domingo, 19 de fevereiro de 2012

O PODEROSO CHEFÃO - CAPÍTULO 14



CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS



LIVRO
III



CAPÍTULO
14


D
ON CORLEONE era um verdadeiro homem com a idade de 12 anos. Baixo, moreno, franzino, vivendo na estranha aldeia de Corleone, de aspecto mourisco, na Sicília, seu verdadeiro nome era Vito Andolini, mas quando alguns estranhos vieram matar o filho do homem que tinham assassinado, a mãe mandou o menino para a América, a fim de ficar com amigos. E na nova terra ele mudou o nome para Corleone, visando a manter alguma ligação com a sua aldeia natal. Foi uma das poucas atitudes sentimentais que realizaria na vida.
Na Sicília, no fim do século, a Máfia era o segundo governo, sendo muito mais poderosa do que o governo oficial de Roma. O pai de Vito Corleone se viu envolvido numa rixa com outro aldeão que levou o caso à Máfia. O pai não quis se submeter e, numa briga pública, matou o chefe local da Máfia. Uma semana depois, ele próprio foi encontrado morto, seu corpo dilacerado por cargas de lupara. Um mês depois do enterro, pistoleiros da Máfia vieram fazer perguntas sobre o menino Vito. Tinham resolvido que ele estava muito perto de se tornar adulto e que poderia procurar vingar a morte do pai nos anos vindouros, O menino de 12 anos. Vito, foi escondido por parentes e embarcado para a América. Aí ficou aos cuidados dos Abbandando, cujo filho Genco se tornaria posteriormente consigliori de seu Don.
O rapazinho Vito foi trabalhar no armazém dos Abbandando na Nona Avenida, na zona de Nova York. Aos 18 anos de idade casou-se com uma garota recém-chegada da Sicília, de apenas 16 anos, uma ótima cozinheira e boa dona-de-casa. Instalaram-se numa casa da Décima Avenida, perto da Rua 35, apenas a poucos quarteirões do lugar em que Vito trabalhava, e dois anos depois nascia-lhes o primeiro filho, Santino, chamado por todos os seus amigos Sonny (Filhinho) devido à sua devoção ao pai.
Nas imediações vivia um homem chamado Fanucci. Era um italiano pesadão, de aspecto feroz, que usava finas roupas, invariavelmente claras, e um chapéu creme. Esse homem era considerado como pertencente à Mão Negra, uma ramificação da Máfia que extorquia dinheiro das famílias e dos donos de lojas e armazéns sob ameaça de violência física. Contudo, como quase todos os habitantes das redondezas, eles próprios eram violentos, e as ameaças de ataque corporal de Fanucci só surtiam efeito com os casais idosos que não tinham filhos homens para defendê-los. Alguns comerciantes pagavam-lhe quantias insignificantes por uma questão de conveniência. Contudo, Fanucci era também um inimigo mortal de outros criminosos, os indivíduos que vendiam ilegalmente a loteria italiana ou que mantinham jogos de azar em suas próprias casas. O armazém dos Abbandando fornecia-lhe uma pequena contribuição, isso apesar dos protestos do jovem Genco, que dizia ao pai que resolveria o caso com Fanucci. O pai o proibiu. Vito Corleone observava tudo isso sem se sentir de qualquer maneira envolvido na questão.
Um dia, Fanucci foi atacado por três rapazes que lhe cortaram a garganta de uma a outra orelha, não tão profundamente para matá-lo, mas o bastante para. assustá-lo e fazê-lo sangrar um bocado. Vito viu Fanucci fugir de seus atacantes, com o talho circular jorrando sangue. O que nunca esqueceu foi a cena de Fanucci segurando o chapéu creme por baixo do queixo para aparar o sangue que escorria. Como se não quisesse manchar a roupa ou não quisesse que vissem seu rosto ensangüentado.
Entretanto, esse ataque acabou se transformando num benefício para Fanucci. Os três rapazes não eram assassinos, mas apenas valentões resolvidos a dar-lhe uma lição e a fazê-lo parar de perseguir os outros criminosos. Mas Fanucci provou ser um assassino. Algumas semanas depois, o rapaz que utiizara a faca contra Fanucci foi morto a bala, e as famílias dos outros dois rapazes pagaram-lhe uma indenização para fazê-lo desistir da vingança. Depois disso, as contribuições se tornaram cada vez maiores, e Fanucci se tornou sócio dos jogos de azar das redondezas.
Quanto a Vito Corleone, isso nada lhe interessava. Esqueceu tudo a respeito, imediatamente.
Durante a I Guerra Mundial, quando a importação de azeite se tornou difícil, Fanucci adquiriu uma parcela de interesse no armazém dos Abbandando, fornecendo-lhe não somente azeite, mas também salame, presuntos e queijos importados da Itália. Então meteu um sobrinho no armazém, e Vito Corleone viu-se desempregado.
Por essa época, o segundo filho, Frederico, havia nascido, e Vito Corleone tinha quatro bocas para alimentar. Até aquele tempo, ele fora um rapaz sossegado, comedido, que guardava seus pensamentos para si mesmo. O filho do dono do armazém, o jovem Genco Abbandando, era seu amigo mais íntimo, e para surpresa de ambos, Vito censurou o amigo pela ação do pai. Genco, vermelho de vergonha, garantiu a Vito que ele não precisaria preocupar-se a respeito de comida. Ele, Genco, roubaria comida do armazém para atender as necessidades do amigo. Essa oferta, porém, foi terminantemente rejeitada por Vito por ser muito vergonhoso um filho roubar o pai.
O jovem Vito, contudo, passou a sentir uma raiva surda pelo temível, Fanucci. Nunca demonstrou essa raiva de modo algum, mas aguardava uma oportunidade. Trabalhou na estrada de ferro por alguns meses e depois, quando a guerra terminou, o serviço se tornou escasso, e ele só conseguia trabalhar alguns dias por mês. Além disso, a maioria dos capatazes eram irlandeses ou americanos e insultavam os trabalhadores usando a linguagem mais suja possível, o que Vito sempre suportava impassivelmente, já que fingia não compreender, embora entendesse inglês muito bem, apesar de seu sotaque.
Uma noite, quando Vito estava ceando com a família, ouviu uma pancada na janela que dava para a estreita passagem que separava sua casa do prédio vizinho. Quando puxou a cortina para o lado, Vito viu com espanto um dos rapazes da redondeza, Peter Clemenza, inclinando-se para fora da janela do outro lado da passagem. Estava estendendo uma trouxa de lençol branco.
— Olhe aqui, paisan — disse Clemenza — Guarde isso para mim até eu pedir de volta. Depressa!
Automaticamente, Vito esticou as mãos pelo espaço vazio da passagem de ar e agarrou a trouxa. O rosto de Clemenza denotava tensão e premência. Ele se encontrava em alguma dificuldade e o gesto de ajuda de Vito foi instintivo. Mas, quando Vito abriu a trouxa na cozinha, viu cinco armas de fogo lubrificadas manchando o pano branco. Ele as pôs no armário da quarto de dormir e esperou. Soube então que Clemenza tinha sido levado pela polícia. Os tiras deviam estar batendo na porta de Clemenza quando ele lhe passou as armas pela janela.
Vito nunca disse uma palavra a ninguém e, naturalmente, sua mulher, aterrorizada, não se atrevia a abrir a boca, nem mesmo para mexericos, com medo de que o próprio marido fosse enviado para a cadeia. Dois dias depois, Peter Clemenza reapareceu por lá e perguntou a Vito casualmente:
— Você ainda está com meu material?
Vito acenou com a cabeça afirmativamente. Tinha o hábito de falar pouco. Clemenza foi até o apartamento de Vito, onde lhe ofereceram um copo de vinho, enquanto Vito desentocava a trouxa do armário do quarto de dormir.
Clemenza bebeu o vinho, enquanto o seu rosto bonachão contemplava atentamente Vito.
— Você viu o que tem aí dentro?
Vito, com o rosto impassível, balançou a cabeça.
— Não me interesso por coisas que não me dizem respeito — respondeu. Beberam vinho juntos o resto da noite. Acharam que havia muita afinidade entre ambos. Clemenza gostava de contar histórias; Vito Corleone gostava de ouvir contadores de histórias. Tornaram-se amigos imediatamente.
Alguns dias depois, Clemenza perguntou à mulher de Vito Corleone se ela gostaria de ganhar um tapete fino para o assoalho de sua sala de estar. Ele levou Vito consigo para ajudar a carregar o tapete.
Clemenza levou Vito até um edifício de apartamentos, o qual possuía duas colunas de mármore branco e uma pia de água benta do mesmo material no hall. Clemenza abriu a porta com a chave, e ambos entraram num apartamento elegante.
— Vá para o outro lado da sala e ajude-me a enrolá-lo — gritou Clemenza.
O tapete era uma rica peça de lã vermelha. Vito Corleone ficou espantado com a generosidade de Clemenza. Os dois juntos enrolaram o tapete; em seguida Clemenza pegou numa ponta do rolo enquanto Vito pegava na outra. Levantaram-no e começaram a carregá-lo na direção da porta.
Nesse momento, a campainha do apartamento tocou. Clemenza imediatamente deixou cair o tapete e correu para a janela. Puxou a cortina ligeiramente para o lado, e o que ele viu fê-lo sacar o revólver de dentro do paletó. Foi somente aí que o espantado Vito Corleone percebeu que estavam roubando o tapete do apartamento de um estranho.
A campainha tocou novamente. Vito foi até perto de Clemenza para poder ver o que estava acontecendo. Na porta havia um polícial uniformizado. Enquanto observavam, viram o polícial dar um último toque na campainha da porta e depois dar de ombros e descer a escada de mármore e seguir rua afora.
Clemenza deu um grito de satisfação e disse:
— Vamos embora.
Clemenza apanhou a sua ponta do tapete e Vito pegou a sua. O polícial mal tinha dobrado a esquina e eles já saíam pela pesada porta de carvalho e caminhavam pela rua com o tapete entre eles. Meia hora mais tarde estavam cortando o tapete para caber na sala de estar do apartamento de Vito Corleone. Tinham ainda deixado um bom pedaço da peça para o quarto de dormir. Clemenza trabalhava com desenvoltura, e dos bolsos de seu largo paletó, mal assentado (mesmo então ele gostava de usar roupas folgadas, embora não fosse tão gordo), tirava as ferramentas necessárias para cortar o tapete.
