segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O PODEROSO CHEFÃO - CAPÍTULO 2



CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS



CAPÍTULO
2




T
OM HAGEN foi para o seu escritório de advocacia na cidade, na manhã de terça-feira. Ele planejava pôr em dia a sua papelada, a fim de ficar plenamente desimpedido para a reunião com Virgil Sollozzo. Reunião esta de tamanha importância que ele solicitara a Don Corleone a tarde inteira para conversação e preparar-se para a proposta que eles sabiam que Sollozzo ofereceria ao negócio da Família. Hagen desejava ter todos os pequenos detalhes esclarecidos, a fim de poder ir à reunião preparatória de espírito prevenido.
Don Corleone pareceu não se surpreender quando Hagen voltou da Califórnia na terça-feira, tarde da noite, e lhe comunicou os resultados das negociações com Woltz. Ele fizera Hagen descrever todos os detalhes e esboçara uma careta de desagrado quando Hagen lhe contou a história da linda menina e sua mãe. Ele pronunciara infamita, a sua maior palavra de reprovação. Fizera uma última pergunta a Hagen:
— Esse homem tem realmente colhão?
Hagen compreendeu exatamente o que Don Corleone quisera dizer com essa pergunta. Com o decorrer dos anos, ele aprendera que os valores de Don Corleone eram tão diferentes dos da maioria das pessoas que as suas palavras também podiam ter um significado diferente. Tinha Woltz caráter? Tinha ele uma vontade firme? Certamente que sim, mas não era isso o que Don Corleone estava perguntando. Tinha o produtor cinematográfico coragem bastante para não ser blefado? Tinha ele disposição para suportar o grande prejuízo financeiro que o retardamento na produção de seus filmes significaria, o escândalo de ser seu grande astro apontado como viciado em heroína? A resposta seria, outra vez, não. Mas igualmente não era isso o que Don Corleone queria dizer. Finalmente Hagen traduziu a pergunta de modo correto em sua mente. Tinha Jack Woltz colhão para arriscar tudo, para arriscar-se a perder tudo por uma questão de princípio, por uma questão de honra, por vingança?
Hagen sorriu. Raramente o fazia, mas agora não podia resistir a pilheriar com Don Corleone.
— Você está perguntando se ele é siciliano — Don Corleone acenou com a cabeça com satisfação, reconhecendo a argúcia da lisonja e sua verdade — Não — respondeu Hagen.
Isso era tudo. Dou Corleone ponderou a questão até o dia seguinte. Na quarta-feira à tarde, chamou Hagen à sua casa e forneceu-lhe as instruções, as quais consumiram o resto do dia de trabalho de Hagen e o deixou estonteado de admiração. Não havia dúvida em seu espírito de que Don Corleone resolvera o problema, de que Woltz lhe telefonaria pela manhã comunicando ter Johnny Fontane obtido o papel de galã em seu novo filme de guerra.
Nesse momento, o telefone tocou, mas era Amerigo Bonasera. A voz do agente funerário tremia de gratidão. Queria que Hagen transmitisse a Don Corleone os protestos de sua imorredoura amizade. Ele, Amerigo Bonasera, daria a vida pelo abençoado Padrinho. Hagen garantiu-lhe que comunicaria isso a Dou Corleone.
O Daily News trazia uma notícia de meia pággina sobre Jerry Wagner e Kevin Moonan, encontrados desfalecidos na rua. As fotografias eram realmente impressionantes, eles pareciam massas de seres humanos. Milagrosamente, dizia o jornal, ainda estavam vivos, embora tivessem de passar alguns meses no hospital e necessitassem de cirurgia plástica. Hagen redigiu uma nota para informar a Clemenza que fizesse algo em favor de Paulie Gatto. Ele parecia conhecer o seu ofício.
Hagen trabalhou com rapidez e eficiência durante três horas, examinando os relatórios de lucros da companhia imobiliária de Don Corleone, seu negócio de importação de azeite e sua empresa de construção. Nenhum deles estava indo bem, mas com o término da guerra todos esses empreendimentos passariam a ter bons lucros. Já havia quase esquecido o problema de Johnny Fontane quando a sua secretária lhe informou que estavam telefonando da Califórnia. Teve um pequeno pressentimento quando pegou o telefone e disse:
— Aqui fala Hagen.
A voz transmitida pelo fio era irreconhecível, denunciando ódio e paixão.
— Seu canalha ordinário! — gritou Woltz — Vou pôr vocês todos na cadeia por cem anos. Vou gastar até o último níquel para arrasar vocês. Vou mandar arrancar os colhões de Johnny Fontane, está-me ouvindo, seu carmano ordinário?
Hagen respondeu amavelmente:
— Eu sou tento-irlandês.
Houve uma longa pausa e depois o estalo do telefone sendo desligado. Hagen sorriu. Nem uma só vez Woltz pronunciou qualquer ameaça ao próprio Don Corleone. O gênio tinha suas recompensas.
Jack Woltz sempre dormia só. Tinha uma cama bastante grande para caber dez pessoas e um quarto de dormir bastante amplo para uma cena cinematográfica de dança, mas dormia sozinho desde a morte de sua primeira mulher, dez anos antes. Isso não quer dizer que ele não mais usasse mulheres. Era um homem fisicamente vigoroso apesar de sua idade, mas agora só podia ser excitado por mocinhas muito novas e aprendera que algumas horas da noite eram tudo o que a juventude do seu corpo e sua paciência podiam tolerar.
Naquela terça-feira, por algum motivo, acordara cedo. A luz da manhã tornava seu enorme quarto tão embaçado quanto uma campina enevoada. A certa distância no pé de sua cama, estava uma coisa de forma familiar, e Woltz moveu-se com dificuldade apoiado nos cotovelos para conseguir uma visão mais clara. Tinha a forma de uma cabeça de cavalo. Ainda tonto, Woltz estendeu a mão para alcançar a lâmpada de cabeceira e acendeu-a.
O choque do que viu tornou-o fisicamente doente. Parecia que um grande martelo o havia atingido no peito, o seu coração começou a bater estranhamente e ele sentiu náuseas. O seu vômito respingou no tapete de gosto grosseiro.
Separada do corpo, a sedosa cabeça preta do grande cavalo Khartoum estava colada num espesso coágulo de sangue. Viam-se-lhe os tendões brancos e delgados. Espuma cobria-lhe o focinho, e seus olhos grandes como maçãs que haviam brilhado como ouro se apresentavam manchados, lembrando uma fruta podre, de sangue morto, em conseqüência da hemorragia. Woltz foi atacado por um terror puramente animal, e sob o efeito desse terror, gritou pelos criados, em seguida, telefonou para Hagen, fazendo ameaças descontroladas. Seu delírio insano alarmou o mordomo, que telefonou para o médico particular de Woltz e para o seu substituto eventual no estúdio. Mas Woltz recuperou os sentidos antes de eles chegarem.
