CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS
CAPÍTULO
13
J
|
OHNNY
FONTANE, sentado em seu enorme estúdio de gravação, calculava custos num bloco
amarelo. Músicos entravam em fila na sala. Todos eram amigos que ele conhecera
quando era menino e cantava com as bandas. O maestro, homem importante no
negócio de acompanhamento de música popular e que fora bondoso para ele quando
as coisas estiveram pretas, distribuía para cada músico um monte de partituras
e instruções verbais. Seu nome era Eddie Neils. E aceitara o encargo dessa
gravação como um favor a Johnny, embora quase não dispusesse de tempo para
isso.
Nino Valenti estava
sentado ao piano, brincando nervosamente com as teclas, e bebia o seu uísque em
um copo grande. Johnny não ligava para isso. Sabia que Nino cantava bem, tanto
bêbedo quanto sóbrio, e o que eles estavam fazendo hoje não exigia realmente
qualquer aptidão musical da parte de Nino.
Eddie Neils fizera uns
arranjos especiais de algumas antigas canções italianas e sicilianas, e um
trabalho especial sobre a canção-desafio que Nino e Johnny haviam cantado no
casamento de Connie Corleone. Johnny estava gravando o disco em primeiro lugar,
porque sabia que Don Corleone gostava de tais canções e isso constituiria um
ótimo presente de Natal para ele. Também tinha o palpite de que o disco seria vendido
aos montes, embora talvez não chegasse a um milhão. Além disso, pensava que
ajudar a Nino seria a melhor recompensa que Don Corleone podia querer. Afinal
de contas, Nino também era um dos afilhados de Don Corleone.
Johnny colocou o bloco
amarelo na cadeira dobradiça que estava a seu lado, levantou-se e postou-se
junto ao piano.
— Escute, paisan —
falou ele.
Nino olhou-o, com ar
de riso. Parecia estar adoentado. Johnny inclinou-se e esfregou-lhe as
omoplatas.
— Calma, rapaz — disse
— Trabalhe direitinho hoje e eu lhe arranjarei uma trepada com uma das mulheres
mais famosas de Hollywood.
Nino tomou um gole de
uísque e perguntou:
— Quem é ela...
Lassie?
Johnny deu uma
gargalhada.
— Não, Deanna Dunn.
Garanto o material.
Nino ficou
impressionado, mas não pôde deixar de dizer com uma falsa esperança:
— Você não pode
conseguir a Lassie para mim?
A orquestra irrompeu
com a canção de abertura da miscelânea. Johnny Fontane ouvia atentamente. Eddie
Neils tocaria todas as canções nos seus arranjos especiais. Depois, se faria a
primeira gravação do disco. A proporção que ouvia, Johnny ensaiava as notas
mentalmente, entoaria exatamente cada frase e entraria em cada canção. Sabia
que sua voz não agüentaria muito, mas Nino se encarregaria da maior parte do
canto; Johnny cantaria em segundo pIano. Exceto, naturalmente, na
canção-desafio. Teria de se poupar para isso.
Puxou Nino para perto
de si, e ambos se postaram ante os microfones. Nino desafinou na abertura e
mais adiante. Começou a ficar vermelho e desconcertado. Johnny falou em tom de
pilhéria:
— Que é isso, você
está fazendo cera para ganhar extraordinário?
— Não me sinto à
vontade sem o meu bandolim — respondeu Nino.
Johnny refletiu por um
momento.
— Segure este copo com
bebida — disse ele.
Parece que surtiu efeito.
Nino continuou bebendo, enquanto cantava, e se saía bem. Johnny cantava com
facilidade, sem esforço, com a voz floreada em torno da melodia principal
entoada por Nino. Não havia qualquer satisfação emocional nessa espécie de
canto, mas ficou admirado com a sua própria habilidade técnica. Dez anos de
vocalização ensinaram-lhe alguma coisa.
Quando chegaram à
canção-desafio que terminava o disco, Johnny soltou a voz, e quando acabaram,
as cordas vocais doíam-lhe. Os músicos se empolgaram com a canção final, coisa
rara com esses veteranos calejados. Baixavam o som dos instrumentos e batiam
com os pés aprovando, parecendo aplaudir. O homem da bateria deu-lhes um rufar.
