domingo, 26 de fevereiro de 2012

O PODEROSO CHEFÃO - CAPÍTULO 19



CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS



CAPÍTULO
19




T
ALVEZ FOSSE O IMPASSE que fizesse Sonny Corleone empreender a ação sangrenta do atrito que terminou com a sua própria morte. Talvez fosse sua violenta natureza que se soltou por completo. Em todo caso, naquela primavera e verão, ele realizou ataques estúpidos aos auxiliares dos inimigos. Gigolôs da Família Tattaglia foram mortalmente baleados no Harlem, terroristas das docas foram massacrados. Funcionários dos sindicatos que deviam fidelidade às cinco Famílias foram advertidos para que se mantivessem neutros, e quando os bookmakers e agiotas de Corleone estavam ainda impossibilitados de trabalhar nas docas, Sonny mandou Clemenza e seu regime fazer uma enorme devastação ao longo do cais.
Essa carnificina não tinha sentido porque não podia alterar o resultado da guerra. Sonny era um tático de valor e conseguiu vitórias brilhantes. Mas o que se precisava era do gênio estratégico de Don Corleone. Toda a coisa degenerou numa tal luta mortal de guerrilhas que os dois lados estavam perdendo um bocado de receita e de vidas sem qualquer objetivo. A Família Corleone foi finalmente obrigada a fechar algumas de suas mais rendosas bancas de apostas, inclusive a que fora dada ao genro Carlo Rizzi para ganhar a vida. Carlo passou a beber e a andar com coristas e a dar duro na sua mulher, Connie. Desde que apanhara de Sonny, ele não mais se atrevera a bater na mulher, mas não dormira mais com ela. Connie atirou-se a seus pés, ele a rejeitara com pontapés, como pensava ele, como um romano, com um esquisito prazer patrício. Ele zombara dela, dizendo:
— Vá chamar seu irmão para dizer a ele que eu não trepo mais com você; talvez ele me bata tanto que o cacete fique duro.
Mas ele tinha um medo mortal de Sonny, embora se tratassem reciprocamente com fria cortesia. Carlo tinha a impressão de que Sonny o mataria, por que Sonny era um homem que podia, com a naturalidade de um animal, matar outro homem, enquanto ele próprio teria de reunir toda a sua coragem, toda a sua vontade para cometer um assassinato. Jamais ocorrera a Carlo que devido a isso ele era um homem melhor do que Sonny Corleone, se se pudessem usar tais palavras; ele invejava a selvageria de Sonny, que já se tornara lendária.
Tom Hagen, como consigliori, não aprovava a tática de Sonny e contudo decidira não protestar junto a Don Corleone simplesmente porque a tática, até certo ponto, produzia bom resultado. As cinco Famílias pareciam estar acovardadas, finalmente, à medida que o atrito prosseguia, e seus contragolpes foram enfraquecendo e afinal cessaram por completo. Hagen a princípio desconfiou dessa aparente pacificação do inimigo, mas Sonny estava jubiloso.
— Vou atacar rijamente — disse ele a Hagen — E então esses salafrários virão implorar um acordo.
Sonny se preocupava com outras coisas. A sua mulher estava dando duro nele porque ouvira o boato de que Lucy Mancini enfeitiçara seu marido. E embora ela zombasse publicamente do “equipamento” e da técnica de Sonny, ele se mantivera afastado da esposa muito tempo e ela sentia falta dele na cama, tornando assim a vida dele miserável com suas amolações.
Além disso, Sonny estava sob a enorme tensão de ser um homem marcado. Tinha que ser extraordinariamente cauteloso em todos os seus movimentos e sabia que as suas visitas a Lucy Mancini haviam sido farejadas pelo inimigo. Mas aí ele tomava precauções rigorosas, pois esse era o lugar tradicionalmente vulnerável, estava seguro ali. Embora Lucy não tivesse a mais leve suspeita, era vigiada 24 horas por dia por homens do regime de Santino, e quando vagava um apartamento no andar dela, era imediatamente alugado por um dos homens de mais confiança do regime.
Don Corleone se estava restabelecendo e logo se encontraria em condições de reassumir o comando. Aí, então, a sorte da batalha deveria virar a favor da Família Corleone. Disso Sonny tinha certeza. Entrementes, ele guardaria o império da Família, ganharia o respeito do pai, e desde que a posição não era hereditária até um ponto absoluto, consolidaria sua pretensão de herdeiro do Império Corleone.
