CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS
CAPÍTULO
19
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ALVEZ
FOSSE O IMPASSE que fizesse Sonny Corleone empreender a ação sangrenta do
atrito que terminou com a sua própria morte. Talvez fosse sua violenta natureza
que se soltou por completo. Em todo caso, naquela primavera e verão, ele
realizou ataques estúpidos aos auxiliares dos inimigos. Gigolôs da Família
Tattaglia foram mortalmente baleados no Harlem, terroristas das docas foram
massacrados. Funcionários dos sindicatos que deviam fidelidade às cinco
Famílias foram advertidos para que se mantivessem neutros, e quando os bookmakers e agiotas de Corleone estavam
ainda impossibilitados de trabalhar nas docas, Sonny mandou Clemenza e seu
regime fazer uma enorme devastação ao longo do cais.
Essa carnificina não
tinha sentido porque não podia alterar o resultado da guerra. Sonny era um
tático de valor e conseguiu vitórias brilhantes. Mas o que se precisava era do
gênio estratégico de Don Corleone. Toda a coisa degenerou numa tal luta mortal
de guerrilhas que os dois lados estavam perdendo um bocado de receita e de
vidas sem qualquer objetivo. A Família Corleone foi finalmente obrigada a
fechar algumas de suas mais rendosas bancas de apostas, inclusive a que fora
dada ao genro Carlo Rizzi para ganhar a vida. Carlo passou a beber e a andar
com coristas e a dar duro na sua mulher, Connie. Desde que apanhara de Sonny,
ele não mais se atrevera a bater na mulher, mas não dormira mais com ela.
Connie atirou-se a seus pés, ele a rejeitara com pontapés, como pensava ele,
como um romano, com um esquisito prazer patrício. Ele zombara dela, dizendo:
— Vá chamar seu irmão
para dizer a ele que eu não trepo mais com você; talvez ele me bata tanto que o
cacete fique duro.
Mas ele tinha um medo
mortal de Sonny, embora se tratassem reciprocamente com fria cortesia. Carlo
tinha a impressão de que Sonny o mataria, por que Sonny era um homem que podia,
com a naturalidade de um animal, matar outro homem, enquanto ele próprio teria
de reunir toda a sua coragem, toda a sua vontade para cometer um assassinato.
Jamais ocorrera a Carlo que devido a isso ele era um homem melhor do que Sonny
Corleone, se se pudessem usar tais palavras; ele invejava a selvageria de
Sonny, que já se tornara lendária.
Tom Hagen, como consigliori, não aprovava a tática de
Sonny e contudo decidira não protestar junto a Don Corleone simplesmente porque
a tática, até certo ponto, produzia bom resultado. As cinco Famílias pareciam
estar acovardadas, finalmente, à medida que o atrito prosseguia, e seus
contragolpes foram enfraquecendo e afinal cessaram por completo. Hagen a
princípio desconfiou dessa aparente pacificação do inimigo, mas Sonny estava
jubiloso.
— Vou atacar rijamente
— disse ele a Hagen — E então esses salafrários virão implorar um acordo.
Sonny se preocupava
com outras coisas. A sua mulher estava dando duro nele porque ouvira o boato de
que Lucy Mancini enfeitiçara seu marido. E embora ela zombasse publicamente do
“equipamento” e da técnica de Sonny, ele se mantivera afastado da esposa muito
tempo e ela sentia falta dele na cama, tornando assim a vida dele miserável com
suas amolações.
Além disso, Sonny
estava sob a enorme tensão de ser um homem marcado. Tinha que ser
extraordinariamente cauteloso em todos os seus movimentos e sabia que as suas
visitas a Lucy Mancini haviam sido farejadas pelo inimigo. Mas aí ele tomava
precauções rigorosas, pois esse era o lugar tradicionalmente vulnerável, estava
seguro ali. Embora Lucy não tivesse a mais leve suspeita, era vigiada 24 horas
por dia por homens do regime de Santino, e quando vagava um apartamento no
andar dela, era imediatamente alugado por um dos homens de mais confiança do
regime.
Don Corleone se estava
restabelecendo e logo se encontraria em condições de reassumir o comando. Aí,
então, a sorte da batalha deveria virar a favor da Família Corleone. Disso
Sonny tinha certeza. Entrementes, ele guardaria o império da Família, ganharia
o respeito do pai, e desde que a posição não era hereditária até um ponto absoluto,
consolidaria sua pretensão de herdeiro do Império Corleone.
