domingo, 21 de agosto de 2011

O Hobbit - Capítulo 19



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ÚLTIMO CAPÍTULO
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— Capitulo XIX —
A Última Etapa




FOI EM PRIMEIRO DE MAIO que os dois finalmente chegaram à borda do vale de Valfenda, onde ficava a Última (ou a Primeira) Casa Amiga. Mais uma vez a noite começava, e os pôneis estavam cansados, especialmente o que levava a bagagem, e todos sentiam necessidade de descanso. Enquanto desciam a trilha íngreme, Bilbo ouviu os elfos ainda cantando nas árvores, como se não tivessem parado desde que ele partira e, assim que chegaram às clareiras mais baixas da floresta, os elfos irromperam numa canção, muito parecida com a que haviam cantado antes.
Era alguma coisa assim:

 

Seco está o dragão,

Seus ossos espalhados,

A armadura partida,

O esplendor humilhado!

Se em ferrugem morre a espada,

Coroa e trono perecem

Com a força e com o ouro

Que os homens favorecem,

Aqui a grama vai crescendo,

As folhas se agitando,

A água clara correndo,

E os elfos vão cantando.

Venha! Tra-la-la-láli!

De volta para o vale!

Mais brilhante que as gemas,

Muito mais, são as estrelas,

A lua é bem mais branca

Do que a prata, venha vê-la,

Mais ilumina o fogo

Ao anoitecer no lar

Do que o ouro lavrado,

Então por que vagar?

Oh! Tra-la-la-láli!

Volte para o vale!

Ei, onde você vai,

Tão tarde regressando?

O rio vai correndo,

E as estrelas queimando!

Aonde vai tão carregado,

Tão triste e deprimido?

Aqui os elfos e suas damas

Recebem o oprimido

Com tra-la-la-láli!

Volte para o vale!

Tra-la-la-láli

Fa-la-la-láli

Fa-la!

 

Então os elfos do vale saíram para cumprimentá-los e conduzi-los através do rio até a casa de Elrond. Ali foram calorosamente recebidos e naquela noite havia muitos ouvidos ansiosos por escutar a história de suas aventuras. Foi Gandalf quem falou, pois Bilbo estava quieto e sonolento. Sabia da maior parte da história, pois fizera parte dela, e ele mesmo contara um bom pedaço para o mago no caminho de volta ou na casa de Beorn, mas, de vez em quando, abria um olho e punha-se a escutar, quando chegava uma parte da história que ainda não conhecia.
Foi assim que ficou sabendo onde Gandalf estivera, pois ouviu as palavras do mago a Elrond. Ao que parecia, Gandalf estivera num grande Conselho dos Magos Brancos, mestres de tradição e boa mágica, e que, por fim, haviam expulsado o Necromante de sua escura fortaleza, ao sul da Floresta das Trevas.
— Em breve, agora — Gandalf estava dizendo — A Floresta ficará, de certo modo, mais segura. O Norte estará livre daquele horror por muitos longos anos, espero. Mesmo assim, gostaria que ele fosse banido do mundo.
— Seria realmente bom — disse Elrond — Mas receio que isso não venha a acontecer nesta era do mundo, ou em muitas eras seguintes.
Terminada a história de suas viagens, contaram-se outras histórias, e ainda outras histórias, histórias de antigamente, e histórias de coisas novas, e histórias fora do tempo, até que a cabeça de Bilbo caiu para frente, e ele ficou roncando confortavelmente num canto.
Ao acordar viu-se numa cama branca, e a lua brilhava através de uma janela aberta. Sob ela muitos elfos cantavam com vozes altas e cristalinas, nas margens do rio.

 

Em júbilo cantemos em uníssono!

Nas copas sopra o vento e sobre a grama,

Abre-se a lua, florescem as estrelas,

A torre da Noite luz derrama.

Em júbilo cantemos todos juntos!

A relva é macia, os pés têm asas!

O rio é de prata, vão-se as sombras,

É belo o mês de maio em nossa casa.

Cantemos baixinho, tecendo-lhe os sonhos!

Sem nunca deixá-lo, embalemos seu sono!

O errante repousa! Seja leve o travesseiro!

Dorme e sonha tranquilo! Amieiro e Salgueiro!

Calado, Cipreste, até o dia romper!

Desce, Lua, do céu! Escura seja a terra!

Silêncio, Carvalho, Freixo e Espinheiro!

Águas, calai, até a luz abrir na serra!