Mas os inimigos estavam fazendo seus planos. Também haviam analisado a situação e chegado à conclusão de que o único meio de evitar a derrota completa era matar Sonny Corleone. Compreendiam a situação melhor agora e sentiam que era possível negociar com Don Corleone, conhecido por sua lógica sensatez. Passaram a odiar Sonny por sua sede de sangue, que eles consideravam bárbara. Também por sua falta de bom senso de negócio. Ninguém queria que voltassem os velhos tempos com todo o seu tumulto e complicação.
Uma noite, Connie Corleone recebeu um telefonema anônimo, uma voz de moça, perguntando por Carlo.
— Quem é você? — perguntou Connie.
A moça do outro lado da linha riu zombeteiramente e respondeu:
— Sou uma amiga de Carlo. Eu queria dizer a ele que não posso vê-lo esta noite. Tenho de sair da cidade.
— Sua cadela ordinária! — retrucou Connie Corleone — Sua cadela vagabunda, ordinária! — gritou Connie outra vez no telefone.
Houve um estalo do outro lado da linha.
Carlo fora às corridas de cavalo naquela tarde e quando voltou para casa já de noite estava aborrecido por ter perdido e achava-se meio embriagado, pois levava sempre consigo uma garrafa de bebida. Assim que ele atravessou a porta, Connie começou a xingá-lo aos berros. Ele não tomou conhecimento dela e foi tomar um banho de chuveiro. Quando saiu do banheiro, enxugou-se na frente dela e começou a se enfarpelar para sair novamente.
Connie estava ali postada com as mãos nas cadeiras, o rosto pontudo e branco de raiva.
— Você não vai a lugar algum — disse ela — Sua amiga telefonou e disse que não pode encontrar-se com você esta noite. Seu salafrário nojento, você tem coragem de dar às suas prostitutas o número de meu telefone. Eu o mato, seu sacana!
Ela atirou-se em cima dele, dando-lhe pontapés e arranhando-o.
Ele conseguiu afastá-la com um antebraço musculoso.
— Você está maluca! — retrucou ele friamente.
Mas Connie percebeu que ele estava preocupado, como se soubesse que a garota doida com quem ele estava trepando fizesse realmente aquela maluquice.
— Ela estava brincando, alguma doideira — acrescentou Carlo.
Connie mergulhou por dentro do seu braço e arranhou furiosamente o rosto do marido. Trouxe um pedacinho de sua bochecha em suas unhas. Com surpreendente paciência, Carlo a afastou. Ela percebeu que ele estava tomando cuidado por causa de sua gravidez e isso deu-lhe coragem de alimentar a sua própria raiva. Ela também estava excitada. Daí a pouco, ela não poderia fazer mais nada, o médico dissera que nada de sexo durante os últimos meses e ela queria agora, antes que começassem os dois últimos meses. Contudo, seu desejo de ferir fisicamente Carlo era muito real também. Ela o seguiu até o quarto.
Connie viu que ele estava apavorado e isso a encheu de prazer desdenhoso.
— Você vai ficar em casa — disse ela — Você não vai sair.
— Está bem, está bem — respondeu ele.
Carlo já tinha tirado a roupa e ficara apenas de shorts. Gostava de andar em casa assim, orgulhava-se de seu corpo em forma de V, de sua pele dourada. Connie olhou para ele ansiosamente. Ele procurou rir.
— Você pelo menos vai-me dar alguma coisa para comer?
Isso a amoleceu, o fato de Carlo lembrar-lhe o cumprimento de seus deveres, um deles pelo menos, já era alguma coisa. Connie era uma boa cozinheira, aprendera isso com a mãe. Fez um refogado de vitela com pimentão, preparando uma salada mista enquanto a panela fervia. Entrementes, Carlo se esticara na cama para ler o programa das corridas do dia seguinte. Tinha um copo cheio de uísque ao lado do qual bebia um pouco, de vez em quando.
Connie entrou no quarto. Parou no vão da porta como se não pudesse aproximar-se da cama sem ser convidada.
— A comida está na mesa — anunciou ela.
— Ainda não estou com fome — respondeu ele, continuando a ler o programa das corridas.
— Está na mesa! — repetiu Connie teimosamente.
— Enfie na bunda! — retrucou Carlo.
Carlo bebeu o resto do uísque do copo, e virou a garrafa para enchê-lo novamente. Não deu mais atenção à mulher.
Connie foi para a cozinha, apanhou os pratos cheios de comida e atirou-os na pia, quebrando-os ruidosamente. O barulho fez Carlo vir precipitadamente do quarto. Olhou para a vitela refogada com pimentão espalhada por todas as paredes da cozinha e a sua reação foi violenta.
