segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 43



XLIII

A CASA DE AUTEUIL




M
onte Cristo notara que ao descer a escadaria, Bertuccio se benzera à moda dos Corsos, isto é, cortando o ar em cruz com o polegar, e que ao tomar o seu lugar na carruagem murmurara muito baixo uma curta prece. Qualquer outro que não fosse um homem curioso teria compaixão da singular repugnância manifestada pelo digno intendente acerca do passeio extra-muros planejado pelo Conde; mas, ao que parece, este era demasiado curioso para dispensar Bertuccio daquela viagenzinha.
Dentro de vinte minutos estavam em Auteuil. A emoção do intendente fora sempre aumentando. Quando entraram na aldeia, Bertuccio, encolhido no canto da carruagem, começou a examinar febrilmente todas as casas diante das quais passavam.
— Mande parar na Rua de la Fontaine, no nº. 28 — ordenou o Conde, cravando implacavelmente o olhar no intendente.
O rosto de Bertuccio cobriu-se de suor; no entanto, obedeceu e, debruçando-se da carruagem, gritou ao cocheiro:
— Rua de la Fontaine, nº. 28!
O nº. 28 ficava na extremidade da aldeia. Durante a viagem anoitecera, ou antes, uma nuvem negra carregada de eletricidade dava às trevas prematuras a aparência e a solenidade de um episódio dramático. A carruagem parou e o trintanário precipitou-se para a portinhola, que abriu.
— Então, não desce, Sr. Bertuccio? Tenciona ficar na carruagem! Em que diabo pensa esta noite? — disse o Conde.
Bertuccio precipitou-se para a portinhola e ofereceu o ombro ao Conde, que desta vez se apoiou nele e desceu um a um os três degraus do estribo.
— Bata e anuncie-me — ordenou o Conde.
Bertuccio bateu, a porta abriu-se e o porteiro apareceu.
— Quem é? — perguntou.
— É o seu novo amo, bom homem — respondeu o trintanário, e estendeu ao porteiro o bilhete de apresentação dado pelo tabelião.
— Então a casa foi vendida? — perguntou o porteiro — E é esse senhor que a vem habitar?
— Sou, sim, meu amigo — respondeu o Conde — E procurarei que não tenha saudades do seu antigo amo.
— Oh, senhor, as saudades já eram poucas, pois o víamos muito raramente! — perguntou o porteiro — Há mais de cinco anos que não vinha aqui e fez muito bem em vender uma casa que lhe não rendia absolutamente nada.
— Como se chamava o seu antigo amo? — perguntou Monte Cristo.
— Era o Sr. Marquês de Saint-Méran. Oh, com certeza não vendeu a casa pelo que ela lhe custou!
— O Marquês de Saint-Méran... — repetiu Monte Cristo — Parece que esse nome não é desconhecido. O Marquês de Saint-Méran...
Pareceu procurar na memória.
— Um velho fidalgo — continuou o porteiro — Um fiel servidor dos Bourbons. Tinha uma filha única, que casou com o Sr. de Villefort, que foi Procurador Régio em Nímes e depois em Versalhes.
Monte Cristo deitou um olhar a Bertuccio, que encontrou mais lívido do que a parede a que se encostara para não cair.
— Mas essa filha não morreu? — perguntou Monte Cristo — Parece-me que ouvi dizer isso.
— Sim, senhor, há vinte e um anos, e desde então não vimos mais de três vezes o pobre marquês.
— Obrigado, obrigado — agradeceu Monte Cristo, considerando, em vista da prostração do intendente, que não devia esticar mais a corda, pois poderia quebrá-la — Obrigado! Arranje-me luz, bom homem.
— Devo acompanhar o senhor?
— Não, é inútil. Bertuccio me iluminará.
E Monte Cristo acompanhou estas palavras da oferta de duas moedas de ouro, que provocaram uma explosão de bênçãos e suspiros.