Woltz estava profundamente chocado. Que espécie de homem poderia destruir um animal que valia seiscentos mil dólares? Sem uma palavra de advertência. Sem qualquer possibilidade de negociação para que o ato, a sua ordem, pudesse ser revogado. A crueldade e a falta de consideração por qualquer valor implicavam um homem que considerava a si próprio como a sua própria lei, até como seu próprio Deus. E seu poder e astúcia eram tão grandes que tornaram impotentes as severas medidas adotadas para a segurança das cocheiras. Pois àquela hora Woltz já sabia que o cavalo tinha sido obviamente narcotizado com uma forte dose antes que alguém calmamente cortasse a cabeça do animal com um machado. Os homens encarregados da vigilância noturna afirmaram que não ouviram nada. Para Woltz isso parecia impossível. Era preciso fazê-los falar. Eles se haviam vendido e era preciso fazê-los dizer quem os havia comprado.
Woltz não era burro, era apenas supremamente egoísta. Ele se havia enganado ao pensar que o poder de que dispunha fosse maior do que o poder de Don Corleone. Necessitava apenas de alguma prova de que isso não era verdade. Ele entendera essa mensagem. De que, apesar de sua riqueza, apesar de toda a sua intimidade com o Presidente dos Estados Unidos, apesar de todas as pretensões de amizade com o diretor do FBI, um obscuro importador de azeite italiano o teria assassinado, o teria “realmente” assassinado! Porque ele não desejava dar a Johnny Fontane o papel cinematográfico que ele queria. Era incrível. Ninguém tinha o direito de agir dessa maneira. Não poderia haver qualquer espécie de mundo se as pessoas agissem dessa maneira. Era loucura. Significava que o indivíduo não podia fazer o que quisesse com o seu próprio dinheiro, com as companhias que possuía, com o poder que tinha de dar ordens. Era dez vezes pior do que o comunismo. Isso tinha de ser esmagado. Nunca se devia permitir tal coisa.
Woltz acedeu em que o médico lhe aplicasse um sedativo brando. Isso o ajudou a acalmar-se e a pensar sensatamente. O que na realidade o chocou foi a indiferença com que esse Don Corleone ordenara matar um cavalo de fama mundial que valia seiscentos mil dólares. Seiscentos mil dólares! E isso apenas para começar. Woltz deu de ombros. Pensou na vida que havia conseguido organizar. Era rico. Podia possuir as mulheres mais bonitas do mundo acenando com o dedo e prometendo um contrato. Era recebido por reis e rainhas. Levava a vida mais confortável que o dinheiro e o poder eram capazes de proporcionar. Era loucura arriscar perder tudo isso por causa de um capricho. Talvez pudesse chegar a um acordo com Don Corleone. Qual é a punição legal pelo ato de se matar um cavalo de corrida? Ele riu selvagemente, enquanto o seu médico e os criados o observavam com nervosa preocupação. Outro pensamento ocorreu-lhe. Ele seria motivo de chacota de toda a Califórnia simplesmente porque alguém desafiara desdenhosamente o seu poder de maneira tão arrogante. Isso o levou a decidir-se. Isso e o pensamento de que, talvez, talvez eles não o matassem. Que estivesse planejando algo mais astuto e mais doloroso.
Woltz deu as ordens necessárias. A sua equipe pessoal de confiança entrou em ação. Os criados e o médico juraram manter segredo sob pena de expor-se à inimizade imorredoura de Woltz e do estúdio. Comunicou-se à imprensa que o cavalo de corrida Khartoum tinha morrido de uma doença contraída durante o seu embarque na Inglaterra. Foram expedidas ordens para enterrar os restos mortais do animal num lugar secreto da propriedade.
Seis horas depois, Johnny Fontane recebeu um telefonema do produtor-executivo do filme informando-o de que se apresentasse para trabalhar na segunda-feira seguinte.
Nessa noite, Hagen dirigiu-se à casa de Don Corleone a fim de preparar-se para a importante reunião que manteria no dia seguinte com Virgil Sollozzo. Don Corleone havia chamado o filho mais velho para comparecer, e Sonny Corleone, com seu rosto de cupido denunciando cansaço, estava bebendo calmamente um copo de água. Ele ainda devia estar trepando com aquela dama de honra, pensou Hagen. Outra preocupação.
Don Corleone instalou-se numa poltrona fumando o seu charuto Di No bili. Hagen tinha uma caixa deles em sua sala. Ele havia tentado fazer Don Corleone mudar para o Havana, mas o Don alegara que este lhe irritava a garganta.
— Será que sabemos tudo necessário a respeito? — perguntou Don Corleone.
Hagen abriu o arquivo onde se encontravam as suas notas. Tais notas não eram de forma alguma incriminatórias, mas simplesmente lembretes enigmáticos para assegurar que ele estava de posse de todos os detalhes importantes.
— Sollozzo vem nos solicitar ajuda — disse Hagen — Vai pedir á Família que levante pelo menos um milhão de dólares e prometa alguma espécie de imunidade com respeito à lei. Em virtude disso, passamos a participar da operação, ninguém sabe quanto. Sollozzo é garantido pela Família Tattaglia que, em conseqüência, participa da operação. A operação são narcóticos. Sollozzo tem os seus agentes na Turquia, onde cultivam a papoula. Daí ele a embarca para a Sicília. Nenhuma dificuldade. Na Sicília, transforma a planta em heroína. Tem operações seguras para transformá-la em morfina e voltar a transformá-la em heroína, se for necessário. Mas parece que a fabricação do produto na Sicília é protegida de toda maneira. A única dificuldade é trazê-la para os Estados Unidos e depois proceder à distribuição. Outra, o capital inicial, Um milhão de dólares em dinheiro não nasce em árvores.
Hagen viu Don Corleone fazer uma careta de desaprovação. O velho detestava floreios desnecessários em questão de negócio. Continuou a falar de modo rápido:
— Chamam Sollozzo de turco por dois motivos. Ele passou algum tempo na Turquia e supõe-se que tem uma mulher e filhos turcos. Segundo, pensa-se que ele é muito ligeiro com a faca, ou era, quando jovem. Somente em questões de negócio, entretanto, e com uma espécie de queixa razoável. Ë um homem muito competente, sendo seu próprio chefe. Tem ficha na polícia, cumpriu duas penas na prisão, uma na Itália, outra nos Estados Unidos, e é conhecido das autoridades como contrabandista de narcóticos. Isso podia ser uma vantagem para nós. Significa que ele jamais conseguirá imunidades para depor, porque é considerado o chefão e, naturalmente, devido à sua ficha. Outrossim, tem mulher e três filhos americanos, e é um bom chefe de família. Faz qualquer acordo desde que saiba que o negócio será bem dirigido para render um bom dinheiro.
Don Corleone tirou uma baforada do charuto e perguntou:
— Santino, que é que você acha?
Hagen sabia o que Sonny iria responder. Sonny estava aborrecido por se achar sob o domínio de Don Corleone. Ele queria um grande empreendimento por sua própria conta. Algo como isso seria ótimo.