O tempo passava, mas as coisas não melhoravam. A família Corleone não podia comer o bonito tapete. Muito bem, não havia trabalho, sua mulher e filhos deviam morrer de fome. Vito apanhou alguns pacotes de mantimento com seu amigo Genco, enquanto pensava como resolver a situação. Finalmente, foi procurado por Clemenza e Tessio, outro rapaz que era um mau elemento da redondeza. Eram homens que pensavam bem dele, da maneira pela qual ele se conduzia, e sabiam que ele estava desesperado. Propuseram lhe que se tornasse membro da quadrilha deles, que se especializara em atacar caminhões de vestidos de seda depois que eram carregados na fábrica da Rua 31. Não havia risco. Os motoristas dos caminhões eram trabalhadores ajuizados que à vista de uma arma de fogo voavam para a calçada como anjos, enquanto os assaltantes levavam o caminhão para ser descarregado no armazém de um amigo. Uma parte da mercadoria era vendida a um atacadista italiano, e o restante vendido de porta em porta nas zonas residenciais — Arthur Avenue, no Bronx, Mulberry Street, e distrito de Chelsea, em Manhattan — tudo a famílias italianas pobres à procura de uma pechincha, cujas filhas jamais poderiam dar-se ao luxo de comprar vestidos tão finos pelo preço real. Clemenza e Tessio precisavam de Vito para dirigir o caminhão, pois sabiam que ele dirigira o caminhão de entrega do armazém dos Abbandando.
Em 1919, bons motoristas eram raríssimos.
Contra a própria vontade, Vito Corleone aceitou a oferta. O argumento decisivo foi o de que ele arranjaria pelo menos mil dólares como sua parte no trabalho. Porém seus jovens companheiros pareciam-lhe impetuosos, o plano de trabalho era duvidoso, a distribuição do saque, malfeita. Todo o sistema de ação deles era muito deficiente para o seu gosto. Mas ele os considerava rapazes direitos, bons. O corpulento Peter Clemenza inspirava segurança, e o franzino e sério Tessio também.
O próprio trabalho processou-se sem qualquer dificuldade. Vito Corleone não sentiu medo, para grande espanto seu, quando os seus dois camaradas puxaram as armas e fizeram o motorista saltar do caminhão. Ficou também impressionado com a frieza de Clemenza e Tessio. Não se mostraram nervosos, mas ao contrário brincaram com o motorista dizendo-lhe que se ele se comportasse como um bom rapaz mandariam alguns vestidos para a mulher dele. Como Vito achava que era estupidez vender ele mesmo os vestidos, resolveu entregar toda a sua parte do roubo a um receptador, apurando apenas setecentos dólares, o que era uma soma enorme em 1919.
No dia seguinte, Vito Corleone foi detido na rua por Fanucci, que usava uma roupa creme e chapéu branco. Fanucci era um homem de aspecto brutal e nada fizera para disfarçar a cicatriz circular que se estendia num semicírculo branco de orelha a orelha, dando a volta por baixo do queixo. Tinha sobrancelhas pretas cerradas e feições grosseiras que, quando sorria, pareciam de maneira estranha amáveis.
— Ah, meu rapaz — falou ele a Vito, com um sotaque siciliano muito carregado — O pessoal me disse que você está rico. Você e seus dois amigos. Mas você não pensa que me tratou um pouco mesquinhamente? Afinal de contas, isso é meu território e vocês deviam me deixar molhar o bico.
Ele usava a expressão siciliana da Máfia: Fari vagnari a pizzu. Pizzu significa o bico de qualquer passarinho, como por exemplo o canário. A própria expressão era uma exigência de parte do saque.
Como era seu hábito, Vito Corleone não respondeu. Compreendeu a insinuação imediatamente e estava esperando uma exigência direta.
Fanucci sorriu para ele, mostrando os dentes de ouro e esticando a cicatriz circular em torno de seu rosto. Enxugou o rosto com um lenço e desabotoou o paletó por um momento como que para se refrescar, mas na realidade para mostrar a arma que trazia na cintura de suas calças confortavelmente largas. Depois deu um suspiro e disse:
— Você me dá quinhentos dólares e eu esqueço o insulto. Afinal de contas, a gente moça ignora as cortesias devidas a um homem como eu.
Vito Corleone sorriu para ele, e mesmo para um jovem ainda inexperiente havia algo tão enregelante em seu sorriso que Fanucci hesitou um momento antes de prosseguir:
— Do contrário, a policia vai fazer uma visita a você; sua mulher e filhos ficarão envergonhados e na miséria. Naturalmente se a minha informação sobre os seus ganhos está incorreta eu molharei o bico apenas um pouquinho. Mas nada menos de trezentos dólares. E não procure me enganar.
Pela primeira vez, Vito Corleone falou. Sua voz apresentava um tom moderado, não mostrava raiva. Ele foi cortês, como competia a um jovem falando a um homem mais velho da importância de Fanucci. Disse brandamente:
— Meus dois amigos estão com a minha parte do dinheiro. Tenho de falar com eles.
Fanucci procurou tranqüilizá-lo.
— Você pode dizer aos seus dois amigos que espero que eles me deixem molhar o bico da mesma maneira. Não tenha medo de dizer a eles — acrescentou Fanucci para animá-lo — Clemenza e eu nos conhecemos bem um ao outro, ele compreende essas coisas. Você deve deixar-se guiar por ele, pois ele tem muita experiência nesses assuntos.
Vito Corleone deu de ombros. Procurou fingir que estava um pouco embaraçado.
— É verdade — respondeu — O senhor compreende que tudo isso é novo para mim. Obrigado por falar comigo como um padrinho.
Fanucci ficou impressionado.
— Você é um bom sujeito — disse. Depois pegou a mão de Vito e apertou-a entre as suas mãos cabeludas — Você tem respeito — continuou ele — Uma coisa bonita nos jovens. Da próxima vez, você fale primeiro comigo, hem? Talvez eu possa ajudá-lo em seus planos.
Anos depois, Vito Corleone compreendeu que o que o fez agir de modo tão perfeito e tático com Fanucci foi a morte do seu próprio pai, de temperamento violento, que fora assassinado pela Máfia na Sicília. Porém, naquela ocasião, tudo o que ele sentia era uma raiva gélida de que aquele homem planejava roubá-lo do dinheiro que ele conseguira com o risco da vida e da liberdade. Não tivera medo. Na verdade, naquele momento, pensou que Fanucci fosse um bobo maluco. Pelo que vira de Clemenza, aquele robusto siciliano daria antes a vida do que um níquel de seu saque. Afinal de contas, Clemenza estivera prestes a matar um polícial somente para roubar um tapete. E o franzino Tessio tinha o ar mortal de uma víbora.
À noite, porém, no apartamento de Clemenza, do outro lado da passagem de ar, Vito Corleone aprendeu outra lição no aprendizado que estava começando a receber. Clemenza praguejou, Tessio ameaçou, mas depois dois passaram a discutir se Fanucci ficaria satisfeito com duzentos dólares. Tessio achava que sim.
Clemenza foi positivo.
— Não, esse patife “cara de cicatriz” deve ter descoberto o que apuramos com o atacadista que comprou os vestidos. Fanucci não aceitará um níquel menos do que trezentos dólares. Teremos de pagar.
Vito ficou espantado, mas teve o cuidado de não demonstrar.
— Por que temos de pagar-lhe? Que pode ele fazer a nós três? Somos mais fortes do que ele. Temos armas. Por que temos de entregar o dinheiro que ganhamos?
Clemenza explicou pacientemente:
— Fanucci tem amigos, verdadeiros animais. Tem ligações com a polícia e gostaria que lhe contássemos nossos planos, porque nos denunciaria aos tiras e obteria a gratidão deles. Então eles lhes deveriam um favor. É assim que ele age sempre. Tem uma licença do próprio Maranzalla para trabalhar nesta redondeza.
Maranzalla era um gangster freqüentemente mencionado nos jornais e considerado como o chefe de uma quadrilha de bandidos especializados em extorsão, jogos de azar e roubo à mão armada.
Clemenza serviu vinho que ele mesmo tinha feito. Sua mulher, depois de pôr um prato de salame, azeitonas e um pão italiano na mesa, desceu e foi sentar-se com as amigas em frente do prédio, levando uma cadeira consigo.
Era uma moça italiana que vivia há poucos anos no país e ainda não entendia o inglês.
Vito Corleone sentou-se com os dois amigos e começou a beber vinho. Jamais usara a inteligência antes como a estava usando agora. Sentia-se surpreso como podia pensar tão claramente. Lembrou-se de tudo o que sabia sobre Fanucci. Lembrou-se do dia em que o homem tivera a sua garganta cortada e correra pela rua segurando o chapéu debaixo do queixo para aparar o sangue que escorria. Lembrou-se do assassinato do rapaz que usara a faca e dos outros dois que tiveram a sentença anulada pelo pagamento de uma indenização. E de repente teve certeza de que Fanucci não tinha grandes ligações, não podia ter. Nenhum homem que informasse à polícia. Nenhum homem que permitisse que sua vingança fosse comprada por dinheiro. Um verdadeiro chefe mafioso teria matado também os outros dois rapazes. Não. Fanucci tivera sorte e matara um dos rapazes, mas sabia que não podia matar os outros dois depois de estarem eles alerta. E assim acedeu em receber dinheiro em troca da suposta vingança. Era a força brutal do próprio homem que lhe permitia arrecadar tributo dos comerciantes e dos jogos de azar realizados nos apartamentos. Mas Vito Corleone conhecia pelo menos uma dessas bancas de jogo que não pagava tributos e jamais acontecera qualquer coisa ao homem responsável por ela.
E assim Fanucci agia sozinho. Ou então contratava alguns pistoleiros para determinados serviços, pagando-lhes rigorosamente em dinheiro. O que levou Vito Corleone a tomar outra decisão. O rumo que a sua própria vida devia seguir.
Foi dessa experiência que lhe veio a crença freqüentemente repetida de que todo homem tem apenas um destino. Naquela noite, poderia ter pago a Fanucci o tributo e se tornado um caixeiro de armazém com a possibilidade de ter seu próprio negócio nos anos vindouros. Mas o destino resolvera que ele deveria tornar-se um Don e lhe trouxera Fanucci para pô-lo na trajetória de seu destino.
Quando acabaram a garrafa de vinho, Vito disse cautelosamente a Clemenza e Tessio:
— Se vocês querem, por que não me dão duzentos dólares cada um para pagar a Fanucci? Garanto que ele aceitará esta quantia de mim. Depois deixem tudo por minha conta. Resolverei este problema de modo satisfatório para vocês.
Os olhos de Clemenza prontamente começaram a brilhar com desconfiança. Vito disse-lhe friamente:
— Nunca menti a pessoas que considero minhas amigas. Fale você com Fanucci amanhã. Deixe que ele lhe peça o dinheiro. Mas não lhe pague. E de forma alguma discuta com Fanucci. Diga apenas que você vai arranjar o dinheiro e entregar a mim para dar a ele. Deixe que compreenda que você deseja pagar o que ele pede. Não regateie. Eu discutirei o preço com ele. Não há vantagem em fazê-lo ficar zangado conosco, se ele é um homem tão perigoso como você diz.
Deixaram a coisa nesse pé. No dia seguinte, Clemenza falou com Fanucci para ter a certeza de que Vito não estava inventando a história. Depois Clemenza foi ao apartamento de Vito e deu-lhe os duzentos dólares. Olhou curiosamente para Vito Corleone e perguntou:
— Fanucci me disse que não aceitaria nada inferior a trezentos dólares, como você vai fazê-lo aceitar menos?
