para passar correndo por elas, com medo de que dali saíssem orcs ou seres sombrios semi-imaginados.
Foi avançando, sempre em frente, descendo e descendo, e ainda assim não ouvia som algum, a não ser, de vez em quando, asas de morcego, o que a principio o assustara, mas que acabou por se tornar muito freqüente para causar preocupação. Não sei quanto tempo Bilbo continuou assim, odiando ter de ir em frente, sem se atrever a parar, avançando, avançando, até ficar mais que cansado. Era como correr todo o caminho até o dia seguinte e mais alguns dias.
De repente, sem qualquer aviso, estava chapinhando na água!
Ugh! Era fria como gelo.
Aquilo o fez estacar. Bilbo não sabia se era apenas uma poça na trilha, a margem de um rio subterrâneo que cruzava o corredor ou, ainda, a beira de um profundo e sombrio lago subterrâneo. A espada quase não brilhava. Parou e conseguiu ouvir, com muito esforço, gotas pinga-pinga-pingando de um teto invisível e caindo na água: mas não parecia haver qualquer outro tipo de som.
“Então é um lago, e não um rio subterrâneo”, pensou ele. Mesmo assim, não se arriscou a atravessar na escuridão. Não sabia nadar, e também imaginava seres nojentos e viscosos, com grandes olhos cegos e esbugalhados, serpenteando na água.
Há seres estranhos vivendo nos lagos no coração das montanhas: peixes cujos antepassados entraram, sabe-se lá quantos anos atrás, e nunca mais saíram, enquanto seus olhos iam crescendo, crescendo, crescendo, de tanto tentarem enxergar no escuro e há também outras coisas, mais viscosas que peixes. Mesmo nos túneis e cavernas que os orcs fizeram para si, há outras coisas vivas que eles desconhecem, coisas que entraram furtivamente e se entocaram no escuro. Além disso, algumas dessas cavernas tiveram origem em eras anteriores aos orcs, que apenas as alargaram e interligaram com corredores, e os proprietários originais ainda permanecem lá em cantos escusos, movimentando-se furtivamente e farejando tudo.
Ali no fundo, na beira da água escura, vivia o velho Gollum, uma pequena criatura viscosa. Não sei de onde veio, nem quem ou o que ele era. Era um Gollum: escuro como a escuridão, exceto por dois grandes olhos redondos e pálidos no rosto magro. Tinha um pequeno barco e remava no lago quase sem nenhum ruído, pois era mesmo um lago, largo, profundo e extremamente frio. Ele impelia o barco com os pés grandes pendendo das bordas, mas nunca erguia uma onda na água. Não ele. Olhos pálidos feito lamparinas, ele procurava peixes cegos, que agarrava com os dedos longos num piscar de olhos. Gostava também de carne. Gostava de orcs, quando conseguia apanhá-los, mas tomava cuidado para que nunca o descobrissem.
Ele apenas os estrangulava por trás, quando algum descia sozinho até a beira da água enquanto ele rondava por ali. Era raro acontecer, pois os orcs tinham a sensação de que havia algo desagradável espreitando lá embaixo, nas próprias raízes da montanha. Haviam chegado até o lago quando perfuravam os túneis, muito tempo atrás, e descobriram que não podiam avançar, assim, sua estrada terminava naquela direção, e não havia motivo para irem ali, a não ser que o Grão-Orc os mandasse. Algumas vezes ele sentia vontade de comer peixe do lago, e algumas vezes nem orc nem peixe retornavam.
Na realidade, Gollum vivia numa ilha de pedra viscosa no meio do lago. Estava observando Bilbo a distância com seus olhos pálidos, que pareciam telescópios. Bilbo não podia vê-lo, mas ele imaginava um monte de coisas sobre Bilbo, pois podia muito bem ver que não se tratava de um orc.
Gollum entrou no barco e afastou-se da ilha enquanto Bilbo estava sentado na borda, completamente atarantado, no fim do caminho e com o juízo no fim. De repente surgiu Gollum, sussurrando e chiando:
— Que beleza e que moleza, meu preciossso! Acho que temos um lauto banquete, pelo menos um bom bocado para nós, gollum!