Mas os inimigos
estavam fazendo seus planos. Também haviam analisado a situação e chegado à
conclusão de que o único meio de evitar a derrota completa era matar Sonny
Corleone. Compreendiam a situação melhor agora e sentiam que era possível
negociar com Don Corleone, conhecido por sua lógica sensatez. Passaram a odiar
Sonny por sua sede de sangue, que eles consideravam bárbara. Também por sua
falta de bom senso de negócio. Ninguém queria que voltassem os velhos tempos
com todo o seu tumulto e complicação.
Uma noite, Connie
Corleone recebeu um telefonema anônimo, uma voz de moça, perguntando por Carlo.
— Quem é você? —
perguntou Connie.
A moça do outro lado
da linha riu zombeteiramente e respondeu:
— Sou uma amiga de
Carlo. Eu queria dizer a ele que não posso vê-lo esta noite. Tenho de sair da
cidade.
— Sua cadela
ordinária! — retrucou Connie Corleone — Sua cadela vagabunda, ordinária! —
gritou Connie outra vez no telefone.
Houve um estalo do outro
lado da linha.
Carlo fora às corridas
de cavalo naquela tarde e quando voltou para casa já de noite estava aborrecido
por ter perdido e achava-se meio embriagado, pois levava sempre consigo uma
garrafa de bebida. Assim que ele atravessou a porta, Connie começou a xingá-lo
aos berros. Ele não tomou conhecimento dela e foi tomar um banho de chuveiro.
Quando saiu do banheiro, enxugou-se na frente dela e começou a se enfarpelar
para sair novamente.
Connie estava ali
postada com as mãos nas cadeiras, o rosto pontudo e branco de raiva.
— Você não vai a lugar
algum — disse ela — Sua amiga telefonou e disse que não pode encontrar-se com
você esta noite. Seu salafrário nojento, você tem coragem de dar às suas
prostitutas o número de meu telefone. Eu o mato, seu sacana!
Ela atirou-se em cima
dele, dando-lhe pontapés e arranhando-o.
Ele conseguiu
afastá-la com um antebraço musculoso.
— Você está maluca! —
retrucou ele friamente.
Mas Connie percebeu
que ele estava preocupado, como se soubesse que a garota doida com quem ele
estava trepando fizesse realmente aquela maluquice.
— Ela estava
brincando, alguma doideira — acrescentou Carlo.
Connie mergulhou por
dentro do seu braço e arranhou furiosamente o rosto do marido. Trouxe um
pedacinho de sua bochecha em suas unhas. Com surpreendente paciência, Carlo a
afastou. Ela percebeu que ele estava tomando cuidado por causa de sua gravidez
e isso deu-lhe coragem de alimentar a sua própria raiva. Ela também estava
excitada. Daí a pouco, ela não poderia fazer mais nada, o médico dissera que
nada de sexo durante os últimos meses e ela queria agora, antes que começassem
os dois últimos meses. Contudo, seu desejo de ferir fisicamente Carlo era muito
real também. Ela o seguiu até o quarto.
Connie viu que ele
estava apavorado e isso a encheu de prazer desdenhoso.
— Você vai ficar em
casa — disse ela — Você não vai sair.
— Está bem, está bem —
respondeu ele.
Carlo já tinha tirado
a roupa e ficara apenas de shorts. Gostava de andar
em casa assim, orgulhava-se de seu corpo em forma de V, de sua pele dourada. Connie olhou para ele
ansiosamente. Ele procurou rir.
— Você pelo menos
vai-me dar alguma coisa para comer?
Isso a amoleceu, o
fato de Carlo lembrar-lhe o cumprimento de seus deveres, um deles pelo menos,
já era alguma coisa. Connie era uma boa cozinheira, aprendera isso com a mãe.
Fez um refogado de vitela com pimentão, preparando uma salada mista enquanto a
panela fervia. Entrementes, Carlo se esticara na cama para ler o programa das
corridas do dia seguinte. Tinha um copo cheio de uísque ao lado do qual bebia
um pouco, de vez em quando.
Connie entrou no
quarto. Parou no vão da porta como se não pudesse aproximar-se da cama sem ser
convidada.
— A comida está na
mesa — anunciou ela.
— Ainda não estou com
fome — respondeu ele, continuando a ler o programa das corridas.
— Está na mesa! —
repetiu Connie teimosamente.
— Enfie na bunda! —
retrucou Carlo.
Carlo bebeu o resto do
uísque do copo, e virou a garrafa para enchê-lo novamente. Não deu mais atenção
à mulher.
Connie foi para a
cozinha, apanhou os pratos cheios de comida e atirou-os na pia, quebrando-os
ruidosamente. O barulho fez Carlo vir precipitadamente do quarto. Olhou para a
vitela refogada com pimentão espalhada por todas as paredes da cozinha e a sua
reação foi violenta.
— Sua imunda carcamana
mimada! — gritou ele com rancor — Limpe tudo isto agora mesmo ou eu a encho de
pontapés!