 

— Bem, Povo Alegre! — disse Bilbo, olhando para fora — Que horas são, pela lua? Sua cantiga acordaria um orc bêbado! Mesmo assim, agradeço.
— E seus roncos acordariam um dragão de pedra, e, mesmo assim, agradecemos — responderam eles, rindo — Está chegando a alvorada, e você dormiu desde o início da noite. Amanhã, talvez, esteja curado de seu cansaço.
— Um pouco de sono traz uma grande cura na casa de Elrond — disse ele — Mas cura o mais que puder. Um segundo boa-noite, belos amigos!
E, dizendo isso, voltou para a cama e dormiu até o final da manhã.
O cansaço logo o abandonou naquela casa, e ele dançou e divertiu-se, de manhã e de noite, com os elfos do vale. Mas, agora, mesmo aquele lugar não poderia detê-lo por muito tempo e ele sempre pensava em sua casa. Depois de uma semana, portanto, disse adeus a Elrond e, deixando-lhe alguns pequenos presentes que ele não poderia recusar, partiu na companhia de Gandalf.
No momento em que abandonavam o vale, o céu escureceu no Oeste, diante deles, e vento e chuva vieram ao seu encontro.
— A época de Maio é alegre! — disse Bilbo, enquanto a chuva batia em seu rosto — Mas demos as costas às lendas e estamos voltando para casa. Acho que este é o primeiro gostinho dela.
— Ainda temos uma longa estrada pela frente — disse Gandalf.
— Mas é a última estrada — respondeu Bilbo.
Chegaram ao rio que marcava a fronteira do Ermo e ao vau abaixo da margem íngreme, do qual vocês talvez se lembrem. O rio estava caudaloso, por causa da neve que se derretia com a aproximação do Verão e da chuva, que durara todo o dia, atravessaram com certa dificuldade e seguiram em frente, enquanto caía a noite, na última etapa de sua viagem.
Esta foi bem parecida com a primeira, a não ser pelo fato de que a companhia era menor e mais silenciosa, além disso, desta vez não havia trolls. Em cada ponto da estrada, Bilbo recordava os acontecimentos e as palavras de um ano atrás, para ele mais pareciam dez, tanto que, é claro, percebeu rapidamente o lugar onde o pônei caíra dentro do rio e onde desviaram-se do caminho e tiveram a desagradável aventura com Tom, Bert e Bill.
Não muito longe da estrada, encontraram o ouro dos trolls, que eles haviam enterrado, ainda escondido e intacto.
— Tenho o suficiente para toda a vida — disse Bilbo, depois que o desenterraram — E melhor você ficar com este, Gandalf. Aposto que pode achar utilidade para ele.
— É verdade, eu posso! — disse o mago — Mas metade para cada um! Você pode descobrir que tem mais necessidades do que imagina.
Guardaram então o ouro em sacos e colocaram-nos sobre os pôneis, que não gostaram nem um pouco da ideia. Depois disso, avançaram mais devagar, pois caminhavam a maior parte do tempo. Mas a terra estava verde e havia muita grama pela qual o hobbit caminhava alegremente. Limpava o rosto com um lenço de seda vermelho (não, nenhum dos seus sobrevivera, e ele havia tomado aquele emprestado de Elrond), pois Junho trouxera o verão, e o tempo estava claro e quente outra vez.
Como todas as coisas chegam a um fim, até mesmo esta história, houve um dia em que finalmente avistaram a terra onde Bilbo nascera e fora criado, onde os contornos da paisagem e das árvores eram-lhe tão familiares quanto suas mãos e os dedos dos seus pés. Chegando a uma elevação, pode ver na distância a Colina, parou de repente e disse:

 

Estradas sempre em frente vão,

Sob copas, sobre pedras a passar,

Por cavernas sempre sem o sol,

Por rios que nunca veem o mar:

Sobre a neve que o inverno semeia,

Pelas flores que Junho cultua,

Sobre seixos, sobre o verde capim,

E sob as montanhas da lua.

Estradas sempre em frente vão,

Sob nuvens e estrelas a passar,

Mas os pés que percorrem os caminhos

Um dia para casa vão voltar.

Olhos que fogo e espada conheceram

E em antros de pedra horror pungente,

Um dia verdes prados recontemplam

E as colinas e as matas de sua gente.

 