— Certamente isso não lhe interessa — respondeu Vito Corleone tranqüilamente — Lembre-se apenas de que lhe prestei um serviço.
Tessio veio mais tarde. Foi mais reservado do que Clemenza, mais esperto, mais manhoso e também mais conformado. Sentia que faltava algo, algo não muito claro. Ele estava um pouco preocupado e disse a Vito Corleone:
— Tome cuidado com esse patife da Mão Negra, ele é astucioso como um padre. Quer que eu esteja aqui quando você lhe entregar o dinheiro, como testemunha?
Vito Corleone balançou a cabeça. Nem sequer se preocupou em responder. Apenas pediu a Tessio:
— Diga a Fanucci que lhe pagarei o dinheiro aqui em minha casa às nove horas da noite. Vou ter de dar a ele um copo de vinho e falar, argumentar com ele para aceitar uma quantia menor.
Tessio balançou a cabeça.
— Você não vai ter muita sorte. Fanucci nunca recua.
— Vou argumentar com ele — retrucou Vito Corleone.
Isso se tornaria uma frase famosa nos anos vindouros. Tornar-se-ia o matraquear de advertência antes de um ataque mortal. Quando Corleone se tornou um Don e pedia aos adversário para se sentarem e argumentarem com ele, eles compreendiam que era a última oportunidade para resolverem uma questão sem derramamento de sangue e assassinato.
Vito Corleone falou com a mulher para descer com os dois filhos, Sonny e Fredo, para a rua depois da ceia e não permitir de modo algum que subissem, enquanto ele não lhe desse permissão. A mulher devia ficar de guarda na porta do apartamento. Ele tinha um negócio particular a resolver com Fanucci que não podia ser interrompido. Viu o ar de medo estampado no rosto da esposa e ficou zangado. Então disse calmamente a ela:
— Você pensa que casou com um idiota?
Ela não respondeu. Não respondeu porque estava com medo, agora não de Fanucci, mas de seu marido. Ele se estava transformando visivelmente ante seus olhos, hora a hora, num homem que irradiava uma força perigosa. Toda a vida fora calmo, falando pouco, mas sempre gentil, sempre sensato, o que era extraordinário num rapaz siciliano. O que ela estava vendo agora era a mudança de sua personalidade. Estava deixando de ser um joão-ninguém inofensivo para iniciar o seu próprio destino. Ele havia iniciado tarde, estava com 25 anos de idade, mas devia iniciar com vigor.
Vito Corleone tinha resolvido matar Fanucci. Fazendo isso, ele teria mais setecentos dólares em caixa. Os trezentos dólares que ele próprio teria de pagar ao terrorista da Mão Negra, os duzentos de Tessio e os duzentos de Clemenza. Se não matasse Fanucci, teria de pagar ao homem setecentos dólares ali na bucha. Fanucci vivo não valia para ele essa importância. Não pagaria setecentos dólares para manter Fanucci vivo. Se Fanucci precisasse de setecentos dólares para uma operação, a fim de salvar a vida, ele não daria a Fanucci o dinheiro para pagar ao cirurgião. Não tinha nenhuma dívida de gratidão com Fanucci, eles não eram parentes consangüíneos, ele não gostava de Fanucci. Por que, então, devia dar a Fanucci setecentos dólares?
E seguia-se inevitavelmente que, desde que Fanucci desejava tomar setecentos dólares dele à força, por que não devia matar Fanucci? Certamente o mundo podia passar sem tal indivíduo.
Havia naturalmente alguns motivos práticos. Fanucci podia na verdade ter amigos poderosos que procurariam vingança. O próprio Fanucci era um homem perigoso, não tão fácil de ser morto. Havia a polícia e a cadeira elétrica. Mas Vito Corleone vivera sob uma sentença de morte desde o assassinato de seu pai. Menino ainda, com a idade de 12 anos, ele fugira de seus executores e cruzara o oceano para viver numa terra estranha, adotando um nome estranho. E anos de tranqüila observação o convenceram de que ele tinha mais inteligência e mais coragem do que outros homens, embora nunca tivesse tido a oportunidade de usar essa inteligência e essa coragem.
Contudo, Vito hesitava antes de dar esse primeiro passo em direção de seu destino. Chegou a juntar os setecentos dólares num único maço de notas e pôs o dinheiro no bolso lateral esquerdo das calças. Entretanto, no bolso do lado direito pôs o revólver que Clemenza lhe dera para usar no assalto do caminhão.
Fanucci chegou pontualmente às nove horas da noite. Vito Corleone colocou na mesa um jarro de vinho caseiro que Clemenza lhe dera.
Fanucci pôs seu chapéu branco sobre a mesa ao lado do jarro de vinho. Desapertou sua larga gravata multicolorida, com suas manchas de tomate camufladas pelos desenhos brilhantes. A noite de verão era quente, a luz de gás, fraca. O apartamento estava bastante sossegado. Mas Vito Corleone se achava gelado. Para mostrar sua boa fé entregou o maço de notas a Fanucci e observou cuidadosamente como este, depois de contá-las, tirou do bolso uma carteira larga de couro e meteu o dinheiro lá dentro. Fanucci bebeu um gole de vinho e disse:
— Você ainda me deve duzentos dólares.
O seu rosto de sobrancelhas cerradas estava inexpressivo.
Vito Corleone respondeu com sua voz fria moderada:
— Estou um pouco sem dinheiro, estou desempregado. Vou ficar devendo o dinheiro por algumas semanas.
Isso era uma desculpa admissível. Fanucci recebera o grosso do dinheiro e esperaria. Ele podia até ser persuadido a não receber mais nada ou a esperar um pouco mais. Exultou com o vinho e disse:
— Ah, você é um rapaz esperto. Como é que nunca dei atenção a você antes? Você é um sujeito muito sossegado para o que pode fazer. Eu poderia encontrar algum trabalho para você fazer que seria muito lucrativo.
Vito Corleone mostrou seu interesse com um delicado aceno de cabeça e encheu o copo de Fanucci despejando o vinho do jarro. Mas Fanucci pensou melhor no que ia dizer e se levantou da cadeira apertando a mão de Vito.
— Boa noite, rapaz — disse ele — Nada de ressentimentos, hem? Se eu puder prestar algum serviço a você, é só me avisar. Você saiu-se muito bem esta noite.
Vito deixou Fanucci descer as escadas e sair do prédio. A rua estava apinhada de testemunhas para mostrar que ele deixara a casa de Corleone são e salvo. Vito observava da janela. Viu Fanucci dobrar a esquina na direção da 11ª Avenida e sabia que ele se encaminhava para o seu apartamento, provavelmente para guardar o dinheiro antes de sair para a rua novamente. Talvez para guardar a sua arma. Vito Corleone deixou o seu apartamento e subiu as escadas para o telhado. Percorreu o bloco quadrado de telhados e desceu as escadas da saída de incêndio de um sótão vazio que o deixou no quintal do prédio. Abriu a porta dos fundos a pontapés e atravessou a porta da frente. Do outro lado da rua era o edifício de apartamentos de Fanucci.
Os prédios residenciais se estendiam para oeste somente até a 11ª Avenida. A 11ª Avenida era constituída principalmente de armazéns e sótãos alugados pelas firmas que faziam embarques pela Ferrovia Central de Nova York, a fim de ter acesso mais fácil aos vários pátios de carga existentes entre a 11ª Avenida e o Rio Hudson. O edifício de apartamentos de Fanucci era um dos poucos situados na zona deserta, sendo ocupado principalmente por ferroviários solteiros, trabalhadores dos pátios e as prostitutas mais baratas. Essas pessoas não se sentavam na rua e conversavam como os italianos honestos, sentavam-se nos botequins bebendo o seu salário. Assim, Vito Corleone achou muito fácil atravessar sorrateiramente a deserta 11ª Avenida e entrar no vestíbulo do edifício de apartamentos de Fanucci. Ali sacou a arma com a qual nunca havia disparado e esperou Fanucci.
Vito observava através da porta de vidro do vestíbulo, sabendo que Fanucci viria descendo a 10ª Avenida. Clemenza lhe mostrara a segurança da arma e ele apertara o gatilho com ela descarregada. Mas quando ainda menino, na Sicília, com a tenra idade de 9 anos, ele fora caçar algumas vezes com o pai, tinha atirado com uma pesada espingarda chamada lupara. Foi a sua habilidade com a lupara, mesmo quando ainda menino, que lhe acarretara a sentença de morte imposta pelos assassinos de seu pai.
Esperando agora no vestíbulo escuro, Vito viu o chapéu branco de Fanucci atravessar a rua na direção da entrada do edifício. Deu uns passos para trás, os ombros comprimidos contra a porta interna que dava para a escada. Segurava a arma em posição de disparar. A sua mão estendida estava apenas a dois passos da porta externa. A porta girou para dentro. Fanucci, branco, largo, cheiroso, ocupava o quadrado da luz. Vito Corleone atirou.
A porta aberta fez uma parte do som escapar para a rua, o resto da explosão da arma abalou o edifício. Fanucci estava segurando os lados da porta, procurando manter-se ereto, tentando alcançar sua arma. A força de sua luta arrancara os botões de seu paletó e fê-lo balançar solto. A sua arma estava exposta, mas exposta estava também a mancha araneiforme vermelha na frente da camisa branca, na altura do estômago. Com muito cuidado, como se estivesse mergulhando uma agulha numa veia, Vito Corleone disparou o segundo tiro naquela teia vermelha.
Fanucci caiu de joelhos, escorando a porta aberta. Soltou um gemido terrível, e esse gemido, denotando grande sofrimento físico, pareceu a Vito quase cômico. Continuou a dar esses gemidos; Vito lembrou-se de ter ouvido pelo menos três deles antes de encostar a arma na face suada e gordurosa de Fanucci e atirar no seu crânio. Não se passaram mais de cinco segundos para que Fanucci tombasse morto, obstruindo a porta aberta com seu corpo.
Com muito cuidado, Vito tirou a carteira do bolso do paletó do morto e colocou-a dentro de sua camisa. Depois, atravessou a rua para a casa de sótão, daí para o quintal e subiu pela saída de incêndio até o telhado. Lá de cima, deu uma olhada para a rua. O corpo de Fanucci estava ainda estendido na entrada do prédio, mas não havia sinal de qualquer outra pessoa. Duas janelas foram levantadas no edifício, e ele pôde ver cabeças pretas movendo-se para fora, mas desde que não podia distinguir as feições das pessoas, elas certamente também não podiam distinguir as suas. E esses homens não dariam qualquer informação à polícia. Fanucci deveria ficar ali até amanhecer ou até que, um rondante encontrasse o corpo. Nenhuma pessoa daquela casa deliberadamente se exporia à suspeita ou interrogatório da polícia. Elas trancariam as suas portas e fingiriam que não tinham ouvido coisa alguma.
Vito podia aproveitar bem o seu tempo. Andou por cima dos telhados até chegar à porta do seu próprio telhado e desceu para o seu apartamento. Abriu a porta, entrou e tomou a fechá-la atrás de si. Examinou a carteira do morto. Além dos setecentos dólares que dera a Fanucci, havia apenas algumas notas de um dólar e uma de cinco dólares.
