sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 53


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Roberto, o Diabo, é um belo e doloroso conto da Idade Média francesa (...) e fala de Roberto, um homem cruel e perverso desde a juventude, que se arrependendo dos seus atos, tenta reparar os muitos males e crimes que cometera. Leia mais no link a seguir: Ópera Roberto, o Diabo.
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LIII

ROBERTO, O DIABO




A
 desculpa da Ópera era tanto mais fácil de dar quanto é certo haver naquela noite sessão solene na Academia Real de Música. Levasseur, depois de uma demorada indisposição, regressava no papel de Bertram, e, como sempre, a obra do maestro da moda atraíra a mais brilhante sociedade de Paris.
Morcerf, como a maioria dos rapazes ricos, tinha a sua cadeira de orquestra, além de mais dez camarotes de pessoas de seu conhecimento às quais podia ir pedir lugar, sem contar com aquele a que tinha direito no camarote dos leões. Château-Renaud tinha uma cadeira ao pé dele. Beauchamp, na sua qualidade de jornalista, era rei da sala e tinha lugar em toda a parte.
Naquela noite, Lucien Debray dispunha do camarote do ministro e oferecera-o ao Conde de Morcerf, o qual, perante a recusa de Mercedes, o cedera a Danglars, mandando-lhe dizer que provavelmente faria durante o espetáculo uma visita à baronesa e à filha, se elas se dignassem aceitar o camarote que lhe oferecia. Claro que elas aceitaram. Não há como os milionários para cobiçarem camarotes que lhes não custam nada.
Quanto a Danglars, declarara que os seus princípios políticos e a sua qualidade de deputado da oposição lhe não permitiam entrar no camarote do Ministro. Por conseqüência, a baronesa escrevera a Lucien para que viesse buscá-la, atendendo a que não podia ir à Ópera sozinha com Eugênia. Com efeito, se as duas mulheres fossem sós, todos teriam achado isso de muito mau gosto, ao passo que Mademoiselle Danglars, indo à Ópera com a mãe e o amante da mãe, não provocava quaisquer comentários.
É preciso aceitar o mundo como ele é.
O pano subiu como de costume, perante uma sala quase vazia. Era mais um hábito da sociedade parisiense: chegar ao teatro depois do espetáculo começar. Daí resultava que o primeiro ato se passava, da parte dos espectadores chegados, não a ver ou ouvir a peça, mas sim a ver entrar os espectadores que iam chegando e ouvir apenas o barulho das portas e das conversas.
— Olha! — exclamou de súbito Albert ao ver abrir-se um camarote de primeira ordem — Olha a Condessa G...!
— Quem é essa condessa G...? — perguntou Château-Renaud.
— Essa agora, barão! Aí está uma pergunta que lhe não perdôo! Pergunta quem é essa condessa G...?
— Ah, é verdade!—exclamou Château-Renaud — Não é aquela encantadora veneziana?
— Exatamente.
Neste momento a condessa G... viu Albert e trocou com ele um cumprimento acompanhado de um sorriso.
— Conhece-a? — perguntou Château-Renaud.
— Conheço — respondeu Albert — Fui-lhe apresentado em Roma pelo Franz.
— Quer prestar-me em Paris o mesmo favor que Franz lhe prestou em Roma?
— Com muito prazer.
— Calem-se! — protestou o público.
Os dois rapazes continuaram a conversar sem parecerem preocupar-se absolutamente nada com o desejo que a platéia manifestava de querer ouvir a música.
— Eu a vi nas corridas do Campo de Marte — informou Château-Renaud.
— Hoje?
— Sim.
— Ah, de fato havia corridas. Apostou?
— Apostei. Oh, uma miséria! Cinqüenta luíses.
— E quem ganhou?
— O Nautilus. Apostei nele.
— Mas não havia três corridas?
— Havia. E também havia o prêmio do Jockey Club, uma taça de ouro. Até aconteceu uma coisa muito estranha.
— Qual?
— Calem-se! — tornou a gritar o público.
— Qual? — repetiu Albert.
— Foi um cavalo e um jóquei completamente desconhecidos que ganharam essa corrida.
— Como?...