— Dane-se, que eu não
limpo nada! — respondeu Connie.
Ela estava com as mãos
em forma de garras prontas para arranhar-lhe violentamente o peito nu. Carlo
voltou para o quarto e quando saiu de lá segurava na mão seu cinto dobrado.
— Limpe tudo isto —
gritou ele, e a ameaça em sua voz não deixava qualquer dúvida.
Ele estava ali parado
sem se mover e brandiu o cinto nas ancas avantajadas da mulher; a pancada ardeu,
mas não doeu realmente. Connie recuou até os armários da cozinha, meteu a mão
numa das gavetas e puxou uma faca de pão comprida. Segurou-a em posição de
ataque.
Carlo deu uma
gargalhada.
— Até as mulheres da
Família Corleone são assassinas — disse ele.
Pôs o cinto na mesa da
cozinha e avançou para ela. Connie tentou um mergulho repentino, mas o seu
pesado corpo em estado de gravidez tornou-a morosa e Carlo conseguiu desviar-se
do ataque desfechado por ela à sua virilha com decisão implacável. Ele a desarmou
facilmente, depois começou a esbofetear-lhe o rosto com golpes lentos sem muita
força para não romper-lhe a pele. Atingia-a seguidamente, enquanto ela recuava
em volta da mesa da cozinha, procurando escapar dele, e ele a perseguia até o
quarto. Connie tentou morder-lhe a mão e Carlo agarrou-a pelos cabelos para
levantar-lhe a cabeça. Ele bateu-lhe no rosto até que ela começou a chorar como
uma criancinha, de dor e humilhação. Depois atirou-se desdenhosamente na cama.
Bebeu diretamente da garrafa de uísque que ainda estava em cima da mesinha. Ele
parecia muito bêbedo agora, seus olhos azuis apresentavam um brilho louco e
finalmente Connie ficou realmente com medo.
Carlo escarrapachou as
pernas e continuou a beber da garrafa. Estendeu a mão para baixo e agarrou um
pedaço da pesada coxa dela, inchada devido à gravidez. Deu-lhe um aperto forte,
machucando-a e fazendo-a pedir misericórdia.
— Você está gorda como
uma porca — disse com repugnância e saiu do quarto.
Completamente
apavorada e acovardada, ela jazia na cama, não se atrevendo a ir ver o que o
marido estava fazendo na sala. Finalmente levantou-se e foi até a porta para
dar uma espiada na sala de estar. Carlo tinha aberto outra garrafa de uísque e
bebia esparramado no sofá. Daí a pouco ele estaria tão embriagado que cairia
num sono profundo e ela poderia ir sorrateiramente até a cozinha e telefonar
para a família em Long Beach. Pediria à mãe que mandasse alguém ali apanhá-la.
Ela esperava que Sonny não atendesse o telefone, sabia que seria melhor falar
com Tom Hagen ou com a mãe.
Eram quase dez horas
da noite, quando o telefone da cozinha da casa de Don Corleone tocou. Foi
atendido por um dos guarda-costas, que respeitosamente passou o telefone para a
mãe de Connie. Mas a Sra. Corleone não conseguia compreender o que a filha
estava dizendo, a moça estava histérica e, além disso, falava muito baixinho
para que o marido que se achava na sala de estar ao lado não a ouvisse. O seu
rosto havia inchado em conseqüência das bofetadas, e os seus lábios túmidos deformavam
a sua fala. A Sra. Corleone fez um sinal para o guarda-costas ir chamar Sonny,
que se encontrava na sala de estar com Tom Hagen.
Sonny entrou na
cozinha e tomou o telefone da mãe.
— Sim, Connie — disse
ele.
Connie estava tão
apavorada com o marido e com o que o irmão poderia fazer, que sua fala piorou.
Ela balbuciou:
— Sonny, mande um
carro me apanhar agora em casa, eu lhe conto depois, não é nada, Sonny. Não
venha você. Mande Tom, por favor, Sonny. Não é nada, é só que eu quero ir até
aí.
Nesse momento, Hagen
entrara na cozinha. Don Corleone já estava dormindo sob o efeito de um
sedativo, no quarto de cima, e Hagen queria manter certa vigilância sobre Sonny
em todas as crises. Os dois guarda-costas internos também se encontravam na
cozinha. Todos fitavam Sonny enquanto ele escutava no telefone.
Não havia dúvida de
que a violência da natureza de Sonny Corleone emergia de algum poço misterioso
e profundo. Enquanto observavam, podiam ver realmente o sangue afluir para o
seu pescoço de veias grossas, podiam ver a película dos olhos cheia de ódio, as
feições de seu rosto se comprimirem, cada vez mais, depois o seu rosto tomar a
tonalidade acinzentada de um homem doente lutando contra um tipo de morte,
exceto que o bombeamento de adrenalina através do seu corpo fazia-lhe as mãos
tremer. Mas a sua voz estava controlada, e em tom baixo quando ele falou para a
irmã.