Enfiada num cantinho da carteira havia uma moeda de ouro antiga de cinco dólares, provavelmente uma mascote. Se Fanucci fosse um gangster rico, certamente não traria consigo sua riqueza. Isso confirmou algumas das suspeitas de Vito.
Ele sabia que tinha de livrar-se da carteira e da arma (sabendo muito, bem mesmo, então, que devia deixar a moeda de ouro na carteira). Subiu novamente até o telhado e percorreu algumas sacadas. Atirou a carteira para uma passagem de ar e depois tirou as balas da arma e bateu com o seu cano na sacada do telhado, O cano do revólver não quebrou. Ele virou a arma em sua mão e bateu com a coronha no lado de uma chaminé. A coronha partiu-se em duas metades. Ele bateu novamente e o revólver quebrou-se em cano e coronha, duas peças separadas. Atirou cada parte numa passagem de ar diferente. Não fizeram barulho quando atingiram o solo cinco andares abaixo, mas afundaram no monte de lixo acumulado ali. Pela manhã, mais lixo seria atirado ali pelas janelas e, com sorte, cobriria tudo. Vito voltou para o seu apartamento.
Vito tremia um pouco, mas estava completamente controlado. Mudou a roupa e, receando que houvesse algum salpico de sangue nela, jogou-a numa tina de metal que sua mulher usava para lavar roupa. Apanhou lixívia e sabão escuro grosseiro para pôr de molho a roupa e esfregou-a com a peça especial de metal embaixo da pia. Depois esfregou a tina e a pia com lixívia e sabão. Achou uma trouxa de roupa recém-lavada no canto do quarto de dormir, com a qual misturou sua roupa. Em seguida, vestiu uma camisa e calças limpas e desceu para juntar-se à mulher e aos filhos e vizinhos em frente da moradia.
Todas essas precauções foram inteiramente desnecessárias. A polícia, depois de descobrir o cadáver ao amanhecer, nunca interrogou Vito Corleone. Na verdade ele ficou espantado de que a polícia nada soubesse a respeito da visita de Fanucci à sua casa na noite em que ele foi mortalmente baleado. Tinha contado com isso para um álibi, Fanucci deixando o seu apartamento vivo. Soube apenas depois que a polícia estava satisfeitíssima com o assassinato de Fanucci e não se preocupava em perseguir os assassinos. A polícia supunha que fosse outra execução de alguma quadrilha, e interrogara os maus elementos com ficha de extorsionários e cara de valentes. Como Vito nunca se havia metido em encrenca, jamais despertou qualquer suspeita.
Mas se ele havia ludibriado a polícia, o mesmo não acontecia com relação a seus parceiros. Peter Clemenza e Tessio o evitaram nas duas semanas seguintes, depois vieram visitá-lo uma noite. Vieram com óbvio respeito. Vito Corleone saudou-os com uma cortesia impassível e serviu-lhes vinho.
Clemenza falou primeiro. Disse brandamente:
— Ninguém está cobrando dos comerciantes da Nona Avenida. Ninguém está cobrando dos jogos de cartas e outros jogos de azar da redondeza.
Viro Corleone olhou para os dois homens com firmeza, mas não respondeu.
— Podíamos tomar os fregueses de Fanucci — acrescentou Tessio — Eles nos pagariam.
Vito Corleone deu de ombros.
— Por que vir a mim? Não tenho interesse nessas coisas.
Clemenza deu uma gargalhada. Mesmo em sua juventude, antes que a sua enorme barriga crescesse, ele tinha a gargalhada de um gorducho. Perguntou então a Vito Corleone:
— Onde está aquela arma que lhe dei para o serviço do caminhão? Como você não vai precisar mais dela, pode devolvê-la a mim.
Lenta e calculadamente, Vito Corleone tirou uma bolada de notas de seu bolso lateral e destacou cinco notas de dez dólares.
— Tome aqui, eu lhe pago a arma. Joguei-a fora depois do serviço do caminhão.
Ele sorriu para os dois homens.
Por essa época Vito Corleone não conhecia o efeito enregelante de seu sorriso. Ele sorriu como se tivesse dito alguma piada particular que somente ele mesmo pudesse compreender. Mas como sorria desse modo somente em assuntos mortais, e como a piada não era realmente particular e como seus olhos não sorriam, e como sua personalidade externa era geralmente tão sensata e calma, o desmascaramento repentino de seu verdadeiro ego era assustador.
Clemenza balançou a cabeça.
— Não quero o dinheiro — retrucou.
Vito meteu as notas no bolso. E esperou. Eles todos se entendiam uns aos outros. Sabiam que ele matara Fanucci, e embora jamais houvessem falado sobre isso a qualquer pessoa, toda a redondeza, em poucas semanas, também sabia. Vito Corleone era tratado como um “homem de respeito” por todo mundo. Mas não fez qualquer tentativa para tomar conta das extorsões e tributos cobrados pelo falecido Fanucci.
O que se seguiu então foi inevitável. Uma noite, a mulher de Vito trouxe uma vizinha, uma viúva, ao apartamento. A mulher era italiana e de caráter inatacável. Trabalhava arduamente para manter um lar para os seus filhos sem pai. O filho de 16 anos de idade trazia para casa o seu envelope de pagamento lacrado, para entregar a ela no estilo da velha Itália; a filha de 17 anos, que era costureira, fazia o mesmo. Toda a família pregava botões em cartões, à noite, a preço por peça de trabalho de escravo. O nome da mulher era Signora Colombo.
A mulher de Vito Corleone falou:
— A signora tem um favor a pedir a você. Ela está tendo alguma dificuldade.
Vito Corleone esperava que a mulher lhe pedisse algum dinheiro, o que ele estava disposto a dar. Mas parece que a Sra. Colombo possuía um cachorro que o seu filho caçula adorava. O senhorio recebera queixas contra o fato de o cachorro latir à noite e dissera à Sra. Colombo para se livrar do animal. Ela fingira fazer isso. O senhorio descobrira que ela o enganara e lhe havia ordenado que desocupasse o apartamento. A mulher prometera dessa vez livrar-se realmente do cachorro e havia feito isso. Mas o senhorio estava tão zangado que não queria revogar a ordem. Ela teria de sair ou a polícia seria chamada para pô-la para fora. E o seu pobre menino tinha chorado muito quando eles deram o cachorro a parentes que viviam em Long Island. Assim, por um nada, eles perderiam o seu lar.
Vito Corleone perguntou gentilmente à mulher:
— Por que a senhora me pede para ajudá-la?
A Sra. Colombo apontou para a esposa dele.
— Ela me disse para pedir ao senhor.
Ele ficou surpreso. Sua mulher nunca o interrogara sobre a roupa que ele lavara na noite em que matara Fanucci. Nunca lhe perguntara de onde vinha todo o dinheiro quando ele não estava trabalhando. Mesmo agora o seu rosto estava impassível. Vito disse para a Sra. Colombo:
— Posso dar-lhe algum dinheiro para ajudá-la a mudar-se, se é isso o que a senhora quer.
A mulher balançou a cabeça, chorando.
— Todas as minhas amigas estão aqui, todas as meninas com quem eu cresci na Itália. Como posso me mudar para outro lugar onde só há estranhos? Quero que o senhor fale com o senhorio para deixar que eu fique aqui.
Vito acenou com a cabeça.
— Está feito, então. A senhora não terá de se mudar. Falarei com ele amanhã de manhã.
A sua mulher deu-lhe um sorriso que ele não conhecia, mas que sentiu satisfação em receber. A Sra. Colombo parecia um pouco em dúvida.
— Tem certeza de que o senhorio vai concordar? — perguntou ela.
— O Signor Roberto? — Vito perguntou com uma voz de surpresa — Com certeza, ele dirá “sim”. Ele é um sujeito de bom coração. Assim que eu explicar o que acontece com a senhora ele ficará com pena de sua desgraça. Agora deixe de se preocupar com isso. Não fique tão transtornada. Poupe a sua saúde, para o bem de seus filhos.
O senhorio, Sr. Roberto, vinha ao local todo dia para inspecionar os cinco conjuntos de moradias que ele possuía. Ele era um padrone, um homem que vendia trabalhadores italianos recém-chegados para as grandes companhias. Um homem educado do Norte da Itália, sentia apenas desprezo por esses sulistas analfabetos da Sicília e de Nápoles que pululavam como vermes pelos seus prédios, que atiravam lixo nas áreas internas, que deixavam as baratas e os ratos roerem as suas paredes sem sequer levantarem a mão para preservarem a propriedade dele. Não era um homem mau, era um bom marido e pai, mas tinha constante preocupação a respeito de seus investimentos, a respeito do dinheiro que ele ganhava, a respeito das despesas inevitáveis decorrentes do fato de ser ele um homem de propriedade, que tinha reduzido os seus nervos a frangalhos, de forma que vivia num constante estado de irritação. Quando Vito Corleone o deteve na rua para pedir-lhe que o ouvisse por um minuto, o Sr. Roberto foi frio, mas não rude, pois qualquer um desses sulistas podia enfiar uma faca no indivíduo que o irritasse, embora esse rapaz parecesse ser um sujeito calmo.
— Signor Roberto — disse Vito Corleone — A amiga de minha mulher, uma viúva pobre sem um homem para protegê-la, contou-me que por algum motivo recebeu ordem para se mudar do seu apartamento no edifício de propriedade do senhor. Ela está desesperada. Não tem dinheiro, não tem amigas, a não ser as que vivem aqui. Eu disse a ela que falaria com o senhor, que o senhor é um homem sensato que agiu assim por algum mal-entendido. Ela livrou-se do animal que causou toda a confusão e, assim, por que não deve ela ficar? De um italiano para outro, peço ao senhor que atenda ao favor.
O Signor Roberto estudava o homem postado diante de si. Viu um tipo de estatura média, mas de constituição forte, um camponês, mas não um bandido, embora ele tão irrisoriamente tivesse ousado chamar-se de italiano. O senhorio deu de ombros.
— Já aluguei o apartamento a outra família por um preço mais alto — retrucou — Não posso decepcionar essa família em benefício de sua amiga.
Vito Corleone acenou com a cabeça numa compreensão razoável.
— Quanto mais por mês? — perguntou ele.
— Cinco dólares — respondeu o Sr. Roberto.
Isso era mentira. O apartamento ferroviário, com quartos escuros, era alugado por doze dólares por mês à viúva, e o Sr. Roberto não conseguiria arrancar mais do que isso do novo inquilino.
Vito Corleone tirou um maço de notas do bolso e destacou três notas de dez dólares.
— Aqui está o aumento de seis meses adiantado. O senhor não precisa falar com ela sobre isso, ela é uma mulher orgulhosa. Procure-me dentro de seis meses. Mas naturalmente o senhor deixará que ela fique com o cachorro.
— Não me diga — retrucou o Sr. Roberto — E quem diabo é você para me dar ordens! Tome cuidado com os seus modos ou você será obrigado a voltar a andar no seu burrinho lá nas ruas da Sicília.