[FIG. 9] ADIVINHAS NO ESCURO


E quando ele dizia gollum, fazia um ruído horrível na garganta, como se estivesse engolindo alguma coisa. Era assim que tinha conseguido esse nome, embora sempre chamasse a si mesmo “meu precioso”.
O hobbit quase pulou fora da própria pele quando o chiado chegou-lhe aos ouvidos, e, de repente, viu os olhos pálidos e salientes voltados para ele.
— Quem é você? — perguntou ele, erguendo o punhal à sua frente.
— Quem é ele, meu preciossso? — sussurrou Gollum (que sempre falava consigo mesmo porque nunca tinha com quem falar).
Era o que vinha descobrir, pois, na verdade, não estava muito faminto no momento, apenas curioso, caso contrário, teria agarrado primeiro e sussurrado depois.
— Sou o Sr. Bilbo Bolseiro. Perdi os anões, perdi o mago, e não sei onde estou e não quero saber, se puder sair daqui.
— O que ele tem nass mãoss? — perguntou Gollum, olhando a espada, da qual não gostou muito.
— Uma espada, uma lâmina que vem de Gondolin!
— Sssss — disse Gollum, ficando muito polido — Você pode sentar aqui e conversar com nós um pouquinho, meu preciosso. Você gosta de adivinhas, vai ver que gosta, não gosta? — estava ansioso por parecer amigável, pelo menos no momento, e até descobrir mais sobre a espada e o hobbit, se ele estava realmente sozinho, se era bom para comer, e se Gollum estava faminto de verdade, só conseguiu pensar em adivinhas.
Propô-las e algumas vezes decifrá-las era o único jogo que já tinha jogado com outras criaturas divertidas, sentadas em suas tocas, muito, muito tempo atrás, antes que ele perdesse todos os amigos e fosse expulso, sozinho, e descesse mais, cada vez mais na escuridão sob as montanhas.
— Muito bem — disse Bilbo, que estava ansioso para concordar, até descobrir mais sobre a criatura, se estava realmente sozinho, se era feroz, se estava faminto e se era amigo dos orcs — Você pergunta primeiro — disse ele, pois não tivera tempo de pensar numa adivinha.
Então Gollum chiou:

 

Tem raízes misteriosas,

É mais alta que as frondosa

Sobe, sobe e também desce,

Mas não cresce nem decresce.

 

— Fácil! — disse Bilbo — Montanha, acho eu.
— Ele adivinha fácil? Precisa fazer uma competição com nós, meu preciosso. Se o preciosso perguntar e ele não responder, nós come ele, meu preciosso. Se ele pergunta e nós não ressponde, então nós faz o que ele quer, que tal? Nós mosstra a saída, é ssim!
— Está certo — disse Bilbo sem se atrever a discordar, e quase estourando os miolos para lembrar-se de adivinhas que pudessem salvá-lo de ser devorado.

 

Trinta cavalos na colina encarnada,

Primeiro cerceiam,

Depois pisoteiam,

Depois não fazem nada.

 

Foi tudo o que conseguiu lembrar para perguntar, a idéia de comida povoava seus pensamentos. A adivinha era bem velha também, e Gollum sabia a resposta tão bem quanto vocês.
— Barbada, barbada! — chiou ele — Dentess! Dentess! Meu precioso, mas nós só tem seis!
Então ele propôs sua segunda adivinha:

 

Sem asas volita,

Sem voz ele ulula,

Sem dentes mordica,

Sem boca murmura.

 

— Um minutinho! — gritou Bilbo, ainda incomodado pensando em comida. Por sorte já ouvira algo parecido antes e, colocando a cabeça no lugar, pensou na resposta — Vento, vento, é claro — disse ele, e ficou tão satisfeito que inventou uma na hora. “Esta vai confundir essa criaturinha subterrânea nojenta”, pensou ele:

 

Um olho no azul dum rosto

Viu outro olho no verde de outro.

“Aquele olho é como este olho”

Disse o primeiro olho,

“Mas lá embaixo é o seu lugar,

Aqui em cima é o meu lugar”.

 

— Ss, ss, ss — disse Gollum. Estivera debaixo da terra por um longo tempo, e já começava a esquecer esse tipo de coisa.
Mas exatamente quando Bilbo começava a alimentar esperanças de que o patife não conseguiria responder, Gollum trouxe memórias de muitas eras passadas, de quando vivia com a avó numa toca na margem de um rio.
— Sss, sss, meu preciosso — disse ele — Sol sobre as margaridas, é essa a resposta, é sim.
Mas aquele tipo de adivinhas comuns, de cima da terra, estavam começando a cansá-lo. Além disso, faziam-no lembrar de tempos em que era menos solitário, furtivo e nojento, e isso deixava-o nervoso. Mais ainda, deixavam-no faminto, então, dessa vez, tentou algo mais difícil e desagradável:

 

Não se pode ver, não se pode sentir,

Não se pode cheirar, não se pode ouvir.

Está sob as colinas e além das estrelas,

Cavidades vazias, ele vai enchê-las.

De tudo vem antes e vem em seguida,

Do riso é a morte, é o fim da vida.

 

Infelizmente para Gollum, Bilbo já ouvira esse tipo de coisa antes, e, de qualquer modo, a resposta o envolvia.
— O escuro! — disse ele, sem coçar nem quebrar a cabeça.