— Sua imunda carcamana mimada! — gritou ele com rancor — Limpe tudo isto agora mesmo ou eu a encho de pontapés!
— Dane-se, que eu não limpo nada! — respondeu Connie.
Ela estava com as mãos em forma de garras prontas para arranhar-lhe violentamente o peito nu. Carlo voltou para o quarto e quando saiu de lá segurava na mão seu cinto dobrado.
— Limpe tudo isto — gritou ele, e a ameaça em sua voz não deixava qualquer dúvida.
Ele estava ali parado sem se mover e brandiu o cinto nas ancas avantajadas da mulher; a pancada ardeu, mas não doeu realmente. Connie recuou até os armários da cozinha, meteu a mão numa das gavetas e puxou uma faca de pão comprida. Segurou-a em posição de ataque.
Carlo deu uma gargalhada.
— Até as mulheres da Família Corleone são assassinas — disse ele.
Pôs o cinto na mesa da cozinha e avançou para ela. Connie tentou um mergulho repentino, mas o seu pesado corpo em estado de gravidez tornou-a morosa e Carlo conseguiu desviar-se do ataque desfechado por ela à sua virilha com decisão implacável. Ele a desarmou facilmente, depois começou a esbofetear-lhe o rosto com golpes lentos sem muita força para não romper-lhe a pele. Atingia-a seguidamente, enquanto ela recuava em volta da mesa da cozinha, procurando escapar dele, e ele a perseguia até o quarto. Connie tentou morder-lhe a mão e Carlo agarrou-a pelos cabelos para levantar-lhe a cabeça. Ele bateu-lhe no rosto até que ela começou a chorar como uma criancinha, de dor e humilhação. Depois atirou-se desdenhosamente na cama. Bebeu diretamente da garrafa de uísque que ainda estava em cima da mesinha. Ele parecia muito bêbedo agora, seus olhos azuis apresentavam um brilho louco e finalmente Connie ficou realmente com medo.
Carlo escarrapachou as pernas e continuou a beber da garrafa. Estendeu a mão para baixo e agarrou um pedaço da pesada coxa dela, inchada devido à gravidez. Deu-lhe um aperto forte, machucando-a e fazendo-a pedir misericórdia.
— Você está gorda como uma porca — disse com repugnância e saiu do quarto.
Completamente apavorada e acovardada, ela jazia na cama, não se atrevendo a ir ver o que o marido estava fazendo na sala. Finalmente levantou-se e foi até a porta para dar uma espiada na sala de estar. Carlo tinha aberto outra garrafa de uísque e bebia esparramado no sofá. Daí a pouco ele estaria tão embriagado que cairia num sono profundo e ela poderia ir sorrateiramente até a cozinha e telefonar para a família em Long Beach. Pediria à mãe que mandasse alguém ali apanhá-la. Ela esperava que Sonny não atendesse o telefone, sabia que seria melhor falar com Tom Hagen ou com a mãe.
Eram quase dez horas da noite, quando o telefone da cozinha da casa de Don Corleone tocou. Foi atendido por um dos guarda-costas, que respeitosamente passou o telefone para a mãe de Connie. Mas a Sra. Corleone não conseguia compreender o que a filha estava dizendo, a moça estava histérica e, além disso, falava muito baixinho para que o marido que se achava na sala de estar ao lado não a ouvisse. O seu rosto havia inchado em conseqüência das bofetadas, e os seus lábios túmidos deformavam a sua fala. A Sra. Corleone fez um sinal para o guarda-costas ir chamar Sonny, que se encontrava na sala de estar com Tom Hagen.
Sonny entrou na cozinha e tomou o telefone da mãe.
— Sim, Connie — disse ele.
Connie estava tão apavorada com o marido e com o que o irmão poderia fazer, que sua fala piorou. Ela balbuciou:
— Sonny, mande um carro me apanhar agora em casa, eu lhe conto depois, não é nada, Sonny. Não venha você. Mande Tom, por favor, Sonny. Não é nada, é só que eu quero ir até aí.
Nesse momento, Hagen entrara na cozinha. Don Corleone já estava dormindo sob o efeito de um sedativo, no quarto de cima, e Hagen queria manter certa vigilância sobre Sonny em todas as crises. Os dois guarda-costas internos também se encontravam na cozinha. Todos fitavam Sonny enquanto ele escutava no telefone.