— Você espere aí. Só isso, espere aí — desligou o
telefone. Ficou parado por um momento, completamente atordoado com a própria
raiva, depois exclamou — Grande filho da puta! Grande filho da puta!
E saiu correndo da
casa.
Hagen reconheceu o
aspecto do rosto de Sonny, todo o poder de raciocínio o havia abandonado. Nesse
momento, Sonny era capaz de tudo. Hagen sabia também que a viagem até a cidade
esfriaria Sonny, faria que ele ficasse mais racional. Mas essa racionalidade
poderia torná-lo até mais perigoso, embora isso o tornasse capaz de proteger.se
contra as conseqüências de sua fúria. Hagen ouviu o motor do carro roncar e
disse para os dois guarda-costas:
— Vão atrás dele.
Em seguida, dirigiu-se
ao telefone e fez algumas chamadas. Arranjou para que alguns homens do regime
de Sonny que moravam na cidade fossem até o apartamento de Carlo Rizzi e
tirassem Carlo dali. Outros homens ficariam com Connie até Sonny chegar. Ele
estava se arriscando ao tentar contrariar Sonny, mas sabia que Don Corleone o
apoiaria. Tinha medo de que Sonny pudesse matar Carlo na frente de testemunhas.
Não esperava complicação do inimigo. As cinco Famílias haviam sossegado há muito
tempo e obviamente procuravam manter a trégua.
No momento em que o
Buick de Sonny saiu roncando da alameda, ele já tinha recuperado, em parte,
seus sentidos. Percebeu os dois guarda-costas entrarem no carro para segui-lo e
gostou da idéia. Ele não esperava que houvesse perigo; as cinco Famílias tinham
parado de contra-atacar, não estavam realmente combatendo mais. Agarrara o
paletó no vestíbulo e havia um revólver num compartimento secreto do painel de
instrumentos do carro, estando o carro registrado no nome de um membro do seu
regime para que ele pessoalmente não pudesse envolver-se em alguma complicação
com a lei. Mas ele não previa que fosse precisar de qualquer arma. Nem sabia
ainda o que ia fazer com Carlo Rizzi.
Agora que tinha tempo
para pensar, Sonny compreendeu que não podia matar o pai de uma criança que
ainda não nascera, e esse pai era o marido de sua irmã. Não por causa de uma
briga doméstica. Com a diferença que não era apenas uma briga doméstica. Carlo
era um mau elemento e Sonny sentia-se responsável porque a irmã conhecera o
salafrário por seu intermédio.
O paradoxo da natureza
violenta de Sonny era que ele não podia bater numa mulher e nunca fizera isso.
Nem podia maltratar uma criança ou qualquer coisa indefesa. Quando Carlo se
recusou a reagir naquele dia em que Sonny o agrediu, isto evitou que ele o
matasse, a submissão completa desarmava a sua violência. Quando menino, ele
fora realmente muito sensível. O fato de se ter tornado assassino depois de
adulto era simplesmente seu destino.
Mas ele resolveria a
coisa de uma vez para sempre, pensava Sonny, enquanto dirigia o Buick para a
via elevada que o levaria, por cima da água, de Long Beach até as avenidas
largas de Jones Beach. Ele sempre usava esse caminho quando ia a Nova York.
Havia menos tráfego.
Resolveu que mandaria
Connie para casa com os guarda-costas e depois conversaria com o cunhado. O que
aconteceria depois disso ele não sabia. Se
Carlo tivesse realmente machucado Connie, ele aleijaria o salafrário,
Mas o vento que soprava sobre a via elevada, a frescura salgada do ar, esfriou
a sua raiva. Ele baixou todo o vidro da janela.
Sonny tomara a pista
elevada de Jones Beach, como sempre, porque geralmente era deserta a essa hora
da noite, nessa época do ano, e ele podia correr desenfreadamente até chegar às
avenidas largas do outro lado. E mesmo ali o tráfego seria pequeno. O alívio de
dirigir muito depressa dissiparia o que ele sabia ser uma tensão perigosa. Ele
já deixara o carro dos guarda-costas bem para trás.
A via elevada era mal-iluminada,
não havia um só carro. Muito à frente, Sonny via o cone branco da cabina de
pedágio. Havia outras cabinas de pedágio, além daquela, mas só funcionavam
durante o dia, quando havia mais tráfego. Sonny começou a frear o Buick e ao
mesmo tempo a procurar nos bolsos dinheiro miúdo. Não tinha nenhum. Puxou a
carteira de notas, abriu-a com uma só mão e tirou uma cédula com os dedos.