Vito levantou as mãos surpreso.
— Estou apenas pedindo isso. Nunca se sabe quando se vai precisar de um amigo, não é verdade? Receba esse dinheiro como sinal de minha boa vontade e tome a sua própria decisão. Eu não me atreveria a brigar por causa disso — meteu o dinheiro na mão do Sr. Roberto — Faça-me esse pequeno favor, receba o dinheiro e pense no assunto. Amanhã de manhã, se o senhor quiser devolver o dinheiro, por quem é, faça-o. Se o senhor quiser a mulher fora de sua casa, como posso impedir o senhor? Afinal de contas, a propriedade é sua. Se o senhor não quer o cachorro lá, eu compreendo. Eu mesmo não gosto de animais — bateu de leve no ombro do Sr. Roberto — Faça-me esse serviço, sim? Não esquecerei isso. Informe-se com seus amigos da redondeza sobre mim, eles lhe dirão que sou um homem que sabe mostrar sua gratidão.
Mas naturalmente o Sr. Roberto já começara a compreender. À tardinha, ele fez suas investigações sobre Vito Corleone. Não esperou até a manhã seguinte. Bateu na porta de Corleone naquela mesma noite, desculpando-se pelo adiantado da hora, e aceitou um copo de vinho oferecido pela Signora Corleone. Assegurou a Vito Corleone que tudo tinha sido um horrível mal-entendido, que naturalmente a Signora Colombo podia continuar no apartamento e naturalmente podia ficar com o cachorro. Quem eram esses miseráveis inquilinos para se queixarem do barulho de um pobre animal, quando pagavam um aluguel tão baixo? No fim, puxou os trinta dólares que Vito Corleone lhe tinha dado e os pôs sobre a mesa dizendo da maneira mais sincera:
— A sua bondade em ajudar essa pobre viúva me envergonhou e desejo mostrar que eu também pratico a caridade cristã. O aluguel dela continuará a ser o que era.
Todos os interessados desempenharam essa comédia com perfeição. Vito serviu mais vinho, pediu à mulher que trouxesse bolos, apertou a mão do Sr. Roberto e elogiou o seu boníssimo coração. O Sr. Roberto suspirou e respondeu que ter travado conhecimento com um homem como Vito Corleone restituía-lhe a fé na natureza humana. Finalmente, separaram-se efusivamente um do outro. O Sr. Roberto, com os nervos em pandarecos por ter escapado por um triz, pegou o bonde para a sua casa no Bronx e foi dormir. Só reapareceu no local três dias depois.
Vito Corleone era agora um “homem de respeito” nas redondezas. Era reputado como sendo um membro da Máfia da Sicília. Um dia, um homem que mantinha jogos de cartas num quarto mobiliado veio a ele e voluntariamente começou a pagar-lhe vinte dólares por semana pela sua “amizade”. Vito tinha apenas de visitar o jogo uma ou duas vezes por semana para que os jogadores compreendessem que estavam sob sua proteção.
Os comerciantes que tinham problemas com rapazes desordeiros pediam-lhe para intervir. Ele assim fazia e era convenientemente recompensado. Logo passou a ter renda, enorme para a época e o lugar, de cem dólares por semana. Desde que Clemenza e Tessio eram seus amigos, seus aliados, Vito tinha de dar a cada um deles parte do dinheiro, mas isso ele fazia sem que lhe pedissem. Finalmente resolveu entrar no negócio de importação de azeite com seu companheiro de infância, Genco Abbandando. Genco cuidaria do negócio, da importação do azeite da Itália, da compra ao preço adequado, da armazenagem no estabelecimento do pai. Clemenza e Tessio seriam os vendedores. Iriam a todas as mercearias italianas de Manhattan, em seguida às do Brooklyn, depois às do Bronx, para persuadir os merceeiros a estocar o azeite Genco Pura (com sua modéstia típica, Vito Corleone recusou-se a dar o seu próprio nome à marca do produto). Vito naturalmente seria o chefe da firma desde que estava fornecendo a maior parte do capital. Também seria chamado em casos especiais em que merceeiros resistissem às conversas de venda de Clemenza e Tessio. Então Vito Corleone usaria os seus próprios poderes de persuasão.
Durante os anos seguintes, Vito Corleone levou a vida plenamente satisfatória de um pequeno comerciante inteiramente dedicado a consolidar sua empresa comercial numa economia dinâmica e em expansão. Ele era um pai e marido dedicado, mas tão ocupado que não podia devotar muito de seu tempo à família. À proporção que o azeite Genco Pura se tornava o óleo italiano importado mais vendido na América, a sua organização expandia-se rapidamente. Como qualquer bom negociante, começou a compreender os benefícios de suplantar os concorrentes vendendo por preço mais baixo, dificultando-lhes a distribuição por persuadir os merceeiros a estocar menos das marcas deles. Como qualquer bom negociante, Vito visava a conseguir um monopólio forçando os concorrentes a abandonar o campo ou fundir-se com a sua própria companhia. Contudo, desde que se iniciara relativamente fraco, economicamente, desde que não acreditava na publicidade, confiando apenas na palavra falada, e desde que, para dizer a verdade, seu azeite não era melhor do que o dos seus competidores, ele não podia usar os golpes decisivos comuns dos negociantes legítimos. Tinha de confiar na força de sua própria personalidade e na sua reputação de “homem de respeito”.
Embora sendo um homem moço, Vito Corleone tornou-se conhecido como um “homem sensato”. Nunca pronunciava uma ameaça. Sempre usava a lógica, que era realmente irresistível. Sempre assegurava que o outro cara teria a sua parte de lucro. Ninguém perdia. Ele fazia isso, naturalmente, por meios óbvios. Como muitos negociantes de gênio, ele entendia que a concorrência livre era ruinosa, o monopólio era eficiente. E assim simplesmente procurava conseguir esse monopólio eficiente. Havia atacadistas de azeite, no Brooklyn, homens de temperamento irritável, teimosos, contrários à razão, que se recusavam a perceber, a reconhecer, a visão de Vito Corleone, mesmo depois que ele tinha explicado tudo a eles com a maior paciência e os mínimos detalhes. Com esses homens, Vito Corleone levantava os braços em desespero e mandava Tessio ao Brooklyn para instalar o quartel-general e resolver o problema. Armazéns eram incendiados, caminhões carregados de azeite eram propositadamente tombados e o líquido oleoso se espalhava formando lagos nas ruas calçadas do cais. Um homem impetuoso, um milanês arrogante com mais fé na polícia do que um santo tinha em Cristo, realmente procurara as autoridades para apresentar queixa contra seus compatriotas italianos, infringindo a lei de dez séculos da omertà. Mas antes que a questão pudesse ir um pouco adiante, o atacadista desapareceu, para nunca mais ser visto, abandonando sua dedicada esposa e três filhos, que, graças a Deus, já estavam bem crescidos e em condições de tomar conta do negócio e chegar a um acordo com a Companhia de Azeite Genco Pura.
Mas os grandes homens não nascem grandes, tornam-se grandes, e era isso o que acontecia com Vito Corleone. Quando a Lei Seca foi aprovada e o álcool proibido de ser vendido, Vito Corleone deu o passo final de um negociante tipicamente comum, um tanto cruel, para se tornar um grande Don no mundo do empreendimento criminoso. Não aconteceu num dia, não aconteceu num ano, mas, no fim do período da Lei Seca e começo da Grande Depressão, Vito Corleone se tornara o Padrinho, o Don, Don Corleone.
Isso começou de modo bem casual. Nessa época, a Companhia de Azeite Genco Pura tinha uma frota de seis caminhões de entrega. Por intermédio de Clemenza, Vito Corleone entrou em contato com um grupo de contrabandistas italianos que traziam bebidas alcoólicas e uísque do Canadá. Precisavam de caminhões e entregadores para distribuir seu produto em Nova York. Entregadores que fossem de confiança, discretos e tivessem alguma determinação e força. Queriam pagar a Vito Corleone pela utilização de seus caminhões e de seus homens. A remuneração era tão grande que Vito Corleoiie reduziu drasticamente seu negócio de azeite para usar os caminhões quase exclusivamente para o serviço dos contrabandistas de bebidas. Isso a despeito do fato de que esses cavalheiros tinham feito a sua oferta acompanhada de uma ameaça delicada. Mas mesmo então Vito Corleone era um homem tão circunspecto que não se considerou insultado com a ameaça, nem se zangou, tam pouco recusou uma oferta bastante lucrativa por causa disso. Avaliou a ameaça, achou-a pouco convincente, e o seu conceito dos seus novos parceiros baixou porque eles tinham sido tão estúpidos para usar ameaças onde não havia a menor necessidade. Isso era uma informação útil a ser ponderada no devido momento.
Ele prosperou novamente. Porém, mais importante ainda, adquiriu conhecimento, contatos e experiência. E acumulou boas ações como um banqueiro acumula valores mobiliários. Pois nos anos seguintes ficou claro que Vito Corleone não era apenas um homem de talento, mas, a seu modo, um gênio.
Tornou-se o protetor das famílias italianas que se estabeleciam com pequenos bares clandestinos em suas próprias casas, vendendo uísque a quinze centavos o copo a trabalhadores solteiros. Tornou-se padrinho do filho caçula da Sra Colombo quando o menino recebeu a crisma e deu um belo presente de uma moeda de ouro de vinte dólares. Entrementes, desde que era inevitável que alguns dos seus caminhões fossem detidos pela polícia, Genco Abbandando contratou um excelente advogado com muitos elementos de contato no Departamento da Polícia e no Judiciário. Um sistema de gratificações foi estabelecido e logo a organização Corleone passou a ter uma “folha” enorme, a lista de funcionários habilitados a receber uma quantia mensal. Quando o advogado procurou reduzir a lista, alegando a grande despesa, Vito Corleone tranqüilizou-o.
— Não, não — disse ele — Mantenha todo mundo nela, mesmo as pessoas que não nos podem ajudar agora. Acredito na amizade e quero mostrar a minha amizade primeiro.
À medida que o tempo passava, o império de Corleone se tornava maior, mais caminhões eram agregados à frota, a “folha” se tornava maior. Também os homens que trabalhavam diretamente para Tessio e Clemenza aumentavam em número. Toda a coisa estava se tornando difícil de controlar. Finalmente Vito Corleone concebeu um sistema de organização.