— Palavra! Ninguém prestara atenção a um cavalo inscrito sob o nome de Vampa, nem a um jóquei inscrito sob o nome de Job, quando se viu avançar a toda a velocidade um admirável alazão e um jóquei do tamanho de um palmo. Tiveram de lhe meter vinte libras de chumbo nas algibeiras, o que não o impediu de chegar ao fim com três comprimentos de avanço sobre Ariel e o Bárbaro, que corriam com ele.
— E ninguém descobriu a quem pertenciam o cavalo e o jóquei?
— Ninguém.
— Disse que o cavalo estava inscrito sob o nome de...
— Vampa.
— Então estou mais adiantado do que você — disse Albert — Sei a quem pertence.
— Silêncio! — gritou pela terceira vez a platéia.
Desta vez o protesto era tão firme que os dois jovens deram finalmente por isso e verificaram que era a eles que o público se dirigia. Viraram-se um instante, procurando na multidão um homem que tomasse a responsabilidade do que consideravam uma impertinência, mas ninguém disse nada e eles voltaram-se para o palco. Neste momento o camarote do ministro abriu-se e a Sra. Danglars, a filha e Lucien Debray ocuparam os seus lugares.
— Ah, ah! — murmurou Château-Renaud — Estão ali umas pessoas suas conhecidas, visconde. Que diabo está vendo do lado direito? Procuram-no.
Albert virou-se e os seus olhos encontraram efetivamente os da baronesa Danglars, que o cumprimentou com o leque. Quanto a Mademoiselle Eugênia, foi a custo que os seus grandes olhos negros se dignaram a descer até à orquestra.
— Na verdade, meu caro — disse Château-Renaud — Não compreendo, excetuando a diferença de condição social, e não creio que isso o preocupe muito, não compreendo, repito, que, excetuando a diferença de condição social, possa ter qualquer coisa contra Mademoiselle Danglars, que é realmente uma lindíssima moça.
— Muito bonita, decerto — concordou Albert — Mas confesso-lhe que em vez de beleza preferiria qualquer coisa mais meiga, mais suave, mais feminina, enfim.
— Ora vejam estes rapazes! — exclamou Château-Renaud que, na sua qualidade de homem de trinta anos, tomava com Morcerf ares paternais — Nunca estão satisfeitos. Então, meu caro, arranjam-lhe uma noiva que parece uma Diana caçadora e você não está contente?!
— Precisamente por isso. Preferiria qualquer coisa no gênero da Vênus de Milo ou de Capua. Aquela Diana caçadora sempre no meio das suas ninfas assusta-me um pouco. Receio que me trate como Actéon.
Com efeito, uma olhadela à jovem quase podia explicar o sentimento que acabava de confessar Morcerf. Mademoiselle Danglars era bela, mas, como dissera Albert, de uma beleza um pouco parada. Os seus cabelos eram de um bonito negro, mas nas suas ondas naturais notava-se certa rebelião à mão que queria impor-lhes a sua vontade; os seus olhos, negros como os cabelos, emoldurados por magníficas sobrancelhas, que só tinham um defeito, o de se franzirem de vez em quando, eram, sobretudo notáveis por uma expressão de firmeza que admirava encontrar no olhar de uma mulher; o seu nariz tinha as proporções exatas que um estatuário daria ao de Juno; apenas a boca era demasiado grande, mas guarnecida de lindos dentes, que ainda mais faziam sobressair os lábios, cujo carmim excessivamente vivo contrastava com a palidez do rosto; finalmente, um sinal preto colocado ao canto da boca, e maior do que são habitualmente tais caprichos da natureza, acabava de lhe dar à fisionomia o ar decidido que assustava um bocadinho Morcerf.
Aliás, todo o resto da pessoa de Eugênia se conjugava com a cabeça que acabamos de tentar descrever. Era, como dissera Château-Renaud, uma Diana caçadora, mas com qualquer coisa ainda de mais firme e musculoso na sua beleza.