— Ah, senhor, não tenho velas aqui! — exclamou o porteiro depois de procurar inutilmente no rebordo da chaminé e nas prateleiras contíguas.
— Traga uma das lanternas da carruagem, Bertuccio, e mostre-me as casas — ordenou o Conde.
O intendente obedeceu sem comentários, mas era fácil de ver, pela tremura da mão que segurava a lanterna, o que lhe custava obedecer.
Percorreram o térreo, bastante vasto; o primeiro andar, composto de uma sala, uma casa de banho e dois quartos. Um dos quartos comunicava com uma escada de caracol, que terminava no jardim.
— Olha, uma escada de comunicação — observou o Conde — Não deixa de ser cômodo... ilumine-me, Sr. Bertuccio. Passe adiante e vejamos aonde nos leva esta escada.
— Vai dar ao jardim, senhor — informou Bertuccio.
— Como sabe isso, pode me dizer?
— Isto é, deve dar...
— Bom, verifiquemos.
Bertuccio soltou um suspiro e foi à frente. A escada terminava efetivamente no jardim. O intendente parou junto da porta exterior.
— Vamos, Sr. Bertuccio! — chamou-o o Conde.
Mas o homem estava acabrunhado, aparvalhado, aniquilado. Os seus olhos alucinados procuravam à sua volta como que os vestígios de um passado terrível, e com as mãos crispadas parecia repelir recordações horríveis.
— Então? — insistiu o Conde.
— Não! Não! — gritou Bertuccio, pousando a mão na esquina do muro interior — Não, senhor, não irei mais longe, é impossível!
— Que está dizendo? — inquiriu a voz irresistível de Monte Cristo.
— O senhor bem vê que nada disto é natural! — exclamou o intendente — Que querendo comprar uma casa em Paris fosse comprar precisamente em Auteuil, e que comprando-a em Auteuil essa casa fosse o nº. 28 da Rua de la Fontaine! Oh, porque lhe não disse tudo antes, senhor?! Com certeza não teria exigido que eu viesse. Esperava que a casa do Sr. Conde fosse outra e não esta. Como se não existisse outra casa em Auteuil além da do assassínio!
— Oh! Oh! — exclamou o Conde, parando de súbito — Que palavra horrível acaba de pronunciar! Diabo de homem! Corso de uma figa! Sempre mistérios ou superstições! Vamos, pegue a lanterna e visitemos o jardim. Espero que não tenha medo na minha companhia!
Bertuccio pegou na lanterna e obedeceu.
Aberta a porta, depararam com um céu baço, no qual a Lua se esforçava em vão por lutar contra um mar de nuvens que a cobriam com as suas vagas sombrias, que iluminava um instante e em seguida desapareciam, ainda mais escuras, nas profundezas do infinito.
O intendente quis seguir pela esquerda.
— Não, senhor — disse Monte Cristo — Para que havemos de ir pelas alamedas? Temos aqui um excelente relvado, sigamos em frente.
Bertuccio enxugou o suor que lhe escorria da testa, mas obedeceu. No entanto, continuava a dirigir-se para a esquerda. Monte Cristo, pelo contrário, dirigia-se para a direita. Chegado junto de um maciço de árvores deteve-se.
O intendente não se conteve.
— Afaste-se, senhor! — gritou — Afaste-se, suplico-lhe! Está precisamente no lugar!
— Qual lugar?
— Mesmo no lugar onde ele caiu.
— Meu caro Sr. Bertuccio — perguntou Monte Cristo, rindo — Domine-se, peço-lhe. Não estamos aqui em Sartêne ou na Corte. Isto não é de modo algum um matagal, mas sim um jardim inglês, mal conservado, admito, mas que lá por isso é desculpado caluniar.
— Não fique aí senhor, não fique aí, suplico-lhe!
— Creio que enlouqueceu mestre Bertuccio — declarou friamente o Conde — Se assim é, diga-me, pois o mandarei internar em qualquer manicômio antes que aconteça alguma desgraça.