 

Caixinha sem gonzos, tampa ou cadeado,

Lá dentro escondido um tesouro dourado,

 

Perguntou ele para ganhar tempo, até que pudesse pensar numa verdadeiramente difícil. Aquela ele considerava uma barbada, terrivelmente fácil, embora não a tivesse apresentado nas palavras de costume. Mas acabou sendo um desafio para Gollum. Ele chiava para si mesmo, sem responder, balbuciava e sussurrava.
Depois de algum tempo, Bilbo ficou impaciente.
— Então, o que é? — perguntou ele — A resposta não é uma chaleira fervendo, como você está dando a entender com esse barulho todo que está fazendo.
— Dê uma chance pra nóss, precioso, deixe ele dar uma chance, meu preciosso... ss-ss.
— Então — disse Bilbo, depois de lhe dar uma longa chance — Já adivinhou?
Mas, de repente, Gollum lembrou-se de quando roubava ninhos, muito tempo atrás, é sentava-se à margem do rio, ensinando a avó, ensinando a avó a chupar.
— Ovosos! — chiou ele — Ovosos, isso mesmo!
Então ele perguntou:

 

Como a morte não tenho calor,

Vivo, mas sem respirar,

Sem sede, sempre a beber

Encouraçado, sem tilintar.

 

Ele, por sua vez, também achava aquela adivinha terrivelmente fácil, porque estava sempre pensando na resposta. Mas não podia pensar em nada melhor naquele momento, de tão atrapalhado que ficara com a do ovo.
Apesar disso, era uma pergunta difícil para o pobre Bilbo, que nunca tinha nada a ver com água, a não ser por obrigação. Imagino que vocês conhecem a resposta, é claro, ou podem adivinhá-la num piscar de olhos, já que estão sentados em casa, confortavelmente, e sem o perigo de serem devorados atrapalhando seus pensamentos.
Bilbo sentou-se e limpou a garganta uma ou duas vezes, mas não lhe veio nenhuma resposta. Depois de algum tempo, Gollum começou a chiar de prazer para si mesmo:
— É bom, meu preciosso? Apetitoso? Deliciosamente triturável? — começou a espiar Bilbo da escuridão.
— Um minutinho — disse o hobbit, tremendo — Eu lhe dei uma longa chance agora há pouco.
— Ele deve se apressar, apresssar! — disse Gollum, começando a descer do barco para atacar Bilbo.
Mas, quando colocou o comprido pé de pato na água, um peixe pulou assustado e caiu aos pés de Bilbo.
— Ugh! — disse ele — Que coisa fria e viscosa! — e assim adivinhou — Peixe! Peixe! — gritou ele — É peixe!
Gollum ficou terrivelmente desapontado, mas Bilbo perguntou outra adivinha o mais rápido possível, e Gollum precisou voltar para o barco e pensar.

 

Sem-pernas ficou sobre uma perna,

duas-pernas sentou perto sobre três-pernas,

quatro-pernas conseguiu alguma coisa.

 

Não era exatamente o momento certo para essa adivinha, mas Bilbo estava com pressa. Gollum poderia ter tido algum problema para adivinhá-la, se Bilbo a tivesse apresentado em outra ocasião. Naquelas circunstâncias, falando de peixe, sem pernas não foi muito difícil, e depois disso o resto ficou fácil.
“Peixe sobre uma pequena mesa, homem à mesa sentado num banco, o gato fica com as espinhas”, essa é obviamente a resposta, e logo Gollum a deu. Então pensou que chegara a vez de perguntar algo difícil e horrível. Foi isto o que disse:

 

Essa é a coisa que tudo devora

Feras, aves, plantas, flora.

Aço e ferro são sua comida,

E a dura pedra por ele moída,

Aos reis abate, a cidade arruína,

E a alta montanha faz pequenina.

 