Quanto à educação que recebera, se havia alguma critica a fazer-lhe era que, como certos pontos da sua fisionomia, parecia pertencer um bocadinho ao outro sexo. Com efeito, falava duas ou três línguas, desenhava facilmente, escrevia versos e compunha música. Era, sobretudo apaixonada por esta última arte, que estudava com uma das suas amigas de colégio, jovem sem fortuna, mas dotada de todas as condições exigíveis para se tornar, segundo se afirmava, uma excelente cantora. Um grande compositor dedicava-lhe, ao que constava, um interesse quase paternal e fazia-a trabalhar, confiado em que ela encontraria um dia uma fortuna na voz.
A possibilidade de Mademoiselle Louise d’Armilly, assim se chamava a jovem artista, entrar um dia para o teatro fazia com que Mademoiselle Danglars, embora a recebesse em sua casa, não se mostrasse em público na sua companhia. De resto, sem ter em casa do banqueiro a posição independente de uma amiga, Louise tinha uma posição superior à das vulgares professoras.
Poucos segundos depois da entrada da Sra. Danglars no seu camarote, o pano descera, e graças à faculdade, permitida pelo tamanho dos intervalos, de as pessoas poderem passear no foyer ou fazerem visitas durante meia-hora, a platéia desguarnecera-se pouco a pouco.
Morcerf e Château-Renaud tinham sido os primeiros a sair. Por um momento, a Sra. Danglars pensara que a pressa de Albert tinha como finalidade vir apresentar-lhe os seus cumprimentos, e inclinara-se ao ouvido da filha para lhe anunciar a visita. Mas a jovem limitara-se a abanar a cabeça sorrindo. E ao mesmo tempo, como que para provar até que ponto a denegação de Eugênia era fundada, Morcerf apareceu num camarote de primeira ordem. Esse camarote era o da condessa G...
— Ah, ei-lo, Sr. Viajante! — exclamou a Condessa, estendendo-lhe a mão com toda a cordialidade de uma velha amiga — Foi muito amável da sua parte ter-me reconhecido e sobretudo ter-me dado a preferência para a sua primeira visita.
— Creia, minha senhora — respondeu Albert — Que se tivesse sabido da sua chegada a Paris e conhecesse a sua morada, não teria esperado até tão tarde. Mas permita-me que lhe apresente o Sr. Barão de Château-Renaud, meu amigo, um dos raros gentis-homens, que ainda restam na França e por quem acabo de saber que a senhora esteve nas corridas do Campo de Marte.
Château-Renaud a cumprimentou.
— Ah, o senhor esteve nas corridas? — disse vivamente a Condessa.
— Estive, sim, minha senhora.
— Nesse caso — prosseguiu, não menos vivamente, a Sra. G... — Poder dizer-me a quem pertencia o cavalo que ganhou o prêmio do Jockey Club?
— Não, minha senhora — respondeu Château-Renaud — E ainda há pouco fazia a mesma pergunta ao Albert.
— Tem muito interesse nisso, Sra. Condessa? — perguntou Albert.
— Em quê?
— Em conhecer o dono do cavalo.
— Infinito. Imagine... mas ser por acaso o senhor, visconde?
— Minha senhora, ia contar uma história: “Imagine...”, começou.
— Pois sim! Imagine que aquele encantador cavalo alazão e aquele bonito joqueizinho de casaca cor-de-rosa me inspiraram à primeira vista tão viva simpatia que eu “puxava” por um e por outro, exatamente como se tivesse apostado neles metade da minha fortuna. Por isso, quando o vi chegar ao fim com um avanço de três comprimentos sobre os outros concorrentes, fiquei tão contente que desatei a bater palmas como uma louca. Imagine a minha surpresa quando, ao regressar a casa, encontrei na escada o joqueizinho cor-de-rosa! Pensei que o vencedor da corrida morasse por acaso no mesmo prédio que eu, quando, mal abri a porta da sala, a primeira coisa que vi foi a taça de ouro que constituía o prêmio ganho pelo cavalo e pelo jóquei desconhecidos. Na taça havia iam papelzinho com estas palavras escritas: “À Condessa G... Lorde Ruthwen”.
— É precisamente isso — disse Morcerf.
— Como? É precisamente isso o quê? Que quer dizer?
— Quero dizer que se trata de Lorde Ruthwen em pessoa.
— Qual Lorde Ruthwen?
— O nosso, o vampiro, o do Teatro Argentina.
