CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS
LIVRO
III
CAPÍTULO
14
D
|
ON
CORLEONE era um verdadeiro homem com a idade de 12 anos. Baixo, moreno,
franzino, vivendo na estranha aldeia de Corleone, de aspecto mourisco, na
Sicília, seu verdadeiro nome era Vito Andolini, mas quando alguns estranhos
vieram matar o filho do homem que tinham assassinado, a mãe mandou o menino
para a América, a fim de ficar com amigos. E na nova terra ele mudou o nome
para Corleone, visando a manter alguma ligação com a sua aldeia natal. Foi uma
das poucas atitudes sentimentais que realizaria na vida.
Na Sicília, no fim do
século, a Máfia era o segundo governo, sendo muito mais poderosa do que o
governo oficial de Roma. O pai de Vito Corleone se viu envolvido numa rixa com
outro aldeão que levou o caso à Máfia. O pai não quis se submeter e, numa briga
pública, matou o chefe local da Máfia. Uma semana depois, ele próprio foi
encontrado morto, seu corpo dilacerado por cargas de lupara. Um mês depois do
enterro, pistoleiros da Máfia vieram fazer perguntas sobre o menino Vito.
Tinham resolvido que ele estava muito perto de se tornar adulto e que poderia
procurar vingar a morte do pai nos anos vindouros, O menino de 12 anos. Vito,
foi escondido por parentes e embarcado para a América. Aí ficou aos cuidados
dos Abbandando, cujo filho Genco se tornaria posteriormente consigliori de seu Don.
O rapazinho Vito foi
trabalhar no armazém dos Abbandando na Nona Avenida, na zona de Nova York. Aos
18 anos de idade casou-se com uma garota recém-chegada da Sicília, de apenas 16
anos, uma ótima cozinheira e boa dona-de-casa. Instalaram-se numa casa da
Décima Avenida, perto da Rua 35, apenas a poucos quarteirões do lugar em que
Vito trabalhava, e dois anos depois nascia-lhes o primeiro filho, Santino,
chamado por todos os seus amigos Sonny (Filhinho) devido à sua devoção
ao pai.
Nas imediações vivia
um homem chamado Fanucci. Era um
italiano pesadão, de aspecto feroz, que usava finas roupas, invariavelmente
claras, e um chapéu creme. Esse homem era considerado como pertencente à Mão
Negra, uma ramificação da Máfia que extorquia dinheiro das famílias e dos donos
de lojas e armazéns sob ameaça de violência física. Contudo, como quase todos
os habitantes das redondezas, eles próprios eram violentos, e as ameaças de
ataque corporal de Fanucci só surtiam efeito com os casais idosos que não
tinham filhos homens para defendê-los. Alguns comerciantes pagavam-lhe quantias
insignificantes por uma questão de conveniência. Contudo, Fanucci era também um
inimigo mortal de outros criminosos, os indivíduos que vendiam ilegalmente a
loteria italiana ou que mantinham jogos de azar em suas próprias casas. O
armazém dos Abbandando fornecia-lhe uma pequena contribuição, isso apesar dos
protestos do jovem Genco, que dizia ao pai que resolveria o caso com Fanucci. O
pai o proibiu. Vito Corleone observava tudo isso sem se sentir de qualquer
maneira envolvido na questão.
Um dia, Fanucci foi
atacado por três rapazes que lhe cortaram a garganta de uma a outra orelha, não
tão profundamente para matá-lo, mas o bastante para. assustá-lo e fazê-lo
sangrar um bocado. Vito viu Fanucci fugir de seus atacantes, com o talho
circular jorrando sangue. O que nunca esqueceu foi a cena de Fanucci segurando
o chapéu creme por baixo do queixo para aparar o sangue que escorria. Como se
não quisesse manchar a roupa ou não quisesse que vissem seu rosto
ensangüentado.
Entretanto, esse
ataque acabou se transformando num benefício para Fanucci. Os três rapazes não
eram assassinos, mas apenas valentões resolvidos a dar-lhe uma lição e a
fazê-lo parar de perseguir os outros criminosos. Mas Fanucci provou ser um
assassino. Algumas semanas depois, o rapaz que utiizara a faca contra Fanucci
foi morto a bala, e as famílias dos outros dois rapazes pagaram-lhe uma
indenização para fazê-lo desistir da vingança. Depois disso, as contribuições
se tornaram cada vez maiores, e Fanucci se tornou sócio dos jogos de azar das
redondezas.
Quanto a Vito
Corleone, isso nada lhe interessava. Esqueceu tudo a respeito, imediatamente.
Durante a I Guerra
Mundial, quando a importação de azeite se tornou difícil, Fanucci adquiriu uma
parcela de interesse no armazém dos Abbandando, fornecendo-lhe não somente
azeite, mas também salame, presuntos e queijos importados da Itália. Então
meteu um sobrinho no armazém, e Vito Corleone viu-se desempregado.
Por essa época, o
segundo filho, Frederico, havia nascido, e Vito Corleone tinha quatro bocas
para alimentar. Até aquele tempo, ele fora um rapaz sossegado, comedido, que
guardava seus pensamentos para si mesmo. O filho do dono do armazém, o jovem
Genco Abbandando, era seu amigo mais íntimo, e para surpresa de ambos, Vito
censurou o amigo pela ação do pai. Genco, vermelho de vergonha, garantiu a Vito
que ele não precisaria preocupar-se a respeito de comida. Ele, Genco, roubaria
comida do armazém para atender as necessidades do amigo. Essa oferta, porém,
foi terminantemente rejeitada por Vito por ser muito vergonhoso um filho roubar
o pai.
O jovem Vito, contudo,
passou a sentir uma raiva surda pelo temível, Fanucci. Nunca demonstrou essa raiva
de modo algum, mas aguardava uma oportunidade. Trabalhou na estrada de ferro
por alguns meses e depois, quando a guerra terminou, o serviço se tornou
escasso, e ele só conseguia trabalhar alguns dias por mês. Além disso, a
maioria dos capatazes eram irlandeses ou americanos e insultavam os
trabalhadores usando a linguagem mais suja possível, o que Vito sempre
suportava impassivelmente, já que fingia não compreender, embora entendesse
inglês muito bem, apesar de seu sotaque.
Uma noite, quando Vito
estava ceando com a família, ouviu uma pancada na janela que dava para a
estreita passagem que separava sua casa do prédio vizinho. Quando puxou a
cortina para o lado, Vito viu com espanto um dos rapazes da redondeza, Peter
Clemenza, inclinando-se para fora da janela do outro lado da passagem. Estava
estendendo uma trouxa de lençol branco.
— Olhe aqui, paisan — disse Clemenza — Guarde isso
para mim até eu pedir de volta. Depressa!
Automaticamente, Vito
esticou as mãos pelo espaço vazio da passagem de ar e agarrou a trouxa. O rosto
de Clemenza denotava tensão e premência. Ele se encontrava em alguma
dificuldade e o gesto de ajuda de Vito foi instintivo. Mas, quando Vito abriu a
trouxa na cozinha, viu cinco armas de fogo lubrificadas manchando o pano
branco. Ele as pôs no armário da quarto de dormir e esperou. Soube então que
Clemenza tinha sido levado pela polícia. Os tiras deviam estar batendo na porta
de Clemenza quando ele lhe passou as armas pela janela.
Vito nunca disse uma
palavra a ninguém e, naturalmente, sua mulher, aterrorizada, não se atrevia a
abrir a boca, nem mesmo para mexericos, com medo de que o próprio marido fosse
enviado para a cadeia. Dois dias depois, Peter Clemenza reapareceu por lá e
perguntou a Vito casualmente:
— Você ainda está com
meu material?
Vito acenou com a
cabeça afirmativamente. Tinha o hábito de falar pouco. Clemenza foi até o
apartamento de Vito, onde lhe ofereceram um copo de vinho, enquanto Vito
desentocava a trouxa do armário do quarto de dormir.
Clemenza bebeu o
vinho, enquanto o seu rosto bonachão contemplava atentamente Vito.
— Você viu o que tem
aí dentro?
Vito, com o rosto
impassível, balançou a cabeça.
— Não me interesso por
coisas que não me dizem respeito — respondeu. Beberam vinho juntos o resto da
noite. Acharam que havia muita afinidade entre ambos. Clemenza gostava de
contar histórias; Vito Corleone gostava de ouvir contadores de histórias.
Tornaram-se amigos imediatamente.
Alguns dias depois,
Clemenza perguntou à mulher de Vito Corleone se ela gostaria de ganhar um
tapete fino para o assoalho de sua sala de estar. Ele levou Vito consigo para
ajudar a carregar o tapete.
Clemenza levou Vito
até um edifício de apartamentos, o qual possuía duas colunas de mármore branco
e uma pia de água benta do mesmo material no hall. Clemenza abriu a porta com a
chave, e ambos entraram num apartamento elegante.
— Vá para o outro lado
da sala e ajude-me a enrolá-lo — gritou Clemenza.
O tapete era uma rica
peça de lã vermelha. Vito Corleone ficou espantado com a generosidade de
Clemenza. Os dois juntos enrolaram o tapete; em seguida Clemenza pegou numa
ponta do rolo enquanto Vito pegava na outra. Levantaram-no e começaram a
carregá-lo na direção da porta.
Nesse momento, a
campainha do apartamento tocou. Clemenza imediatamente deixou cair o tapete e
correu para a janela. Puxou a cortina ligeiramente para o lado, e o que ele viu
fê-lo sacar o revólver de dentro do paletó. Foi somente aí que o espantado Vito
Corleone percebeu que estavam roubando o tapete do apartamento de um estranho.
A campainha tocou
novamente. Vito foi até perto de Clemenza para poder ver o que estava
acontecendo. Na porta havia um polícial uniformizado. Enquanto observavam,
viram o polícial dar um último toque na campainha da porta e depois dar de
ombros e descer a escada de mármore e seguir rua afora.
Clemenza deu um grito
de satisfação e disse:
— Vamos embora.
Clemenza apanhou a sua
ponta do tapete e Vito pegou a sua. O polícial mal tinha dobrado a esquina e
eles já saíam pela pesada porta de carvalho e caminhavam pela rua com o tapete
entre eles. Meia hora mais tarde estavam cortando o tapete para caber na sala
de estar do apartamento de Vito Corleone. Tinham ainda deixado um bom pedaço da
peça para o quarto de dormir. Clemenza trabalhava com desenvoltura, e dos bolsos
de seu largo paletó, mal assentado (mesmo então ele gostava de usar roupas
folgadas, embora não fosse tão gordo), tirava as ferramentas necessárias para
cortar o tapete.
O tempo passava, mas
as coisas não melhoravam. A família Corleone não podia comer o bonito tapete.
Muito bem, não havia trabalho, sua mulher e filhos deviam morrer de fome. Vito
apanhou alguns pacotes de mantimento com seu amigo Genco, enquanto pensava como
resolver a situação. Finalmente, foi procurado por Clemenza e Tessio, outro
rapaz que era um mau elemento da redondeza. Eram homens que pensavam bem dele,
da maneira pela qual ele se conduzia, e sabiam que ele estava desesperado.