O pobre Bilbo ficou sentado no escuro, pensando em todos os nomes horríveis de todos os gigantes e ogros de que já ouvira falar em histórias, mas nenhum deles tinha feito todas essas coisas. Teve uma intuição de que a resposta era bem diferente e que deveria conhecê-la, mas não conseguia pensar nela. Começou a ficar com medo, e isso é ruim quando se precisa pensar.
Gollum começou a sair do barco. Pulou na água e avançou para a margem, Bilbo não conseguia ver os olhos dele vindo em sua direção. Parecia que sua língua estava presa na boca, queria gritar: “Me dê mais tempo! Me dê mais tempo!”. Mas tudo o que saiu num grito repentino foi:
— Tempo! Tempo!
Bilbo se salvou por pura sorte. Pois essa, é claro, era a resposta.
Gollum ficou mais uma vez desapontado e agora estava ficando furioso, além de cansado do jogo. Aquilo o deixara realmente muito faminto. Desta vez não voltou para o barco. Sentou-se no escuro perto de Bilbo. Isso fez com que o hobbit ficasse terrivelmente incomodado.
— Ele tem que fazer uma pergunta pra nóss, meu preciosso, é, sssim, sssim. Sssó mais uma pergunta para adivinhar, é, sssim — disse Gollum.
Mas Bilbo simplesmente não conseguia pensar numa pergunta com aquela coisa nojenta, fria e úmida sentada ao lado dele, apalpando e cutucando. Ele se coçava, se beliscava, e mesmo assim não conseguia pensar em nada.
— Pergunte pra nóss! Pergunte pra nóss! — disse Gollum.
Bilbo se beliscou e deu-se um tapa, agarrou a pequena espada, chegou até a colocar a outra mão no bolso. Ali encontrou o anel que apanhara no corredor e do qual se esquecera.
— O que eu tenho no bolso? — disse ele em voz alta. Estava falando sozinho, mas Gollum pensou que fosse uma adivinha, e ficou terrivelmente perturbado.
— Não é jussto! Não é jusssto! — chiou ele — Não é jussto, meu preciosso, ou é, perguntar pra nós o que ele tem nos bolssinhos nojentos?
Bilbo, percebendo o que acontecera, e sem ter nada melhor para perguntar, ateve-se à pergunta.
— O que eu tenho no bolso? — disse ele mais alto ainda.
— S-s-s-s — chiou Gollum — Ele deve dar três chancess, meu preciosso, trêss chancesss.
— Está bem! Adivinhe! — disse Bilbo.
— Mãoses! — disse Gollum.
— Errado — disse Bilbo, que por sorte acabara de tirar a mão do bolso — Tente de novo!
— S-s-s-s-s — disse Gollum, mais furioso que nunca.
Pensou em todas as coisas que ele mesmo guardava nos bolsos, espinhas de peixe, dentes de orcs, conchas molhadas, um pedaço de asa de morcego, uma pedra pontuda para afiar as presas, e outras coisas desagradáveis. Tentou pensar no que outras pessoas levavam nos bolsos.
— Faca! — disse ele finalmente.
— Errado! — disse Bilbo, que perdera a sua havia algum tempo — Última chance!
Agora Gollum estava num estado muito pior do que quando Bilbo lhe propusera a pergunta do ovo. Chiava, resmungava e balançava o corpo para a frente e para trás, batia os pés no chão, contorcendo-se e entortando-se todo, mas, ainda assim, não se atrevia a desperdiçar sua última chance.
— Vamos! — disse Bilbo — Estou esperando!
Tentou parecer corajoso e alegre, mas não tinha certeza de como o jogo iria terminar, Gollum acertando ou não a resposta.
— O tempo acabou! — disse ele.
— Barbante, ou nada! — guinchou Gollum, o que não foi muito honesto, tentar duas respostas de uma vez.
— Ambas erradas! — exclamou Bilbo, muito aliviado, e levantou-se imediatamente, apoiando as costas na parede mais próxima, e ergueu a pequena espada.
Sabia, é claro, que o jogo de adivinhas era sagrado e extremamente antigo, e que mesmo criaturas malvadas tinham medo de trapacear quando jogavam. Mas sentia também que não podia confiar que aquela coisa pegajosa fosse manter alguma promessa numa enrascada. Qualquer desculpa serviria para ele se safar. E, afinal de contas, a última pergunta não fora uma adivinha genuína, de acordo com as leis antigas.
Mas, de qualquer forma, Gollum não o atacou imediatamente. Conseguia ver a espada na mão de Bilbo. Ficou sentado, tremendo e sussurrando.
Por fim, Bilbo não pôde esperar mais.
— E então? — disse ele — E a sua promessa? Quero ir embora. Você tem de me mostrar o caminho.
— Nós dissse issso, preciosso? Mostrar a saída para o Bolsseirinho nojento, é, ssim. Mas o que ele tem nos bolssos, hein? Não é barbante, precioso, mas não é nada. Não é, não, gollum!
— Não se incomode com isso! — disse Bilbo — Promessa é promessa.
— Está nervoso e impaciente, meu preciosso — chiou Gollum — Mas ele precisa esperar, é sim, precisa. Nós não pode subir nos túneiss com tanta pressa. Precisa pegar umas coisas antes, é sim, coisas pra ajudar nós.
— Bem, apresse-se! — disse Bilbo, aliviado com o pensamento de que Gollum ia embora.
Achava que ele estava apenas dando uma desculpa, e que não iria voltar. De que estaria Gollum falando? Que coisa útil poderia ele guardar no lago escuro?
Mas Bilbo estava errado.
Gollum tinha a intenção de voltar. Agora estava com fome, e furioso. Era uma criatura miserável e malvada, e já arquitetara um plano.