— Infelizmente, Excelência — disse Bertuccio abanando a cabeça e agitando as mãos, numa atitude que faria rir o Conde se pensamento de interesse superior o não tivessem dominado naquele momento e tornado atentíssimo às mais pequenas expansões daquela consciência timorata — Infelizmente Excelência, a desgraça já aconteceu.
— Sr. Bertuccio — disse o Conde — Desculpe dizer-lhe que a gesticular dessa maneira torce os braços e rola os olhos como um possesso de cujo corpo o Diabo não quer sair. Ora, tenho verificado que quase sempre o Diabo mais agarrado ao seu lugar é um segredo. Sabia que o senhor era corso, via-o constantemente carrancudo e a ruminar qualquer velha história de vendetta, e desculpava-lhe isso na Itália, porque na Itália essas coisas são compreensíveis, mas na França o assassinato é geralmente considerado de muito mau gosto. Há guardas que se ocupam dele, juízes que o condenam e cadafalsos que o vingam.
Bertuccio juntou as mãos, e como, ao executar as suas diversas evoluções, não largava a lanterna, a luz iluminou-lhe o rosto transtornado.
Monte Cristo examinou-o com o mesmo olhar com que em Roma assistira ao suplício de Andréa. Depois, num tom de voz que fez correr um novo arrepio pelo corpo do pobre intendente, disse:
— O Abade Busoni mentiu-me, portanto, quando, depois da sua viagem a França em 1829, o mandou ter comigo com uma carta de recomendação em que me louvava as suas preciosas qualidades. Pois bem, vou escrever ao abade. E o tornarei responsável pelo seu protegido e saberei sem dúvida que caso de assassinato é esse. Mas desde já o previno Sr. Bertuccio, que quando visito um país tenho o hábito de respeitar as suas leis e que não tenho vontade de, por sua causa, arranjar problemas com a justiça francesa.
— Não faça isso, Excelência! Tenho-o servido fielmente, não é verdade? — protestou Bertuccio, desesperado — Tenho sido sempre um homem honesto e até praticado o máximo de boas ações ao meu alcance.
— Não digo que não — perguntou o Conde — Mas por que diabo está agitado dessa maneira? É mau sinal, uma consciência pura não traz tanta palidez às faces nem tanta febre às mãos de um homem...
— Mas, Sr. Conde — contrapôs Bertuccio, hesitante — Não foi o senhor mesmo quem me disse que o Sr. Abade Busoni, que ouviu a minha confissão nas prisões de Nímes, o prevenira, ao mandar-me ter consigo, de que eu tinha um grande peso na consciência?
— Pois preveniu, mas como mo recomendava dizendo-me que seria um excelente intendente, julguei que tivesse roubado, apenas.
— Oh, Sr. Conde! — exclamou Bertuccio, com desdém.
— Ou que, como era corso, não tivesse podido resistir ao desejo de “fazer uma pele”, como dizem na Córsega por antífrase, quando, pelo contrário, “desfazem” uma.
— Pois bem, sim, meu senhor, sim, meu bom senhor, é isso! — gritou Bertuccio, ajoelhando diante do Conde — Sim, foi uma vingança, juro-lhe, uma simples vingança.
— Compreendo, mas o que não compreendo é que seja precisamente esta casa a galvanizá-lo a esse ponto.
— Mas, senhor, não é isso tudo quanto há de mais natural, se foi nesta casa que a vingança se consumou?
— O quê, na minha casa?!
— Oh, senhor, ela ainda lhe não pertencia — respondeu ingenuamente Bertuccio.
— De quem era então? Do Sr. Marquês de Saint-Méran, creio que foi o que nos disse o porteiro. Que diabo tinha o senhor contra o Marquês de Saint-Méran para querer se vingar dele?
— Oh, não era dele, senhor, era do outro!
— Que estranha coincidência — murmurou Monte Cristo, parecendo submeter-se às suas reflexões — Vir ter por acaso, sem qualquer preparação, a uma casa onde se deu uma cena que lhe causa tão horríveis remorsos...