Propuseram lhe que se tornasse membro da quadrilha deles, que se especializara
em atacar caminhões de vestidos de seda depois que eram carregados na fábrica
da Rua 31. Não havia risco. Os motoristas dos caminhões eram trabalhadores
ajuizados que à vista de uma arma de fogo voavam para a calçada como anjos,
enquanto os assaltantes levavam o caminhão para ser descarregado no armazém de
um amigo. Uma parte da mercadoria era vendida a um atacadista italiano, e o
restante vendido de porta em porta nas zonas residenciais — Arthur Avenue, no
Bronx, Mulberry Street, e distrito de Chelsea, em Manhattan — tudo a famílias italianas
pobres à procura de uma pechincha, cujas filhas jamais poderiam dar-se ao luxo
de comprar vestidos tão finos pelo preço real. Clemenza e Tessio precisavam de
Vito para dirigir o caminhão, pois sabiam que ele dirigira o caminhão de
entrega do armazém dos Abbandando.
Em 1919, bons
motoristas eram raríssimos.
Contra a própria
vontade, Vito Corleone aceitou a oferta. O argumento decisivo foi o de que ele
arranjaria pelo menos mil dólares como sua parte no trabalho. Porém seus jovens
companheiros pareciam-lhe impetuosos, o plano de trabalho era duvidoso, a
distribuição do saque, malfeita. Todo o sistema de ação deles era muito
deficiente para o seu gosto. Mas ele os considerava rapazes direitos, bons. O
corpulento Peter Clemenza inspirava segurança, e o franzino e sério Tessio
também.
O próprio trabalho
processou-se sem qualquer dificuldade. Vito Corleone não sentiu medo, para
grande espanto seu, quando os seus dois camaradas puxaram as armas e fizeram o
motorista saltar do caminhão. Ficou também impressionado com a frieza de
Clemenza e Tessio. Não se mostraram nervosos, mas ao contrário brincaram com o
motorista dizendo-lhe que se ele se comportasse como um bom rapaz mandariam
alguns vestidos para a mulher dele. Como Vito achava que era estupidez vender ele
mesmo os vestidos, resolveu entregar toda a sua parte do roubo a um receptador,
apurando apenas setecentos dólares, o que era uma soma enorme em 1919.
No dia seguinte, Vito
Corleone foi detido na rua por Fanucci, que usava uma roupa creme e chapéu
branco. Fanucci era um homem de aspecto brutal e nada fizera para disfarçar a
cicatriz circular que se estendia num semicírculo branco de orelha a orelha,
dando a volta por baixo do queixo. Tinha sobrancelhas pretas cerradas e feições
grosseiras que, quando sorria, pareciam de maneira estranha amáveis.
— Ah, meu rapaz —
falou ele a Vito, com um sotaque siciliano muito carregado — O pessoal me disse
que você está rico. Você e seus dois amigos. Mas você não pensa que me tratou
um pouco mesquinhamente? Afinal de contas, isso é meu território e vocês deviam
me deixar molhar o bico.
Ele usava a expressão
siciliana da Máfia: Fari vagnari a pizzu.
Pizzu significa o bico de qualquer passarinho, como por exemplo o canário. A
própria expressão era uma exigência de parte do saque.
Como era seu hábito,
Vito Corleone não respondeu. Compreendeu a insinuação imediatamente e estava
esperando uma exigência direta.
Fanucci sorriu para
ele, mostrando os dentes de ouro e esticando a cicatriz circular em torno de
seu rosto. Enxugou o rosto com um lenço e desabotoou o paletó por um momento
como que para se refrescar, mas na realidade para mostrar a arma que trazia na
cintura de suas calças confortavelmente largas. Depois deu um suspiro e disse:
— Você me dá
quinhentos dólares e eu esqueço o insulto. Afinal de contas, a gente moça
ignora as cortesias devidas a um homem como eu.
Vito Corleone sorriu
para ele, e mesmo para um jovem ainda inexperiente havia algo tão enregelante
em seu sorriso que Fanucci hesitou um momento antes de prosseguir:
— Do contrário, a
policia vai fazer uma visita a você; sua mulher e filhos ficarão envergonhados
e na miséria. Naturalmente se a minha informação sobre os seus ganhos está
incorreta eu molharei o bico apenas um pouquinho. Mas nada menos de trezentos
dólares. E não procure me enganar.
Pela primeira vez,
Vito Corleone falou. Sua voz apresentava um tom moderado, não mostrava raiva.
Ele foi cortês, como competia a um jovem falando a um homem mais velho da
importância de Fanucci. Disse brandamente:
— Meus dois amigos
estão com a minha parte do dinheiro. Tenho de falar com eles.
Fanucci procurou
tranqüilizá-lo.
— Você pode dizer aos
seus dois amigos que espero que eles me deixem molhar o bico da mesma maneira.
Não tenha medo de dizer a eles — acrescentou Fanucci para animá-lo — Clemenza e
eu nos conhecemos bem um ao outro, ele compreende essas coisas. Você deve deixar-se guiar por ele, pois ele tem muita
experiência nesses assuntos.
Vito Corleone deu de
ombros. Procurou fingir que estava um pouco embaraçado.
— É verdade —
respondeu — O senhor compreende que tudo isso é novo para mim. Obrigado por
falar comigo como um padrinho.
Fanucci ficou
impressionado.
— Você é um bom
sujeito — disse. Depois pegou a mão de Vito e apertou-a entre as suas mãos
cabeludas — Você tem respeito — continuou ele — Uma coisa bonita nos jovens. Da
próxima vez, você fale primeiro comigo, hem? Talvez eu possa ajudá-lo em seus
planos.
Anos depois, Vito
Corleone compreendeu que o que o fez agir de modo tão perfeito e tático com
Fanucci foi a morte do seu próprio pai, de temperamento violento, que fora
assassinado pela Máfia na Sicília. Porém, naquela ocasião, tudo o que ele
sentia era uma raiva gélida de que aquele homem planejava roubá-lo do dinheiro
que ele conseguira com o risco da vida e da liberdade. Não tivera medo. Na
verdade, naquele momento, pensou que Fanucci fosse um bobo maluco. Pelo que
vira de Clemenza, aquele robusto siciliano daria antes a vida do que um níquel
de seu saque. Afinal de contas, Clemenza estivera prestes a matar um polícial
somente para roubar um tapete. E o franzino Tessio tinha o ar mortal de uma
víbora.
À noite, porém, no
apartamento de Clemenza, do outro lado da passagem de ar, Vito Corleone
aprendeu outra lição no aprendizado que estava começando a receber. Clemenza
praguejou, Tessio ameaçou, mas depois dois passaram a discutir se Fanucci
ficaria satisfeito com duzentos dólares. Tessio achava que sim.
Clemenza foi positivo.
— Não, esse patife
“cara de cicatriz” deve ter descoberto o que apuramos com o atacadista que
comprou os vestidos. Fanucci não aceitará um níquel menos do que trezentos
dólares. Teremos de pagar.
Vito ficou espantado,
mas teve o cuidado de não demonstrar.
— Por que temos de
pagar-lhe? Que pode ele fazer a nós três? Somos mais fortes do que ele. Temos
armas. Por que temos de entregar o dinheiro que ganhamos?
Clemenza explicou
pacientemente:
— Fanucci tem amigos,
verdadeiros animais. Tem ligações com a polícia e gostaria que lhe contássemos
nossos planos, porque nos denunciaria aos tiras e obteria a gratidão deles.
Então eles lhes deveriam um favor. É assim que ele age sempre. Tem uma licença
do próprio Maranzalla para trabalhar
nesta redondeza.
Maranzalla era um
gangster freqüentemente mencionado nos jornais e considerado como o chefe de
uma quadrilha de bandidos especializados em extorsão, jogos de azar e roubo à
mão armada.
Clemenza serviu vinho
que ele mesmo tinha feito. Sua mulher, depois de pôr um prato de salame,
azeitonas e um pão italiano na mesa, desceu e foi sentar-se com as amigas em
frente do prédio, levando uma cadeira consigo.
Era uma moça italiana
que vivia há poucos anos no país e ainda não entendia o inglês.
Vito Corleone
sentou-se com os dois amigos e começou a beber vinho. Jamais usara a
inteligência antes como a estava usando agora. Sentia-se surpreso como podia
pensar tão claramente. Lembrou-se de tudo o que sabia sobre Fanucci. Lembrou-se
do dia em que o homem tivera a sua garganta cortada e correra pela rua
segurando o chapéu debaixo do queixo para aparar o sangue que escorria. Lembrou-se
do assassinato do rapaz que usara a faca e dos outros dois que tiveram a
sentença anulada pelo pagamento de uma indenização. E de repente teve certeza
de que Fanucci não tinha grandes ligações, não podia ter. Nenhum homem que
informasse à polícia. Nenhum homem que permitisse que sua vingança fosse
comprada por dinheiro. Um verdadeiro chefe mafioso teria matado também os
outros dois rapazes. Não. Fanucci tivera sorte e matara um dos rapazes, mas
sabia que não podia matar os outros dois depois de estarem eles alerta. E assim
acedeu em receber dinheiro em troca da suposta vingança. Era a força brutal do
próprio homem que lhe permitia arrecadar tributo dos comerciantes e dos jogos
de azar realizados nos apartamentos. Mas Vito Corleone conhecia pelo menos uma
dessas bancas de jogo que não pagava tributos e jamais acontecera qualquer
coisa ao homem responsável por ela.
E assim Fanucci agia
sozinho. Ou então contratava alguns pistoleiros para determinados serviços,
pagando-lhes rigorosamente em dinheiro. O que levou Vito Corleone a tomar outra
decisão. O rumo que a sua própria vida devia seguir.
Foi dessa experiência
que lhe veio a crença freqüentemente repetida de que todo homem tem apenas um
destino. Naquela noite, poderia ter pago a Fanucci o tributo e se tornado um
caixeiro de armazém com a possibilidade de ter seu próprio negócio nos anos
vindouros. Mas o destino resolvera que ele deveria tornar-se um Don e lhe
trouxera Fanucci para pô-lo na trajetória de seu destino.
Quando acabaram a
garrafa de vinho, Vito disse cautelosamente a Clemenza e Tessio:
— Se vocês querem, por
que não me dão duzentos dólares cada um para pagar a Fanucci? Garanto que ele
aceitará esta quantia de mim. Depois deixem tudo por minha conta. Resolverei
este problema de modo satisfatório para vocês.
Os olhos de Clemenza
prontamente começaram a brilhar com desconfiança. Vito disse-lhe friamente:
— Nunca menti a
pessoas que considero minhas amigas. Fale você com Fanucci amanhã. Deixe que
ele lhe peça o dinheiro. Mas não lhe pague. E de forma alguma discuta com
Fanucci. Diga apenas que você vai arranjar o dinheiro e entregar a mim para dar
a ele. Deixe que compreenda que você deseja pagar o que ele pede. Não regateie.
Eu discutirei o preço com ele. Não há vantagem em fazê-lo ficar zangado
conosco, se ele é um homem tão perigoso como você diz.
Deixaram a coisa nesse
pé. No dia seguinte, Clemenza falou com Fanucci para ter a certeza de que Vito
não estava inventando a história. Depois Clemenza foi ao apartamento de Vito e
deu-lhe os duzentos dólares. Olhou curiosamente para Vito Corleone e perguntou:
— Fanucci me disse que
não aceitaria nada inferior a trezentos dólares, como você vai fazê-lo aceitar
menos?
— Certamente isso não
lhe interessa — respondeu Vito Corleone tranqüilamente — Lembre-se apenas de
que lhe prestei um serviço.