Sonny tomou um longo trago de uísque
— Muito dinheiro se pode fazer com esse pó branco — respondeu ele — Mas pode ser perigoso. Algumas pessoas correm o risco de acabar na cadeia por uns vinte anos. Quero dizer que se ficarmos fora das operações propriamente ditas, isto é, se apenas dermos proteção e financiamento, pode ser uma boa idéia.
Hagen olhou para Sonny apoiando-o. Ele jogara bem as cartas. Limitara-se ao óbvio, que era o que melhor podia fazer.
Don Corleone tirou uma baforada do seu charuto,
— E você, Tom, que é que acha?
Hagen preparou-se para ser completamente honesto. Já havia chegado à conclusão de que Don Corleone recusaria a proposta de Sollozzo. Mas, o que era pior, Hagen estava convencido de que em uma das raras vezes em sua vida Don Corleone não havia pensado inteiramente no assunto. Não estava olhando suficientemente para a frente.
— Vamos, Tom — exclamou Don Corleone encorajadoramente — Nem mesmo um consigliori siciliano concorda sempre com o chefe.
Todos riram.
— Penso que você devia dizer sim — observou Hagen — Você conhece todos os motivos evidentes. Porém o mais importante de todos é este. Há mais dinheiro em potencial em narcóticos do que em qualquer outro negócio Se não entrarmos nele, outras pessoas entrarão, talvez a Família Tattaglia. Com a receita que eles obtêm podem acumular cada vez mais poder policial e político. A Família deles ficará mais forte do que a nossa. Finalmente virão em cima de nós para tomar o que nós temos. É tal como acontece entre os países. Se eles se armam, temos de nos armar. Se eles se tornam economicamente mais fortes, tornam-se uma ameaça para nós. No momento, possuímos o jogo e os sindicatos, e são precisamente agora as melhores coisas para se ter. Mas penso que os narcóticos são o próximo passo. Acho que temos de participar disso ou pomos em risco tudo que possuímos. Não agora, mas talvez daqui a dez anos.
Don Corleone parecia bastante impressionado. Tirou uma baforada de seu charuto e murmurou:
— Isso é a coisa mais importante, sem dúvida — deu um suspiro e pôs-se de pé — A que horas temos de encontrar esse turco amanhã?
Hagen respondeu esperançosamente:
— Ele estará aqui às dez horas da manhã.
Talvez Don Corleone resolvesse aceitar o negócio.
— Quero vocês dois aqui comigo — preveniu Don Corleone. Levantou-se, espreguiçando-se, e pegou o filho pelo braço — Santino, durma bem esta noite, você parece o próprio diabo. Cuide de você, pois não será sempre jovem.
Sonny, animado por esse interesse paterno, fez a pergunta que Hagen não se atrevera a fazer.
— Pai, qual vai ser a sua resposta?
Don Corleone sorriu.
— Como posso saber sem antes ouvir as percentagens e outros detalhes? Além disso, preciso de tempo para pensar no conselho que me deram aqui esta noite. Afinal de contas, não sou homem que faz as coisas precipitadamente — quando ia saindo, perguntou casualmente a Hagen — Você tem em suas notas que o turco vivia da prostituição antes da guerra? Tal como a Família Tattaglia faz agora. Anote isso antes que você esqueça.
Havia um tom de escárnio na voz de Don Corleone, e Hagen ficou vermelho. Ele deliberadamente não mencionara isso, legitimamente por assim dizer, pois realmente não tinha qualquer relação, mas receara que pudesse prejudicar a decisão de Don Corleone. Ele era notoriamente rigoroso em questões de sexo.
Virgil Sollozzo, o turco, era um homem de constituição robusta, tez escura, que podia ser tomado por um verdadeiro turco. Tinha um nariz que lembrava uma cimitarra e olhos pretos cruéis. Possuía também uma dignidade impressionante.
Sonny Corleone recebeu-o na porta e o introduziu no escritório onde Hagen e Don Corleone esperavam. Hagen pensou que nunca vira um homem de aspecto mais perigoso, com exceção de Luca Brasi. Houve troca de apertos de mão corteses entre eles.
Se Don Corleone me perguntar se esse homem tem colhão, eu responderei que sim, pensou Hagen. Nunca vira tamanha força num homem, nem mesmo em Don Corleone. De fato, Don Corleone parecia sentir-se inferiorizado. Ele foi um pouco demasiadamente simples, um pouco demasiadamente agradável em sua saudação.
Sollozzo entrou no assunto imediatamente, O negócio eram narcóticos. Tudo estava estabelecido. Os campos de papoula na Turquia haviam-lhe garantido certas quantidades todo ano. Ele tinha uma fábrica protegida na França para converter a papoula em morfina e outra fábrica completamente garantida na Sicília para transformá-la em heroína. O contrabando para entrar nos dois países era tão seguro quanto tais coisas podiam ser. A entrada nos Estados Unidos envolvia cerca de 5% de prejuízo, pois o próprio FBI era incorruptível, como ambos sabiam. Mas os lucros seriam enormes, o risco não existia.
— Então por que você veio a mim? — perguntou Don Corleone delicadamente — Por que passei a merecer essa generosidade de sua parte?
O rosto escuro de Sollozzo permaneceu impassível.
— Preciso de dois milhões de dólares em dinheiro — respondeu — Igualmente importante, preciso de um homem que tenha amigos poderosos nos lugares-chave. Alguns dos meus correios serão apanhados no decorrer dos anos. Isso é inevitável. Todos eles terão fichas limpas, isso eu prometo. Assim, será lógico que os juízes dêem penas leves. Preciso de um amigo que possa garantir que quando meu pessoal estiver em dificuldade não passe mais de um ano ou dois na cadeia. Assim, ele não falará. Mas se pegar dez ou vinte anos, quem sabe? Nesse mundo há muitos indivíduos fracos. Eles podem falar, e pôr em perigo gente mais importante. A proteção legal é uma coisa indispensável. Ouvi dizer, Don Corleone, que o senhor tem tantos juízes em sua gaveta como um engraxate tem moedas de níquel.
Don Corleone não tomou conhecimento dessa lisonja.
— Que percentagem oferece à minha Família? — perguntou.
Os olhos de Sollozzo brilharam.
— Cinqüenta por cento — fez uma pausa e depois disse numa voz que era quase um carinho — No primeiro ano, a sua parcela de lucro seria de três ou quatro milhões de dólares. Depois subiria.
— E qual é a percentagem da Família Tattaglia? — perguntou Don Corleone.
Pela primeira vez Sollozzo pareceu ficar nervoso.
— Ela receberá uma parte da minha parcela. Preciso de alguma ajuda nas operações.
— Assim — falou Don Corleone — Eu recebo 50% simplesmente pelo financiamento e proteção legal. Não tenho preocupações com as operações, é isso o que você quer dizer?
Sollozzo acenou a cabeça afirmativamente.
— Se o senhor acha que dois milhões de dólares em dinheiro são um “simples financiamento”, eu o felicito, Don Corleone.