Não muito longe ficava sua ilha, da qual Bilbo nada sabia, e ali, em seu esconderijo, ele guardava algumas ninharias desprezíveis, e uma coisa muito bonita, muito bonita, muito maravilhosa. Ele tinha um anel, um anel de ouro, um anel precioso.
— Meu presente de aniversário! — sussurrou consigo mesmo, como tantas vezes fizera nos intermináveis dias escuros — É isso que nós quer agora, é ssim, nós quer ele.
Ele o queria porque se tratava de um anel de poder, e se alguém colocava aquele anel no dedo, ficava invisível e só podia ser visto em plena luz do dia e, mesmo assim, apenas pela sombra, que aparecia trêmula e apagada.
— Meu presente de aniversário! Chegou pra mim no dia do meu aniversário, meu preciosso.
Assim ele sempre dissera a si mesmo. Mas quem pode saber como Gollum conseguiu aquele presente, em priscas eras, nos dias antigos quando ainda havia anéis desse tipo espalhados pelo mundo? Mesmo o Mestre que os governava talvez não soubesse dizer. Gollum costumava usá-lo no inicio, até que ficou enjoado, depois passou a guardá-lo numa bolsa junto ao corpo, até ficar com a pele esfolada, agora geralmente o escondia num buraco na pedra em sua ilha, e estava sempre voltando lá para olhar para ele. E ainda o colocava algumas vezes, quando não suportava mais ficar separado do anel, ou então quando estava com muita, muita fome, ou cansado de comer peixe. Nessas ocasiões, arrastava-se por corredores escuros, procurando orcs desgarrados. Podia até se aventurar em lugares onde houvesse tochas acesas, que faziam seus olhos piscar e arder, pois estaria a salvo. É sim, são e salvo. Ninguém o veria, ninguém o notaria, até sentir seus dedos na garganta.
Apenas algumas horas antes Gollum o usara para capturar um filhotinho de orc. Como ele guinchara! Ainda lhe restava um osso ou dois para roer, mas ele queria algo mais macio.
— Bem a salvo, é sim — sussurrou para si mesmo — Ele não vai ver nós, vai, meu preciosso? Não. Ele não vai ver nós, e sua espadinha nojenta vai ser inútil, totalmente inútil.
Era isso o que estava em sua pequena mente malvada quando saiu repentinamente do lado de Bilbo, e, batendo os pés até o barco, sumiu no escuro. Bilbo achou que nunca mais teria noticias dele. Mesmo assim, esperou um pouco, pois não tinha idéia de como encontrar a saída sozinho.
De repente ouviu um grito agudo. Um calafrio correu-lhe espinha abaixo.
Gollum estava praguejando e gemendo no escuro, não muito longe, a julgar pelo som. Estava em sua ilha, escarafunchando aqui e ali, procurando e buscando em vão.
— Onde está? Onde esstá? — Bilbo o ouvia gritar — Ssumiu, meu preciosso, sumiu, sumiu! Droga e praga, meu preciosso sumiu!
— Qual é o problema? — gritou Bilbo — O que você perdeu?
— Ele nãoo deve perguntar pra nós — guinchou Gollum — Não é da conta dele, não, gollum! Perdido,gollum, gollum, gollum.
— Bem, eu também estou — gritou Bilbo — E quero ficar desperdido. E ganhei o jogo, e você prometeu. Então venha! Venha e me mostre a saída, e então pode continuar a procurar!
Por mais infeliz que Gollum parecesse, Bilbo não conseguia sentir muita pena em seu coração, e tinha a sensação de que algo que Gollum desejasse tanto não podia ser coisa boa.
— Venha! — gritou ele.
— Ainda não, meu preciosso! — respondeu Gollum. — Precisamos procurar ele, sumiu, gollum.
— Mas você não adivinhou minha última pergunta, e você prometeu — disse Bilbo.
— Não adivinhei! — disse Gollum.
Então, de repente, da escuridão, veio um chiado agudo.
— O que ele tem no bolsso? Conta pra nós. Ele precisa contar primeiro.
Pelo que Bilbo sabia, não havia nenhum motivo especial para não contar. A mente de Gollum chegara a uma suposição mais rápido que a dele, muito natural, pois Gollum cismara com um único objeto durante anos e anos, e sempre tivera medo de que fosse roubado. Mas Bilbo irritava-se com a demora. Afinal de contas, ele ganhara o jogo, com toda a justiça, correndo um risco terrível.
— As respostas devem ser adivinhadas, e não dadas — disse ele.
— Mas não foi uma pergunta honesta — disse Gollum — Não foi uma adivinha, preciosso, não foi não.
— Muito bem, se é uma questão de perguntas comuns — Bilbo respondeu — Então eu lhe fiz uma primeiro. O que foi que você perdeu? Conte!
— O que ele tem nos bolssos?
O som chegava chiando cada vez mais alto e agudo, e, olhando na direção de onde vinha, Bilbo viu, apavorado, dois pequenos pontos de luz a observá-lo. Á medida que a suspeita crescia na mente de Gollum, a luz de seus olhos queimava com uma chama pálida.
— O que você perdeu? — persistiu Bilbo.
Mas agora a luz nos olhos de Gollum transformara-se num fogo verde que se aproximava rapidamente. Gollum estava no barco de novo, e remava freneticamente em direção à margem escura, sentia no coração tal raiva pela perda e pela suspeita, que agora nenhuma espada lhe causava terror.
Bilbo não conseguiu imaginar o que enlouquecera a desprezível criatura, mas percebia que estava tudo acabado, e que Gollum pretendia matá-lo a qualquer custo. Bem na hora ele se virou e correu às cegas pelo corredor escuro de onde viera, mantendo-se próximo da parede e tateando com a mão esquerda.