— Deveras?! — exclamou a Condessa — Ele está aqui?
— Exatamente.
— E o senhor o vê, o recebe, vai a casa dele?
— É meu amigo íntimo, e o próprio Sr. de Château-Renaud tem a honra de conhecê-lo.
— Que o leva a crer que foi ele quem ganhou?
— O seu cavalo inscrito com o nome de Vampa.
— Que tem isso?
— Não se lembra do nome do famoso bandido que me fez prisioneiro?
— Ah, é verdade!
— E das mãos do qual o Conde me tirou miraculosamente?
— Sem dúvida.
— Chama-se Vampa. Bem vê que é ele.
— Mas porque mandou a taça, a mim?
— Primeiro, Sra. Condessa, porque lhe falei muito a seu respeito, como pode imaginar; depois, porque terá ficado encantado por encontrar uma compatriota e feliz com o interesse que essa compatriota tomava por ele.
— Espero que nunca lhe tenha contado as loucuras que dissemos a seu respeito!
— Palavra que não juraria tal coisa, e essa maneira de lhe oferecer a taça sob o nome de Lorde Ruthwen...
— Mas isso é horrível e ele vai me detestar mortalmente!
— O seu procedimento é o de um inimigo?
— Não, confesso...
— Então...
— Está, portanto em Paris?
— É verdade.
— E que sensação fez?
— Bom, falou-se dele durante oito dias — respondeu Albert — Mas depois da sua chegada deu-se a coroação da Rainha de Inglaterra e o roubo dos diamantes de Mademoiselle Mars, e não se falou mais disso.
— Meu caro — interveio Château-Renaud — Bem se vê que o Conde é seu amigo e que o trata em conformidade. Não acredite no que lhe diz Albert, Sra. Condessa, pois, pelo contrário, só se fala do Conde de Monte Cristo em Paris. Começou por oferecer à Sra. Danglars cavalos de trinta mil francos; depois, salvou a vida à Sra. de Villefort, e em seguida ganhou a corrida do Jockey Club, ao que parece. Ao contrário do que diz Morcerf, sustento que não falta quem se ocupe ainda do Conde neste momento, nem faltará quem se ocupe dele daqui a um mês ou mais, se quiser continuar a fazer excentricidades, o que, de resto, parece ser a sua maneira de viver habitual.
— É possível — disse Morcerf — Entretanto, quem é que está agora no camarote do embaixador da Rússia?
— Qual é? — perguntou a Condessa.
— O intercolúnio da primeira ordem. Parece-me que está lá gente inteiramente nova.
— De fato — concordou Château-Renaud — Esteve lá alguém durante o primeiro Ato?
— Onde?
— No camarote.
— Não — respondeu a Condessa — Não vi ninguém. Portanto — continuou, voltando à primeira conversa — Acha que foi o seu Conde de Monte Cristo quem ganhou o prêmio?
— Tenho certeza.
— E que me mandou a taça?
— Sem dúvida nenhuma.
— Mas eu não o conheço — disse a Condessa — E estou com muita vontade de a devolver.
— Oh, não faça isso! Mandava-lhe outra, talhada em qualquer safira ou escavada em algum rubi. São as suas maneiras de agir. Que quer que lhe faça, é preciso aceitá-lo como é.
Neste momento ouviu-se a campainha que anunciava que o Segundo Ato ia começar e Albert levantou-se para regressar ao seu lugar.
— Voltarei a vê-lo? — perguntou a Condessa.
— Nos intervalos, se me permitir, virei informar-me se lhe posso ser útil alguma coisa em Paris.
— Meus senhores — disse a Condessa — Todos os sábados à noite, na Rua de Rivoli, nº. 22, estou em casa para os meus amigos. Fiquem prevenidos.
Os dois rapazes cumprimentaram e saíram.
Quando entraram na sala viram a platéia de pé e com os olhos fixos num único ponto. O seu olhar seguiu a direção geral e deteve-se no antigo camarote do embaixador da Rússia. Acabava de entrar um homem vestido de preto, de trinta e cinco a quarenta anos, com uma mulher em traje oriental. A mulher era da maior beleza e o traje de tal riqueza que, como dissemos, todos os olhos se tinham voltado instantaneamente para ela.