Don Corleone falou calmamente:
— Consenti em vê-lo, em virtude do meu respeito pelos Tattaglia e porque ouvi dizer que o senhor é um homem sério que também merece ser tratado com respeito. Devo dizer-lhe não, mas devo dar-lhe minhas razões. Os lucros em seu negócio são enormes, mas também o são os riscos. A sua operação, se eu fizesse parte dela, poderia prejudicar meus outros interesses. É verdade que tenho inúmeros amigos na política, mas eles não seriam tão cordiais, se meu negócio fosse narcóticos em vez de jogo. Eles pensam que o jogo é algo como a bebida, um vício inofensivo, e acham que o narcótico é um negócio sujo. Não, não proteste. Estou-lhe dizendo a opinião deles, não a minha. Como um homem ganha a vida é assunto que não me interessa. E o que estou dizendo é que esse seu negócio é muito arriscado. Todos os membros de minha Família têm vivido bem nos últimos dez anos, sem perigo, sem prejuízo. Não posso expor ao perigo esses homens ou seus meios de vida por simples ganância.
O único sinal de decepção de Sollozzo foi uma rápida piscadela em torno da sala, como que esperando que Hagen ou Sonny falasse em seu favor
— O senhor está preocupado com a garantia que posso oferecer aos seus dois milhões? — perguntou, logo depois.
Don Corleone sorriu friamente.
— Não — respondeu.
Sollozzo fez nova tentativa.
— A Famfiia Tattaglia garantirá também o seu investimento.
Foi então que Sonny Corleone cometeu um erro imperdoável de julgamento e conduta. Perguntou ansiosamente:
— A Família Tattaglia garante a volta do nosso investimento sem nos tirar qualquer percentagem?
Hagen ficou horrorizado com essa interrupção. Ele viu Don Corleone ficar frio, com os olhos maldosos pousados no seu filho mais velho, que ficou gelado de aflição incompreendida.
Os olhos de Sollozzo piscaram novamente, mas desta vez com satisfação. Tinha descoberto uma fenda na fortaleza de Don Corleone. Quando este falou, sua voz denotava desaprovação.
— Os jovens são gananciosos — disse — E hoje em dia não têm modos, interrompem os mais velhos e metem o bedelho. Mas tenho uma fraqueza sentimental pelos meus filhos e os tenho mimado. Como vê, Signor Sollozzo, meu “não” é final. Digamos que eu particularmente lhe desejo boa sorte no seu negócio. Não entra em conflito com o meu. Lamento ter de decepcioná-lo.
Sollozzo curvou-se, apertou a mão de Don Corleone e se deixou conduzir por Hagen até o seu carro. Não havia qualquer expressão em seu rosto quando ele se despediu de Hagen.
Quando Hagen voltou à sala, Don Corleone perguntou-lhe:
— Que é que você pensa desse homem?
— Ele é siciliano — respondeu Hagen secamente.
Don Corleone balançou a cabeça pensativamente. Depois virou-se para o filho e disse com brandura:
— Santino, nunca deixe nenhum estranho à Família saber o que você pensa. Nunca deixe alguém saber o que pensa intimamente. Acho que os seus miolos estão amolecendo com toda essa comédia que você está representando com essa moça. Pare com isso e passe a dar atenção aos negócios. Agora, saia da minha vista.
Hagen viu a surpresa estampada no rosto de Sonny, depois a raiva ante a reprovação do pai. Pensava realmente que Don Corleone ignoraria tal conquista, Hagen duvidava. E não sabia ele realmente que erro perigoso cometera essa manhã? Se isso fosse verdade, Hagen jamais desejaria ser o consigliori de Santino Corleone.
Don Corleone esperou até que Sonny deixasse a sala. Depois voltou a afundar-se na poltrona de couro e bruscamente fez sinal pedindo uma bebida. Hagen serviu-lhe um cálice de anisete. Don Corleone levantou os olhos para ele.
— Mande Luca Brasi falar comigo — disse ele.
Três meses depois, Hagen lia apressadamente a sua papelada em seu escritório da cidade, esperando sair mais cedo para fazer algumas compras de Natal para a mulher e filhos. Foi interrompido por um telefonema de Johnny Fontane que começou a falar com grande entusiasmo. O filme tinha sido rodado, a primeira cópia, qualquer que diabo fosse, pensou Hagen, era fabulosa. Ele estava enviando para Don Corleone um presente de Natal que o deslumbraria, gostaria de levá-lo pessoalmente, mas havia pequenas coisas a serem feitas no filme. Teria de permanecer na Califórnia. Hagen procurava esconder sua impaciência. Johnny Fontane perdera para ele todo o seu encanto. Mas isso despertara o seu interesse.
— Que é? — perguntou ele.
Johnny Fontane riu entredentes e respondeu:
— Não posso dizer, isso é a melhor coisa de um presente de Natal.
Hagen imediatamente perdeu todo o interesse e finalmente conseguiu, de modo delicado, encerrar a conversação telefônica.
Dez minutos depois, sua secretária informou-o de que Connie estava ao telefone e queria falar-lhe. Hagen suspirou. Como moça, Connie havia sido boazinha; como mulher casada, era uma amolação. Fazia queixas do marido. Costumava ir para casa para visitar a mãe por dois ou três dias. E Carlo Rizzi se estava revelando um verdadeiro fracasso. Tinham-no estabelecido com um pequeno negócio interessante, mas estava levando a breca. Também dera para beber, para entregar-se à devassidão, para jogar e bater na mulher. Connie não dissera isso à Família, mas contou a Hagen. Ele se interrogava que nova história de infortúnio ela teria para contar-lhe agora.
Entretanto, o espírito de Natal parecia que lhe havia trazido algum ânimo. Connie queria apenas perguntar a Hagen o que o pai realmente gostaria de receber de presente. E Sonny, Fred e Mike. Ela já sabia o que iria comprar para a mãe. Hagen fez algumas sugestões, todas rejeitadas por ela como tolas. Finalmente, Connie desligou.
Quando o telefone tocou novamente, Hagen voltou a pôr todos os papéis na cesta. O diabo que agüentasse aquilo. Ele ia embora. Não lhe ocorreu, contudo, recusar a atender o telefonema. Quando a sua secretária lhe comunicou que era Michael Corleone, ele pegou o telefone com prazer. Sempre gostara de Mike.
— Tom — falou Michael Corleone — Vou descer para a cidade com Kay amanhã. Há algo importante que quero comunicar ao velho antes do Natal. Será que ele estará em casa amanhã de noite?
— Certamente — respondeu Hagen — Ele não vai sair da cidade até depois do Natal. Posso fazer algo por você?
Michael era tão reservado quanto o pai.
— Não — respondeu ele — Penso que o verei no Natal, todo mundo estará fora, em Long Beach, certo?
— Certo — respondeu Hagen.
Achou graça quando Mike desligou o telefone sem mais nem menos.