— O que ele tem no bolsso? — Bilbo ouviu o chiado alto atrás de si e a água espirrando no momento em que Gollum saltou do barco.
“O que será que eu tenho?”, disse consigo mesmo, esfalfando-se e tropeçando no caminho. Colocou a mão esquerda no bolso.
O anel estava muito frio quando escorregou em seu indicador tateante.
O chiado estava logo atrás. Bilbo se virou e viu os olhos de Gollum, feito pequenas lamparinas verdes, subindo a ladeira. Apavorado, tentou correr mais, mas, de repente, bateu o pé numa saliência do chão e caiu estatelado em cima da pequena espada.
Num segundo Gollum estava sobre ele. Mas antes que Bilbo pudesse fazer qualquer coisa, recuperar o fôlego, levantar-se ou brandir a espada, Gollum passou, sem se dar conta dele, praguejando e sussurrando enquanto corria.
O que aquilo poderia significar?
Gollum enxergava no escuro. Bilbo podia ver a luz de seus olhos brilhando palidamente até mesmo por trás. Com esforço levantou-se, embainhou a espada, que agora voltara a brilhar, e depois, com todo o cuidado, seguiu Gollum. Não parecia haver mais nada a fazer. Não adiantava arrastar-se de volta até a água de Gollum. Talvez, se o seguisse, Gollum pudesse levá-lo a alguma saída sem querer.
— Maldito! Maldito! Maldito! — chiava Gollum — Maldito Bolseiro. Ele se foi! O que ele tem nos bolssos? Nós adivinha, nós adivinha, meu precioso. Achou ele, é sim, deve ter achado. Meu presente de aniversário.
Bilbo aguçou os ouvidos. Finalmente estava ele mesmo começando a adivinhar. Correu um pouco mais, aproximando-se tanto quanto se atrevia de Gollum, que ainda avançava depressa, sem olhar para trás, mas virando a cabeça de um lado para o outro, como Bilbo pode perceber pelo reflexo pálido nas paredes.
— Meu presente de aniversário! Maldito! Como nós foi perder ele, meu preciosso? É isso mesmo. Quando nós passou por aqui da última vez, quando torcemos aquele guinchadorzinho nojento. É isso mesmo. Maldito! Escorregou da nossa mão, depois de todos esses anos e anos! Ele se foi, gollum.
De repente Gollum sentou-se e começou a chorar, num ruído assobiado e gorgolejante, horrível de ouvir. Bilbo parou e encostou-se contra a parede do túnel. Depois de algum tempo, Gollum parou de chorar e começou a falar. Parecia estar tendo uma discussão consigo mesmo.
— Não adianta voltar lá para procurar, não adianta. Nós não lembra todos os lugares que visitou. E não adianta. O Bolseiro está com ele no bolssso, o xereta nojento encontrou ele, é isso mesmo, nós diz.
— Nóss acha, precioso, nós acha. Nós não pode saber até encontrar a criatura nojenta e espremer ela. Mas ele não sabe o que o presente pode fazer, sabe? Só vai ficar com ele no bolssso. Ele não sabe, e não pode ir muito longe. Ele se perdeu, aquela coisinha xereta. Ele não sabe a saída. Disse que não sabe.
— Ele disse, sim, mas ele é traiçoeiro. Não diz o que está pensando. Não quer dizer o que tem nos bolsssos. Ele sabe. Conhece uma entrada, deve conhecer uma saída, é sim. Ele foi para a porta de trás, é sim, a porta de trás.
— Os orcses vão pegar ele então. Ele não pode sair por ali, precioso.
— Ssss, sss, gollum! Orcses! Sim, mas se ele está com o presente, nosso precioso presente, então os orcses vão pegar ele, gollum! Vão encontrar ele, vão descobrir o que ele faz. Nunca mais nós vai ficar a salvo de novo, nunca mais, gollum! Um dos orcses vai colocar ele no dedo, e então ninguém vai enxergar ele. Ele vai estar lá mas não vai ser visto. Nem nossos olhosos espertos vão notar a presença dele, e ele vai chegar, matreiro e sorrateiro para pegar nós, gollum, gollum!
— Então vamos parar de conversar, precioso, e vamos correr. Se o Bolseiro foi por aquele caminho, nós precisa ir depressa ver. Vamos! Não está muito longe agora. Depressa!
Com um salto, Gollum se levantou e começou a andar em passos largos e desajeitados. Bilbo correu atrás dele, ainda com cautela, embora seu maior medo agora fosse o de tropeçar numa outra saliência, cair e fazer barulho. Sua cabeça era um torvelinho de esperança e surpresa. Pelo jeito, o anel que tinha era mágico: tornava a pessoa invisível!
Bilbo já ouvira falar sobre tais coisas, é claro, em histórias muito antigas, mas era difícil acreditar que tivesse realmente achado um por acidente. Mesmo assim, lá estava: Gollum, com seus olhos brilhantes, tinha passado por ele, a menos de um metro de distância.
Foram avançando, Gollum flape-flapeando à frente, chiando e praguejando, Bilbo atrás, silencioso como só um hobbit pode ser.
Logo chegaram a lugares onde, como Bilbo notara durante a descida, passagens laterais abriam-se, de um lado e de outro. Gollum imediatamente começou a contá-las.
— Uma à esquerda, sim. Uma à direita, sim. Duas à direita, sim, sim. Duas à esquerda, sim, sim.
E assim por diante.
À medida que a conta avançava, ele diminuía o passo, e começou a ficar trêmulo e choroso, pois estava deixando a água cada vez mais longe e tinha medo. Podia haver orcs por perto, e ele perdera o anel. Por fim parou ao lado de uma abertura baixa, do lado esquerdo de quem subia.