Não havia dúvida de que a violência da natureza de Sonny Corleone emergia de algum poço misterioso e profundo. Enquanto observavam, podiam ver realmente o sangue afluir para o seu pescoço de veias grossas, podiam ver a película dos olhos cheia de ódio, as feições de seu rosto se comprimirem, cada vez mais, depois o seu rosto tomar a tonalidade acinzentada de um homem doente lutando contra um tipo de morte, exceto que o bombeamento de adrenalina através do seu corpo fazia-lhe as mãos tremer. Mas a sua voz estava controlada, e em tom baixo quando ele falou para a irmã.
— Você espere aí. Só isso, espere aí — desligou o telefone. Ficou parado por um momento, completamente atordoado com a própria raiva, depois exclamou — Grande filho da puta! Grande filho da puta!
E saiu correndo da casa.
Hagen reconheceu o aspecto do rosto de Sonny, todo o poder de raciocínio o havia abandonado. Nesse momento, Sonny era capaz de tudo. Hagen sabia também que a viagem até a cidade esfriaria Sonny, faria que ele ficasse mais racional. Mas essa racionalidade poderia torná-lo até mais perigoso, embora isso o tornasse capaz de proteger.se contra as conseqüências de sua fúria. Hagen ouviu o motor do carro roncar e disse para os dois guarda-costas:
— Vão atrás dele.
Em seguida, dirigiu-se ao telefone e fez algumas chamadas. Arranjou para que alguns homens do regime de Sonny que moravam na cidade fossem até o apartamento de Carlo Rizzi e tirassem Carlo dali. Outros homens ficariam com Connie até Sonny chegar. Ele estava se arriscando ao tentar contrariar Sonny, mas sabia que Don Corleone o apoiaria. Tinha medo de que Sonny pudesse matar Carlo na frente de testemunhas. Não esperava complicação do inimigo. As cinco Famílias haviam sossegado há muito tempo e obviamente procuravam manter a trégua.
No momento em que o Buick de Sonny saiu roncando da alameda, ele já tinha recuperado, em parte, seus sentidos. Percebeu os dois guarda-costas entrarem no carro para segui-lo e gostou da idéia. Ele não esperava que houvesse perigo; as cinco Famílias tinham parado de contra-atacar, não estavam realmente combatendo mais. Agarrara o paletó no vestíbulo e havia um revólver num compartimento secreto do painel de instrumentos do carro, estando o carro registrado no nome de um membro do seu regime para que ele pessoalmente não pudesse envolver-se em alguma complicação com a lei. Mas ele não previa que fosse precisar de qualquer arma. Nem sabia ainda o que ia fazer com Carlo Rizzi.
Agora que tinha tempo para pensar, Sonny compreendeu que não podia matar o pai de uma criança que ainda não nascera, e esse pai era o marido de sua irmã. Não por causa de uma briga doméstica. Com a diferença que não era apenas uma briga doméstica. Carlo era um mau elemento e Sonny sentia-se responsável porque a irmã conhecera o salafrário por seu intermédio.
O paradoxo da natureza violenta de Sonny era que ele não podia bater numa mulher e nunca fizera isso. Nem podia maltratar uma criança ou qualquer coisa indefesa. Quando Carlo se recusou a reagir naquele dia em que Sonny o agrediu, isto evitou que ele o matasse, a submissão completa desarmava a sua violência. Quando menino, ele fora realmente muito sensível. O fato de se ter tornado assassino depois de adulto era simplesmente seu destino.
Mas ele resolveria a coisa de uma vez para sempre, pensava Sonny, enquanto dirigia o Buick para a via elevada que o levaria, por cima da água, de Long Beach até as avenidas largas de Jones Beach. Ele sempre usava esse caminho quando ia a Nova York. Havia menos tráfego.
Resolveu que mandaria Connie para casa com os guarda-costas e depois conversaria com o cunhado. O que aconteceria depois disso ele não sabia. Se Carlo tivesse realmente machucado Connie, ele aleijaria o salafrário, Mas o vento que soprava sobre a via elevada, a frescura salgada do ar, esfriou a sua raiva. Ele baixou todo o vidro da janela.
Sonny tomara a pista elevada de Jones Beach, como sempre, porque geralmente era deserta a essa hora da noite, nessa época do ano, e ele podia correr desenfreadamente até chegar às avenidas largas do outro lado. E mesmo ali o tráfego seria pequeno. O alívio de dirigir muito depressa dissiparia o que ele sabia ser uma tensão perigosa. Ele já deixara o carro dos guarda-costas bem para trás.