Deu a Clemenza e Tessio, isto é, a cada um dos dois, o título de caporegime, ou capitão, e aos homens que trabalhavam sob as ordens deles a graduação de soldados. Designou Genco Abbandando seu conselheiro, ou consigliori. Pôs camadas de isolamento entre ele mesmo e qualquer ato operacional. Quando dava uma ordem era a Genco ou a um dos seus caporegimes a sós. Raramente tinha testemunha para ouvir qualquer ordem que ele desse a qualquer um deles. Depois separou o grupo de Tessio e o fez responsável pelo Brooklyn. Mais tarde também separou Tessio de Clemenza e tornou claro com o decorrer dos anos que não queria que os dois homens se ligassem nem sequer socialmente, a não ser quando absolutamente necessário. Explicou isso ao mais inteligente, Tessio que compreendeu imediatamente a intenção de Corleone embora este explicasse a coisa como sendo uma medida de segurança contra a lei. Tessio compreendeu que Vito não queria que os seus dois caporegimes tivessem oportunidade de conspirar contra ele, embora também compreendesse que não havia má vontade nisso, era apenas uma precaução tática. Em troca, Vito deu a Tessio plena liberdade de ação no Brooklyn, enquanto conservava o feudo do Bronx, de Clemenza, muito mais sob o seu próprio domínio. Clemenza era o homem mais valente, mais arrojado, mais cruel, apesar de sua jovialidade externa, e precisava de um controle mais severo.
A Grande Depressão aumentou o poder de Vito Corleone. E na verdade foi por essa época que ele passou a ser chamado de Don Corleone. Em todas as partes da cidade, homens honestos solicitavam trabalho honesto em vão. Homens orgulhosos rebaixavam a si mesmos e as suas famílias para aceitarem a caridade oficial de um funcionalismo insolente. Mas os homens de Don Corleone andavam pelas ruas de cabeça erguida, com os bolsos abarrotados de dinheiro. Sem qualquer medo de perder o emprego. E até Don Corleone, o mais modesto dos homens não podia deixar de sentir um pouco de orgulho. Ele estava cuidando de seu mundo, seu povo. Não havia faltado àqueles que dependiam dele e que lhe deram o suor do seu rosto, arriscaram sua liberdade e sua vida trabalhando para ele. E quando um empregado dele era preso e mandado para a prisão por qualquer infortúnio a família desse homem recebia uma mesada e não era uma esmola — miserável, mesquinha — dada de má vontade mas a mesma quantia que o homem ganhava quando solto.
Isso naturalmente não era pura caridade cristã. Nem seus melhores amigos chamariam Don Corleone de um santo do céu. Havia um interesse oculto nessa generosidade. Um empregado mandado à prisão sabia que tinha apenas de manter-se calado para que a sua mulher e filhos recebessem os cuidados necessários. Sabia que se não informasse à polícia seria calorosamente recebido quando saísse da prisão. Haveria uma festa esperando por ele em sua casa, a melhor comida, ravióli, vinho e pastéis, tudo feito em casa, com todos os amigos e parentes reunidos para festejar a sua libertação. E às vezes durante a noite o consigliori Genco Abbandando, ou talvez o próprio Don Corleone, fazia uma rápida visita para apresentar os seus respeitos a esse homem tão corajoso, tomava um copo de vinho em sua honra e deixava um belo presente em dinheiro, a fim de que ele pudesse gozar uma semana ou duas de folga com a família antes de retornar à sua faina diária. Tal era a infinita piedade e compreensão de Don Corleone.
Foi por essa época que Don Corleone concebeu a idéia de que dirigia o seu mundo muito melhor do que os seus inimigos dirigiam o mundo maior que continuamente obstruía o seu caminho. E esse sentimento era alimentado também pela gente pobre da redondeza que constantemente lhe vinha pedir ajuda. Para conseguir um auxílio da previdência social, arranjar emprego para um rapaz ou tirar outro da cadeia, para tomar emprestada uma soma de dinheiro desesperadamente necessitada, para intervir junto aos senhorios que contra todas as razões exigiam aluguel dos inquilinos desempregados.
Don Vito Corleone ajudava todos eles de boa vontade, com palavras de estímulo para tirar o gosto amargo da caridade que lhes fazia. Era portanto natural que quando esses italianos estavam atrapalhados ou confusos sobre quem votar para representá-los no legislativo estadual, nos cargos municipais, no Congresso, pedissem o conselho do amigo Don Corleone, Padrinho deles. E assim ele se tomou um poder político a ser consultado pelos chefes de partido práticos. Consolidou esse poder com uma inteligência de estadista de longo alcance; ajudando rapazes brilhantes de famílias italianas a freqüentar faculdades, rapazes que se tornariam advogados, promotores públicos e até juízes. Planejava o futuro do seu império com toda a previsão de um grande líder nacional.
A revogação da Lei Seca representou um golpe tremendo para o seu império, mas outra vez ele tomara suas precauções. Em 1933, enviou emissários para o homem que controlava todas as atividades de jogo de Manhattan, o jogo de dados nas docas, a agiotagem, a aceitação de apostas clandestinas em esportes e corridas de cavalos, as casas que mantinham o jogo de pôquer; a política ou a extorsão das fábricas de roupas feitas do Harlem. O nome desse homem era Salvatore Maranzano, sendo ele um dos reconhecidos pezzonovanti, chefões, figurões do submundo de Nova York. Os emissários de Corleone, com sua organização, sua política e contatos políticos, podiam dar às operações de Maranzano uma proteção vigorosa e a nova força de expandir-se pelo Brooklyn e pelo Bronx. Mas Maranzano era um homem de pouca visão e rejeitou a proposta de Corleone com desprezo. O grande Al Capone era amigo de Maranzano, e ele tinha a sua própria organização, os seus próprios homens, mais um enorme aparelhamento bélico. Não daria confiança a esse impostor cuja reputação era mais de um negociador do que de um verdadeiro mafioso. A recusa de Maranzano desencadeou a grande guerra de 1933 que mudaria toda a estrutura do submundo de Nova York.
À primeira vista, parecia uma luta desigual. Salvatore Maranzano tinha uma organização poderosa e capangas bem treinados. Mantinha amizade com Capone em Chicago e podia pedir ajuda nesse setor. Também mantinha relações com a Família Tattaglia, que controlava a prostituição na cidade e o que havia do fraco tráfico de entorpecentes naquela época. Tinha igualmente contatos políticos com poderosos líderes dos negócios que utilizavam seus capangas para aterrorizar os sindicalistas judeus do setor de roupas feitas e os sindicatos anarquistas italianos dos operários de construção.
Contra isso, Don Corleone podia lançar dois pequenos, mas soberbamente organizados, regimes dirigidos por Clemenza e Tessio. Os seus contatos políticos e policiais seriam anulados pelos líderes dos negócios que suportariam Maranzano. Mas a seu favor estava a falta de informações do inimigo sobre a sua organização. O submundo ignorava a verdadeira força de seus soldados e até tinha sido enganosamente levado a pensar que Tessio, no Brooklyn, era uma operação separada e independente.
Entretanto, apesar de tudo isso, foi uma batalha desigual até que Vito Corleone equilibrou as coisas com um golpe de mestre.
Maranzano pediu a Capone que enviasse os seus dois melhores pistoleiros a Nova York para eliminar o impostor. A Família Corleone tinha amigos e informantes em Chicago que transmitiram a notícia de que os dois pistoleiros estavam chegando de trem. Vito Corleone despachou Luca Brasi para cuidar deles com instruções que deixariam à solta os seus instintos mais selvagens.
Brasi e sua gente, quatro de seus homens, receberam os pistoleiros de Chicago na estação ferroviária. Um dos homens de Brasi conseguiu um táxi, e, tomando o lugar do motorista, o conduziu para executar o serviço, em combinação com o carregador da estação, que, pegando a bagagem, levou os dois homens de Capone para esse táxi. Quando eles entraram no carro, Brasi e outro de seus homens entraram atrás dele, de armas em punho, e fizeram os dois pistoleiros de Chicago deitarem no chão do veículo. O táxi foi levado para um armazém perto das docas que Brasi tinha preparado para eles.
Os dois homens de Capone tiveram as mãos e os pés amarrados, e pequenas toalhas de enxugar mão foram metidas na boca dos dois para evitar que gritassem.
Então Brasi apanhou um machado que estava encostado na parede e começou a retalhar um dos homens de Capone. Cortou um dos pés arrancando-o, depois as pernas na altura dos joelhos, e em seguida as coxas, no lugar em que se uniam com o tronco. Brasi era um homem extremamente forte, mas teve de dar vários golpes com o machado para alcançar sua finalidade. Nessa altura, naturalmente, a vítima já tinha entregue a alma ao Criador e o chão do armazém estava escorregadio com os fragmentos talhados a machado de sua carne e os salpicos de sangue. Quando Brasi se voltou para a segunda vítima, verificou já ser desnecessário qualquer esforço. O segundo pistoleiro de Capone, aterrorizado, havia incrivelmente engolido a toalha de mão e se sufocado. A toalha foi encontrada no estômago do homem quando a polícia fez a autópsia para determinar a causa da morte.
Alguns dias depois, em Chicago, Capone recebeu uma mensagem de Vito Corleone. Dizia o seguinte: “Você sabe agora como eu trato os inimigos. Por que um napolitano tem de se meter numa briga entre sicilianos? Se você quer que eu o considere como amigo, eu lhe devo um serviço que pagarei quando for preciso. Um homem como você deve saber como é muito mais vantajoso ter um amigo que, em lugar de pedir ajuda a você, cuida de seus próprios negócios e está sempre pronto para ajudar você em algum momento futuro de dificuldade. Se você não deseja a minha amizade, assim seja. Mas então devo dizer-lhe que o clima nesta cidade é úmido, insalubre, para os napolitanos, sendo aconselhável que você nunca a visite”.
A arrogância desta carta era calculada. Don Corleone tinha o grupo de Capone em baixo conceito, considerando-os como assassinos estúpidos e óbvios. Seus informantes comunicaram-lhe que Capone perdera toda a influência política devido à sua arrogância pública e à ostentação de sua riqueza criminosa. Don Corleone sabia, de fato era positivo, que, sem influência política, sem a camuflagem da sociedade, o mundo de Capone e outros como ele seria facilmente destruído. Sabia que Capone estava a caminho da destruição. Sabia também que a influência de Capone não ultrapassava os limites de Chicago, por mais terrível e penetrante que essa influência pudesse ser.
A tática surtiu efeito. Não tanto devido à sua ferocidade, mas devido à rapidez fria, à instantaneidade da reação de Don Corleone. Se o seu serviço de informações era tão bom, qualquer passo que se tentasse dar estaria prenhe de perigo. Era melhor, mais prudente, aceitar a oferta de amizade com a sua implícita recompensa. O grupo de Capone respondeu que não se meteria na briga.
As coisas agora estavam equilibradas. E Vito Corleone conquistara um bocado de “respeito” em todo o submundo dos Estados Unidos com a humilhação do grupo de Capone. Durante seis meses, Don Corleone levou a melhor sobre Maranzano. Atacou os jogos de dados sob a proteção desse gangster, localizou o seu maior banqueiro político no Harlem e o “aliviou” do jogo de um dia, não somente em dinheiro, mas também em outras coisas. Brigou com os inimigos em todas as frentes. Mesmo no setor das roupas feitas, ele enviou Clemenza e seus homens para lutar do lado dos sindicalistas contra os capangas pagos por Maranzano e os donos das lojas de vestidos. E em todas as frentes seu eficiente serviço de informações e sua organização superior o tornaram vencedor. A ferocidade jovial de Clemenza, que Corleone empregava judiciosamente, também contribuía para virar a sorte da batalha. E então Don Corleone mandou o regime de Tessio, que estava sendo mantido na reserva, atacar o próprio Maranzano.