Hagen ordenou a sua secretária que ligasse para a mulher e dissesse que iria para casa um pouco mais tarde, mas que lhe preparasse alguma ceia. Saindo do edifício, passou a caminhar rapidamente para o centro da cidade em direção ao Macy’s. Alguém interceptou-lhe o passo. Para surpresa sua, viu que era Sollozzo.
Sollozzo tomou o pelo braço e disse calmamente:
— Não se assuste, quero apenas falar com você.
Um carro estacionado no meio-fio, subitamente, teve a sua porta aberta. Sollozzo falou com insistência:
— Entre, quero falar com você.
Hagen puxou o braço livrando-se de Sollozzo. Não estava sobressaltado, apenas irritado.
— Não tenho tempo — retrucou.
Nesse momento, dois homens vieram por trás dele. Hagen sentiu uma fraqueza súbita nas pernas. Sollozzo disse brandamente:
— Entre no carro. Se eu quisesse matá-lo, você estaria morto agora. Confie em mim.
Sem qualquer sombra de confiança, Hagen embarcou no veículo.
Michael Corleone mentira para Hagen. Ele já estava em Nova York, e telefonara de um quarto do Hotel Pensilvânia a menos de dez quarteirões de distância. Quando ele desligou, Kay Adams jogou fora o seu cigarro e disse:
— Mike, que mentiroso você é.
Michael sentou-se ao lado dela na cama.
— Tudo por você, querida; se eu dissesse à minha família que nós estávamos na cidade teríamos de ir diretamente para lá. Então, não poderíamos sair para jantar, não poderíamos ir ao teatro e não poderíamos dormir juntos esta noite. Não na casa do meu pai, enquanto não somos casados.
Ele passou os braços em volta da moça e a beijou delicadamente nos lábios. A sua boca era doce, e ele delicadamente fê-la deitar-se na cama. Kay fechou os olhos, esperando que Michael lhe fizesse amor, e ele sentiu uma felicidade enorme. Passara os anos da guerra lutando no Pacífico, e naquelas ilhas malditas havia sonhado com uma garota como Kay Adams. Com uma beleza igual à dela. Um corpo frágil e bonito, branco como leite e eletrizado pela paixão. Ela abriu os olhos e depois puxou a cabeça dele para beijá-la. Amaram-se até chegar a hora do jantar e de ir para o teatro.
Depois do jantar, passaram pelos grandes magazines profusamente iluminados, cheios de fregueses que faziam as suas compras, e Michael perguntou:
— Que é que vou comprar para você como presente de Natal?
Ela achegou-se bem a ele.
— Quero apenas você — respondeu — Você acha que o seu pai vai concordar que se case comigo?
Michael retrucou delicadamente:
— A questão não é realmente essa. Será que os seus pais vão concordar que você case comigo?
Kay deu de ombros.
— Não me importo com isso — respondeu.
— Até pensei em mudar o nome, legalmente — disse Michael — Mas se algo acontecesse, isso realmente não adiantaria nada. Você tem certeza de que quer entrar para a família Corleone? — perguntou meio brincalhão.
— Sim — respondeu ela séria.
Eles se apertaram mutuamente. Haviam resolvido casar-se durante a semana do Natal, uma cerimônia civil tranqüila na pretoria com apenas dois amigos como testemunhas. Mas Michael insistira em que devia comunicar ao pai. Explicara que o velho não se oporia de maneira alguma desde que a coisa não fosse feita em segredo. Kay tinha suas dúvidas. Dissera que só poderia comunicar a seus pais depois do casamento.
— Certamente eles pensarão que estou grávida — disse ela.
Michael sorriu mostrando os dentes.
— Meus pais pensarão a mesma coisa — acrescentou ele.
O que nenhum deles mencionou foi o fato de que Michael teria de cortar seus laços íntimos com a família. Ambos compreendiam que Michael já havia feito isso até certo ponto e se sentiam culpados com respeito a esse fato. Planejavam terminar o curso, vendo-se um ao outro nos fins de semana e vivendo juntos durante as férias de verão. Isso lhes parecia uma vida feliz
A peça a que assistiam era um musical chamado Carousel, cuja história sentimental de um ladrão farofeiro os fez rir alegremente. Quando saíram do teatro, fazia frio. Kay aconchegou-se a ele e disse:
— Depois que a gente se casar, você vai bater-me e depois roubar uma estrela para me dar de presente?
Michael deu uma gargalhada.
— Vou ser professor de Matemática — declarou. Em seguida, perguntou — Você quer alguma coisa para comer antes de irmos para o hotel?
Kay balançou a cabeça. Olhou para ele expressivamente. Michael, como sempre, estava excitado pela ânsia dela de fazer amor. Riu para ela, e os dois se beijaram na rua fria. Michael sentia fome e resolveu pedir que mandassem sanduíches para o quarto.
No saguão do hotel, Michael empurrou Kay para a banca de jornais, dizendo:
— Apanhe os jornais, enquanto pego a chave.
Ele teve de esperar numa pequena fila; o hotel estava ainda com falta de empregados, apesar de já ter terminado a guerra. Michael apanhou a chave do quarto e procurou Kay em volta, com os olhos, impacientemente. Ela estava a lado da banca, com os olhos fixos no jornal que segurava na mão. Ele se encaminhou na direção dela. Kay olhou para ele, com os olhos cheios de água.
— Oh, Mike! — exclamou ela — Oh, Mike!
Michael tirou o jornal das mãos dela. A primeira coisa que viu foi uma fotografia do pai caído na rua, com a cabeça numa poça de sangue. Um homem estava sentado no meio-fio chorando como uma criança. Era seu irmão Freddie. Michael Corleone sentiu o corpo ficar gelado. Não havia pesar, nem medo, apenas raiva fria. Ele disse para Kay:
— Suba para o quarto.
Mas teve de tomá-la pelo braço e conduzi-la para o elevador. Subiram em silêncio. Ao chegarem ao quarto, Michael sentou-se na cama e abriu o jornal. As manchetes diziam:

vito corleone baleado.
suposto chefe de extorsionários
gravemente ferido.
operado sob forte proteção policial.
teme-se sangrenta guerra de quadrilhas.

Michael sentiu fraqueza nas pernas. Disse para Kay:
— Ele não está morto, os canalhas não o mataram.
Leu a notícia novamente. Seu pai tinha sido baleado às cinco horas da tarde. Isso significava que, enquanto ele estava fazendo amor com Kay, jantando, deleitando-se no teatro, o seu pai estava à morte. Michael começou a sentir-se pesarosamente culpado.
— Vamos ao hospital agora? — perguntou Kay.
Michael balançou a cabeça.
— Deixe-me telefonar para casa primeiro. O pessoal que fez isso está maluco, e como o velho continua vivo, muita gente está desesperada. Que diabo sabe o que esse pessoal vai fazer em seguida.
Ambos os telefones na casa de Long Beach estavam ocupados e Michael teve de esperar quase vinte minutos para conseguir ligação. Finalmente ouviu a voz de Sonny dizer:
— Sim.
— Sonny, sou eu — disse Michael.
Ele pôde ouvir o alívio na voz de Sonny.