A via elevada era mal-iluminada, não havia um só carro. Muito à frente, Sonny via o cone branco da cabina de pedágio. Havia outras cabinas de pedágio, além daquela, mas só funcionavam durante o dia, quando havia mais tráfego. Sonny começou a frear o Buick e ao mesmo tempo a procurar nos bolsos dinheiro miúdo. Não tinha nenhum. Puxou a carteira de notas, abriu-a com uma só mão e tirou uma cédula com os dedos. Chegou à arcada de luz e viu, para sua ingênua surpresa, um carro na passagem da cabina de pedágio obstruindo-a, sendo que o motorista evidentemente estava se informando sobre alguma coisa com o cobrador do pedágio. Sonny tocou a buzina e o outro carro obedientemente afastou-se para deixar o seu carro atravessar a passagem.
Sonny entregou ao cobrador do pedágio a nota de um dólar e esperou o troco. Ele agora tinha pressa para fechar a janela. O ar do Atlântico esfriara o carro todo. Mas o cobrador estava demorando a dar o troco; o estúpido na verdade deixara-o cair no chão. A cabeça e o corpo do homem desapareceram quando ele se abaixou em sua cabina para apanhar o dinheiro.
Naquele momento, Sonny percebeu que o outro carro não continuara a andar, tendo estacionado poucos metros adiante, ainda obstruindo-lhe o caminho. Naquele exato momento, pelo visor lateral notou outro homem na escura cabina de pedágio à sua direita. Mas ele não teve tempo de pensar nisso porque dois homens saíram do carro estacionado na frente e vieram andando na direção dele. O cobrador do pedágio ainda não aparecera. E então, numa fração de segundo, antes que qualquer coisa realmente acontecesse, Santino Corleone soube que sua hora havia chegado.
E naquele momento a sua mente estava lúcida, destituída de qualquer violência, como se o medo oculto, finalmente real e presente, o tivesse purificado.
Mesmo assim, o seu corpo enorme, num reflexo de autodefesa, atirou-se pesadamente na porta do Buick, arrebentando o trinco. O homem da cabina escura abriu fogo e os tiros atingiram Sonny Corleone na cabeça e no pescoço quando a sua figura maciça se projetava para fora do carro. Os dois homens que estavam na frente seguravam agora suas armas, o homem da cabina escura parou de atirar e o corpo de Sonny se esparramou no asfalto com parte das pernas ainda dentro do carro. Cada um dos homens atirou no corpo de Sonny e depois chutaram-lhe o rosto para desfigurar-lhe ainda mais as feições.
Segundos depois, todos os quatro homens, os três que atiraram em Sonny e o falso cobrador de pedágio, estavam em seu automóvel correndo a toda a velocidade na direção da Meadowbrook Avenue do outro lado de Jones Beach. Sua perseguição estava obstruída pelo carro com o corpo de Sonny na passagem da cabina de pedágio, mas quando os guarda-costas de Sonny chegaram, alguns minutos depois, e encontraram o corpo ali, não tiveram a intenção de perseguir ninguém. Dera a volta com o carro em torno de um enorme arco e regressaram a Long Beach. No primeiro telefone público fora da via elevada, um deles saltou e chamou Tom Hagen. Ele foi muito lacônico e rápido.
— Sonny está morto, eles o apanharam na cabina de pedágio de Jones Beach.
A voz de Hagen estava perfeitamente calma.
— Está bem — disse ele — Vá à casa de Clemenza e diga a ele para vir aqui imediatamente. Ele dirá a você o que fazer.
Hagen recebera o telefonema na cozinha, com a Sra. Corleone preparando afobadamente uma refeição ligeira para a chegada da filha. Ele manteve a compostura e a velha não notou nada de anormal. Não que ela não pudesse notar, se quisesse, mas na sua vida com Don Corleone ela aprendera que era mais prudente não perceber. Que se fosse necessário saber de alguma coisa dolorosa, alguém logo contaria a ela. E se fosse uma dor que lhe pudesse ser poupada, ela poderia passar sem tomar conhecimento disso. Ela sentia-se bem contente por não participar da dor dos homens que a rodeavam, afinal de contas eles participavam da dor das mulheres? Impassivelmente, esquentou o café e pôs a comida na mesa. Em sua experiência, a dor e o medo não mitigavam a fome; em sua experiência, a ingestão de comida mitigava a dor. Ela ficaria furiosa se um médico tentasse dar-lhe um sedativo, mas café e uma crosta de pão eram outra coisa; ela provinha, naturalmente, de uma cultura mais primitiva.
E assim ela deixou Tom Hagen escapulir para a sala de reunião do canto, onde ele entrou tremendo tão violentamente que teve de sentar-se com as pernas bem unidas uma na outra, a cabeça curvada nos ombros contraídos, as mãos apertadas uma na outra entre os joelhos como se estivesse rezando para o diabo.