Chegou à arcada de luz e viu, para sua ingênua surpresa, um carro na passagem
da cabina de pedágio obstruindo-a, sendo que o motorista evidentemente estava
se informando sobre alguma coisa com o cobrador do pedágio. Sonny tocou a
buzina e o outro carro obedientemente afastou-se para deixar o seu carro
atravessar a passagem.
Sonny entregou ao
cobrador do pedágio a nota de um dólar e esperou o troco. Ele agora tinha
pressa para fechar a janela. O ar do Atlântico esfriara o carro todo. Mas o
cobrador estava demorando a dar o troco; o estúpido na verdade deixara-o cair
no chão. A cabeça e o corpo do homem desapareceram quando ele se abaixou em sua
cabina para apanhar o dinheiro.
Naquele momento, Sonny
percebeu que o outro carro não continuara a andar, tendo estacionado poucos
metros adiante, ainda obstruindo-lhe o caminho. Naquele exato momento, pelo
visor lateral notou outro homem na escura cabina de pedágio à sua direita. Mas
ele não teve tempo de pensar nisso porque dois homens saíram do carro
estacionado na frente e vieram andando na direção dele. O cobrador do pedágio
ainda não aparecera. E então, numa fração de segundo, antes que qualquer coisa
realmente acontecesse, Santino Corleone soube que sua hora havia chegado.
E naquele momento a
sua mente estava lúcida, destituída de qualquer violência, como se o medo
oculto, finalmente real e presente, o tivesse purificado.
Mesmo assim, o seu
corpo enorme, num reflexo de autodefesa, atirou-se pesadamente na porta do
Buick, arrebentando o trinco. O homem da cabina escura abriu fogo e os tiros
atingiram Sonny Corleone na cabeça e no pescoço quando a sua figura maciça se
projetava para fora do carro. Os dois homens que estavam na frente seguravam
agora suas armas, o homem da cabina escura parou de atirar e o corpo de Sonny
se esparramou no asfalto com parte das pernas ainda dentro do carro. Cada um
dos homens atirou no corpo de Sonny e depois chutaram-lhe o rosto para
desfigurar-lhe ainda mais as feições.
Segundos depois, todos
os quatro homens, os três que atiraram em Sonny e o falso cobrador de pedágio,
estavam em seu automóvel correndo a toda a velocidade na direção da Meadowbrook
Avenue do outro lado de Jones Beach. Sua perseguição estava obstruída pelo
carro com o corpo de Sonny na passagem da cabina de pedágio, mas quando os
guarda-costas de Sonny chegaram, alguns minutos depois, e encontraram o corpo
ali, não tiveram a intenção de perseguir ninguém. Dera a volta com o carro em
torno de um enorme arco e regressaram a Long Beach. No primeiro telefone
público fora da via elevada, um deles saltou e chamou Tom Hagen. Ele foi muito
lacônico e rápido.
— Sonny está morto,
eles o apanharam na cabina de pedágio de Jones Beach.
A voz de Hagen estava
perfeitamente calma.
— Está bem — disse ele
— Vá à casa de Clemenza e diga a ele para vir aqui imediatamente. Ele dirá a
você o que fazer.
Hagen recebera o
telefonema na cozinha, com a Sra. Corleone preparando afobadamente uma refeição
ligeira para a chegada da filha. Ele manteve a compostura e a velha não notou
nada de anormal. Não que ela não pudesse notar, se quisesse, mas na sua vida
com Don Corleone ela aprendera que era mais prudente não perceber. Que se fosse
necessário saber de alguma coisa dolorosa, alguém logo contaria a ela. E se
fosse uma dor que lhe pudesse ser poupada, ela poderia passar sem tomar
conhecimento disso. Ela sentia-se bem contente por não participar da dor dos
homens que a rodeavam, afinal de contas eles participavam da dor das mulheres?
Impassivelmente, esquentou o café e pôs a comida na mesa. Em sua experiência, a
dor e o medo não mitigavam a fome; em sua experiência, a ingestão de comida
mitigava a dor. Ela ficaria furiosa se um médico tentasse dar-lhe um sedativo,
mas café e uma crosta de pão eram outra coisa; ela provinha, naturalmente, de
uma cultura mais primitiva.
E assim ela deixou Tom
Hagen escapulir para a sala de reunião do canto, onde ele entrou tremendo tão
violentamente que teve de sentar-se com as pernas bem unidas uma na outra, a
cabeça curvada nos ombros contraídos, as mãos apertadas uma na outra entre os
joelhos como se estivesse rezando para o diabo.