Tessio veio mais
tarde. Foi mais reservado do que Clemenza, mais esperto, mais manhoso e também
mais conformado. Sentia que faltava algo, algo não muito claro. Ele estava um
pouco preocupado e disse a Vito Corleone:
— Tome cuidado com
esse patife da Mão Negra, ele é astucioso como um padre. Quer que eu esteja
aqui quando você lhe entregar o dinheiro, como testemunha?
Vito Corleone balançou
a cabeça. Nem sequer se preocupou em responder. Apenas pediu a Tessio:
— Diga a Fanucci que
lhe pagarei o dinheiro aqui em minha casa às nove horas da noite. Vou ter de
dar a ele um copo de vinho e falar, argumentar com ele para aceitar uma quantia
menor.
Tessio balançou a
cabeça.
— Você não vai ter
muita sorte. Fanucci nunca recua.
— Vou argumentar com
ele — retrucou Vito Corleone.
Isso se tornaria uma
frase famosa nos anos vindouros. Tornar-se-ia o matraquear de advertência antes
de um ataque mortal. Quando Corleone se tornou um Don e pedia aos adversário
para se sentarem e argumentarem com ele, eles compreendiam que era a última
oportunidade para resolverem uma questão sem derramamento de sangue e
assassinato.
Vito Corleone falou
com a mulher para descer com os dois filhos, Sonny e Fredo, para a rua depois
da ceia e não permitir de modo algum que subissem, enquanto ele não lhe desse
permissão. A mulher devia ficar de guarda na porta do apartamento. Ele tinha um
negócio particular a resolver com Fanucci que não podia ser interrompido. Viu o
ar de medo estampado no rosto da esposa e ficou zangado. Então disse calmamente
a ela:
— Você pensa que casou
com um idiota?
Ela não respondeu. Não
respondeu porque estava com medo, agora não de Fanucci, mas de seu marido. Ele
se estava transformando visivelmente ante seus olhos, hora a hora, num homem
que irradiava uma força perigosa. Toda a vida fora calmo, falando pouco, mas
sempre gentil, sempre sensato, o que era extraordinário num rapaz siciliano. O
que ela estava vendo agora era a mudança de sua personalidade. Estava deixando
de ser um joão-ninguém inofensivo para iniciar o seu próprio destino. Ele havia
iniciado tarde, estava com 25 anos de idade, mas devia iniciar com vigor.
Vito Corleone tinha
resolvido matar Fanucci. Fazendo isso, ele teria mais setecentos dólares em
caixa. Os trezentos dólares que ele próprio teria de pagar ao terrorista da Mão
Negra, os duzentos de Tessio e os duzentos de Clemenza. Se não matasse Fanucci,
teria de pagar ao homem setecentos dólares ali na bucha. Fanucci vivo não valia
para ele essa importância. Não pagaria setecentos dólares para manter Fanucci
vivo. Se Fanucci precisasse de setecentos dólares para uma operação, a fim de
salvar a vida, ele não daria a Fanucci o dinheiro para pagar ao cirurgião. Não
tinha nenhuma dívida de gratidão com Fanucci, eles não eram parentes
consangüíneos, ele não gostava de Fanucci. Por que, então, devia dar a Fanucci
setecentos dólares?
E seguia-se
inevitavelmente que, desde que Fanucci desejava tomar setecentos dólares dele à
força, por que não devia matar Fanucci? Certamente o mundo podia passar sem tal
indivíduo.
Havia naturalmente
alguns motivos práticos. Fanucci podia na verdade ter amigos poderosos que
procurariam vingança. O próprio Fanucci era um homem perigoso, não tão fácil de
ser morto. Havia a polícia e a cadeira elétrica. Mas Vito Corleone vivera sob
uma sentença de morte desde o assassinato de seu pai. Menino ainda, com a idade
de 12 anos, ele fugira de seus executores e cruzara o oceano para viver numa
terra estranha, adotando um nome estranho. E anos de tranqüila observação o
convenceram de que ele tinha mais inteligência e mais coragem do que outros
homens, embora nunca tivesse tido a oportunidade de usar essa inteligência e
essa coragem.
Contudo, Vito hesitava
antes de dar esse primeiro passo em direção de seu destino. Chegou a juntar os
setecentos dólares num único maço de notas e pôs o dinheiro no bolso lateral
esquerdo das calças. Entretanto, no bolso do lado direito pôs o revólver que
Clemenza lhe dera para usar no assalto do caminhão.
Fanucci chegou
pontualmente às nove horas da noite. Vito Corleone colocou na mesa um jarro de
vinho caseiro que Clemenza lhe dera.
Fanucci pôs seu chapéu
branco sobre a mesa ao lado do jarro de vinho. Desapertou sua larga gravata
multicolorida, com suas manchas de tomate camufladas pelos desenhos brilhantes.
A noite de verão era quente, a luz de gás, fraca. O apartamento estava bastante
sossegado. Mas Vito Corleone se achava gelado. Para mostrar sua boa fé entregou
o maço de notas a Fanucci e observou cuidadosamente como este, depois de
contá-las, tirou do bolso uma carteira larga de couro e meteu o dinheiro lá
dentro. Fanucci bebeu um gole de vinho e disse:
— Você ainda me deve
duzentos dólares.
O seu rosto de
sobrancelhas cerradas estava inexpressivo.
Vito Corleone
respondeu com sua voz fria moderada:
— Estou um pouco sem
dinheiro, estou desempregado. Vou ficar devendo o dinheiro por algumas semanas.
Isso era uma desculpa
admissível. Fanucci recebera o grosso do dinheiro e esperaria. Ele podia até
ser persuadido a não receber mais nada ou a esperar um pouco mais. Exultou com
o vinho e disse:
— Ah, você é um rapaz
esperto. Como é que nunca dei atenção a você antes? Você é um sujeito muito
sossegado para o que pode fazer. Eu poderia encontrar algum trabalho para você
fazer que seria muito lucrativo.
Vito Corleone mostrou
seu interesse com um delicado aceno de cabeça e encheu o copo de Fanucci
despejando o vinho do jarro. Mas Fanucci pensou melhor no que ia dizer e se
levantou da cadeira apertando a mão de Vito.
— Boa noite, rapaz —
disse ele — Nada de ressentimentos, hem? Se eu puder prestar algum serviço a
você, é só me avisar. Você saiu-se muito bem esta noite.
Vito deixou Fanucci
descer as escadas e sair do prédio. A rua estava apinhada de testemunhas para
mostrar que ele deixara a casa de Corleone são e salvo. Vito observava da
janela. Viu Fanucci dobrar a esquina na direção da 11ª Avenida e sabia que ele
se encaminhava para o seu apartamento, provavelmente para guardar o dinheiro
antes de sair para a rua novamente. Talvez para guardar a sua arma. Vito
Corleone deixou o seu apartamento e subiu as escadas para o telhado. Percorreu
o bloco quadrado de telhados e desceu as escadas da saída de incêndio de um
sótão vazio que o deixou no quintal do prédio. Abriu a porta dos fundos a
pontapés e atravessou a porta da frente. Do outro lado da rua era o edifício de
apartamentos de Fanucci.
Os prédios
residenciais se estendiam para oeste somente até a 11ª Avenida. A 11ª Avenida
era constituída principalmente de armazéns e sótãos alugados pelas firmas que
faziam embarques pela Ferrovia Central de Nova York, a fim de ter acesso mais
fácil aos vários pátios de carga existentes entre a 11ª Avenida e o Rio Hudson.
O edifício de apartamentos de Fanucci era um dos poucos situados na zona
deserta, sendo ocupado principalmente por ferroviários solteiros, trabalhadores
dos pátios e as prostitutas mais baratas. Essas pessoas não se sentavam na rua
e conversavam como os italianos honestos, sentavam-se nos botequins bebendo o
seu salário. Assim, Vito Corleone achou muito fácil atravessar sorrateiramente
a deserta 11ª Avenida e entrar no vestíbulo do edifício de apartamentos de
Fanucci. Ali sacou a arma com a qual nunca havia disparado e esperou Fanucci.
Vito observava através
da porta de vidro do vestíbulo, sabendo que Fanucci viria descendo a 10ª
Avenida. Clemenza lhe mostrara a segurança da arma e ele apertara o gatilho com
ela descarregada. Mas quando ainda menino, na Sicília, com a tenra idade de 9
anos, ele fora caçar algumas vezes com o pai, tinha atirado com uma pesada
espingarda chamada lupara. Foi a sua habilidade com a lupara, mesmo quando
ainda menino, que lhe acarretara a sentença de morte imposta pelos assassinos
de seu pai.
Esperando agora no
vestíbulo escuro, Vito viu o chapéu branco de Fanucci atravessar a rua na
direção da entrada do edifício. Deu uns passos para trás, os ombros comprimidos
contra a porta interna que dava para a escada. Segurava a arma em posição de
disparar. A sua mão estendida estava apenas a dois passos da porta externa. A
porta girou para dentro. Fanucci, branco, largo, cheiroso, ocupava o quadrado
da luz. Vito Corleone atirou.
A porta aberta fez uma
parte do som escapar para a rua, o resto da explosão da arma abalou o edifício.
Fanucci estava segurando os lados da porta, procurando manter-se ereto,
tentando alcançar sua arma. A força de sua luta arrancara os botões de seu
paletó e fê-lo balançar solto. A sua arma estava exposta, mas exposta estava
também a mancha araneiforme vermelha na frente da camisa branca, na altura do
estômago. Com muito cuidado, como se estivesse mergulhando uma agulha numa
veia, Vito Corleone disparou o segundo tiro naquela teia vermelha.
Fanucci caiu de
joelhos, escorando a porta aberta. Soltou um gemido terrível, e esse gemido,
denotando grande sofrimento físico, pareceu a Vito quase cômico. Continuou a
dar esses gemidos; Vito lembrou-se de ter ouvido pelo menos três deles antes de
encostar a arma na face suada e gordurosa de Fanucci e atirar no seu crânio.
Não se passaram mais de cinco segundos para que Fanucci tombasse morto,
obstruindo a porta aberta com seu corpo.
Com muito cuidado,
Vito tirou a carteira do bolso do paletó do morto
e colocou-a dentro de sua camisa. Depois, atravessou a rua para a casa
de sótão, daí para o quintal e subiu pela saída de incêndio até o telhado. Lá
de cima, deu uma olhada para a rua. O corpo de Fanucci estava ainda estendido
na entrada do prédio, mas não havia sinal de qualquer outra pessoa. Duas
janelas foram levantadas no edifício, e ele pôde ver cabeças pretas movendo-se para
fora, mas desde que não podia distinguir as feições das pessoas, elas
certamente também não podiam distinguir as suas. E esses homens não dariam
qualquer informação à polícia. Fanucci deveria ficar ali até amanhecer ou até
que, um rondante encontrasse o corpo. Nenhuma pessoa daquela casa
deliberadamente se exporia à suspeita ou interrogatório da polícia. Elas
trancariam as suas portas e fingiriam que não tinham ouvido coisa alguma.
Vito podia aproveitar bem o seu tempo. Andou por cima dos telhados
até chegar à porta do seu próprio telhado e desceu para o seu apartamento.
Abriu a porta, entrou e tomou
a fechá-la atrás de si. Examinou a carteira do morto. Além dos setecentos
dólares que dera a Fanucci, havia apenas algumas notas de um dólar e uma de
cinco dólares.