Ele não servia, agora sabia disso, para ser o consigliori de uma Família em guerra. Fora enganado, trapaceado, pelas cinco Famílias e pela aparente timidez delas. Tinham ficado sossegadas, preparando a sua terrível emboscada. Tinham planejado e esperado, contendo as suas mãos ensangüentadas qualquer que fosse a provocação que lhes fizessem. Tinham esperado para dar um golpe terrível. E o deram. O velho Genco Abbandando jamais cairia nele; teria farejado até um rato, teria descoberto todos eles, triplicado suas precauções. E através de tudo isso Hagen sentia sua mágoa. Sonny fora um verdadeiro irmão para ele, seu salvador; seu herói quando meninos criados juntos. Sonny nunca fora ordinário nem fanfarrão com ele, sempre o havia tratado com carinho, ele o tomara nos braços quando Sollozzo o libertou. A alegria de Sonny naquela reunião fora realmente sincera. Que Sonny se tivesse tornado um homem cruel, violento e sanguinário não tinha, para Hagen, importância alguma.
Saíra da cozinha porque sabia que jamais poderia dar à Sra. Corleone a notícia da morte do filho. Jamais a considerava sua mãe como considerava Don Corleone seu pai e Sonny seu irmão. A sua afeição por ela era como a sua afeição por Freddie, Michael e Connie. A afeição por alguém que tinha sido bondoso, mas não amoroso. Mas não podia dar a notícia a ela. Em poucos meses, ela perdera todos os filhos; Freddie exilado em Nevada, Michael escondido na Sicília, para salvar a vida, e agora Santino morto. Qual dos três ela amava mais? Ela mesma nunca soubera.
Poucos minutos depois, Hagen conseguiu recuperar o controle e pegou o telefone. Chamou o número de Connie. Tocou um bocado de tempo até que Connie atendeu numa voz muito baixa.
— Connie, aqui é Tom — disse Hagen delicadamente — Acorde o seu marido, preciso falar com ele.
— Tom, Sonny está vindo para cá? — perguntou ela numa voz baixa assustada.
— Não — respondeu Hagen — Sonny não está indo para aí. Não se preocupe com isso. Acorde imediatamente Carlo e diga-lhe que é muito importante que eu fale com ele agora.
Connie retrucou com voz chorosa:
— Tom, ele me bateu, tenho medo que me machuque novamente se souber que eu telefonei para casa.
Hagen voltou a falar delicadamente:
— Ele não vai saber. Ele falará comigo e eu explicarei a coisa a ele. Tudo estará bem. Diga a ele que é muito importante, muito importante mesmo, que ele venha ao telefone. Está bem?
Passaram-se quase cinco minutos para que Hagen ouvisse a voz de Carlo através do telefone, uma voz não muito clara em conseqüência do uísque e do sono. Hagen falou vigorosamente para alertá-lo.
— Escute, Carlo. Vou-lhe contar uma coisa muito chocante- Agora prepare-se porque, quando eu terminar, quero que você me responda muito despreocupadamente como se tivesse recebido uma notícia comum. Eu disse a Connie que era uma coisa importante, assim você vai ter que contar outra história a ela. Diga-lhe que a Família resolveu mudar vocês dois para uma das casas da alameda e dar a você um bom emprego. Que Don Corleone resolveu finalmente lhe oferecer uma oportunidade com a esperança de melhorar a vida doméstica de vocês dois. Entendeu bem?
Havia um tom de esperança na voz de Carlo quando ele respondeu:
— Sim, está bem.
— Daqui a alguns minutos — prosseguiu Hagen — Dois dos meus homens vão bater na sua porta para apanhar vocês. Diga-lhes que quero primeiro que eles telefonem para mim. Diga-lhes apenas isto. Não diga nada mais. Eu os instruirei por deixá-lo aí com Connie. Está bem?
— Sim, sim, entendi — respondeu Carlo.
Sua voz estava excitada. A tensão na voz de Hagen parecia finalmente tê-lo alertado para o fato de que a notícia que ele iria receber era realmente importante.
Hagen transmitiu-a diretamente.
— Mataram Sonny esta noite. Não diga nada. Connie chamou-o enquanto você dormia e ele estava a caminho daí, mas não quero que ela saiba disso, mesmo que ela tenha o pressentimento, não quero que Connie saiba disso com certeza. Ela vai começar a pensar que tudo foi culpa dela. Agora quero que você passe a noite com ela, mas não lhe conte nada. Quero que você seja o perfeito marido amoroso. E quero que você se comporte assim pelo menos até ela ter a criança. Amanhã de manhã alguém, talvez você, talvez Don Corleone, talvez a mãe, dirá a ela que o irmão foi assassinado. E quero que você esteja ao seu lado. Faça-me este favor e eu lhe ajudarei no futuro. Entendeu bem?