— Jesus, menino, você nos deixou preocupados. Onde diabo está você? Mandei gente a essa sua cidade caipira para ver o que aconteceu.
— Como está o velho? — perguntou Michael. — Qual é a gravidade do ferimento?
— Muito sério. Eles o atingiram com cinco tiros. Mas o velho é duro — a voz de Sonny denotava orgulho — Os médicos disseram que escapará. Ouça, menino, estou ocupado, não posso falar, onde está você?
— Nova York — respondeu Michael —Tom não lhe falou que eu ia descer?
Sonny baixou um pouco a voz.
— Raptaram Tom. Essa a razão por que eu estava preocupado com você. A mulher dele está aqui. Ela não sabe, nem tampouco os tiras. Não quero que eles saibam. Os bandidos que fizeram isso devem estar malucos. Quero que você saia daqui imediatamente e se mantenha calado. Entendido?
— Entendido — respondeu Mike — Você sabe quem fez isso?
— Certamente — retrucou Sonny — Logo que Luca Brasi se apresentar, eles estarão mortos. Ainda somos senhores da situação.
— Sairei dentro de uma hora — disse Mike — Num táxi.
Ele desligou. Os jornais já estavam na rua há mais de três horas. Deviam ter dado notícia pelo rádio. Era quase impossível que Luca não tivesse ouvido. Preocupado, Michael ponderava sobre a questão. Onde estava Luca Brasi? Era a mesma pergunta que Hagen fazia nesse momento. Era a mesma pergunta que intrigava Sonny Corleone lá em Long Beach.



* * *

A um quarto para as cinco horas dessa tarde, Don Corleone terminara de examinar os documentos que o chefe do escritório de sua companhia de azeite preparara para ele. Pôs o paletó e deu uma pancadinha na cabeça de seu filho Freddie para fazê-lo tirar os olhos do vespertino que estava lendo absortamente.
— Diga a Gatto para tirar o carro do parque de estacionamento — falou — Estarei pronto para ir para casa em poucos minutos.
— Eu mesmo vou ter de apanhá-lo — resmungou Freddie — Paulie telefonou esta manhã dizendo que está doente. Pegou um resfriado novamente.
Don Corleone olhou pensativo por um momento.
— Esta é a terceira vez este mês. Penso que talvez é melhor você arranjar um sujeito mais sadio para esse serviço. Fale com Tom.
— Paulie é um bom menino — protestou Fred — Se ele diz que está doente, está doente. Eu não me importo em apanhar o carro.
Fred saiu do escritório. Don Corleone olhou pela janela quando o filho cruzava a Nona Avenida para o parque de estacionamento. Resolveu telefonar para o escritório de Hagen, porém não obteve resposta. Ligou para a casa de Long Beach, mas igualmente ninguém atendeu. Irritado, olhou pela janela. Seu carro estava estacionado no meio-fio em frente ao seu edifício. Freddie estava encostado no pára-lama, com os braços cruzados, olhando os transeuntes atarefados com as compras de Natal. Don Corleone pôs o paletó. O chefe do escritório ajudou-o a vestir o sobretudo. O velho resmungou os seus agradecimentos e saiu, começando a descer os dois lançes de escada.
Lá fora na rua, a luz do começo de inverno estava falhando. Freddie encostou-se casualmente no pára-lama do pesado Buick. Quando viu o pai sair do edifício, desceu a rua para o lado do assento do motorista e entrou no carro. Don Corleone estava prestes a entrar no veículo pelo lado do calçada, quando hesitou e depois voltou até a comprida banca de frutas situada perto da esquina. Isso já se tornara um hábito ultimamente, ele gostava das frutas grandes, fora de estação, os pêssegos e laranjas amarelas, que luziam em suas caixas verdes. O proprietário moveu-se rapidamente para atendê-lo. Don Corleone não pegava nas frutas. Apenas apontava. O fruteiro só discordou de suas decisões uma vez, para mostrar-lhe que uma das frutas por ele escolhidas tinha um lado podre. Don Corleone pegou o saco de papel com a mão esquerda e pagou ao homem com uma nota de cinco dólares. Apanhou o troco, e quando se virou para voltar para o carro que o esperava, dois homens vieram da esquina. Don Corleone sabia imediatamente o que estava para acontecer.
Os dois homens usavam sobretudos pretos e chapéus também pretos puxados para baixo, a fim de esconder o rosto. Não esperavam a pronta reação de Don Corleone. Este deixou cair o saco de frutas e correu para o carro estacionado com uma rapidez espantosa para um homem de seu volume, ao mesmo tempo em que gritava:
— Fredo, Fredo!
Foi então que os dois homens puxaram suas armas e dispararam.
O primeiro tiro pegou Don Corleone nas costas. Ele sentiu o choque violento do impacto, mas moveu-se até o carro. As duas balas seguintes atingiram-no nas nádegas e fizeram-no cair estatelado no meio da rua. Entrementes, os dois pistoleiros, tomando cuidado para não escorregar nas frutas que rolavam no chão, partiram em direção a ele a fim de acabar de liquidá-lo. Nesse momento, talvez num máximo de cinco segundos depois que Don Corleone gritara para o filho, Frederico Corleone apareceu fora do carro, assomando sobre ele. Os pistoleiros deram mais dois tiros em Don Corleone que estava deitado na sarjeta. Um o atingiu na parte carnosa do braço e o outro na barriga da perna direita. Embora esses ferimentos fossem os menos graves, sangravam abundantemente, formando pequenas poças de sangue ao lado de seu corpo. Porém, nessa altura, Don Corleone tinha perdido a consciência.
Freddie ouvira o grito do pai, chamando-o pelo apelido de infância, e em seguida escutava os dois primeiros estampidos. No momento em que saiu do carro, ele se achava em estado de choque, não tendo sequer sacado a arma. Os dois assassinos podiam facilmente tê-lo abatido a tiros. Mas eles também estavam em pânico. Deviam saber que o filho se encontrava armado, e além disso muito tempo havia passado. Desapareceram na esquina, deixando Freddie sozinho na rua com o corpo ensangüentado do pai. Muitos transeuntes que atravancavam a avenida lançaram-se para as portas ou no chão, outros em pequenos grupos.