Ele não servia, agora
sabia disso, para ser o consigliori de
uma Família em guerra. Fora enganado, trapaceado, pelas cinco Famílias e pela
aparente timidez delas. Tinham ficado sossegadas, preparando a sua terrível
emboscada. Tinham planejado e esperado, contendo as suas mãos ensangüentadas
qualquer que fosse a provocação que lhes fizessem. Tinham esperado para dar um
golpe terrível. E o deram. O velho Genco Abbandando jamais cairia nele; teria
farejado até um rato, teria descoberto todos eles, triplicado suas precauções.
E através de tudo isso Hagen sentia sua mágoa. Sonny fora um verdadeiro irmão
para ele, seu salvador; seu herói quando meninos criados juntos. Sonny nunca
fora ordinário nem fanfarrão com ele, sempre o havia tratado com carinho, ele o
tomara nos braços quando Sollozzo o libertou. A alegria de Sonny naquela
reunião fora realmente sincera. Que Sonny se tivesse tornado um homem cruel,
violento e sanguinário não tinha, para Hagen, importância alguma.
Saíra da cozinha
porque sabia que jamais poderia dar à Sra. Corleone a notícia da morte do
filho. Jamais a considerava sua mãe como considerava Don Corleone seu pai e
Sonny seu irmão. A sua afeição por ela era como a sua afeição por Freddie,
Michael e Connie. A afeição por alguém que tinha sido bondoso, mas não amoroso.
Mas não podia dar a notícia a ela. Em poucos meses, ela perdera todos os
filhos; Freddie exilado em Nevada, Michael escondido na Sicília, para salvar a
vida, e agora Santino morto. Qual dos três ela amava mais? Ela mesma nunca
soubera.
Poucos minutos depois,
Hagen conseguiu recuperar o controle e pegou o telefone. Chamou o número de
Connie. Tocou um bocado de tempo até que Connie atendeu numa voz muito baixa.
— Connie, aqui é Tom —
disse Hagen delicadamente — Acorde o seu marido, preciso falar com ele.
— Tom, Sonny está
vindo para cá? — perguntou ela numa voz baixa assustada.
— Não — respondeu
Hagen — Sonny não está indo para aí. Não se preocupe com isso. Acorde
imediatamente Carlo e diga-lhe que é muito importante que eu fale com ele
agora.
Connie retrucou com
voz chorosa:
— Tom, ele me bateu, tenho
medo que me machuque novamente se souber que eu telefonei para casa.
Hagen voltou a falar
delicadamente:
— Ele não vai saber.
Ele falará comigo e eu explicarei a coisa a ele. Tudo estará bem. Diga a ele
que é muito importante, muito importante mesmo, que ele venha ao telefone. Está
bem?
Passaram-se quase
cinco minutos para que Hagen ouvisse a voz de Carlo através do telefone, uma
voz não muito clara em conseqüência do uísque e do sono. Hagen falou
vigorosamente para alertá-lo.
— Escute, Carlo.
Vou-lhe contar uma coisa muito chocante- Agora prepare-se porque, quando eu
terminar, quero que você me responda muito despreocupadamente como se tivesse
recebido uma notícia comum. Eu disse a Connie que era uma coisa importante,
assim você vai ter que contar outra história a ela. Diga-lhe que a Família
resolveu mudar vocês dois para uma das casas da alameda e dar a você um bom
emprego. Que Don Corleone resolveu finalmente lhe oferecer uma oportunidade com
a esperança de melhorar a vida doméstica de vocês dois. Entendeu bem?
Havia um tom de
esperança na voz de Carlo quando ele respondeu:
— Sim, está bem.
— Daqui a alguns
minutos — prosseguiu Hagen — Dois dos meus homens vão bater na sua porta para
apanhar vocês. Diga-lhes que quero primeiro que eles telefonem para mim.
Diga-lhes apenas isto. Não diga nada mais. Eu os instruirei por deixá-lo aí com
Connie. Está bem?
— Sim, sim, entendi —
respondeu Carlo.
Sua voz estava
excitada. A tensão na voz de Hagen parecia finalmente tê-lo alertado para o
fato de que a notícia que ele iria receber era realmente importante.
Hagen transmitiu-a
diretamente.
— Mataram Sonny esta
noite. Não diga nada. Connie chamou-o enquanto você dormia e ele estava a
caminho daí, mas não quero que ela saiba disso, mesmo que ela tenha o
pressentimento, não quero que Connie saiba disso com certeza. Ela vai começar a
pensar que tudo foi culpa dela. Agora quero que você passe a noite com ela, mas
não lhe conte nada. Quero que você seja o
perfeito marido amoroso. E quero que
você se comporte assim pelo menos até ela ter a criança. Amanhã de manhã alguém, talvez você, talvez Don
Corleone, talvez a mãe, dirá a ela
que o irmão foi assassinado. E quero que você esteja ao seu lado. Faça-me este favor e eu lhe ajudarei
no futuro. Entendeu bem?