Enfiada num cantinho
da carteira havia uma moeda de ouro antiga de cinco dólares, provavelmente uma
mascote. Se Fanucci fosse um gangster rico, certamente não traria consigo sua
riqueza. Isso confirmou algumas das suspeitas de Vito.
Ele sabia que tinha de
livrar-se da carteira e da arma (sabendo muito, bem mesmo, então, que devia
deixar a moeda de ouro na carteira). Subiu novamente até o telhado e percorreu
algumas sacadas. Atirou a carteira para uma passagem de ar e depois tirou as
balas da arma e bateu com o seu cano na sacada do telhado, O cano do revólver
não quebrou. Ele virou a arma em sua mão e bateu com a coronha no lado de uma
chaminé. A coronha partiu-se em duas metades. Ele bateu novamente e o revólver
quebrou-se em cano e coronha, duas peças separadas. Atirou cada parte numa
passagem de ar diferente. Não fizeram barulho quando atingiram o solo cinco
andares abaixo, mas afundaram no monte de lixo acumulado ali. Pela manhã, mais
lixo seria atirado ali pelas janelas e, com sorte, cobriria tudo. Vito voltou
para o seu apartamento.
Vito tremia um pouco,
mas estava completamente controlado. Mudou a roupa e, receando que houvesse
algum salpico de sangue nela, jogou-a numa tina de metal que sua mulher usava
para lavar roupa. Apanhou lixívia e sabão escuro grosseiro para pôr de molho a
roupa e esfregou-a com a peça especial de metal embaixo da pia. Depois esfregou
a tina e a pia com lixívia e sabão. Achou uma trouxa de roupa recém-lavada no
canto do quarto de dormir, com a qual misturou sua roupa. Em seguida, vestiu
uma camisa e calças limpas e desceu para juntar-se à mulher e aos filhos e
vizinhos em frente da moradia.
Todas essas precauções
foram inteiramente desnecessárias. A polícia, depois de descobrir o cadáver ao
amanhecer, nunca interrogou Vito Corleone. Na verdade ele ficou espantado de
que a polícia nada soubesse a respeito da visita de Fanucci à sua casa na noite
em que ele foi mortalmente baleado. Tinha contado com isso para um álibi,
Fanucci deixando o seu apartamento vivo. Soube apenas depois que a polícia
estava satisfeitíssima com o assassinato de Fanucci e não se preocupava em
perseguir os assassinos. A polícia supunha que fosse outra execução de alguma
quadrilha, e interrogara os maus elementos com ficha de extorsionários e cara
de valentes. Como Vito nunca se havia metido em encrenca, jamais despertou
qualquer suspeita.
Mas se ele havia
ludibriado a polícia, o mesmo não acontecia com relação a seus parceiros. Peter
Clemenza e Tessio o evitaram nas duas semanas seguintes, depois vieram
visitá-lo uma noite. Vieram com óbvio respeito. Vito Corleone saudou-os com uma
cortesia impassível e serviu-lhes vinho.
Clemenza falou
primeiro. Disse brandamente:
— Ninguém está
cobrando dos comerciantes da Nona Avenida. Ninguém está cobrando dos jogos de
cartas e outros jogos de azar da redondeza.
Viro Corleone olhou
para os dois homens com firmeza, mas não respondeu.
— Podíamos tomar os
fregueses de Fanucci — acrescentou Tessio — Eles nos pagariam.
Vito Corleone deu de
ombros.
— Por que vir a mim?
Não tenho interesse nessas coisas.
Clemenza deu uma
gargalhada. Mesmo em sua juventude, antes que a sua enorme barriga crescesse,
ele tinha a gargalhada de um gorducho. Perguntou então a Vito Corleone:
— Onde está aquela
arma que lhe dei para o serviço do caminhão? Como você não vai precisar mais
dela, pode devolvê-la a mim.
Lenta e
calculadamente, Vito Corleone tirou uma bolada de notas de seu bolso lateral e
destacou cinco notas de dez dólares.
— Tome aqui, eu lhe
pago a arma. Joguei-a fora depois do serviço do caminhão.
Ele sorriu para os
dois homens.
Por essa época Vito
Corleone não conhecia o efeito enregelante de seu sorriso. Ele sorriu como se
tivesse dito alguma piada particular que somente ele mesmo pudesse compreender.
Mas como sorria desse modo somente em assuntos mortais, e como a piada não era
realmente particular e como seus olhos não sorriam, e como sua personalidade
externa era geralmente tão sensata e calma, o desmascaramento repentino de seu
verdadeiro ego era assustador.
Clemenza balançou a cabeça.
— Não quero o dinheiro
— retrucou.
Vito meteu as notas no
bolso. E esperou. Eles todos se entendiam uns
aos outros. Sabiam que ele matara Fanucci, e embora jamais houvessem
falado sobre isso a qualquer pessoa, toda a redondeza, em poucas semanas, também
sabia. Vito Corleone era tratado como um “homem de respeito” por todo mundo.
Mas não fez qualquer tentativa para tomar conta das extorsões e tributos
cobrados pelo falecido Fanucci.
O que se seguiu então
foi inevitável. Uma noite, a mulher de Vito trouxe uma vizinha, uma viúva, ao
apartamento. A mulher era italiana e de caráter inatacável. Trabalhava
arduamente para manter um lar para os seus filhos sem pai. O filho de 16 anos
de idade trazia para casa o seu envelope de pagamento lacrado, para entregar a
ela no estilo da velha Itália; a filha de 17 anos, que era costureira, fazia o
mesmo. Toda a família pregava botões em cartões, à noite, a preço por peça de trabalho de escravo. O nome da mulher era
Signora Colombo.
A mulher de Vito
Corleone falou:
— A signora tem um
favor a pedir a você. Ela está tendo alguma dificuldade.
Vito Corleone esperava
que a mulher lhe pedisse algum dinheiro, o que ele estava disposto a dar. Mas
parece que a Sra. Colombo possuía um cachorro que o seu filho caçula adorava. O
senhorio recebera queixas contra o fato de o cachorro latir à noite e dissera à
Sra. Colombo para se livrar do animal. Ela fingira fazer isso. O senhorio
descobrira que ela o enganara e lhe havia ordenado que desocupasse o
apartamento. A mulher prometera dessa vez livrar-se realmente do cachorro e
havia feito isso. Mas o senhorio estava tão zangado que não queria revogar a
ordem. Ela teria de sair ou a polícia seria chamada para pô-la para fora. E o
seu pobre menino tinha chorado muito quando eles deram o cachorro a parentes
que viviam em Long Island. Assim, por um nada, eles perderiam o seu lar.
Vito Corleone
perguntou gentilmente à mulher:
— Por que a senhora me
pede para ajudá-la?
A Sra. Colombo apontou
para a esposa dele.
— Ela me disse para
pedir ao senhor.
Ele ficou surpreso.
Sua mulher nunca o interrogara sobre a roupa que ele lavara na noite em que
matara Fanucci. Nunca lhe perguntara de onde vinha todo o dinheiro quando ele
não estava trabalhando. Mesmo agora o seu rosto estava impassível. Vito disse
para a Sra. Colombo:
— Posso dar-lhe algum
dinheiro para ajudá-la a mudar-se, se é isso o que a senhora quer.
A mulher balançou a
cabeça, chorando.
— Todas as minhas
amigas estão aqui, todas as meninas com quem eu cresci na Itália. Como posso me
mudar para outro lugar onde só há estranhos? Quero que o senhor fale com o
senhorio para deixar que eu fique aqui.
Vito acenou com a
cabeça.
— Está feito, então. A
senhora não terá de se mudar. Falarei com ele amanhã de manhã.
A sua mulher deu-lhe
um sorriso que ele não conhecia, mas que sentiu satisfação em receber. A Sra.
Colombo parecia um pouco em dúvida.
— Tem certeza de que o
senhorio vai concordar? — perguntou ela.
— O Signor Roberto? — Vito perguntou com uma voz
de surpresa — Com certeza, ele dirá “sim”. Ele é um sujeito de bom
coração. Assim que eu explicar o que acontece com a senhora ele ficará com pena
de sua desgraça. Agora deixe de se preocupar com isso. Não fique tão
transtornada. Poupe a sua saúde, para o bem de seus filhos.
O senhorio, Sr.
Roberto, vinha ao local todo dia para inspecionar os cinco conjuntos de
moradias que ele possuía. Ele era um padrone,
um homem que vendia trabalhadores italianos recém-chegados para as grandes
companhias. Um homem educado do Norte da Itália, sentia apenas desprezo por esses
sulistas analfabetos da Sicília e de Nápoles que pululavam como vermes pelos
seus prédios, que atiravam lixo nas áreas internas, que deixavam as baratas e
os ratos roerem as suas paredes sem sequer levantarem a mão para preservarem a
propriedade dele. Não era um homem mau, era um bom marido e pai, mas tinha
constante preocupação a respeito de seus investimentos, a respeito do dinheiro
que ele ganhava, a respeito das despesas inevitáveis decorrentes do fato de ser ele um homem de propriedade, que tinha
reduzido os seus nervos a frangalhos, de forma que vivia num constante estado
de irritação. Quando Vito Corleone o deteve na rua para pedir-lhe que o ouvisse
por um minuto, o Sr. Roberto foi frio, mas não rude, pois qualquer um desses
sulistas podia enfiar uma faca no indivíduo que o irritasse, embora esse rapaz
parecesse ser um sujeito calmo.
— Signor Roberto —
disse Vito Corleone — A amiga de minha mulher, uma viúva pobre sem um homem
para protegê-la, contou-me que por algum motivo recebeu ordem para se mudar do
seu apartamento no edifício de propriedade do senhor. Ela está desesperada. Não
tem dinheiro, não tem amigas, a não ser as que vivem aqui. Eu disse a ela que
falaria com o senhor, que o senhor é um homem sensato que agiu assim por algum
mal-entendido. Ela livrou-se do animal que causou toda a confusão e, assim, por
que não deve ela ficar? De um italiano para outro, peço ao senhor que atenda ao
favor.
O Signor Roberto
estudava o homem postado diante de si. Viu um tipo de estatura média, mas de
constituição forte, um camponês, mas não um bandido, embora ele tão
irrisoriamente tivesse ousado chamar-se de italiano. O senhorio deu de ombros.
— Já aluguei o
apartamento a outra família por um preço mais alto — retrucou — Não posso
decepcionar essa família em benefício de sua amiga.
Vito Corleone acenou
com a cabeça numa compreensão razoável.
— Quanto mais por mês?
— perguntou ele.
— Cinco dólares —
respondeu o Sr. Roberto.
Isso era mentira. O
apartamento ferroviário, com quartos escuros, era alugado por doze dólares por
mês à viúva, e o Sr. Roberto não conseguiria arrancar mais do que isso do novo
inquilino.
Vito Corleone tirou um
maço de notas do bolso e destacou três notas de dez dólares.
— Aqui está o aumento
de seis meses adiantado. O senhor não precisa falar com ela sobre isso, ela é
uma mulher orgulhosa. Procure-me dentro de seis meses. Mas naturalmente o
senhor deixará que ela fique com o cachorro.
— Não me diga —
retrucou o Sr. Roberto — E quem diabo é você para me dar ordens! Tome cuidado
com os seus modos ou você será obrigado a voltar a andar no seu burrinho lá nas
ruas da Sicília.