A voz de Carlo estava um pouco trêmula.
— Certamente, Tom, certamente. Escute, eu e você sempre nos demos bem. Eu lhe agradeço. Compreendeu?
— Sim — retrucou Hagen — Ninguém vai dizer que a sua briga com Connie foi que causou isso, não se preocupe. Eu me encarregarei disso — fez ima pausa e falou de modo brando e animador — Toque para a frente agora, cuide de Connie.
Hagen cortou a ligação.
Ele aprendera a jamais fazer uma ameaça. Don Corleone lhe ensinara isso, mas Carlo compreendera bem a mensagem: ele estava a um passo da morte.
Hagen deu outro telefonema, para Tessio, pedindo-lhe que viesse imediatamente à alameda de Long Beach. Não disse por que, nem Tessio perguntou. Hagen deu um suspiro. Agora viria a parte que ele receava.
Ele teria de acordar Don Corleone do seu sono narcotizado. Teria de dizer ao homem a quem mais tinha afeição no mundo que falhara, que falhara na guarda de seu domínio e da vida de seu filho mais velho. Teria de dizer a Don Corleone que tudo estava perdido, a menos que o próprio homem doente pudesse entrar na batalha. Pois Hagen não se iludia. Somente o grande Don Corleone podia transformar em vitória essa terrível derrota. Hagen não se preocupou nem mesmo em consultar o médico de Don Corleone, não adiantaria nada. Não importava o que os médicos aconselhassem, mesmo que dissessem que Don Corleone não podia levantar-se da sua cama de enfermo sob pena de morte, ele devia contar o fato ao seu pai adotivo e depois seguir as suas instruções. E, naturalmente, não havia dúvida sobre o que Don Corleone faria. As opiniões dos médicos eram descabidas agora; tudo era descabido agora. Don Corleone devia receber a notícia e assumir o comando ou mandar que Hagen entregasse todo o poder dos Corleone às cinco Famílias.
Contudo, Hagen temia profundamente a hora seguinte. Procurou preparar tudo à sua maneira. Teria de ser, de qualquer maneira, rigoroso com a sua própria culpa. Censurar a si mesmo apenas aumentaria a carga de Don Corleone. Mostrar a sua própria dor apenas intensificaria a dor de Don Corleone. Apontar as suas deficiências como consigliori em tempo de guerra apenas faria Don Corleone censurar a si mesmo pelo seu próprio mau julgamento em escolher tal homem para tão importante posto.
Ele devia, Hagen sabia, contar a notícia, apresentar a sua análise do que devia ser feito para corrigir a situação e depois calar-se. As suas reações dali em diante seriam as determinadas por Don Corleone. Se o Don quisesse que ele se mostrasse culpado, ele se mostraria culpado; se o Don determinasse dor, ele revelaria toda a sua autêntica tristeza.
Hagen ergueu a cabeça ao ouvir o ruído de carros rodando pela alameda. Os caporegimes estavam chegando. Ele os instruiria primeiro e depois subiria para acordar Don Corleone. Levantou-se, foi até o bar perto da escrivaninha, tirou um copo e uma garrafa. Ficou parado, por um momento, estava tão abatido que não pôde despejar a bebida no copo. Por trás dele, ouviu a porta da sala abrir-se mansamente e, virando-se, viu, completamente vestido pela primeira vez desde que fora baleado, Don Corleone.
Este atravessou a sala na direção de sua enorme poltrona de couro e sentou-se. Andava um pouco rijo, as calças pareciam um pouco folgadas em seu corpo, mas aos olhos de Hagen ele era o mesmo que sempre fora. Era quase como se unicamente por sua própria vontade Don Corleone tivesse eliminado todo aspecto externo de seu ainda enfraquecido organismo. O seu rosto apresentava firmemente toda a sua força e resistência. Ele sentou-se ereto na poltrona e disse a Hagen:
— Dê-me um gole de anisete.
Hagen trocou a posição das garrafas e serviu para ambos uma porção da ardente bebida licorosa. Era uma bebida camponesa, feita em casa, muito mais forte do que a vendida nas casas do gênero, sendo presente de um velho amigo que todo ano ofertava a Don Corleone um pequeno caminhão cheio dela.
— Minha mulher estava chorando antes de adormecer — disse Don Corleone — Do lado de fora da minha janela vi meus caporegimes chegando a casa e é meia-noite. Portanto, meu consigliori, acho que você deve dizer ao seu Don o que todo mundo sabe.