A voz de Carlo estava
um pouco trêmula.
— Certamente, Tom,
certamente. Escute, eu e você sempre nos demos bem. Eu lhe agradeço.
Compreendeu?
— Sim — retrucou Hagen
— Ninguém vai dizer que a sua briga com Connie foi que causou isso, não se
preocupe. Eu me encarregarei disso — fez ima pausa e falou de modo brando e
animador — Toque para a frente agora, cuide de Connie.
Hagen cortou a
ligação.
Ele aprendera a jamais
fazer uma ameaça. Don Corleone lhe ensinara isso, mas Carlo compreendera bem a
mensagem: ele estava a um passo da morte.
Hagen deu outro
telefonema, para Tessio, pedindo-lhe que viesse imediatamente à alameda de Long
Beach. Não disse por que, nem Tessio perguntou. Hagen deu um suspiro. Agora
viria a parte que ele receava.
Ele teria de acordar
Don Corleone do seu sono narcotizado. Teria de dizer ao homem a quem mais tinha
afeição no mundo que falhara, que falhara na guarda de seu domínio e da vida de
seu filho mais velho. Teria de dizer a Don Corleone que tudo estava perdido, a
menos que o próprio homem doente pudesse entrar na batalha. Pois Hagen não se
iludia. Somente o grande Don Corleone podia transformar em vitória essa
terrível derrota. Hagen não se preocupou nem mesmo em consultar o médico de Don
Corleone, não adiantaria nada. Não importava o que os médicos aconselhassem,
mesmo que dissessem que Don Corleone não podia levantar-se da sua cama de
enfermo sob pena de morte, ele devia contar o fato ao seu pai adotivo e depois
seguir as suas instruções. E, naturalmente, não havia dúvida sobre o que Don
Corleone faria. As opiniões dos médicos eram descabidas agora; tudo era
descabido agora. Don Corleone devia receber a notícia e assumir o comando ou
mandar que Hagen entregasse todo o poder dos Corleone às cinco Famílias.
Contudo, Hagen temia
profundamente a hora seguinte. Procurou preparar tudo à sua maneira. Teria de
ser, de qualquer maneira, rigoroso com a sua própria culpa. Censurar a si mesmo
apenas aumentaria a carga de Don Corleone. Mostrar a sua própria dor apenas
intensificaria a dor de Don Corleone. Apontar as suas deficiências como consigliori em tempo de guerra apenas
faria Don Corleone censurar a si mesmo pelo seu próprio mau julgamento em
escolher tal homem para tão importante posto.
Ele devia, Hagen
sabia, contar a notícia, apresentar a sua análise do que devia ser feito para
corrigir a situação e depois calar-se. As suas reações dali em diante seriam as
determinadas por Don Corleone. Se o Don quisesse que ele se mostrasse culpado,
ele se mostraria culpado; se o Don determinasse dor, ele revelaria toda a sua autêntica
tristeza.
Hagen ergueu a cabeça
ao ouvir o ruído de carros rodando pela alameda. Os caporegimes estavam chegando. Ele os instruiria primeiro e depois
subiria para acordar Don Corleone. Levantou-se, foi até o bar perto da
escrivaninha, tirou um copo e uma garrafa. Ficou parado, por um momento, estava
tão abatido que não pôde despejar a bebida no copo. Por trás dele, ouviu a
porta da sala abrir-se mansamente e, virando-se, viu, completamente vestido
pela primeira vez desde que fora baleado, Don Corleone.
Este atravessou a sala
na direção de sua enorme poltrona de couro e sentou-se. Andava um pouco rijo,
as calças pareciam um pouco folgadas em seu corpo, mas aos olhos de Hagen ele
era o mesmo que sempre fora. Era quase como se unicamente por sua própria
vontade Don Corleone tivesse eliminado todo aspecto externo de seu ainda
enfraquecido organismo. O seu rosto apresentava firmemente toda a sua força e
resistência. Ele sentou-se ereto na poltrona e disse a Hagen:
— Dê-me um gole de
anisete.
Hagen trocou a posição
das garrafas e serviu para ambos uma porção da ardente bebida licorosa. Era uma
bebida camponesa, feita em casa, muito mais forte do que a vendida nas casas do
gênero, sendo presente de um velho amigo que todo ano ofertava a Don Corleone
um pequeno caminhão cheio dela.
— Minha mulher estava
chorando antes de adormecer — disse Don Corleone — Do lado de fora da minha
janela vi meus caporegimes chegando a
casa e é meia-noite. Portanto, meu consigliori,
acho que você deve dizer ao seu Don o que todo mundo sabe.