Nessa altura, Maranzano havia enviado emissários pedindo paz. Vito Corleone recusou-se a recebê-los, esquivando-se deles com base num ou noutro pretexto. Os soldados de Maranzano começaram a abandonar o líder por não desejarem morrer por uma causa perdida. Os bookmakers e agiotas passaram a pagar à organização Corleone a sua proteção. A guerra estava quase terminada.
Então, finalmente, na véspera de Ano Novo, em 1933, Tessio penetrou nas defesas do próprio Maranzano. Os lugares-tenentes de Maranzano estavam ansiosos para entrar em acordo e aceitaram em levar o chefe para o local de sacrifício. Disseram-lhe que tinham combinado uma reunião num restaurante do Brooklyn com Corleone e o acompanharam como guarda-costas. Deixaram-no sentado numa mesa axadrezada, mastigando lentamente um pedaço de pão, e fugiram do restaurante quando Tessio e quatro de seus homens entraram. A execução foi rápida e certeira. Maranzano, com a boca cheia de pão meio mastigado, foi crivado de balas.
A guerra terminara.
O império de Maranzano foi incorporado à organização de Corleone. Don Corleone estabeleceu um sistema de tributo, permitindo que todos os titulares permanecessem em seus lugares de bookmakers e controladores sindicais. Em compensação, passou a ter apoio nos sindicatos do setor de roupas feitas, o que nos anos vindouros se tornaria extremamente importante. E agora que havia resolvido seus negócios, Don Corleone viu-se às voltas com dificuldades domésticas.
Santino Corleone, Sonny, estava com 16 anos de idade e uma altura espantosa de 1,80m, ombros largos e um rosto grave e um tanto sensual, mas de modo algum afeminado. Porém, enquanto Fredo era um menino sossegado e Michael, naturalmente um fedelho, Santino estava constantemente metido em complicações. Vivia brigando na rua, era mau aluno na escola e, finalmente, Clemenza, que era o padrinho do rapaz e tinha o dever de falar, veio a Don Corleone uma noite e informou-o de que o filho tomara parte num assalto à mão armada, uma aventura estúpida que podia ter conseqüências bem desagradáveis. Sonny era obviamente o chefe do bando, sendo que os outros dois rapazes que participaram do assalto eram seus subordinados.
Foi uma das pouquíssimas vezes em que Vito Corleone perdeu as estribeiras. Tom Hagen já vivia em sua casa há três anos, e ele perguntou a Clemenza se esse rapaz órfão tinha-se envolvido no assalto. Clemenza balançou a cabeça negativamente. Don Corleone mandou um carro apanhar Santino e levá-lo ao seu escritório na Companhia de Azeite Genco Pura.
Pela primeira vez, Don Corleone enfrentava a derrota. Sozinho com o filho, deixou transbordar sua ira, xingando o grandalhão Sonny em dialeto siciliano, uma língua muito mais satisfatória do que qualquer outra para se expressar ira. Terminou perguntando:
— Que é que lhe deu o direito de cometer essa besteira? Que foi que fez você desejar cometer tal ato? — Sonny estava ali em pé, zangado, recusando-se, a responder. Don Corleone disse com desprezo — É tão estúpido. Que foi que vocês ganharam com essa noite de trabalho? Cinqüenta dólares cada um? Vinte dólares? Você arriscou sua vida por vinte dólares, hem?
Como se não tivesse ouvido estas últimas palavras, Sonny respondeu desafiadoramente:
— Eu vi você matar Fanucci.
— Ah, ah — retrucou Don Corleone, e voltou a afundar-se na poltrona, esperando.
— Quando Fanucci deixou o edifício — acrescentou Sonny — Mamãe disse que eu podia subir para casa. Vi você subir pelo telhado e segui você. Vi tudo o que você fez. Fiquei ali e vi você jogar fora a carteira e a arma.
Don Corleone suspirou.
— Bem, então não posso falar com você sobre como você tem de se comportar. Você não quer acabar a escola, você não quer ser advogado? Os advogados podem roubar mais dinheiro com uma pasta do que mil homens com armas e máscaras.
Sonny arreganhou os dentes para ele e disse manhosamente:
— Quero entrar no negócio da Família.
Quando viu que o rosto de Don Corleone continuava impassível, que ele não rira da piada, Sonny acrescentou prontamente:
— Quero aprender a vender azeite.
Don Corleone também não respondeu. Finalmente, deu de ombros.
— Todo homem tem um destino — sentenciou. Não acrescentou que o fato de o filho ter testemunhado o assassinato de Fanucci decidira o destino de Sonny. Ele apenas virou-se para o outro lado e falou calmamente — Venha amanhã às nove horas. Genco mostrará a você o que fazer.
Mas Genco Abbandando, com aquela intuição sagaz que um consigliori deve ter, compreendeu a verdadeira intenção de Don Corleone e passou a usar Sonny principalmente como guarda-costas do pai, uma posição na qual ele podia também aprender as sutilezas de ser um Don. E isso pôs em relevo o instinto professoral do próprio Don Corleone, que começou a dar ao filho mais velho preleções sobre como deveria sucedê-lo.
Além de repetir amiúde a teoria de que um homem tem apenas um destino, Don Corleone constantemente censurava Sonny pelas suas explosões temperamentais. Don Corleone considerava a utilização de ameaças como a mais tola atitude: o desencadeamento de raiva sem premeditação como a atitude habitual mais perigosa. Ninguém jamais ouvira Don Corleone pronunciar uma simples ameaça, ninguém jamais o vira numa raiva incontrolável. Era inconcebível. E assim ele procurava ensinar a Sonny suas próprias disciplinas. Alegava que não havia maior vantagem natural na vida do que ter um inimigo que sobrestimasse nossos defeitos, a não ser ter um amigo que subestimasse nossas virtudes.
O caporegime Clemenza tomou Sonny pela mão e ensinou-lhe a atirar e a manejar o garrote. Sonny não apreciava a corda italiana, ele era muito americanizado. Preferia o simples, direto, impessoal revólver anglo-saxão, o que entristecia Clemenza. Mas Sonny tornou-se um constante e agradável companheiro do pai, dirigindo o carro dele, ajudando-o nos pequenos detalhes. Nos dois anos seguintes, ele se parecia com qualquer filho que tivesse entrado no negócio do pai, nem muito brilhante, nem muito ansioso, contente por ter um trabalho leve.
Entrementes, seu companheiro de infância e irmão semi-adotivo Tom Hagen freqüentava a faculdade. Fredo estava ainda na escola secundária; Michael, o irmão menor, cursava a escola primária, e a irmãzinha Connie era um fedelho de quatro anos de idade. A família há muito se mudara para um edifício de apartamentos no Bronx. Don Corleone estava considerando a possibilidade de comprar uma casa em Long Island, mas queria enquadrar isso em outros planos que estava formulando.
Vito Corleone era um homem de visão. Todas as grandes cidades da América estavam travando uma luta tremenda no submundo. Guerrilhas rebentavam em toda parte, “maus elementos” ambiciosos procuravam arrancar para si um pedaço do império; homens como o próprio Corleone procuravam garantir as suas fronteiras e os seus negócios de extorsão. Don Corleone via que os jornais e as entidades governamentais estavam usando esses assassinatos para conseguir leis cada vez mais rigorosas, para empregar métodos policiais mais severos. Previu que a indignação pública podia até levar à suspensão do processo democrático, o que poderia ser fatal para ele e sua gente. Seu próprio império, internamente, se achava seguro. Ele resolveu estabelecer a paz entre todas as facções em guerra em Nova York e depois no país inteiro.
Não tinha ilusões sobre a periculosidade de sua missão. Passou o primeiro ano encontrando-se com os diferentes chefes das quadrilhas de Nova York, fundando os alicerces, sondando-os, propondo esferas de influência que seriam honradas por um conselho confederado voluntariamente ligado. Mas havia inúmeras facções, inúmeros interesses especiais que entravam em conflito. Um acordo era impossível. Como outros grandes governantes e legisladores da história, Don Corleone resolveu que a ordem e a paz eram impossíveis até que se reduzisse o número de Estados reinantes a uma quantidade controlável.
Havia cinco ou seis “Famílias” muito poderosas para serem eliminadas. Mas o resto — os terroristas da Mão Negra, os agiotas franco-atiradores, os bookmakers valentes que operavam sem a adequada, isto é, paga, proteção das autoridades legais — teria de desaparecer. E assim ele montou o que foi com efeito uma guerra colonial contra essa gente e lançou todos os recursos da organização Corleone contra ela.
A pacificação da área de Nova York levou três anos e teve algumas recompensas inesperadas. A princípio, tomou a forma de azar. Um grupo de assaltantes irlandeses enfurecidos, que Don Corleone marcara para ser exterminado, quase leva a melhor com um simples golpe de audácia. Por sorte, e com uma bravura suicida, um desses pistoleiros irlandeses furou o cordão de proteão de Don Corleone e deu-lhe um tiro no peito. O assassino foi imediatamente crivado de balas, mas o mal estava feito.
Contudo, isso deu a Santino Corleone sua oportunidade. Com o pai fora de ação, Sonny assumiu o comando de uma tropa, seu próprio regime, com o posto de caporegime, e como um jovem não-anunciado Napoleão mostrou a sua genialidade para a guerrilha urbana. Mostrou também uma crueldade impiedosa, cuja falta era o único defeito que se podia atribuir a Don Corleone como conquistador.
De 1935 a 1937, Sonny Corleone ganhou reputação como o mais astuto e implacável algoz que o submundo já conhecera. Contudo, no que diz respeito ao simples terror, mesmo ele foi eclipsado pelo homem pavoroso chamado Luca Brasi.
Foi Brasi que perseguiu o resto dos pistoleiros irlandeses e, sem ajuda de ninguém, eliminou todos eles. Foi Brasi, operando sozinho quando uma das seis poderosas Famílias procurou intrometer-se e tornar-se protetora dos independentes, que assassinou o chefe dessa Família como uma advertência. Pouco depois, Don Corleone restabeleceu-se de seu ferimento e fez a paz com essa Família.
Em 1937, a paz e a harmonia reinavam em Nova York, exceto no que dizia respeito a pequenos incidentes, pequenos mal-entendidos que eram, naturalmente, às vezes fatais.
Tal como os governantes das cidades antigas, que mantinham vigilância sobre as tribos bárbaras que rondavam seus muros, assim também Don Corleone mantinha um olhar atento sobre os negócios do mundo fora do seu. Notou a ascensão de Hitler, a queda da Espanha, a valentia da Alemanha contra a Inglaterra em Munique. Não se deixando ofuscar por esse mundo exterior, viu claramente a aproximação da guerra mundial e compreendeu suas implicações. Seu próprio mundo ficaria mais inexpugnável do que antes. Não somente isso, fortunas podiam ser feitas em tempo de guerra por gente esperta e de previsão. Mas para fazer isso, a paz devia reinar em seu domínio, enquanto a guerra campeava no mundo exterior.
