segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 49



XLIX

HAYDÉE




O
 leitor ainda se recorda, decerto, quem eram os novos, ou antes, os antigos conhecidos do Conde de Monte Cristo que moravam na Rua Meslay: eram Maximilien, Julie e Emmanuel.
A esperança da agradável visita que ia fazer, dos curtos momentos felizes que ia passar, daquela luz do paraíso que ia penetrar no inferno onde voluntariamente se encerrara, espalhara, a partir do momento em que perdera de vista Villefort, a mais singular serenidade pelo rosto do Conde, e Ali, que acorrera ao toque da campainha, ao ver aquele rosto irradiar uma alegria tão rara, retirara-se na ponta dos pés e contendo a respiração, como se não quisesse afugentar os bons pensamentos que julgava ver adejar à volta do amo.
Era meio-dia.
O Conde reservara uma hora para subir aos aposentos de Haydée. E dir-se-ia que a alegria não podia reentrar de súbito naquela alma durante tanto tempo amargurada e que este necessitava de se preparar para as emoções ternas, como as outras almas necessitam de se preparar para as emoções violentas.
A jovem grega ocupava, como já dissemos, aposentos inteiramente separados dos aposentos do Conde e todos eles mobiliados em estilo oriental, isto é, com o chão coberto de espessos tapetes turcos, tecidos de brocado caindo ao longo das paredes e em cada divisão um amplo divã disposto a toda a volta, com montes de almofadas, que se colocavam à vontade daqueles que as usavam.
Haydée tinha três criadas francesas e uma grega. As três criadas francesas mantinham-se na primeira sala, prontas a acorrer ao toque de uma campainha de ouro e a obedecer às ordens da escrava romaica, a qual sabia suficientemente francês para transmitir os desejos da ama às suas três camaristas, às quais Monte Cristo recomendara que tivessem com Haydée as deferências que se têm com uma rainha.
A jovem encontrava-se na sala mais recolhida dos seus aposentos, isto é, numa espécie de boudoir redondo, iluminado apenas por cima, e no qual a luz só penetrava através de vidros cor-de-rosa. Estava deitada no chão, em almofadas de cetim azul lavrado a prata, semi-inclinada para trás sobre o divã e com o braço direito suavemente torneado a emoldurar-lhe a cabeça, enquanto com o esquerdo segurava nos lábios o tubo de coral em que encaixava o tubo flexível de um narguilé, que só deixava chegar-lhe à boca o fumo perfumado pela água de benjoim, através da qual a sua suave respiração o obrigava a passar.
A sua atitude, naturalíssima numa mulher do Oriente, seria numa francesa de uma garridice talvez um pouco afetada.
Quanto à sua indumentária, era a das mulheres do Epiro, ou seja, calça tufada de cetim branco adornada de flores cor-de-rosa, que deixava a descoberto dois pés de criança, que se diriam de mármore de Paros se não se tivessem visto brincar com duas sandaliazinhas de ponta recurvada, bordadas a ouro e pérolas; túnica de compridas riscas azuis e brancas e amplas mangas fendidas para os braços, com botoeiras de prata e botões de pérolas, e finalmente uma espécie de corpete que deixava, devido ao seu corte em forma de coração, ver o pescoço e toda a parte de cima do peito e que se abotoava por baixo do seio com três botões de diamantes. Quanto à parte de baixo do corpete e à parte de cima das calças, desapareciam sob uma dessas faixas de cores vivas e longas franjas sedosas, que são a ambição das nossas elegantes parisienses.
Cobria-lhe a cabeça um barretinho dourado bordado a pérolas, inclinado para um lado, e por baixo do barrete, do lado para onde estava inclinado, via-se uma linda rosa natural, cor de púrpura, que se destacava no meio do cabelo, tão preto que parecia azulado. Quanto à beleza do seu rosto, era a beleza grega em toda a perfeição do seu tipo, com os seus grandes olhos pretos aveludados, o seu nariz direito, os seus lábios de coral e os seus dentes de pérolas. Finalmente, sobre aquele conjunto encantador imperava a flor da juventude, com todo o seu brilho e todo o seu perfume; Haydée teria dezenove ou vinte anos.
Monte Cristo chamou a criada grega e mandou pedir a Haydée licença para entrar até junto dela. Como única resposta, Haydée fez sinal à criada para levantar a tapeçaria que pendia diante da porta, cuja abertura quadrada emoldurou a jovem deitada como um quadro encantador, Monte Cristo entrou.
Haydée soergueu-se no cotovelo do braço com que segurava o narguilé e estendeu a mão ao Conde, ao mesmo tempo que o acolhia com um sorriso.