— Senhor, tenho certeza de que é à fatalidade que se deve tudo isto — declarou o intendente — O senhor começa por comprar uma casa precisamente em Auteuil, e essa casa é aquela onde cometi um assassinato; depois, o senhor desce ao jardim precisamente pela escada que ele desceu, e para precisamente no lugar onde ele recebeu a punhalada... a dois passos daí, debaixo desse plátano, estava a cova onde ele acabava de enterrar a criança. Nenhuma dessas coisas se deve ao acaso, não, porque nesse caso o acaso se assemelharia demasiado à Providência.
— Vejamos então, Sr. Corso: suponhamos que tudo isto é obra da Providência; suponho sempre tudo o que quero... de resto, é necessário fazer concessões aos espíritos doentes. Vejamos, puxe pela memória e conte-me o que se passou.
— Contei-o apenas uma vez e foi ao Abade Busoni. Essas coisas — acrescentou Bertuccio, abanando a cabeça — Só se dizem no segredo da confissão.
— Nesse caso, meu caro Bertuccio — perguntou o Conde — Achará natural que o devolva ao seu confessor. Fará com ele frade cartuxo ou bernardo e confiarão um ao outro os seus segredos. Pela minha parte, receio ter ao meu serviço um homem que tem medo de semelhantes fantasmas e não me agrada que o meu pessoal não se atreva a passear de noite no meu jardim. Depois, confesso, não apreciaria muito a visita de algum comissário de polícia. Porque, tome nota disto, mestre Bertuccio: na Itália, só se paga à justiça quando ela se cala, mas na França só se paga, pelo contrário, quando ela fala. Julgava-o um bocadinho corso, muito contrabandista e habilíssimo intendente, mas verifico que ainda possui outras capacidades. Não quero mais nada consigo, Sr. Bertuccio.
— Oh, senhor, senhor! — exclamou o intendente, aterrorizado com semelhante ameaça — Oh, se é preciso apenas isso para que continue ao seu serviço, falarei, direi tudo! E se o deixar, que seja para subir ao cadafalso.
— Bom, assim é diferente — disse Monte Cristo — Mas se tenciona mentir, pense bem: será melhor não dizer nada.
— Não, senhor, juro-lhe pela salvação da minha alma que lhe direi tudo! Porque o Abade Busoni só soube uma parte do meu segredo... mas primeiro suplico-lhe que se afaste desse plátano. Veja, o luar vai embranquecer aquela nuvem, e aí, colocado como está, envolto nessa capa que me oculta a sua figura e a assemelha à do Sr. de Villefort...
— Como, isso passou-se com o Sr. de Villefort?! — exclamou Monte Cristo.
— Vossa Excelência conhece-o?
— O antigo Procurador Régio de Nímes?
— Sim.
— Aquele que casou com a filha do Marquês de Saint-Méran?
— Sim.
— E que no foro tinha fama de ser o mais honesto, o mais severo e o mais rígido magistrado?
— Bom, Sr. Conde — afirmou Bertuccio — Esse homem de reputação inatacável...
— Sim.
— Era um infame.
— Ora, ora, impossível! — perguntou Monte Cristo.
— Pois garanto-lhe que é como lhe digo.
— Deveras? — interessou-se Monte Cristo — E o senhor tem prova disso?
— Tinha-a, pelo menos.
— E perdeu-a, desastrado?
— Perdi. Mas procurando bem será possível reencontrá-la.
— Sim? — disse o Conde — Conte-me isso, Sr. Bertuccio, porque o caso começa realmente a interessar-me.
E o Conde, cantarolando uma ariazinha da lucia foi sentar-se num banco, enquanto Bertuccio o seguia procurando reunir as suas recordações e ficava de pé diante dele.





 continua...





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"A verdadeira história de um ser não está naquilo que fez, mas naquilo que pretendeu fazer".
[Thomas Hardy]

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