Vito levantou as mãos
surpreso.
— Estou apenas pedindo
isso. Nunca se sabe quando se vai precisar de um amigo, não é verdade? Receba
esse dinheiro como sinal de minha boa vontade e tome a sua própria decisão. Eu
não me atreveria a brigar por causa disso — meteu o dinheiro na mão do Sr.
Roberto — Faça-me esse pequeno favor, receba o dinheiro e pense no assunto.
Amanhã de manhã, se o senhor quiser devolver o dinheiro, por quem é, faça-o. Se
o senhor quiser a mulher fora de sua casa, como posso impedir o senhor? Afinal
de contas, a propriedade é sua. Se o senhor não quer o cachorro lá, eu
compreendo. Eu mesmo não gosto de animais — bateu de leve no ombro do Sr.
Roberto — Faça-me esse serviço, sim? Não esquecerei isso. Informe-se com seus
amigos da redondeza sobre mim, eles lhe dirão que sou um homem que sabe mostrar
sua gratidão.
Mas naturalmente o Sr.
Roberto já começara a compreender. À tardinha, ele fez suas investigações sobre
Vito Corleone. Não esperou até a manhã seguinte. Bateu na porta de Corleone
naquela mesma noite, desculpando-se pelo adiantado da hora, e aceitou um copo
de vinho oferecido pela Signora Corleone. Assegurou a Vito Corleone que tudo
tinha sido um horrível mal-entendido, que naturalmente a Signora Colombo podia
continuar no apartamento e naturalmente podia ficar com o cachorro. Quem eram
esses miseráveis inquilinos para se queixarem do barulho de um pobre animal,
quando pagavam um aluguel tão baixo? No fim, puxou os trinta dólares que Vito
Corleone lhe tinha dado e os pôs sobre a mesa dizendo da maneira mais sincera:
— A sua bondade em
ajudar essa pobre viúva me envergonhou e desejo mostrar que eu também pratico a
caridade cristã. O aluguel dela continuará a ser o que era.
Todos os interessados
desempenharam essa comédia com perfeição. Vito serviu mais vinho, pediu à
mulher que trouxesse bolos, apertou a mão do Sr. Roberto e elogiou o seu
boníssimo coração. O Sr. Roberto suspirou e respondeu que ter travado conhecimento
com um homem como Vito Corleone restituía-lhe a fé na natureza humana.
Finalmente, separaram-se efusivamente um do outro. O Sr. Roberto, com os nervos
em pandarecos por ter escapado por um triz, pegou o bonde para a sua casa no
Bronx e foi dormir. Só reapareceu no local três dias depois.
Vito Corleone era
agora um “homem de respeito” nas redondezas. Era reputado como sendo um membro
da Máfia da Sicília. Um dia, um homem que mantinha jogos de cartas num quarto
mobiliado veio a ele e voluntariamente começou a pagar-lhe vinte dólares por
semana pela sua “amizade”. Vito tinha apenas de visitar o jogo uma ou duas
vezes por semana para que os jogadores compreendessem que estavam sob sua
proteção.
Os comerciantes que
tinham problemas com rapazes desordeiros pediam-lhe para intervir. Ele assim
fazia e era convenientemente recompensado. Logo passou a ter renda, enorme para
a época e o lugar, de cem dólares por semana. Desde que Clemenza e Tessio eram
seus amigos, seus aliados, Vito tinha de dar a cada um deles parte do dinheiro,
mas isso ele fazia sem que lhe pedissem. Finalmente resolveu entrar no negócio
de importação de azeite com seu companheiro de infância, Genco Abbandando.
Genco cuidaria do negócio, da importação do azeite da Itália, da compra ao preço
adequado, da armazenagem no estabelecimento do pai. Clemenza e Tessio seriam os
vendedores. Iriam a todas as mercearias italianas de Manhattan, em seguida às
do Brooklyn, depois às do Bronx, para persuadir os merceeiros a estocar o
azeite Genco Pura (com sua modéstia
típica, Vito Corleone recusou-se a dar o seu próprio nome à marca do produto).
Vito naturalmente seria o chefe da firma desde que estava fornecendo a maior
parte do capital. Também seria chamado em casos especiais em que merceeiros
resistissem às conversas de venda de Clemenza e Tessio. Então Vito Corleone
usaria os seus próprios poderes de persuasão.
Durante os anos
seguintes, Vito Corleone levou a vida plenamente satisfatória de um pequeno
comerciante inteiramente dedicado a consolidar sua empresa comercial numa
economia dinâmica e em expansão. Ele era um pai e marido dedicado, mas tão
ocupado que não podia devotar muito de seu tempo à família. À proporção que o
azeite Genco Pura se tornava o óleo
italiano importado mais vendido na América, a sua organização expandia-se
rapidamente. Como qualquer bom negociante, começou a compreender os benefícios
de suplantar os concorrentes vendendo por preço mais baixo, dificultando-lhes a
distribuição por persuadir os merceeiros a estocar menos das marcas deles. Como
qualquer bom negociante, Vito visava a conseguir um monopólio forçando os
concorrentes a abandonar o campo ou fundir-se com a sua própria companhia.
Contudo, desde que se iniciara relativamente fraco, economicamente, desde que
não acreditava na publicidade, confiando apenas na palavra falada, e desde que,
para dizer a verdade, seu azeite não era melhor do que o dos seus competidores,
ele não podia usar os golpes decisivos comuns dos negociantes legítimos. Tinha
de confiar na força de sua própria personalidade e na sua reputação de “homem
de respeito”.
Embora sendo um homem
moço, Vito Corleone tornou-se conhecido como um “homem sensato”. Nunca
pronunciava uma ameaça. Sempre usava a lógica, que era realmente irresistível.
Sempre assegurava que o outro cara teria a sua parte de lucro. Ninguém perdia.
Ele fazia isso, naturalmente, por meios óbvios. Como muitos negociantes de
gênio, ele entendia que a concorrência livre era ruinosa, o monopólio era
eficiente. E assim simplesmente procurava conseguir esse monopólio eficiente.
Havia atacadistas de azeite, no Brooklyn, homens de temperamento irritável,
teimosos, contrários à razão, que se recusavam a perceber, a reconhecer, a
visão de Vito Corleone, mesmo depois que ele tinha explicado tudo a eles com a
maior paciência e os mínimos detalhes. Com esses homens, Vito Corleone
levantava os braços em desespero e mandava Tessio ao Brooklyn para instalar o
quartel-general e resolver o problema. Armazéns eram incendiados, caminhões
carregados de azeite eram propositadamente tombados e o líquido oleoso se
espalhava formando lagos nas ruas calçadas do cais. Um homem impetuoso, um
milanês arrogante com mais fé na polícia do que um santo tinha em Cristo,
realmente procurara as autoridades para apresentar queixa contra seus
compatriotas italianos, infringindo a lei de dez séculos da omertà. Mas antes que a questão pudesse
ir um pouco adiante, o atacadista desapareceu, para nunca mais ser visto,
abandonando sua dedicada esposa e três filhos, que, graças a Deus, já estavam
bem crescidos e em condições de tomar conta do negócio e chegar a um acordo com
a Companhia de Azeite Genco Pura.
Mas os grandes homens
não nascem grandes, tornam-se grandes, e era isso o que acontecia com Vito
Corleone. Quando a Lei Seca foi aprovada e o álcool proibido de ser vendido,
Vito Corleone deu o passo final de um negociante tipicamente comum, um tanto
cruel, para se tornar um grande Don no mundo do empreendimento criminoso. Não
aconteceu num dia, não aconteceu num ano, mas, no fim do período da Lei Seca e
começo da Grande Depressão, Vito Corleone se tornara o Padrinho, o Don, Don
Corleone.
Isso começou de modo
bem casual. Nessa época, a Companhia de Azeite Genco Pura tinha uma frota de
seis caminhões de entrega. Por intermédio de Clemenza, Vito Corleone entrou em
contato com um grupo de contrabandistas italianos que traziam bebidas
alcoólicas e uísque do Canadá. Precisavam de caminhões e entregadores para
distribuir seu produto em Nova York. Entregadores que fossem de confiança,
discretos e tivessem alguma determinação e força. Queriam pagar a Vito Corleone
pela utilização de seus caminhões e de seus homens. A remuneração era tão
grande que Vito Corleoiie reduziu drasticamente seu negócio de azeite para usar
os caminhões quase exclusivamente para o serviço dos contrabandistas de
bebidas. Isso a despeito do fato de que esses cavalheiros tinham feito a sua
oferta acompanhada de uma ameaça delicada. Mas mesmo então Vito Corleone era um
homem tão circunspecto que não se considerou insultado com a ameaça, nem se
zangou, tam pouco recusou uma oferta bastante lucrativa por causa disso.
Avaliou a ameaça, achou-a pouco convincente, e o seu conceito dos seus novos
parceiros baixou porque eles tinham sido tão estúpidos para usar ameaças onde
não havia a menor necessidade. Isso era uma informação útil a ser ponderada no
devido momento.
Ele prosperou
novamente. Porém, mais importante ainda, adquiriu conhecimento, contatos e
experiência. E acumulou boas ações como um banqueiro acumula valores
mobiliários. Pois nos anos seguintes ficou claro que Vito Corleone não era
apenas um homem de talento, mas, a seu modo, um gênio.
Tornou-se o protetor
das famílias italianas que se estabeleciam com pequenos bares clandestinos em
suas próprias casas, vendendo uísque a quinze centavos o copo a trabalhadores
solteiros. Tornou-se padrinho do filho caçula da Sra Colombo quando o menino
recebeu a crisma e deu um belo presente de uma moeda de ouro de vinte dólares.
Entrementes, desde que era inevitável que alguns dos seus caminhões fossem
detidos pela polícia, Genco Abbandando contratou um excelente advogado com
muitos elementos de contato no Departamento da Polícia e no Judiciário. Um
sistema de gratificações foi estabelecido e logo a organização Corleone passou
a ter uma “folha” enorme, a lista de funcionários habilitados a receber uma
quantia mensal. Quando o advogado procurou reduzir a lista, alegando a grande
despesa, Vito Corleone tranqüilizou-o.
— Não, não — disse ele
— Mantenha todo mundo nela, mesmo as pessoas que não nos podem ajudar agora.
Acredito na amizade e quero mostrar a minha amizade primeiro.
À medida que o tempo
passava, o império de Corleone se tornava maior, mais caminhões eram agregados
à frota, a “folha” se tornava maior. Também os homens que trabalhavam
diretamente para Tessio e Clemenza aumentavam em número. Toda a coisa estava se
tornando difícil de controlar. Finalmente Vito Corleone concebeu um sistema de
organização.
Deu a Clemenza e
Tessio, isto é, a cada um dos dois, o título de caporegime, ou capitão, e aos homens que trabalhavam sob as ordens
deles a graduação de soldados.