— É Monte Cristo e a sua grega — informou Albert.
Com efeito, era o Conde e Haydée. Pouco depois, a jovem era alvo não só da atenção da platéia, mas também de toda a sala. As mulheres debruçavam-se dos camarotes para ver correr, sob as luzes dos lustros, aquela cascata de diamantes.
O Segundo Ato decorreu no meio desse rumor abafado que indica estar muita gente suspensa do mesmo acontecimento. Ninguém se lembrou de pedir silêncio. Aquela mulher tão nova, tão bela, tão deslumbrante, era o mais curioso espetáculo que se podia ver. Desta vez, um sinal da Sra. Danglars indicou claramente a Albert que a baronesa desejava ter a sua visita no intervalo seguinte. E Morcerf era demasiado delicado para se fazer esperar quando lhe indicavam claramente que o esperavam. Terminado o Ato, apressou-se, portanto a subir ao camarote de boca.
Cumprimentou as duas senhoras e estendeu a mão a Debray. A baronesa acolheu-o com um sorriso encantador e Eugênia com a sua frieza habitual.
— Meu caro — disse Debray — Dou-lhe a minha palavra de que está perante um homem exausto e que o chama em seu auxílio para o substituir. Esta senhora esmaga-me com perguntas sobre o Conde e quer que eu saiba de onde é, de onde vem e para onde vai. Ora, eu confesso que não sou Cagliostro, e para me tirar de apuros disse: “Pergunte tudo isso a Morcerf, que conhece o seu Monte Cristo como as suas mãos”. Foi então que ela lhe fez sinal.
— Não é incrível que um homem que tem meio milhão de fundos secretos à sua disposição não esteja melhor informado? — perguntou a baronesa.
— Minha senhora — respondeu Lucien — Peço-lhe que acredite que se tivesse meio milhão ao meu dispor o empregaria em tudo menos em tirar informações do Sr. de Monte Cristo, que a meus olhos só tem o mérito de ser duas vezes rico como um nababo. Mas passei a palavra ao meu amigo Morcerf. Entenda-se com ele, que isso já me não diz respeito.
— De fato, só um nababo me mandaria uma parelha de cavalos de trinta mil francos e com quatro diamantes nas orelhas de cinco mil francos cada um.
— Oh, os diamantes! — exclamou, rindo, Morcerf — São a sua mania. Creio que, como Potemkin, os traz sempre nas algibeiras e que os semeia no seu caminho como o Polegarzinho fazia com os seus seixos.
— Talvez tenha descoberto alguma mina — sugeriu a Sra. Danglars — Sabem que ele tem um crédito ilimitado sobre a casa do barão?
— Não, não sabia — respondeu Albert — Mas assim deve ser.
— E que anunciou ao Sr. Danglars que contava ficar um ano em Paris e gastar seis milhões?
— É o Paxá da Pérsia que viaja incógnito.
— E aquela mulher, Sr. Lucien, já reparou como é bonita? — inquiriu Eugênia.
— Na verdade, menina, não conheço ninguém tão pronto como a minha amiga a fazer justiça às pessoas do seu sexo.
Lucien aproximou o monóculo do olho.
— Encantadora — disse.
— E aquela mulher, Sr. de Morcerf, sabe quem é?
— Menina — disse Albert, respondendo a esta interpelação quase direta — Sei mais ou menos, como tudo o que diz respeito à personagem misteriosa de que nos ocupamos. Aquela mulher é uma grega.
— Isso se vê facilmente pelo seu traje; não vale a pena me dizer o que toda a sala já sabe tão bem como nós.
— Estou desolado — declarou Morcerf — Por ser um cicerone tão ignorante, mas devo confessar que a tanto se limitam os meus conhecimentos. Sei também que é música, porque um dia em que tomei o café da manhã com o Conde ouvi os sons de uma gusla que não podiam vir certamente senão dela.
— O seu Conde recebe? — perguntou a Sra. Danglars.
— E de uma forma esplêndida, juro-lhe.
— Tenho de convencer Danglars a oferecer um jantar, um baile, ao Conde de Monte Cristo; enfim, qualquer coisa que nos retribua.
— E capaz de ir a casa dele? — perguntou Debray, rindo.