Hagen respondeu
tranqüilamente:
— Não contei nada à
mamãe. Eu já ia subir para lhe acordar e lhe contar pessoalmente a notícia.
Mais um instante e eu iria acordá-lo.
Don Corleone disse
impassivelmente:
— Mas você precisou
primeiro de um trago.
— Sim — respondeu
Hagen.
— Você já tomou o seu
trago — retrucou Don Corleone — Pode contar-me agora.
Havia apenas uma
insinuação bem leve de censura na voz de Don, pela fraqueza de Hagen.
— Balearam Sonny na
via elevada — disse Hagen — Ele está morto.
Don Corleone
pestanejou. Apenas por uma fração de segundo o muro de sua vontade se
desintegrou e o escoamento de sua resistência física se tornou claro em seu
rosto. Em seguida ele se recuperou. Apertou as mãos em sua frente no tampo da
escrivaninha e encarou diretamente os olhos de Hagen.
— Conte-me tudo o que
aconteceu — pediu ele. Suspendeu uma das mãos e disse — Não, espere até
Clemenza e Tessio chegarem para que você não tenha de contar de novo a
história.
Momentos depois, os
dois caporegimes entraram na sala
acompanhados de um guarda-costas. Compreenderam imediatamente que Don Corleone
sabia da morte do filho porque ele estava ali em pé para recebê-los.
Abraçaram-no como se permite aos velhos camaradas. Todos tomaram um trago de
anisete que Hagen lhes serviu antes de contar-lhes a história daquela noite.
Don Corleone fez
apenas uma pergunta no fim:
— É certo que meu
filho está morto?
Clemenza respondeu:
— É. Os guarda-costas
eram do regime de Santino, mas escolhidos por mim. Eu os interroguei quando
eles chegaram à minha casa. Viram o corpo dele na luz da cabina de pedágio. Ele
não podia estar vivo com os ferimentos que apresentava. Eles juram pela própria
vida o que disseram.
Don Corleone aceitou
este veredicto final, sem qualquer sinal de emoção a não ser por alguns
momentos de silêncio. Depois disse:
— Nenhum de vocês deve
preocupar-se com esse fato. Nenhum de vocês deve cometer atos de vingança,
nenhum de vocês deve fazer investigações para descobrir os assassinos do meu
filho sem minha ordem expressa. Não haverá mais atos de guerra contra as cinco
Famílias sem meu desejo expresso e pessoal. Nossa Família vai parar todas as
operações financeiras até depois do enterro do meu filho. Então nos reuniremos
aqui novamente e decidiremos o que fazer. Esta noite, devemos fazer o que é
possível por Santino, devemos enterrá-lo como cristão. Meus amigos arranjarão
as coisas com a polícia e com todas as outras autoridades competentes.
Clemenza, você ficará comigo todo o tempo como meu guarda-costas, você e os
homens de seu regime. Tessio, você guardará todos os outros membros da minha
família. Tom, quero que você telefone para Amerigo Bonasera e lhe diga que vou
precisar dos serviços dele a qualquer momento durante esta noite. Para me
esperar no seu estabelecimento. Talvez por uma, duas ou três horas. Todos vocês
entenderam bem?
Os três homens
acenaram com a cabeça afirmativamente. Don Corleone prosseguiu:
— Clemenza, pegue
alguns homens e carros e espere por mim. Estarei pronto em poucos minutos. Tom,
você agiu bem. De manhã, quero Constanzia com a mãe dela. Tome as providências
para que ela e o marido venham morar na alameda. Diga às mulheres amigas de
Sandra para irem à casa dela lhe fazerem companhia. Minha mulher também vai
para lá depois que eu falar com ela. Minha mulher vai contar a ela a triste
notícia, e as mulheres arranjarão a igreja onde serão celebradas as missas e
rezarão pela alma dele.
Don Corleone
levantou-se da sua poltrona de couro. Os outros homens se ergueram com ele,
Clemenza e Tessio o abraçaram novamente. Hagen segurou a porta aberta para Don
Corleone, que parou a fim de olhar para ele por um momento. Depois Don Corleone
pôs a mão na face de Hagen, abraçou-o rapidamente e disse em italiano:
— Você tem sido um bom
filho. Você me conforta.
Isto queria dizer que
Hagen havia agido corretamente naquela hora terrível. Em seguida, Don Corleone
subiu para o seu quarto, a fim de falar com a mulher. Foi nesse momento que
Hagen fez a chamada telefônica para Amerigo Bonasera dizendo-lhe que pagasse o
favor que devia aos Corleone.
Continua...
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Frase Curiosa: "Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère
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