Gandalf olhou para ele.
— Meu querido Bilbo! — disse ele — Há algo errado com você! Não é mais o hobbit que era.
E, assim, atravessaram a ponte, passaram pelo moinho perto do rio, e chegaram à porta de Bilbo.
— Céus! O que está acontecendo? — gritou ele.
Havia grande confusão, e pessoas de todos os tipos, respeitáveis e não respeitáveis, amontoavam-se diante da porta, e muitos entravam e saiam, sem, nem ao menos, limpar os pés no capacho, como notou Bilbo irritado.
Se ele ficou surpreso, eles ficaram ainda mais. Tinha chegado no meio de um leilão. Havia um grande aviso em preto e vermelho pendurado no portão, dizendo que, no dia vinte e dois de junho, os senhores Fossador, Fossador e Covas venderiam em leilão os pertences do falecido e ilustríssimo Senhor Bilbo Bolseiro, de Bolsão, Sob a Colina, Vila dos Hobbits. A venda começaria às dez horas em ponto. Era quase hora do almoço, e a maioria das coisas já fora vendida por vários preços, que variavam de quase nada a pouquíssima coisa (como é comum acontecer em leilões). Os primos de Bilbo, os Sacola-Bolseiros, estavam, na verdade, ocupados medindo os cômodos da casa para ver se sua mobília caberia. Em resumo, Bilbo estava supostamente morto, e nem todos que diziam isto ficaram tristes ao perceber que a suposição estava errada.
A volta do Sr. Bilbo Bolseiro criou enorme distúrbio, sob a Colina e sobre a Colina, e na outra margem do Água, foi muito mais que um prodígio. O incômodo legal, na verdade, durou anos. Demorou muito tempo até que se admitiu que o Sr. Bilbo Bolseiro estava vivo novamente. Foi muito difícil convencer as pessoas que tinham feito barganhas especialmente boas na liquidação, e, no fim, para ganhar tempo, Bilbo teve de comprar de volta muitas peças de sua própria mobília. Muitas de suas colheres de prata desapareceram misteriosamente, e nunca se explicou o fato. Pessoalmente, ele suspeitava dos Sacola-Bolseiros. De sua parte, estes nunca admitiram que o Bolseiro que voltara era o genuíno e nunca mais tiveram boas relações com Bilbo. Realmente, eles queriam muito viver na sua agradável toca-hobbit.
Na verdade, Bilbo descobriu que perdera mais do que colheres, perdera sua reputação. É verdade que, desde então, foi sempre um amigo-dos-elfos e teve o respeito dos anões, magos e de todas essas pessoas que sempre passavam por ali, mas não era mais respeitável. Na verdade, era considerado por todos os hobbits da vizinhança como “esquisito”, exceto por seus sobrinhos e sobrinhas do lado Túk, mas mesmo estes não eram encorajados pelos pais a manter relações com ele.
Sinto dizer que ele não se importava. Estava muito satisfeito, e o som da chaleira no fogo tornou-se, desde então, ainda mais musical do que fora nos dias pacatos antes da Festa Inesperada. A espada, ele pendurou sobre a lareira. A cota de malha foi colocada num mancebo no corredor (até que a emprestou a um Museu). Boa parte do ouro e da prata foram gastos em presentes, tanto úteis como extravagantes, o que, até certo ponto, explica a afeição de seus sobrinhos e sobrinhas. O anel mágico ele guardou em grande segredo, pois usava-o principalmente quando chegavam visitantes desagradáveis.
Começou a escrever poesia e a visitar os elfos, e, embora muitos balançassem a cabeça e pusessem a mão na testa, dizendo: “Pobre Bolseiro!”, e, embora poucos acreditassem em alguma de suas histórias, ele foi muito feliz até o fim de sua vida, que foi extraordinariamente longa.
Numa manhã de Outono, alguns anos depois, Bilbo estava sentado no estúdio, escrevendo suas memórias, pensava em dar-lhes o título de “Lá e de Volta Outra Vez, as Férias de um Hobbit”, quando ouviu a campainha soar.
Eram Gandalf e um anão, e o anão era Balin.
— Entrem! Entrem! — disse Bilbo, e logo eles estavam acomodados em poltronas ao lado do fogo.
Se Balin notou que o casaco do Sr. Bolseiro era agora mais amplo (e tinha botões de ouro verdadeiro), Bilbo também notou que a barba de Balin estava várias polegadas mais comprida e que seu cinto de pedras era muito majestoso.
Conversaram sobre o tempo que passaram juntos, é claro, e Bilbo perguntou como as coisas estavam indo nas terras da Montanha. Parecia que iam muito bem. Bard reconstruíra a cidade de Valle e haviam-se juntado a ele homens da Cidade do Lago, do Sul e do Oeste, toda a região tornara-se outra vez rica e fértil, e a desolação agora estava cheia de pássaros e flores na Primavera e de frutas e banquetes no Outono. A Cidade do Lago fora reconstruída e estava mais próspera do que nunca, e muita riqueza subia e descia o Rio Corrente, e naquelas partes havia amizade entre elfos, anões e homens.
O velho Senhor tivera um final triste. Bard dera-lhe muito ouro para socorrer o povo do Lago, mas, sendo o tipo de pessoa que pega facilmente tal doença, contraiu o Mal do Dragão, pegou a maior parte do ouro, fugiu com ele e morreu de fome no Ermo, abandonado pelos companheiros.
— O novo Senhor é mais sábio — disse Balin — E muito popular, é claro, pela prosperidade atual. Estão fazendo canções que dizem que em seu tempo correm rios de ouro.
— Então as profecias das antigas canções tornaram-se verdade, de certa forma! — disse Bilbo.
— É claro! — disse Gandalf — E por que não deveriam? Com certeza você não deixou de acreditar nas profecias só porque contribuiu em parte para realizá-las? Você não acha, não é mesmo, que todas as suas aventuras e fugas foram conseguidas por mera sorte, apenas para seu próprio beneficio? Você é uma ótima pessoa, Sr. Bolseiro, e gosto muito de você, mas, afinal, você é apenas uma pessoazinha neste mundo enorme!
— Ainda bem! — disse Bilbo, rindo, e ofereceu-lhe a vasilha de fumo.






Fim!







Esta foi uma história de Bilbo Bolseiro e de seu encontro com o Anel de Poder.
A história épica sobre o “Um Anel”, continua em “O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel”.






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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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