Designou Genco Abbandando seu conselheiro, ou consigliori. Pôs camadas de isolamento entre ele mesmo e qualquer
ato operacional. Quando dava uma ordem era a Genco ou a um dos seus caporegimes a sós. Raramente tinha
testemunha para ouvir qualquer ordem que ele desse a qualquer um deles. Depois
separou o grupo de Tessio e o fez responsável pelo Brooklyn. Mais tarde também
separou Tessio de Clemenza e tornou claro com o decorrer dos anos que não
queria que os dois homens se ligassem nem sequer socialmente, a não ser quando
absolutamente necessário. Explicou isso ao mais inteligente, Tessio que
compreendeu imediatamente a intenção de Corleone embora este explicasse a coisa
como sendo uma medida de segurança contra a lei. Tessio compreendeu que Vito
não queria que os seus dois caporegimes
tivessem oportunidade de conspirar contra ele, embora também compreendesse que
não havia má vontade nisso, era apenas uma precaução tática. Em troca, Vito deu
a Tessio plena liberdade de ação no Brooklyn, enquanto conservava o feudo do
Bronx, de Clemenza, muito mais sob o seu próprio domínio. Clemenza era o homem
mais valente, mais arrojado, mais cruel, apesar de sua jovialidade externa, e
precisava de um controle mais severo.
A Grande Depressão
aumentou o poder de Vito Corleone. E na verdade foi por essa época que ele
passou a ser chamado de Don Corleone. Em todas as partes da cidade, homens
honestos solicitavam trabalho honesto em vão. Homens orgulhosos rebaixavam a si
mesmos e as suas famílias para aceitarem a caridade oficial de um funcionalismo
insolente. Mas os homens de Don Corleone andavam pelas ruas de cabeça erguida,
com os bolsos abarrotados de dinheiro. Sem qualquer medo de perder o emprego. E
até Don Corleone, o mais modesto dos homens não podia deixar de sentir um pouco
de orgulho. Ele estava cuidando de seu mundo, seu povo. Não havia faltado
àqueles que dependiam dele e que lhe deram o suor do seu rosto, arriscaram sua
liberdade e sua vida trabalhando para ele. E quando um empregado dele era preso
e mandado para a prisão por qualquer infortúnio a família desse homem recebia
uma mesada e não era uma esmola — miserável, mesquinha — dada de má vontade mas
a mesma quantia que o homem ganhava quando solto.
Isso naturalmente não
era pura caridade cristã. Nem seus melhores amigos chamariam Don Corleone de um
santo do céu. Havia um interesse oculto nessa generosidade. Um empregado
mandado à prisão sabia que tinha apenas de manter-se calado para que a sua mulher
e filhos recebessem os cuidados necessários. Sabia que se não informasse à
polícia seria calorosamente recebido quando saísse da prisão. Haveria uma festa
esperando por ele em sua casa, a melhor comida, ravióli, vinho e pastéis, tudo
feito em casa, com todos os amigos e parentes reunidos para festejar a sua
libertação. E às vezes durante a noite o consigliori
Genco Abbandando, ou talvez o próprio Don Corleone, fazia uma rápida visita
para apresentar os seus respeitos a esse homem tão corajoso, tomava um copo de
vinho em sua honra e deixava um belo presente em dinheiro, a fim de que ele
pudesse gozar uma semana ou duas de folga com a família antes de retornar à sua
faina diária. Tal era a infinita piedade e
compreensão de Don Corleone.
Foi por essa época que
Don Corleone concebeu a idéia de que dirigia o seu mundo muito melhor do que os
seus inimigos dirigiam o mundo maior que continuamente obstruía o seu caminho.
E esse sentimento era alimentado também pela gente pobre da redondeza que
constantemente lhe vinha pedir ajuda. Para conseguir um auxílio da previdência
social, arranjar emprego para um rapaz ou tirar outro da cadeia, para tomar
emprestada uma soma de dinheiro desesperadamente necessitada, para intervir
junto aos senhorios que contra todas as razões exigiam aluguel dos inquilinos
desempregados.
Don Vito Corleone
ajudava todos eles de boa vontade, com palavras de estímulo para tirar o gosto
amargo da caridade que lhes fazia. Era portanto natural que quando esses
italianos estavam atrapalhados ou confusos sobre quem votar para representá-los
no legislativo estadual, nos cargos municipais, no Congresso, pedissem o
conselho do amigo Don Corleone, Padrinho deles. E assim ele se tomou um poder
político a ser consultado pelos chefes de partido práticos. Consolidou esse
poder com uma inteligência de estadista de longo alcance; ajudando rapazes
brilhantes de famílias italianas a freqüentar faculdades, rapazes que se
tornariam advogados, promotores públicos e até juízes. Planejava o futuro do
seu império com toda a previsão de um grande líder nacional.
A revogação da Lei
Seca representou um golpe tremendo para o seu império, mas outra vez ele tomara
suas precauções. Em 1933, enviou emissários para o homem que controlava todas
as atividades de jogo de Manhattan, o jogo de dados nas docas, a agiotagem, a
aceitação de apostas clandestinas em esportes e corridas de cavalos, as casas
que mantinham o jogo de pôquer; a política ou a extorsão das fábricas de roupas
feitas do Harlem. O nome desse homem era Salvatore Maranzano, sendo ele um dos
reconhecidos pezzonovanti, chefões, figurões do submundo de Nova York. Os
emissários de Corleone, com sua organização, sua política e contatos políticos,
podiam dar às operações de Maranzano uma proteção vigorosa e a nova força de expandir-se
pelo Brooklyn e pelo Bronx. Mas Maranzano era um homem de pouca visão e
rejeitou a proposta de Corleone com desprezo. O grande Al Capone era amigo de
Maranzano, e ele tinha a sua própria organização, os seus próprios homens, mais
um enorme aparelhamento bélico. Não daria confiança a esse impostor cuja
reputação era mais de um negociador do que de um verdadeiro mafioso. A recusa
de Maranzano desencadeou a grande guerra de 1933 que mudaria toda a estrutura
do submundo de Nova York.
À primeira vista, parecia
uma luta desigual. Salvatore Maranzano tinha uma organização poderosa e
capangas bem treinados. Mantinha amizade com Capone em Chicago e podia pedir
ajuda nesse setor. Também mantinha relações com a Família Tattaglia, que
controlava a prostituição na cidade e o que havia do fraco tráfico de
entorpecentes naquela época. Tinha igualmente contatos políticos com poderosos
líderes dos negócios que utilizavam seus capangas para aterrorizar os
sindicalistas judeus do setor de roupas feitas e os sindicatos anarquistas
italianos dos operários de construção.
Contra isso, Don
Corleone podia lançar dois pequenos, mas soberbamente organizados, regimes
dirigidos por Clemenza e Tessio. Os seus contatos políticos e policiais seriam
anulados pelos líderes dos negócios que suportariam Maranzano. Mas a seu favor
estava a falta de informações do inimigo sobre a sua organização. O submundo
ignorava a verdadeira força de seus soldados e até tinha sido enganosamente
levado a pensar que Tessio, no Brooklyn, era uma operação separada e
independente.
Entretanto, apesar de
tudo isso, foi uma batalha desigual até que Vito Corleone equilibrou as coisas
com um golpe de mestre.
Maranzano pediu a
Capone que enviasse os seus dois melhores pistoleiros a Nova York para eliminar
o impostor. A Família Corleone tinha amigos e informantes em Chicago que
transmitiram a notícia de que os dois pistoleiros estavam chegando de trem.
Vito Corleone despachou Luca Brasi para cuidar deles com instruções que
deixariam à solta os seus instintos mais selvagens.
Brasi e sua gente,
quatro de seus homens, receberam os pistoleiros de Chicago na estação
ferroviária. Um dos homens de Brasi conseguiu um táxi, e, tomando o lugar do
motorista, o conduziu para executar o serviço, em combinação com o carregador
da estação, que, pegando a bagagem, levou os dois homens de Capone para esse
táxi. Quando eles entraram no carro, Brasi e outro de seus homens entraram
atrás dele, de armas em punho, e fizeram os dois pistoleiros de Chicago
deitarem no chão do veículo. O táxi foi levado para um armazém perto das docas
que Brasi tinha preparado para eles.
Os dois homens de
Capone tiveram as mãos e os pés amarrados, e pequenas toalhas de enxugar mão
foram metidas na boca dos dois para evitar que gritassem.
Então Brasi apanhou um
machado que estava encostado na parede e começou a retalhar um dos homens de
Capone. Cortou um dos pés arrancando-o, depois as pernas na altura dos joelhos,
e em seguida as coxas, no lugar em que se uniam com o tronco. Brasi era um
homem extremamente forte, mas teve de dar vários golpes com o machado para
alcançar sua finalidade. Nessa altura, naturalmente, a vítima já tinha entregue
a alma ao Criador e o chão do armazém estava escorregadio com os fragmentos
talhados a machado de sua carne e os salpicos de sangue. Quando Brasi se voltou
para a segunda vítima, verificou já ser desnecessário qualquer esforço. O
segundo pistoleiro de Capone, aterrorizado, havia incrivelmente engolido a
toalha de mão e se sufocado. A toalha foi encontrada no estômago do homem quando
a polícia fez a autópsia para determinar a causa da morte.
Alguns dias depois, em
Chicago, Capone recebeu uma mensagem de Vito Corleone. Dizia o seguinte: “Você sabe agora como eu trato os inimigos.
Por que um napolitano tem de se meter numa briga entre sicilianos? Se você quer
que eu o considere como amigo, eu lhe devo um serviço que pagarei quando for
preciso. Um homem como você deve saber como é muito mais vantajoso ter um amigo
que, em lugar de pedir ajuda a você, cuida de seus próprios negócios e está
sempre pronto para ajudar você em algum momento futuro de dificuldade. Se você
não deseja a minha amizade, assim seja. Mas então devo dizer-lhe que o clima
nesta cidade é úmido, insalubre, para os napolitanos, sendo aconselhável que
você nunca a visite”.
A arrogância desta
carta era calculada. Don Corleone tinha o grupo
de Capone em baixo conceito, considerando-os como assassinos estúpidos e
óbvios. Seus informantes comunicaram-lhe que Capone perdera toda a influência
política devido à sua arrogância pública e à ostentação de sua riqueza
criminosa. Don Corleone sabia, de fato era positivo, que, sem influência
política, sem a camuflagem da sociedade, o mundo de Capone e outros como ele
seria facilmente destruído. Sabia que Capone estava a caminho da destruição.
Sabia também que a influência de Capone não ultrapassava os limites de Chicago,
por mais terrível e penetrante que essa influência pudesse ser.
A tática surtiu
efeito. Não tanto devido à sua ferocidade, mas devido à rapidez fria, à
instantaneidade da reação de Don Corleone. Se o seu serviço de informações era
tão bom, qualquer passo que se tentasse dar estaria prenhe de perigo. Era
melhor, mais prudente, aceitar a oferta de amizade com a sua implícita
recompensa. O grupo de Capone respondeu que não se meteria na briga.
As coisas agora
estavam equilibradas. E Vito Corleone conquistara um bocado de “respeito” em
todo o submundo dos Estados Unidos com a humilhação do grupo de Capone. Durante
seis meses, Don Corleone levou a melhor sobre Maranzano. Atacou os jogos de
dados sob a proteção desse gangster, localizou o seu maior banqueiro político
no Harlem e o “aliviou” do jogo de um dia, não somente em dinheiro, mas também
em outras coisas. Brigou com os inimigos em todas
as frentes. Mesmo no setor das roupas feitas, ele enviou Clemenza e seus
homens para lutar do lado dos sindicalistas contra os capangas pagos por
Maranzano e os donos das lojas de vestidos. E em todas as frentes seu eficiente
serviço de informações e sua organização superior o tornaram vencedor. A
ferocidade jovial de Clemenza, que Corleone empregava judiciosamente, também
contribuía para virar a sorte da batalha. E então Don Corleone mandou o regime
de Tessio, que estava sendo mantido na reserva, atacar o próprio Maranzano.