Freddie, contudo, não puxara sua arma. Parecia atordoado. Olhava fixamente para o corpo do pai que jazia de bruços no asfalto, deitado agora no que lhe parecia ser um escuro lago de sangue. Freddie estava traumatizado. Gente afluía novamente, e alguém, vendo-o começar a desfalecer, conduziu-o até o meio-fio e fê-lo sentar-se ali. Uma multidão se formou em torno do corpo de Don Corleone, um círculo que se desmanchou quando o primeiro carro da polícia tocou a sirena para abrir caminho. Diretamente atrás da polícia vinha o carro do Daily News e, mesmo antes de ele parar, um fotógrafo saltou para bater chapas de Don Corleone esvaindo-se em sangue. Alguns momentos depois, chegou uma ambulância. O fotógrafo voltou sua atenção para Freddie Corleone, que agora chorava abertamente, e isso era uma cena curiosamente cômica, devido ao seu rosto duro de cupido, nariz grande e boca espessa lambuzada de muco. Agentes se espalhavam pela multidão e mais carros da polícia chegavam. Um detetive ajoelhou-se ao lado de Freddie, interrogando-o, mas Freddie se achava em profundo estado de choque para responder. O detetive meteu a mão no bolso interno do casaco de Freddie e tirou sua carteira. Olhou para a identificação aí contida e assoviou para o companheiro. Em poucos segundos, Freddie foi isolado da multidão por um numeroso grupo de policiais à paisana. O primeiro detetive encontrou o revólver de Freddie em seu coldre e tirou-o. Então levantaram o rapaz e puseram-no de pé, empurrando-o para dentro de um carro sem marca da polícia. Quando o veículo se afastou, foi seguido pelo carro do Daily News. O fotógrafo estava ainda ba tendo chapas de tudo e de todos.
Na meia-hora após o atentado a tiros contra seu pai, Sonny Corleone recebeu cinco telefonemas em rápida sucessão. O primeiro foi do Detetive John Phillips, que constava da folha de pagamento da Família e estivera no carro da frente de policiais à paisana no local do crime. A primeira coisa que ele perguntou a Sonny pelo telefone foi:
— Você reconhece minha voz?
— Sim — respondeu Sonny.
Ele estava despertando de uma soneca, tendo sido chamado ao telefone por sua mulher.
— Alguém baleou seu pai na porta do edifício de seu escritório. Há cerca de quinze minutos. Ele está vivo, mas gravemente ferido. Levaram-no para o Hospital Francês. Conduziram seu irmão Freddie para o distrito de Chelsea. É melhor conseguir um médico para ele quando o soltarem. Vou agora para o hospital a fim de ajudar a interrogar o seu velho, se ele puder falar. Manterei você informado a respeito do assunto — disse Philips, sem preâmbulo.
Do outro lado da mesa, a mulher de Sonny, Sandra, percebeu que o rosto do marido se tornara vermelho, com o sangue afluindo precipitadamente. Seus olhos se tornaram vidrados.
— Que é que há? — perguntou ela.
Ele acenou-lhe impacientemente para que se calasse, virou o corpo, dando as costas para ela, e perguntou no telefone:
— Você tem certeza de que ele está vivo?
— Sim, tenho certeza — respondeu o detetive — Ele perdeu muito sangue, mas acho que talvez não esteja tão ruim como parece.
— Obrigado — disse Sonny — Esteja em casa amanhã de manhã às oito horas em ponto. Você merece uma boa recompensa.
Sonny pôs o fone no gancho. Fez um esforço para manter-se calmo. Sabia que a sua maior fraqueza era a ira, e aquele era um momento em que a ira podia ser fatal. A primeira coisa a fazer era chamar Tom Hagen. Mas antes que pudesse pegar no telefone, este tocou. A chamada era do bookmaker autorizado pela Família a funcionar na zona do escritório de Don Corleone. O bookmaker chamou para informá-lo de que Don Corleone tinha sido assassinado, fatalmente baleado na rua. Após algumas gestões para se assegurar de que o informante do bookmaker não estivera perto do corpo, Sonny rejeitou a informação como incorreta. A informação de Phillips seria mais exata. O telefone tocou quase imediatamente pela terceira vez. Era um repórter do Daily News. Assim que ele se identificou, Sonny Corleone desligou.
Em seguida discou para a casa de Hagen e perguntou à mulher dele:
— Tom já veio para casa?
— Não — respondeu ela, acrescentando que ele devia demorar uns vinte minutos, mas que ela o esperava em casa para a ceia.
— Diga-lhe que telefone para mim — falou Sonny.
Ele procurou considerar os fatos. Tentou imaginar como o pai reagiria numa situação como essa. Sabia imediatamente que era um ataque de Sollozzo, mas Sollozzo nunca se atreveria a eliminar um chefe de tão alto gabarito como Don Corleone, a não ser que fosse apoiado por outras pessoas poderosas. O telefone, tocando pela quarta vez, interrompeu-lhe os pensamentos. A voz do outro lado era muito branda, muito gentil:
— Santino Corleone?
— Sim — respondeu Sonny.
— Temos em nosso poder Tom Hagen — informou a voz — Dentro de três horas, ele será solto com a nossa proposta. Não faça nada precipitadamente até ouvir o que ele tem a dizer. Você só pode causar um bocado de complicação. O que está feito está feito. Todo mundo deve ser sensato agora. Não perca as estribeiras.
A voz era ligeiramente escarnecedora. Sonny não tinha certeza, mas parecia ser a de Sollozzo. Respondeu numa voz fingidamente abafada e deprimida:
— Vou esperar.
Ouviu desligarem do outro lado o receptor. Olhou para seu pesado relógio-pulseira de ouro, e observou a hora exata do telefonema, anotando-a na toalha da mesa.
Sentou-se na mesa da cozinha, franzindo as sobrancelhas. A mulher perguntou:
— Sonny, que é que há?
— Balearam o velho — respondeu calmamente. Quando percebeu no rosto dela o choque que lhe causara a notícia, acrescentou asperamente:— Não se preocupe, ele não está morto. E nada mais vai acontecer.
Nada comentou a respeito de Hagen. E então o telefone tocou pela quinta vez.
Era Clemenza. A voz do gorducho veio ofegante pelo telefone em arfadas rosnantes:
— Você já sabe o que aconteceu a seu pai? — perguntou.
— Sim — respondeu Sonny — Mas ele não está morto.
Houve uma longa pausa e depois a voz de Clemenza fez-se ouvir com repassada emoção:
— Graças a Deus, graças a Deus! Você tem certeza? — acrescentou ansiosamente — Disseram-me que ele estava morto na rua.
— Ele está vivo — retrucou Sonny.
Sonny prestava atenção na entonação da voz de Clemenza. A emoção parecia autêntica, mas era parte da profissão do gordo ser um bom ator.
— Você vai ter de trabalhar muito, Sonny — disse Clemenza — Que é que você quer que eu faça?
— Vá até a casa de meu pai — respondeu Sonny — Traga Paulie Gatto.
— Só isso? — perguntou Clemenza — Não quer que eu mande alguns homens para o hospital e para a sua casa?
— Não, quero apenas você e Paulie Gatto — houve uma longa pausa. Clemenza estava entendendo a coisa. Para dar à situação um aspecto um pouco mais natural, Sonny perguntou — Onde diabo estava Paulie, afinal? Que diabo estava ele fazendo?
Não havia mais ofegação do outro lado da linha. A voz de Clemenza era cautelosa.
— Paulie estava doente, apanhara um resfriado, assim ficara em casa. Ele tem estado um pouco doente todo o inverno.
Sonny muito prontamente perguntou:
— Quantas vezes ele ficou em casa nos últimos dois meses?