— Sete á direita, sim. Seis à esquerda, sim! — sussurrou ele — É esta. Este é o caminho para a porta de trás, sim. Aqui está a passagem!
Espiou lá dentro, e recuou encolhido.
— Mas nós não arrisca entrar, preciosso, não, nós não arrisca. Orcses lá embaixo. Um monte de orcses. Nós sente o cheiro deles. Ssss!
— O que nós vai fazer? Que morram esses malditos! Nós precisa esperar aqui, preciosso, esperar um pouco para ver.
Assim, chegaram a um impasse. Gollum trouxera Bilbo até a saída no final das contas, mas Bilbo não podia sair! Lá estava Gollum sentado, acocorado bem na abertura, os olhos brilhando frios em sua cabeça, enquanto ele a virava de um lado para o outro entre os joelhos.
Bilbo afastou-se da parede, mais silencioso que um camundongo, mas Gollum enrijeceu-se de imediato, e farejou, seus olhos ficaram verdes. Soltou um chiado baixo, mas ameaçador. Gollum não conseguia ver o hobbit, mas estava alerta, e tinha outros sentidos que a escuridão aguçara: a audição e o olfato. Parecia estar agachado com as mãos chatas espalmadas no chão e a cabeça lançada à frente, com o nariz quase colado à pedra.
Embora fosse apenas uma sombra negra no brilho dos próprios olhos, Bilbo podia ver ou sentir que ele estava tenso como a corda de um arco, pronta para o disparo.
Bilbo quase parou de respirar, enrijecendo-se também. Estava desesperado. Tinha de sair dali, daquela escuridão horrível, enquanto ainda lhe restavam forças. Tinha de lutar. Tinha de apunhalar a coisa maligna, apagar seus olhos, matá-la. Ela queria matá-lo. Não, não seria uma luta justa. Agora ele estava invisível. Gollum não tinha espada.
Gollum não havia ameaçado matá-lo, nem havia tentado ainda. E estava arrasado, sozinho, perdido. Uma compreensão repentina, um misto de pena e horror, cresceu no coração de Bilbo: um vislumbre de dias infindáveis e indistintos, sem luz ou esperança de melhora, cheios de pedra dura, peixe frio, movimentos furtivos e sussurros. Todos esses pensamentos lhe passaram pela mente num lampejo. Estremeceu. Depois, de súbito, num outro lampejo, como se impelido por uma nova força e resolução, deu um salto.
Um salto não muito grande para um homem, mas um salto no escuro.
Exatamente por cima da cabeça de Gollum ele pulou, sete pés à frente e três no ar. Na realidade, Bilbo nem percebeu que por um triz não havia rachado a cabeça no arco baixo da passagem.
Gollum jogou-se para trás, e tentou agarrar o hobbit no momento em que este voava sobre ele, mas era tarde demais: suas mãos fecharam-se no ar vazio, e Bilbo, caindo sobre os pés firmes, saiu correndo pelo túnel. Não se virou para ver o que Gollum estava fazendo. A princípio ouviu-o chiar e praguejar bem atrás de si. Depois o ruído cessou.
De repente, ouviu um grito de gelar o sangue, cheio de ódio e desespero. Gollum estava derrotado. Não ousava ir além. Tinha perdido, perdido a presa, e perdido, também, a única coisa de que gostava, o seu precioso. O grito fez com que o coração de Bilbo lhe viesse à boca, mas mesmo assim ele continuou correndo. Agora, fraca como um eco, mas ainda ameaçadora, ouvia a voz ao longe:
— Ladrão, ladrão, ladrão! Bolseiro! Nós odeia ele, nós odeia ele, nós odeia ele pra sempre!
Depois fez-se silêncio. Mas para Bilbo também o silêncio parecia ameaçador.
“Se os orcs estão tão próximos que ele os farejou”, pensou ele, “Então terão ouvido seus guinchos e xingamentos. Cuidado agora, ou esse caminho o conduzirá a coisas piores”.
A passagem era baixa e tosca. Não era muito difícil para o hobbit, a não ser quando, a despeito de todo o cuidado, batia os pobres pés contra as pedras pontudas no chão, e isso aconteceu várias vezes.
“Um pouco baixa para orcs, pelo menos para os grandes”, pensava Bilbo, sem saber que mesmo os grandes, os orcs das montanhas, avançam em grande velocidade com o corpo abaixado, as mãos quase tocando o solo.
A passagem, que até então levava para baixo, logo começou a subir outra vez e, depois de algum tempo, tornou-se íngreme. Isso fez com que Bilbo diminuísse o passo. Mas, por fim, a subida terminou, a passagem fez uma curva e começou a descer de novo, e lá, no fundo de um pequeno declive, ele viu, infiltrando-se por outra curva: um vislumbre de luz.
Não era vermelha, como de fogo ou lamparina, mas uma luz pálida de ar livre.
Então Bilbo começou a correr. Correndo tanto quanto as pernas podiam, fez a última curva e de repente chegou a um espaço aberto, onde a luz, depois de todo aquele tempo no escuro, parecia estonteantemente clara. Na realidade, não passava de uma réstia de sol que entrava por uma soleira, onde uma grande porta, uma Porta de pedra, fora deixada aberta.
Bilbo piscou, e então, de repente, viu os orcs: orcs vestindo armaduras completas, com espadas desembainhadas, sentados logo na entrada, vigiando-a com olhos bem abertos, vigiando a passagem que conduzia até ali. Estavam despertos, alertas, prontos para qualquer coisa.