— Porque manda pedir licença para entrar nos meus aposentos? Não é o meu senhor, não sou a sua escrava? — perguntou na língua sonora das filhas de Esparta e Atenas.
Monte Cristo sorriu por seu turno.
— Haydée, como sabe...
— Porque não me trata por você como habitualmente? — interrompeu-o a jovem grega — Cometi alguma falta? Nesse caso é preciso castigar-me, mas não deixar de me tratar por você.
— Haydée — prosseguiu o Conde — Você sabe que estamos na França, e por conseqüência você é livre.
— Livre para fazer o quê? — perguntou a jovem.
— Livre para me deixar.
— Para te deixar?!... E porque eu te deixaria?
— Sei lá. Vamos, ver gente.
— Não quero ver ninguém.
— E se entre os belos rapazes que conhecer encontrar algum que te agrade, não serei injusto ao ponto...
— Nunca vi homens mais belos do que você e nunca amei senão o meu pai e a você.
— Pobre criança, porque quase só falou com o seu pai e comigo — disse Monte Cristo.
— E preciso porventura de falar com outros? O meu pai chamava-me sua alegria, você me chama de meu amor e ambos me chamam sua filha.
— Lembras-se do seu pai, Haydée?
A jovem sorriu.
— Está aqui e aqui — respondeu, pondo a mão nos olhos e no coração.
— E eu onde estou? — perguntou, sorrindo, Monte Cristo.
— Você está em todo o lado.
Monte Cristo pegou na mão de Haydée para beijá-la; mas a ingênua criança retirou a mão e ofereceu-lhe a testa.
— Agora, Haydée — disse-lhe ele — Sabe que é livre, que é dona e senhora de ti; pode conservar o seu traje ou deixá-lo, como te apetecer; ficará aqui quando quiser ficar e sairá quando quiseres sair; haverá sempre uma carruagem atrelada para você. Ali e Myrto te acompanharão para todo o lado e estarão às tuas ordens. Apenas te peço uma coisa.
— Diga.
— Guarde o segredo do teu nascimento, não diga uma palavra acerca do teu passado, não pronuncie em nenhuma ocasião o nome do seu ilustre pai nem o da sua pobre mãe.
— Já te disse, meu senhor, que não verei ninguém.
— Escute, Haydée: talvez essa reclusão muito oriental seja impossível em Paris. Continue a aprender a vida dos nossos países do Norte, como fez em Roma, em Florença, em Milão e em Madrid. Isso lhe será sempre útil, quer continue a viver aqui, quer regresse ao Oriente.
A jovem ergueu para o Conde os seus grandes olhos úmidos e respondeu:
— Ou regressemos ao Oriente, você quer dizer, não é verdade, meu senhor?
— É, sim, minha filha — respondeu Monte Cristo — Bem sabe que nunca serei eu que te deixarei. Não é a árvore que deixa a flor é a flor que deixa a árvore.
— Nunca te deixarei, senhor — disse Haydée — Porque estou certa de que não poderia.
— Pobre criança! Dentro de dez anos serei velho e daqui a dez anos você ainda será nova.
— O meu pai tinha uma comprida barba branca e isso não me impedia de amá-lo. O meu pai tinha sessenta anos e parecia-me mais belo do que todos os rapazes que via.
— Anda, diga-me, acha que pode se habituar a viver aqui?
— Eu o verei?
— Todos os dias.
— Nesse caso, para que me pergunta, senhor?
— Receio que se aborreça.
— Não, meu senhor, porque de manhã pensarei que virá e à noite me lembrarei de que veio. Aliás, quando estou sozinha tenho belas recordações: revejo quadros imensos, grandes horizontes com o Pindo e o Olimpo por fundo. Além disso, trago no coração três sentimentos com os quais nunca ninguém se aborrece: tristeza, amor e reconhecimento.
— Você é uma digna filha do Epiro, Haydée. Graciosa e poética, bem se vê que descende da família de deusas que nasceu na tua terra. Fica, pois tranqüila, minha filha: arranjarei maneira da sua juventude não se perder, porque se me quer como teu pai, eu te amo como minha filha.
— Engana-se, meu senhor. Não amava o meu pai como o amo; o meu amor por você é outro amor. O meu pai morreu e eu não morri, ao passo que se você morresse, eu morreria.
O Conde estendeu a mão à jovem com um sorriso de profunda ternura, ela beijou-a como de costume.
E assim preparado para o encontro que ia ter com Morrel e a sua família, o Conde saiu murmurando estes versos de Pindaro: “A juventude é uma flor de que amor é o fruto... feliz o vindimador que o colhe depois de o ter visto amadurecer lentamente”.
Conforme as suas ordens, a carruagem estava pronta. Meteu-se nela e, como de costume, o veículo partiu a galope.




 continua...




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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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