— Talvez três ou quatro — respondeu Clemenza — Sempre perguntei a Freddie se ele queria outro sujeito, mas ele disse que não. Não há motivo, nos dez últimos anos as coisas têm andado bem calmas, você sabe.
— Sim — retrucou Sonny — Eu o verei em casa de meu pai. Não deixe de trazer Paulie. Apanhe-o no caminho. Não me importo quão doente ele esteja. Entendeu? — bateu com o telefone no gancho sem esperar resposta.
Sua mulher estava chorando silenciosamente. Sonny olhou para ela por um momento, depois disse com voz áspera:
— Se alguém do meu pessoal telefonar, diga-lhe para chamar-me na casa de meu pai pelo telefone especial. Se for outra pessoa qualquer, você não sabe de nada. Se a mulher de Tom tocar, diga-lhe que Tom demorará um pouco a chegar em casa, ele está a serviço — ele ponderou por um momento. Viu o medo estampado no rosto dela e disse impacientemente — Você não precisa ficar assustada, eu os quero aqui. Faça o que eles lhe mandarem fazer. Se você quiser falar comigo, chame-me pelo telefone especial do papai, mas não me telefone a menos que seja realmente importante. E não se preocupe.
Em seguida, saiu de casa.
Já era noite fechada e o vento de dezembro soprava fortemente pela alameda. Sonny não tinha medo de andar por ali no escuro. Todas as oito casas eram de propriedade de Don Corleone. Na entrada da alameda, as duas casas de cada lado eram alugadas a servidores da Família com suas próprias famílias e seus dependentes, homens solteiros que viviam nos apartamentos do subsolo. Das outras seis casas que formavam o resto do semicírculo, uma era habitada por Tom Hagen e sua família, de sua propriedade, e a menor e menos pretensiosa, pelo próprio Don Corleone. As outras três eram habitadas graciosamente por amigos aposentados de Don Corleone com a condição de que seriam desocupadas quando ele o exigisse. A alameda, aparentemente inofensiva, era uma fortaleza inexpugnável.
Todas as oito casas eram equipadas com holofotes que iluminavam profusamente o terreno em volta delas e tornavam impossível que alguém ali se emboscasse. Sonny atravessou a rua para a casa do pai e entrou com a sua própria chave.
— Mãe, onde está você? — gritou, e a mãe veio da cozinha ao seu encontro.
Atrás dela, elevou-se o cheiro de pimentões fritos. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Sonny tomou-a pelo braço e fê-la sentar-se.
— Acabo de receber um telefonema — disse — Agora não se preocupe. Papai está no hospital, está ferido. Vista-se e apronte-se para ir para lá. Terei um carro e um motorista para você dentro de pouco tempo. Entendido?
A mãe olhou para ele firmemente por um momento, depois perguntou em italiano:
— Eles o balearam?
Sonny acenou com a cabeça afirmativamente. A mãe baixou a cabeça por um momento. Em seguida, voltou para a cozinha. Sonny a seguiu. Ele a viu desligar o gás sob a frigideira cheia de pimentões e depois sair e subir para o quarto de dormir. Sonny pegou alguns pimentões da frigideira e pão da cesta em cima da mesa e fez um sanduíche, lambuzando-se com o azeite quente que lhe escorria pelos dedos. Foi até a enorme sala do canto que era o escritório do pai e tirou o telefone especial de uma caixa fechada a chave. O fone tinha sido especialmente instalado e o aparelho constava no catálogo com nome e endereço falsos. A primeira pessoa que Sonny chamou foi Luca Brasi. Não houve resposta. Depois telefonou para o caporegime do Brooklyn, um home de indiscutível lealdade a Don Corleone. O nome desse homem era Tessio. Sonny comunicou-lhe o que havia acontecido e o que desejava. Tessio devia reunir cinqüenta homens de absoluta confiança. Devia mandar guardas para o hospital e destacar homens para Long Beach, a fim de trabalharem lá. Tessio perguntou:
— Eles pegaram Clemenza também?
— Não quero usar o pessoal de Clemenza agora — respondeu Sonny.
Tessio compreendeu imediatamente, fez uma pausa, e depois falou:
— Desculpe-me, Sonny, digo isso como seu pai diria. Não ande muito depressa. Não acredito que Clemenza nos traiu.
— Obrigado — respondeu Sonny — Também não penso, mas preciso tomar cuidado. Certo?
— Certo — retrucou Tessio.
— Outra coisa — disse Sonny — Meu irmão menor Mike está em Hanover, New Hampshire. Faça algumas pessoas que nós conhecemos em Boston irem até lá e o trazerem aqui para casa até que a situação se acalme. Vou telefonar para ele para que as espere. Também estou medindo bem as coisas, justamente para ter certeza.
— Entendido — respondeu Tessio — Estarei na casa de seu pai assim que tiver todas as coisas providenciadas. Entendido? Você conhece meus rapazes, não é?
— Sim — retrucou Sonny, e desligou o telefone.
Foi até um pequeno cofre de parede e o abriu, dele tirando um livro com índice alfabético encadernado em couro azul. Abriu-o e folheou-o até encontrar o lançamento que estava procurando, o qual dizia: “Ray Farrell 5.000 dólares véspera de Natal”. Isso era seguido de um número de telefone. Sonny discou o número e perguntou:
— Farrell?
O homem do outro lado da linha respondeu:
— Sim.
— Aqui é Santino Corleone — disse Sonny — Quero que você me faça um favor e que seja já. Quero que você me averigüe dois números de telefone e me forneça todas as chamadas que eles receberam e todas as chamadas que fizeram durante os últimos três meses — deu o número da casa de Paulie Gattto e o da casa de Clemenza. Depois acrescentou — Isso é importante. Consiga-me isso antes de meia-noite e você terá um Natal verdadeiramente extraordinário.
Antes de voltar a considerar os fatos, Sonny deu mais um telefonema para o número de Luca Brasi. Outra vez não houve resposta. Isso o preocupou, mas procurou esquecer logo. Luca viria para casa assim que soubesse a notícia. Sonny reclinou-se na cadeira giratória. Dentro de uma hora, a casa estaria apinhada de gente da Família e ele teria de comunicar a todos eles o que fazer, e agora que finalmente tinha tempo para pensar, podia avaliar como a situação era séria.
Era o primeiro desafio à Família Corleone e ao poder dela em dez anos. Não havia dúvida de que Sollozzo estava por trás disso, mas ele jamais se atreveria a tentar tal golpe a não ser que tivesse o apoio de pelo menos uma das cinco grandes Famílias de Nova York. E esse apoio devia ter vindo da Família Tattaglia. O que significava uma guerra em grande escala ou um acordo imediato segundo as condições de Sollozzo. Sonny riu sinistramente. O matreiro turco tinha planejado bem a coisa, mas não tivera sorte. O velho estava vivo e assim haveria guerra. Com Luca Brasi e os recursos da Família Corleone só podia haver um resultado. Mas outra vez a preocupação importuna. Onde estava Luca Brasi?




 Continua...






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Frase Curiosa"Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère

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