[FIG. 10] BILBO NO PORTÃO


Viram-no antes que ele os visse. Sim, eles o viram. Talvez por acidente, talvez como um último truque do anel antes de aceitar o novo dono, ele não estava no dedo de Bilbo. Com gritos de prazer os orcs partiram para cima dele.
Um espasmo de medo e perda, como um eco do desespero de Gollum, tomou conta de Bilbo, que, esquecendo-se até de puxar a espada, enfiou as mãos nos bolsos. E ali, no bolso esquerdo, ainda estava o anel, que escorregou para o seu dedo.
Os orcs pararam de repente. Não viam sinal dele. Ele desaparecera. Soltaram um grito duas vezes mais forte, mas não com o mesmo prazer.
— Onde está ele? — gritavam.
— Voltem para a passagem! — gritavam alguns.
— Por aqui! — berravam alguns.
— Por ali! — berravam outros.
— Fiquem vigiando a porta — urrou o capitão.
Soavam assobios, armaduras se chocavam, espadas tilintavam, orcs praguejavam, xingavam e corriam de um lado para o outro, caindo uns sobre os outros, cada vez mais furiosos. Azáfama terrível, tumulto e desordem.
Bilbo estava terrivelmente amedrontado, mas teve o bom senso de compreender o que acontecera e de se esconder atrás de um grande barril que continha bebida para os guardas-orcs, saindo assim do caminho e evitando que tropeçassem nele, que o pisoteassem até a morte ou que o capturassem pelo tato.
— Preciso chegar até a porta, preciso chegar até a porta! — dizia a si mesmo, mas demorou muito até que se arriscasse a tentar.
E então foi como um terrível jogo de cabra-cega. O lugar estava cheio de orcs correndo de lá para cá, e o pobrezinho do hobbit, esquivando-se para um lado e para o outro, foi derrubado por um orc, que não conseguiu descobrir no que tropeçara, afastou-se de quatro, passou entre as pernas do capitão no último momento, levantou-se e correu para a porta.
Ainda estava aberta, mas um orc a havia empurrado e ela quase se fechara. Bilbo fez força, mas não conseguiu movê-la. Tentou esgueirar-se pela fresta. Espremeu-se, espremeu-se e entalou. Foi horrível. Os botões de sua roupa se engancharam entre a borda da porta e o batente. Ele podia ver lá fora, o ar livre: havia alguns degraus que desciam para um vale estreito entre altas montanhas, o sol surgia por trás de uma nuvem e brilhava por trás da porta, mas ele não conseguia passar.
De repente, um dos orcs gritou lá dentro:
— Há uma sombra ao lado da porta. Tem alguma coisa lá fora!
Bilbo ficou com o coração na boca. Fez uma tremenda contorção.
Os botões voaram em todas as direções. Passou, com um casaco e um colete rasgados, descendo os degraus aos saltos como um cabrito, enquanto orcs perplexos ainda catavam seus belos botões de latão na soleira da porta.
É claro que logo vieram atrás dele, gritando, chamando e caçando em meio às árvores. Mas eles não gostam do sol: ele deixa suas pernas bambas e sua cabeça tonta. Não conseguiram encontrar Bilbo, que estava usando o anel, e entrava e saia furtivamente das sombras das árvores, depressa e em silêncio, e mantendo-se fora do alcance do sol, assim, logo voltaram, resmungando e praguejando, para guardar a porta.
Bilbo tinha escapado.





 continua...



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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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