Don Corleone levou sua mensagem através dos Estados Unidos. Conferenciou com compatriotas em Los Angeles, São Francisco, Cleveland, Chicago, Filadélfia, Miami e Boston. Ele era o apóstolo da paz do submundo e, em 1939, obtendo mais êxito do que qualquer papa, havia conseguido um acordo efetivo entre as mais poderosas organizações do submundo do país. Tal como a Constituição dos Estados Unidos, esse acordo respeitava plenamente a autoridade interna de cada membro em seu Estado ou cidade. O acordo abrangia apenas esferas de influência e um trato para garantir a paz no submundo.
E assim, quando a II Guerra Mundial irrompeu em 1939, quando os Estados Unidos entraram no conflito em 1941, o mundo de Vito Corleone estava em paz, em ordem, plenamente preparado para colher a safra de ouro em igualdade de condições com todas as outras indústrias da progressista América. A Família Corleone tinha seu domínio sobre o fornecimento, no câmbio negro, de cupões de racionamento de alimentos e de gasolina, e até prioridades para viagens. Podia ajudar a conseguir contratos de guerra e depois ajudar a conseguir, no câmbio negro, os materiais para aquelas firmas de confecção de roupas feitas que não podiam obter matéria-prima suficiente porque não tinha contratos com o governo. Podia até conseguir que todos os jovens de sua organização, aqueles em idade de ser convocados para o Exército, fossem isentos de lutar na guerra estrangeira. Fazia isso com o auxílio de médicos que aconselhavam os preparados farmacêuticos que deviam ser tomados antes do exame físico, ou colocando os rapazes em posições isentas de convocação nas indústrias de guerra.
E assim Don Corleone podia orgulhar-se de sua atividade como dirigente. Seu mundo era seguro para aqueles que lhe haviam jurado lealdade; outros homens que acreditavam na lei e ordem estavam morrendo aos milhões. A única coisa que lhe causara grande contrariedade foi que o seu próprio filho, Michael Corleone, recusou-se a ser ajudado, insistiu em se apresentar como voluntário para servir o seu país. E, para espanto de Don Corleone, assim fizeram alguns dos outros rapazes da organização. Um dos homens, procurando explicar isso a seu caporegime, disse:
— Este país tem sido bom para mim.
Depois que essa história foi contada a Don Corleone, ele retrucou raivosamente para o caporegime:
— Eu fui bom para esse rapaz.
As coisas podiam tornar-se desagradáveis para essa gente, mas, como ele havia perdoado seu filho Michael, devia perdoar também os outros rapazes que haviam interpretado erroneamente o seu dever para com o seu Don e eles mesmos.
No término da II Guerra Mundial, Don Corleone sabia que o seu mundo teria novamente de mudar os seus processos, que teria de se enquadrar mais ajustadamente aos processos do outro mundo maior. Ele acreditava que podia fazer isso sem qualquer prejuízo econômico ou financeiro.
Não havia motivo para essa crença em sua própria experiência. O que o pusera na pista certa foram dois negócios pessoais. No começo de sua carreira, o então jovem Nazorine, que era apenas um ajudante de padeiro que pretendia se casar, viera pedir-lhe auxilio. Ele e sua futura esposa, uma boa moça italiana, tinham economizado dinheiro e pago a elevada quantia de trezentos dólares a um atacadista de móveis que lhe fora recomendado. Esse atacadista deixara-os escolher tudo o que quiseram para mobiliar o futuro apartamento do casal. Um lindo dormitório de material de primeira com duas cômodas e abajures. Também uma sala de estar com um sofá bem estofado e poltronas, tudo forrado com um lindo pano com fio de ouro. Nazorine e sua noiva passaram um dia feliz escolhendo o que desejavam do enorme depósito abarrotado de móveis. O atacadista recebeu o dinheiro, os trezentos dólares arduamente ganhos com o suor de seu sangue, enfiou-o no bolso e prometeu que a mobília seria entregue dentro de uma semana no já alugado apartamento.
Exatamente na semana seguinte, porém, a firma falira. O grande depósito cheio de móveis fora fechado e lacrado e destinado ao pagamento dos credores. O atacadista desaparecera para dar aos outros credores tempo suficiente para desabafar livremente a sua raiva. Nazorine, um destes últimos, foi ao seu advogado, que lhe informou que nada podia ser feito enquanto o caso não fosse resolvido no tribunal e todos os credores satisfeitos. Isso levaria três anos e Nazorine teria sorte se conseguisse recuperar dez centavos de cada dólar.
Vito Corleone ouvia essa história com sarcástica descrença. Não era possível que a lei pudesse permitir tal roubo. O atacadista possuía seu próprio palacete residencial, uma propriedade em Long lsland, um automóvel de luxo, e pagava a faculdade para os filhos. Como podia ficar com os trezentos dólares do pobre padeiro Nazorine e não entregar-lhe os móveis que ele já havia pago? Mas, para certificar-se, Vito Corleone mandou Genco Abbandando consultar os advogados que representavam a Companhia Genco Pura.
Eles verificaram a história de Nazorine. O atacadista tinha toda a sua riqueza pessoal no nome da esposa. O negócio de móveis era uma sociedade anônima e ele não era pessoalmente responsável. Na verdade, ele demonstrara má fé ao receber o dinheiro de Nazorine, quando sabia que ia pedir falência, mas isso era uma prática comum. Segundo a lei, nada se podia fazer.
Naturalmente a questão foi facilmente ajustada. Don Corleone mandou seu consigliori, Genco Abbandando, falar com o negociante, e, como era esperado, o homem compreendeu imediatamente a situação e providenciou para que Nazorine recebesse os seus móveis. Mas foi uma lição interessante para o jovem Vito Corleone.
O segundo incidente teve repercussões mais amplas. Em 1939, Don Corleone resolvera mudar a família para fora da cidade. Tal como qualquer outro pai, ele queria que os filhos freqüentassem escolas melhores e tivessem companheiros de nível social elevado. Por interesse pessoal, ele preferia o anonimato da vida suburbana, onde a sua reputação não era conhecida. Comprou a propriedade da alameda em Long Beach, a qual naquela época tinha apenas quatro casas recém-terminadas, mas bastante espaço para a construção de outras mais. Sonny estava formalmente comprometido com Sandra e logo se casaria, e uma das casas seria para ele. Outra se destinava ao próprio Don Corleone. A terceira para Genco Abbandando e sua família. A última ficaria vazia por enquanto.
Uma semana depois que a alameda foi ocupada, um grupo de três trabalhadores chegou, com toda a inocência, com seu caminhão. Alegaram que eram inspetores de forno da cidade de Long Beach. Um dos jovens guarda costas de Don Corleone deixou os homens entrarem e os conduziu até o forno situado no porão. Don Corleone, sua mulher e Sonny estavam no jardim descansando e aspirando o ar da praia.
Para grande aborrecimento de Don Corleone, ele foi chamado para ir até a casa pelo seu guarda-costas. Os três trabalhadores, todos sujeitos grandes e fortes, estavam agrupados em torno do forno. O chefe, um homem autoritário, falou para Don Corleone com voz ríspida:
— Seu forno está em péssimas condições. Se o senhor quiser que a gente o conserte e o refaça, terá de pagar quinhentos dólares pelo trabalho e as peças que forem necessárias e depois a gente vai aprová-lo de acordo com a inspeção municipal — puxou um rótulo vermelho e concluiu — Colocaremos este selo nele, como o senhor vê, depois nenhum funcionário da municipalidade incomodará mais o senhor.
Don Corleone achou graça. Tinha sido uma semana enfadonha, sossegada, em que tivera de deixar de lado seus negócios para cuidar dos detalhes concernentes à mudança da família para uma casa nova. Num inglês mais estropiado do que o seu habitual sotaque ligeiramente italiano, ele perguntou:
— Se eu não pagar a vocês, que é que vai acontecer a meu forno?
O chefe dos três homens deu de ombros.
— A gente deixa o forno tal como está agora — apontou para as peças de metal espalhadas pelo chão.
Don Corleone respondeu humildemente:
— Esperem, vou apanhar o dinheiro.
Em seguida, saiu para o jardim e disse a Sonny:
— Escute, há uns homens trabalhando no forno, não entendo o que é que eles querem. Entre lá e resolva a questão.
Não era apenas uma brincadeira; ele pretendia fazer o filho seu subchefe. Isso era uma das provas pelas quais um diretor comercial tinha de passar.
A solução de Sonny não agradou inteiramente ao pai. Foi muito direta, faltou-lhe completamente a sutileza siciliana. Ele era a Clava, não a Espada. Pois logo que Sonny ouviu a exigência do chefe da turma, pôs os três homens sob a mira de sua arma e fez os seus guarda-costas aplicar-lhes umas boas bordoadas. Depois, obrigou-os a consertar o forno e arrumar direitinho o porão. Revistou-os e descobriu que eles na realidade eram empregados de uma firma empreiteira cuja sede era no Condado de Suffolk. Conseguiu saber o nome do dono da firma. Em seguida. levou os três homens a pontapés para o caminhão deles.
— Não me apareçam mais aqui em Long Beach — gritou para eles — Eu lhes pendurarei os colhões nas orelhas.
Era típico do jovem Santino, antes que se tornasse mais velho e mais cruel, que ele estendesse a sua proteção à comunidade em que vivia. Sonny fez uma visita pessoal ao dono da firma empreiteira e disse-lhe que não mandasse nunca mais nenhum de seus homens a Long Beach. Logo que a Família Corleone estabelecia sua ligação habitual com a força policial local era informada de todas essas queixas e de todos os crimes praticados pelos elementos profissionais. Em menos de um ano, Long Beach tornou-se a cidade dentro de sua categoria, onde o crime imperava menos livremente nos Estados Unidos. Os assaltantes e valentões profissionais recebiam um aviso para não exercerem sua atividade na cidade. Permitia-se que cometessem uma infração. Quando cometiam a segunda, simplesmente desapareciam. Os embusteiros de consertos de casa, os vigaristas a domicilio, eram delicadamente advertidos de que não seriam bem recebidos em Long Beach. Os trapaceiros que não levavam em consideração a advertência eram surrados até ficarem quase à morte. Os jovens desordeiros residentes no local, que não tinham respeito pela lei e pela autoridade constituída, eram aconselhados da maneira mais paternal possível a fugirem de casa. Long Beach tornou-se uma cidade-modelo.
O que impressionava a Don Corleone era a validade legal dessas falcatruas de vendas. Evidentemente, havia um lugar para um homem de seu talento nesse outro mundo que esteve fechado para ele quando era um rapaz honesto. Ele tomou as medidas necessárias para entrar nesse mundo.
E assim vivia feliz na alameda de Long Beach, consolidando e ampliando seu império, até que, quando terminou a guerra, o turco Sollozzo rompeu a paz e mergulhou o mundo de Don Corleone em sua própria guerra, e o levou para a cama do hospital.




Continua... 




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Frase Curiosa"Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère

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