Nessa altura, Maranzano
havia enviado emissários pedindo paz. Vito Corleone recusou-se a recebê-los,
esquivando-se deles com base num ou noutro pretexto. Os soldados de Maranzano
começaram a abandonar o líder por não desejarem morrer por uma causa perdida.
Os bookmakers e agiotas passaram a
pagar à organização Corleone a sua proteção. A guerra estava quase terminada.
Então, finalmente, na
véspera de Ano Novo, em 1933, Tessio penetrou nas defesas do próprio Maranzano.
Os lugares-tenentes de Maranzano estavam ansiosos para entrar em acordo e
aceitaram em levar o chefe para o local de sacrifício. Disseram-lhe que tinham
combinado uma reunião num restaurante do Brooklyn com Corleone e o acompanharam
como guarda-costas. Deixaram-no sentado numa mesa axadrezada, mastigando lentamente
um pedaço de pão, e fugiram do restaurante quando Tessio e quatro de seus
homens entraram. A execução foi rápida e certeira. Maranzano, com a boca cheia
de pão meio mastigado, foi crivado de balas.
A guerra terminara.
O império de Maranzano
foi incorporado à organização de Corleone. Don Corleone estabeleceu um sistema
de tributo, permitindo que todos os
titulares permanecessem em seus lugares de bookmakers e controladores sindicais. Em compensação, passou a ter
apoio nos sindicatos do setor de roupas feitas, o que nos anos vindouros se
tornaria extremamente importante. E agora que havia resolvido seus negócios,
Don Corleone viu-se às voltas com dificuldades domésticas.
Santino Corleone,
Sonny, estava com 16 anos de idade e uma altura espantosa de 1,80m, ombros
largos e um rosto grave e um tanto sensual, mas de modo algum afeminado. Porém,
enquanto Fredo era um menino sossegado e Michael, naturalmente um fedelho,
Santino estava constantemente metido em complicações. Vivia brigando na rua,
era mau aluno na escola e, finalmente, Clemenza, que era o padrinho do rapaz e
tinha o dever de falar, veio a Don Corleone uma noite e informou-o de que o
filho tomara parte num assalto à mão armada, uma aventura estúpida que podia
ter conseqüências bem desagradáveis. Sonny era obviamente o chefe do bando,
sendo que os outros dois rapazes que participaram do assalto eram seus
subordinados.
Foi uma das
pouquíssimas vezes em que Vito Corleone perdeu as estribeiras. Tom Hagen já
vivia em sua casa há três anos, e ele perguntou a Clemenza se esse rapaz órfão
tinha-se envolvido no assalto. Clemenza balançou a cabeça negativamente. Don
Corleone mandou um carro apanhar Santino e levá-lo ao seu escritório na
Companhia de Azeite Genco Pura.
Pela primeira vez, Don
Corleone enfrentava a derrota. Sozinho com o filho, deixou transbordar sua ira,
xingando o grandalhão Sonny em dialeto siciliano, uma língua muito mais
satisfatória do que qualquer outra para se expressar ira. Terminou perguntando:
— Que é que lhe deu o
direito de cometer essa besteira? Que foi que fez você desejar cometer tal ato?
— Sonny estava ali em pé, zangado, recusando-se, a responder. Don Corleone
disse com desprezo — É tão estúpido. Que foi que vocês ganharam com essa noite
de trabalho? Cinqüenta dólares cada um? Vinte dólares? Você arriscou sua vida
por vinte dólares, hem?
Como se não tivesse
ouvido estas últimas palavras, Sonny respondeu desafiadoramente:
— Eu vi você matar
Fanucci.
— Ah, ah — retrucou
Don Corleone, e voltou a afundar-se na poltrona, esperando.
— Quando Fanucci
deixou o edifício — acrescentou Sonny — Mamãe disse que eu podia subir para
casa. Vi você subir pelo telhado e segui você. Vi tudo o que você fez. Fiquei
ali e vi você jogar fora a carteira e a arma.
Don Corleone suspirou.
— Bem, então não posso
falar com você sobre como você tem de se comportar. Você não quer acabar a
escola, você não quer ser advogado? Os advogados podem roubar mais dinheiro com
uma pasta do que mil homens com armas e máscaras.
Sonny arreganhou os
dentes para ele e disse manhosamente:
— Quero entrar no
negócio da Família.
Quando viu que o rosto
de Don Corleone continuava impassível, que ele não rira da piada, Sonny
acrescentou prontamente:
— Quero aprender a
vender azeite.
Don Corleone também
não respondeu. Finalmente, deu de ombros.
— Todo homem tem um
destino — sentenciou. Não acrescentou que o fato de o filho ter testemunhado o
assassinato de Fanucci decidira o destino de Sonny. Ele apenas virou-se para o
outro lado e falou calmamente — Venha amanhã às nove horas. Genco mostrará a
você o que fazer.
Mas Genco Abbandando,
com aquela intuição sagaz que um consigliori
deve ter, compreendeu a verdadeira intenção de Don Corleone e passou a usar
Sonny principalmente como guarda-costas do pai, uma posição na qual ele podia
também aprender as sutilezas de ser um Don. E isso pôs em relevo o instinto
professoral do próprio Don Corleone, que começou a dar ao filho mais velho
preleções sobre como deveria sucedê-lo.
Além de repetir amiúde
a teoria de que um homem tem apenas um destino, Don Corleone constantemente
censurava Sonny pelas suas explosões temperamentais. Don Corleone considerava a
utilização de ameaças como a mais tola atitude: o desencadeamento de raiva sem
premeditação como a atitude habitual mais perigosa. Ninguém jamais ouvira Don
Corleone pronunciar uma simples ameaça, ninguém jamais o vira numa raiva
incontrolável. Era inconcebível. E assim ele procurava ensinar a Sonny suas
próprias disciplinas. Alegava que não havia maior vantagem natural na vida do
que ter um inimigo que sobrestimasse nossos defeitos, a não ser ter um amigo
que subestimasse nossas virtudes.
O caporegime Clemenza tomou Sonny pela mão e ensinou-lhe a atirar e a
manejar o garrote. Sonny não apreciava a corda italiana, ele era muito americanizado. Preferia o simples,
direto, impessoal revólver anglo-saxão, o que entristecia Clemenza. Mas
Sonny tornou-se um constante e agradável
companheiro do pai, dirigindo o carro dele, ajudando-o nos pequenos detalhes.
Nos dois anos seguintes, ele se parecia com qualquer filho que tivesse
entrado no negócio do pai, nem muito brilhante, nem muito ansioso, contente por
ter um trabalho leve.
Entrementes, seu
companheiro de infância e irmão semi-adotivo Tom Hagen freqüentava a faculdade.
Fredo estava ainda na escola secundária; Michael, o irmão menor, cursava a
escola primária, e a irmãzinha Connie era um fedelho de quatro anos de idade. A
família há muito se mudara para um edifício de apartamentos no Bronx. Don
Corleone estava considerando a possibilidade de comprar uma casa em Long
Island, mas queria enquadrar isso em outros planos que estava formulando.
Vito Corleone era um
homem de visão. Todas as grandes cidades da América estavam travando uma luta
tremenda no submundo. Guerrilhas rebentavam em toda parte, “maus elementos”
ambiciosos procuravam arrancar para si um pedaço do império; homens como o
próprio Corleone procuravam garantir as suas fronteiras e os seus negócios de
extorsão. Don Corleone via que os jornais e as entidades governamentais estavam
usando esses assassinatos para conseguir leis cada vez mais rigorosas, para
empregar métodos policiais mais severos. Previu que a indignação pública podia
até levar à suspensão do processo democrático, o que poderia ser fatal para ele
e sua gente. Seu próprio império, internamente, se achava seguro. Ele resolveu
estabelecer a paz entre todas as facções em guerra em Nova York e depois no
país inteiro.
Não tinha ilusões
sobre a periculosidade de sua missão. Passou o primeiro ano encontrando-se com
os diferentes chefes das quadrilhas de Nova York, fundando os alicerces,
sondando-os, propondo esferas de influência que seriam honradas por um conselho
confederado voluntariamente ligado. Mas havia inúmeras facções, inúmeros
interesses especiais que entravam em conflito. Um acordo era impossível. Como
outros grandes governantes e legisladores da história, Don Corleone resolveu
que a ordem e a paz eram impossíveis até que se reduzisse o número de Estados reinantes a uma quantidade controlável.
Havia cinco ou seis
“Famílias” muito poderosas para serem eliminadas. Mas o resto — os terroristas
da Mão Negra, os agiotas franco-atiradores, os bookmakers valentes que operavam
sem a adequada, isto é, paga, proteção das autoridades legais — teria de
desaparecer. E assim ele montou o que foi com efeito uma guerra colonial contra
essa gente e lançou todos os recursos da organização Corleone contra ela.
A pacificação da área
de Nova York levou três anos e teve algumas recompensas inesperadas. A
princípio, tomou a forma de azar. Um grupo de assaltantes irlandeses
enfurecidos, que Don Corleone marcara para ser exterminado, quase leva a melhor
com um simples golpe de audácia. Por sorte, e com uma bravura suicida, um
desses pistoleiros irlandeses furou o cordão de proteão de Don Corleone e
deu-lhe um tiro no peito. O assassino foi imediatamente crivado de balas, mas o
mal estava feito.
Contudo, isso deu a
Santino Corleone sua oportunidade. Com o pai fora de ação, Sonny assumiu o
comando de uma tropa, seu próprio regime, com o posto de caporegime, e como um jovem não-anunciado Napoleão mostrou a sua
genialidade para a guerrilha urbana. Mostrou também uma crueldade impiedosa,
cuja falta era o único defeito que se podia atribuir a Don Corleone como
conquistador.
De 1935 a 1937, Sonny
Corleone ganhou reputação como o mais astuto e implacável algoz que o submundo
já conhecera. Contudo, no que diz respeito ao simples terror, mesmo ele foi
eclipsado pelo homem pavoroso chamado Luca Brasi.
Foi Brasi que
perseguiu o resto dos pistoleiros irlandeses e, sem ajuda de ninguém, eliminou
todos eles. Foi Brasi, operando sozinho quando uma das seis poderosas Famílias
procurou intrometer-se e tornar-se protetora dos independentes, que assassinou
o chefe dessa Família como uma advertência. Pouco depois, Don Corleone
restabeleceu-se de seu ferimento e fez a paz com essa Família.
Em 1937, a paz e a
harmonia reinavam em Nova York, exceto no que dizia respeito a pequenos
incidentes, pequenos mal-entendidos que eram, naturalmente, às vezes fatais.
Tal como os
governantes das cidades antigas, que mantinham vigilância sobre as tribos
bárbaras que rondavam seus muros, assim também Don Corleone mantinha um olhar
atento sobre os negócios do mundo fora do seu. Notou a ascensão de Hitler, a
queda da Espanha, a valentia da Alemanha contra a Inglaterra em Munique. Não se
deixando ofuscar por esse mundo exterior, viu claramente a aproximação da
guerra mundial e compreendeu suas implicações. Seu próprio mundo ficaria mais
inexpugnável do que antes. Não somente isso, fortunas podiam ser feitas em
tempo de guerra por gente esperta e de previsão. Mas para fazer isso, a paz
devia reinar em seu domínio, enquanto a guerra campeava no mundo exterior.