Hagen respondeu tranqüilamente:
— Não contei nada à mamãe. Eu já ia subir para lhe acordar e lhe contar pessoalmente a notícia. Mais um instante e eu iria acordá-lo.
Don Corleone disse impassivelmente:
— Mas você precisou primeiro de um trago.
— Sim — respondeu Hagen.
— Você já tomou o seu trago — retrucou Don Corleone — Pode contar-me agora.
Havia apenas uma insinuação bem leve de censura na voz de Don, pela fraqueza de Hagen.
— Balearam Sonny na via elevada — disse Hagen — Ele está morto.
Don Corleone pestanejou. Apenas por uma fração de segundo o muro de sua vontade se desintegrou e o escoamento de sua resistência física se tornou claro em seu rosto. Em seguida ele se recuperou. Apertou as mãos em sua frente no tampo da escrivaninha e encarou diretamente os olhos de Hagen.
— Conte-me tudo o que aconteceu — pediu ele. Suspendeu uma das mãos e disse — Não, espere até Clemenza e Tessio chegarem para que você não tenha de contar de novo a história.
Momentos depois, os dois caporegimes entraram na sala acompanhados de um guarda-costas. Compreenderam imediatamente que Don Corleone sabia da morte do filho porque ele estava ali em pé para recebê-los. Abraçaram-no como se permite aos velhos camaradas. Todos tomaram um trago de anisete que Hagen lhes serviu antes de contar-lhes a história daquela noite.
Don Corleone fez apenas uma pergunta no fim:
— É certo que meu filho está morto?
Clemenza respondeu:
— É. Os guarda-costas eram do regime de Santino, mas escolhidos por mim. Eu os interroguei quando eles chegaram à minha casa. Viram o corpo dele na luz da cabina de pedágio. Ele não podia estar vivo com os ferimentos que apresentava. Eles juram pela própria vida o que disseram.
Don Corleone aceitou este veredicto final, sem qualquer sinal de emoção a não ser por alguns momentos de silêncio. Depois disse:
— Nenhum de vocês deve preocupar-se com esse fato. Nenhum de vocês deve cometer atos de vingança, nenhum de vocês deve fazer investigações para descobrir os assassinos do meu filho sem minha ordem expressa. Não haverá mais atos de guerra contra as cinco Famílias sem meu desejo expresso e pessoal. Nossa Família vai parar todas as operações financeiras até depois do enterro do meu filho. Então nos reuniremos aqui novamente e decidiremos o que fazer. Esta noite, devemos fazer o que é possível por Santino, devemos enterrá-lo como cristão. Meus amigos arranjarão as coisas com a polícia e com todas as outras autoridades competentes. Clemenza, você ficará comigo todo o tempo como meu guarda-costas, você e os homens de seu regime. Tessio, você guardará todos os outros membros da minha família. Tom, quero que você telefone para Amerigo Bonasera e lhe diga que vou precisar dos serviços dele a qualquer momento durante esta noite. Para me esperar no seu estabelecimento. Talvez por uma, duas ou três horas. Todos vocês entenderam bem?
Os três homens acenaram com a cabeça afirmativamente. Don Corleone prosseguiu:
— Clemenza, pegue alguns homens e carros e espere por mim. Estarei pronto em poucos minutos. Tom, você agiu bem. De manhã, quero Constanzia com a mãe dela. Tome as providências para que ela e o marido venham morar na alameda. Diga às mulheres amigas de Sandra para irem à casa dela lhe fazerem companhia. Minha mulher também vai para lá depois que eu falar com ela. Minha mulher vai contar a ela a triste notícia, e as mulheres arranjarão a igreja onde serão celebradas as missas e rezarão pela alma dele.
Don Corleone levantou-se da sua poltrona de couro. Os outros homens se ergueram com ele, Clemenza e Tessio o abraçaram novamente. Hagen segurou a porta aberta para Don Corleone, que parou a fim de olhar para ele por um momento. Depois Don Corleone pôs a mão na face de Hagen, abraçou-o rapidamente e disse em italiano:
— Você tem sido um bom filho. Você me conforta.
Isto queria dizer que Hagen havia agido corretamente naquela hora terrível. Em seguida, Don Corleone subiu para o seu quarto, a fim de falar com a mulher. Foi nesse momento que Hagen fez a chamada telefônica para Amerigo Bonasera dizendo-lhe que pagasse o favor que devia aos Corleone.





Continua...



______________________________

Frase Curiosa"Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.