— Porque não? Com o meu marido!
— Mas ele é solteiro, esse misterioso Conde.
— Bem vê que não — perguntou também rindo a baronesa, indicando a bela grega.
— Essa mulher é uma escrava, segundo ele próprio nos disse. Lembra-se, Morcerf; no seu almoço?
— Admita, meu caro Lucien, que tem mais o ar de uma princesa — observou a baronesa.
— Das Mil e Uma Noites.
— Das Mil e Uma Noites, não digo que não. Mas que faz as princesas, meu caro? São os diamantes, e esta está coberta deles.
— Até demais — observou Eugênia — Seria mais bonita sem eles, pois se veriam o colo e as mãos, que são encantadores de forma.
— Oh, a artista! Reparem como se apaixona! — exclamou a Sra. Danglars.
— Gosto de tudo o que é belo — disse Eugênia.
— Então que me diz do Conde? — perguntou Debray — Parece-me que também não está mal...
— O Conde? — volveu-lhe Eugênia, como se ainda não tivesse pensado em observá-lo — O Conde é demasiado pálido.
— Precisamente nessa palidez é que reside o segredo que buscamos — disse Morcerf — A condessa G... afirma, como sabem, que é um vampiro.
— Está então de volta, a condessa G...? — perguntou a baronesa.
— Está naquele camarote lateral, quase defronte de nós, minha mãe — informou Eugênia — Aquela mulher, com os seus admiráveis cabelos louros, é ela.
— Oh, sim, claro! — exclamou a Sra. Danglars — Sabe o que devia fazer, Morcerf?
— Ordene, minha senhora.
— Devia ir visitar o seu Conde de Monte Cristo e trazê-lo aqui.
— Para quê? — perguntou Eugênia.
— Para lhe falarmos. Não tem curiosidade de vê-lo?
— Nenhuma.
— Estranha criança! — murmurou a baronesa.
— Oh, provavelmente virá por si mesmo! — informou Morcerf — Repare, viu-a, minha senhora, e está cumprimentando-a.
A baronesa retribuiu ao Conde o cumprimento, acompanhado de um sorriso encantador.
— Pronto, sacrifico-me — declarou Morcerf — Deixo-as e vou ver se haver maneira de lhe falarem.
— Vá ao seu camarote; é muito simples.
— Mas não fui apresentado...
— A quem?
— À bela grega.
— Não diz que é uma escrava?
— Digo, mas a senhora afirma que é uma princesa... não, espero que quando me vir sair ele também saia.
— É possível. Vá!
— Estou indo.
Morcerf cumprimentou e saiu. Efetivamente, quando passava diante do camarote do Conde, a porta abriu-se, o Conde disse algumas palavras em árabe a Ali, que se encontrava no corredor, e pegou no braço de Morcerf. Ali fechou a porta e ficou de pé diante dela. No corredor havia muito movimento à volta do núbio.
— Na verdade, a vossa Paris é uma cidade estranha e os vossos parisienses, um povo singular — disse Monte Cristo — Diria que é a primeira vez que vêem um núbio. Veja como se comprimem à volta do pobre Ali, que não sabe o que querem dele. Quer saber uma coisa? Um parisiense pode ir, por exemplo, a Tunes, a Constantinopla, a Bagdá, ou ao Cairo, que ninguém fará círculo à sua volta.
— Porque vós, Orientais, sois pessoas sensatas e só olhais para o que vale a pena ser visto. Acredite, porém, que Ali goza de tanta popularidade porque lhe pertence e porque neste momento o senhor é o homem da moda.
— Deveras? E a quem devo esse favor?
— Por Deus, a si mesmo! O senhor oferece parelhas de mil luíses, salva a vida à mulher do procurador régio, faz correr sob o nome de Vampa cavalos puros-sangues e jóqueis do tamanho de sagüis... finalmente, ganha taças de ouro e oferece-as a mulheres bonitas.
— Quem diabo te contou todas essas loucuras?
— Ora essa! A primeira, a Sra. Danglars, que está mortinha por o ver no seu camarote, ou antes, que o vejam lá; a segunda, o jornal de Beauchamp, e a terceira, a minha própria imaginação. Porque chama ao seu cavalo Vampa, se quer guardá-lo incógnito?