Don Corleone levou sua
mensagem através dos Estados Unidos. Conferenciou com compatriotas em Los
Angeles, São Francisco, Cleveland, Chicago, Filadélfia, Miami e Boston. Ele era
o apóstolo da paz do submundo e, em 1939, obtendo mais êxito do que qualquer
papa, havia conseguido um acordo efetivo entre as mais poderosas organizações
do submundo do país. Tal como a Constituição dos Estados Unidos, esse acordo
respeitava plenamente a autoridade interna de cada membro em seu Estado ou
cidade. O acordo abrangia apenas esferas de influência e um trato para garantir
a paz no submundo.
E assim, quando a II
Guerra Mundial irrompeu em 1939, quando os Estados Unidos entraram no conflito
em 1941, o mundo de Vito Corleone estava em paz, em ordem, plenamente preparado
para colher a safra de ouro em igualdade de condições com todas as outras
indústrias da progressista América. A Família Corleone tinha seu domínio sobre
o fornecimento, no câmbio negro, de cupões de racionamento de alimentos e de
gasolina, e até prioridades para viagens. Podia ajudar a conseguir contratos de
guerra e depois ajudar a conseguir, no câmbio negro, os materiais para aquelas
firmas de confecção de roupas feitas que não podiam obter matéria-prima
suficiente porque não tinha contratos com o governo. Podia até conseguir que
todos os jovens de sua organização, aqueles em idade de ser convocados para o
Exército, fossem isentos de lutar na guerra estrangeira. Fazia isso com o
auxílio de médicos que aconselhavam os preparados farmacêuticos que deviam ser
tomados antes do exame físico, ou colocando os rapazes em posições isentas de
convocação nas indústrias de guerra.
E assim Don Corleone
podia orgulhar-se de sua atividade como dirigente. Seu mundo era seguro para
aqueles que lhe haviam jurado lealdade; outros homens que acreditavam na lei e
ordem estavam morrendo aos milhões. A única coisa que lhe causara grande
contrariedade foi que o seu próprio filho, Michael Corleone, recusou-se a ser
ajudado, insistiu em se apresentar como voluntário para servir o seu país. E,
para espanto de Don Corleone, assim fizeram alguns dos outros rapazes da
organização. Um dos homens, procurando explicar isso a seu caporegime, disse:
— Este país tem sido
bom para mim.
Depois que essa
história foi contada a Don Corleone, ele retrucou raivosamente para o
caporegime:
— Eu fui bom para esse
rapaz.
As coisas podiam
tornar-se desagradáveis para essa gente, mas, como ele havia perdoado seu filho
Michael, devia perdoar também os outros rapazes que haviam interpretado
erroneamente o seu dever para com o seu Don e eles mesmos.
No término da II
Guerra Mundial, Don Corleone sabia que o seu mundo teria novamente de mudar os
seus processos, que teria de se enquadrar mais ajustadamente aos processos do
outro mundo maior. Ele acreditava que podia fazer isso sem qualquer prejuízo
econômico ou financeiro.
Não havia motivo para
essa crença em sua própria experiência. O que o pusera na pista certa foram
dois negócios pessoais. No começo de sua carreira, o então jovem Nazorine, que
era apenas um ajudante de padeiro que pretendia se casar, viera pedir-lhe
auxilio. Ele e sua futura esposa, uma boa moça italiana, tinham economizado
dinheiro e pago a elevada quantia de trezentos dólares a um atacadista de
móveis que lhe fora recomendado. Esse atacadista deixara-os escolher tudo o que
quiseram para mobiliar o futuro apartamento do casal. Um lindo dormitório de
material de primeira com duas cômodas e abajures. Também uma sala de estar com
um sofá bem estofado e poltronas, tudo forrado com um lindo pano com fio de
ouro. Nazorine e sua noiva passaram um dia feliz escolhendo o que desejavam do
enorme depósito abarrotado de móveis. O atacadista recebeu o dinheiro, os
trezentos dólares arduamente ganhos com o suor de seu sangue, enfiou-o no bolso
e prometeu que a mobília seria entregue dentro de uma semana no já alugado
apartamento.
Exatamente na semana
seguinte, porém, a firma falira. O grande depósito cheio de móveis fora fechado
e lacrado e destinado ao pagamento dos credores. O atacadista desaparecera para
dar aos outros credores tempo suficiente para desabafar livremente a sua raiva.
Nazorine, um destes últimos, foi ao seu advogado, que lhe informou que nada
podia ser feito enquanto o caso não fosse resolvido no tribunal e todos os
credores satisfeitos. Isso levaria três anos e Nazorine teria sorte se
conseguisse recuperar dez centavos de cada dólar.
Vito Corleone ouvia
essa história com sarcástica descrença. Não era possível que a lei pudesse
permitir tal roubo. O atacadista possuía seu próprio palacete residencial, uma
propriedade em Long lsland, um automóvel de luxo, e pagava a faculdade para os
filhos. Como podia ficar com os trezentos dólares do pobre padeiro Nazorine e
não entregar-lhe os móveis que ele já havia pago? Mas, para certificar-se, Vito
Corleone mandou Genco Abbandando consultar os advogados que representavam a
Companhia Genco Pura.
Eles verificaram a
história de Nazorine. O atacadista tinha toda a sua riqueza pessoal no nome da
esposa. O negócio de móveis era uma sociedade anônima e ele não era
pessoalmente responsável. Na verdade, ele demonstrara má fé ao receber o
dinheiro de Nazorine, quando sabia que ia pedir falência, mas isso era uma
prática comum. Segundo a lei, nada se podia fazer.
Naturalmente a questão
foi facilmente ajustada. Don Corleone mandou seu consigliori, Genco Abbandando, falar com o negociante, e, como era
esperado, o homem compreendeu imediatamente a situação e providenciou para que
Nazorine recebesse os seus móveis. Mas foi uma lição interessante para o jovem
Vito Corleone.
O segundo incidente
teve repercussões mais amplas. Em 1939, Don Corleone resolvera mudar a família
para fora da cidade. Tal como qualquer outro pai, ele queria que os filhos
freqüentassem escolas melhores e tivessem companheiros de nível social elevado.
Por interesse pessoal, ele preferia o anonimato da vida suburbana, onde a sua
reputação não era conhecida. Comprou a propriedade da alameda em Long Beach, a
qual naquela época tinha apenas quatro casas recém-terminadas, mas bastante
espaço para a construção de outras mais. Sonny estava formalmente comprometido
com Sandra e logo se casaria, e uma das casas seria para ele. Outra se
destinava ao próprio Don Corleone. A terceira para Genco Abbandando e sua
família. A última ficaria vazia por enquanto.
Uma semana depois que
a alameda foi ocupada, um grupo de três trabalhadores chegou, com toda a
inocência, com seu caminhão. Alegaram que eram inspetores de forno da cidade de
Long Beach. Um dos jovens guarda costas de Don Corleone deixou os homens
entrarem e os conduziu até o forno situado no porão. Don Corleone, sua mulher e
Sonny estavam no jardim descansando e aspirando o ar da praia.
Para grande aborrecimento de Don Corleone, ele
foi chamado para ir até a casa pelo
seu guarda-costas. Os três trabalhadores, todos sujeitos grandes e
fortes, estavam agrupados em torno do forno. O chefe, um homem autoritário,
falou para Don Corleone com voz ríspida:
— Seu forno está em
péssimas condições. Se o senhor quiser que a gente o conserte e o refaça, terá
de pagar quinhentos dólares pelo trabalho e
as peças que forem necessárias e depois a gente vai aprová-lo de acordo
com a inspeção municipal — puxou um rótulo vermelho e concluiu — Colocaremos
este selo nele, como o senhor vê, depois nenhum funcionário da municipalidade
incomodará mais o senhor.
Don Corleone achou
graça. Tinha sido uma semana enfadonha, sossegada, em que tivera de deixar de
lado seus negócios para cuidar dos detalhes concernentes à mudança da família
para uma casa nova. Num inglês mais estropiado do que o seu habitual sotaque
ligeiramente italiano, ele perguntou:
— Se eu não pagar a
vocês, que é que vai acontecer a meu forno?
O chefe dos três
homens deu de ombros.
— A gente deixa o
forno tal como está agora — apontou para as peças de metal espalhadas pelo
chão.
Don Corleone respondeu
humildemente:
— Esperem, vou apanhar
o dinheiro.
Em seguida, saiu para
o jardim e disse a Sonny:
— Escute, há uns
homens trabalhando no forno, não entendo o que é que eles querem. Entre lá e
resolva a questão.
Não era apenas uma
brincadeira; ele pretendia fazer o filho seu subchefe. Isso era uma das provas
pelas quais um diretor comercial tinha de passar.
A solução de Sonny não
agradou inteiramente ao pai. Foi muito direta, faltou-lhe completamente a
sutileza siciliana. Ele era a Clava, não a Espada. Pois logo que Sonny ouviu a
exigência do chefe da turma, pôs os três homens sob a mira de sua arma e fez os
seus guarda-costas aplicar-lhes umas boas bordoadas. Depois, obrigou-os a
consertar o forno e arrumar direitinho o porão. Revistou-os e descobriu que
eles na realidade eram empregados de uma firma empreiteira cuja sede era no
Condado de Suffolk. Conseguiu saber o nome do dono da firma. Em seguida. levou
os três homens a pontapés para o caminhão deles.
— Não me apareçam mais
aqui em Long Beach — gritou para eles — Eu lhes pendurarei os colhões nas
orelhas.
Era típico do jovem
Santino, antes que se tornasse mais velho e mais cruel, que ele estendesse a
sua proteção à comunidade em que vivia. Sonny fez uma visita pessoal ao dono da
firma empreiteira e disse-lhe que não mandasse nunca mais nenhum de seus homens
a Long Beach. Logo que a Família Corleone estabelecia sua ligação habitual com
a força policial local era informada de todas essas queixas e de todos os
crimes praticados pelos elementos profissionais. Em menos de um ano, Long Beach
tornou-se a cidade dentro de sua categoria, onde o crime imperava menos livremente
nos Estados Unidos. Os assaltantes e valentões profissionais recebiam um aviso
para não exercerem sua atividade na cidade. Permitia-se que cometessem uma
infração. Quando cometiam a segunda, simplesmente desapareciam. Os embusteiros
de consertos de casa, os vigaristas a domicilio, eram delicadamente advertidos
de que não seriam bem recebidos em Long Beach. Os trapaceiros que não levavam
em consideração a advertência eram surrados até ficarem quase à morte. Os
jovens desordeiros residentes no local, que não tinham respeito pela lei e pela
autoridade constituída, eram aconselhados da maneira mais paternal possível a
fugirem de casa. Long Beach tornou-se uma cidade-modelo.
O que impressionava a
Don Corleone era a validade legal dessas falcatruas de vendas. Evidentemente,
havia um lugar para um homem de seu talento nesse outro mundo que esteve
fechado para ele quando era um rapaz honesto. Ele tomou as medidas necessárias
para entrar nesse mundo.
E assim vivia feliz na
alameda de Long Beach, consolidando e ampliando seu império, até que, quando
terminou a guerra, o turco Sollozzo rompeu a paz e mergulhou o mundo de Don
Corleone em sua própria guerra, e o levou para a cama do hospital.
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Frase Curiosa: "Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère
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