— Tem razão! — admitiu o Conde — Foi uma imprudência. Mas diga-me, o Conde de Morcerf nunca vem à Ópera? Procurei-o com a vista e não o vi em parte alguma.
— Virá esta noite.
— E onde ficará?
— No camarote da baronesa, parece-me.
— Aquela jovem encantadora que está com ela é sua filha?
— Sim.
— Dou-lhe os meus parabéns, meu amigo...
Morcerf sorriu.
— Voltaremos a falar disso mais tarde e em pormenor — perguntou — Que me diz da música?
— Qual música?
— Aquela que veio ouvir.
— Digo que é linda como música composta por um compositor humano e cantada por passarinhos de dois pés e sem penas, como dizia o defunto Diógenes.
— Essa é boa! Mas, meu caro Conde, parece-me que poderia ouvir, se lhe apetecesse, os sete coros do Paraíso...
— É mais ou menos o que faço. Quando quero ouvir música admirável, visconde, música como nunca nenhum ouvido mortal ouviu, durmo.
— Nesse caso, está às mil maravilhas aqui! Durma, meu caro Conde, durma. A Ópera não foi inventada para outra coisa.
— Não, na realidade, a orquestra faz demasiado barulho. Para que durma o sono a que me refiro preciso de calma, silêncio e certa preparação...
— Ah, sim, o famoso haxixe!
— Justamente, visconde. Quando quiser ouvir música, vá cear comigo.
— Já a ouvi uma vez que fui tomar o café da manhã consigo — perguntou Morcerf.
— Em Roma?
— Sim.
— Ah, era a gusla de Haydée! Sim, a pobre exilada distrai-se algumas vezes a tocar canções do seu país.
Morcerf não insistiu mais. Pela sua parte o Conde calou-se.
Neste momento a campainha tocou.
— Me dá licença? — pediu o Conde, retomando o caminho do seu camarote.
— Evidentemente!
— Dê muitas recomendações à condessa G... da parte do seu vampiro.
— E à baronesa?
— Diga-lhe que terei a honra, se me permitir, de ir cumprimentá-la no outro intervalo.
Começou o Terceiro Ato. Durante ele o Conde de Morcerf veio, como prometera, juntar-se à Sra. Danglars. O Conde não era de modo algum um desses homens que provocam alvoroço numa sala. Por isso, ninguém notou a sua chegada, exceto as pessoas em cujo camarote tomou lugar. No entanto, Monte Cristo viu-o e aflorou-lhe aos lábios um leve sorriso.
Quanto a Haydée, não via nada enquanto o pano estava levantado. Como todas as naturezas primitivas, adorava tudo o que impressiona o ouvido e a vista. O Terceiro Ato decorreu como de costume. Mademoiselle Noblet, Júlia e Leroux executaram os seus saltos de dança habituais, o príncipe de Granada foi desafiado por Roberto-Mário e, finalmente, o majestoso rei, que o leitor conhece, deu a volta à sala para mostrar o seu manto de veludo, levando a filha pela mão. Em seguida o pano desceu e a sala despejou-se imediatamente no foyer e nos corredores.
O Conde saiu do seu camarote e um instante depois apareceu no da baronesa Danglars. A baronesa não conteve um grito de surpresa. Levemente matizado de alegria.
— Entre, entre, Sr. Conde! — exclamou — Sinceramente, tinha pressa de juntar os meus agradecimentos verbais aos que já lhe dei por escrito.
— Então, minha senhora, ainda se lembra dessa miséria? — protestou o Conde — Eu já a tinha esquecido.
— Pois sim, mas o que se não esquece, Sr. Conde, é que no dia seguinte salvou a minha boa amiga Sra. de Villefort do perigo que a faziam correr esses mesmos cavalos.
— Também desta vez não mereço os seus agradecimentos, minha senhora. Foi Ali, o meu núbio, que teve a felicidade de prestar à Sra. de Villefort esse eminente serviço.
— E foi também Ali — interveio o Conde de Morcerf — Que tirou o meu filho das mãos dos bandidos romanos?
— Não, Sr. Conde — respondeu Monte Cristo, apertando a mão que o general lhe estendia — Não. Quanto a isso, os agradecimentos pertencem-me. Mas o senhor já os deu, eu já os recebi, e na verdade constrange-me encontrá-lo ainda tão reconhecido. Conceda-me a honra, suplico-lhe, Sra. Baronesa, de me apresentar a sua filha.
— Oh, estão todos apresentados, pelo menos de nome, porque há dois ou três dias que só falamos do senhor! Eugênia — continuou a baronesa, virando-se para a filha — O Sr. Conde de Monte Cristo...
O Conde inclinou-se; Mademoiselle Danglars fez um ligeiro aceno de cabeça.
— Acompanha-o uma jovem admirável, Sr. Conde — disse Eugênia — É sua filha?
— Não, menina — respondeu Monte Cristo, surpreendido com aquela extraordinária ingenuidade ou aquele espantoso atrevimento — É uma pobre grega de quem sou tutor.
— E que se chama?...
— Haydée — respondeu Monte Cristo.
— Uma grega! — murmurou o Conde de Morcerf.
— Sim, Conde — disse a Sra. Danglars — E diga-me se alguma vez viu na corte de Ali-Tebelin, que o senhor serviu tão gloriosamente, traje tão admirável como aquele que temos ali diante dos olhos.
— Serviu em Janina, Sr. Conde? — perguntou Monte Cristo.
— Fui inspetor-geral das tropas do paxá — respondeu Morcerf — E a pouca fortuna que amealhei devo-a, não o oculto, às liberalidades do ilustre chefe albanês.
— Mas veja! — insistiu a Sra. Danglars.
— Onde? — balbuciou Morcerf.
— Ali! — disse Monte Cristo.
E rodeando o Conde com o braço, inclinou-se com ele para fora do camarote. Neste momento, Haydée, que procurava o Conde com a vista, viu-lhe o rosto pálido junto do de Morcerf, que ele tinha abraçado.
Aquele rosto produziu na jovem o efeito da cabeça de Medusa. Esboçou um movimento para diante, como se quisesse devorar ambos com a vista, e depois, quase imediatamente, lançou-se para trás e soltou um gritinho, que no entanto foi ouvido pelas pessoas que se encontravam mais perto dela, e por Ali, que abriu sem demora a porta.
— Repare, que terá acontecido à sua pupila, Sr. Conde? — observou Eugênia — Dir-se-ia que se sentiu mal...
— Assim parece, com efeito — respondeu o Conde — Mas não se assuste, Haydée é muito nervosa e por conseqüência muito sensível aos cheiros. Um perfume de que não goste basta para a fazer perder os sentidos. Mas — acrescentou o Conde, tirando um frasco da algibeira — Tenho aqui o remédio.
E depois de cumprimentar a baronesa e a filha com a mesma inclinação de cabeça, trocou um último aperto de mão com o Conde e com Debray e saiu do camarote da Sra. Danglars. Quando entrou no seu, Haydée ainda estava muito pálida, e mal o viu, pegou-lhe na mão. Monte Cristo notou que as mãos da jovem estavam úmidas e geladas.
— Com quem estavas conversando ali, senhor? — perguntou a jovem.
— Com o Conde de Morcerf, que esteve ao serviço do teu ilustre pai e confessa dever-lhe a sua fortuna — respondeu Monte Cristo.
— Ah, o miserável! — exclamou Haydée — Foi ele quem o vendeu aos Turcos, e essa fortuna foi o preço da sua traição. Não sabia, meu querido senhor?
— Já tinha ouvido qualquer coisa a esse respeito, no Epiro — respondeu Monte Cristo —— Mas ainda ignoro os pormenores. Vem, minha filha, devem ser curiosos...
— Oh, sim, vamos, vamos! Parece que morreria se ficasse mais tempo diante desse homem.
E Haydée levantou-se bruscamente, envolveu-se no seu albornoz de caxemira branca bordado a pérolas e coral e saiu precipitadamente no momento em que o pano subia.
— Aquele homem não faz nada como os outros! — disse a condessa G... a Albert, que voltara para junto dela — Ouve religiosamente o terceiro Ato de Roberto e sai no momento em que o quarto vai começar.




continua...



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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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