Com interrupções e
trocas de idéias, trabalharam quase quatro horas antes de pararem. Eddie Neils
aproximou-se de Johnny e disse tranqüilamente:
— Você se saiu muito
bem, menino. Talvez esteja disposto a gravar um disco. Tenho uma canção nova
que lhe vem a calhar.
Johnny balançou a
cabeça.
— Deixe disso, Eddie,
não me goze. Além do mais, dentro de poucas horas estarei tão rouco que não
serei capaz de falar. Você acha que temos de consertar muito o que fizemos
hoje?
Eddie respondeu com ar
pensativo:
— Nino terá de vir ao
estúdio amanhã. Cometeu alguns erros. Mas é muito melhor do que eu pensava. Quanto
à sua parte, vou fazer os engenheiros de som ajeitarem o que eu não gostar.
Está bem?
— Está bem — respondeu
Johnny — Quando poderei ouvir a prensagem?
— Amanhã à noite —
retrucou Eddie Neils — Em sua casa.
— Sim — respondeu
Johnny — Obrigado, Eddie. Até amanhã.
Johnny tomou Nino pelo
braço e retirou-se do estúdio. Foram para a casa dele e não para a de Ginny.
Nessa altura, quase
anoitecia. Nino estava meio embriagado, Johnny aconselhou-o a tomar um banho de
chuveiro e tirar uma soneca. Teriam de ir a uma grande festa às onze horas da
noite.
Quando Nino acordou,
Johnny instruiu-o.
— Essa festa é no
Clube dos Corações Solitários das Estrelas de Cinema.
As mulheres ali presentes são as senhoras que você já viu no cinema como rainhas da beleza e do encanto; por
elas milhões de sujeitos seriam capazes de oferecer o braço direito, só pelo
prazer de dar-lhes uma trepada. E o
que as leva a comparecer à festa desta noite é que precisam achar alguém com quem dormir. Você sabe por quê? Porque estão ansiosas por isso, pois sentem-se um
pouca velhas. E, como qualquer senhora de respeito, elas agem com um pouco de
classe.
— Que é que há com sua
voz? — perguntou Nino.
Johnny falava quase
sussurrando.
— Sempre que eu canto
um pouco, acontece isso. Agora não poderei cantar por um mês. Mas ficarei bom
da rouquidão em poucos dias.
— É duro, hem? —
interrogou Nino pensativo.
Johnny deu de ombros.
— Escute, Nino, não se
embriague muito esta noite. Você precisa mostrar a essas mulheres que meu
camarada paisan não é um moleirão. Você tem de colaborar. Lembre-se de que
algumas dessas senhoras são muito poderosas no cinema e podem arranjar trabalho
para você. Não é difícil ser encantador
depois de se conquistar uma pessoa.
Nino já enchia seu
copo, de novo.
— Sou sempre
encantador — atalhou. Em seguida, esvaziou o copo — Fora de brincadeira, você
pode, de fato, me aproximar de Deanna Dunn? — indagou rindo a Johnny.
— Não fique tão
ansioso — disse Johnny — Não vai ser como você pensa.
O Clube dos Corações
Solitários das Estrelas de Cinema de Hollywood (assim chamado principalmente
pelos jovens adolescentes cuja freqüência era obrigatória) reunia-se toda
sexta-feira à noite na suntuosa residência de propriedade do estúdio, de Roy
McElroy, agente de publicidade — ou melhor, conselheiro de relações públicas —
da Companhia Cinematográfica Internacional Woltz. Na verdade, embora fosse uma
festa sem convites especiais de McElroy, a idéia surgira do espírito prático do
próprio Jack Woltz. Algumas das suas estrelas cinematográficas que eram atração
de bilheteria estavam agora ficando velhas. Sem a ajuda de luzes especiais e de
maquiladores geniais, elas mostrariam a idade que realmente tinham. Por isso,
surgiam problemas. Também, até certo ponto, tinham-se dessensibilizado física e
mentalmente. Não podiam mais “apaixonar-se”. Não podiam mais representar o
papel de mulheres perseguidas. Tinham sido muito arrogantes por causa do
dinheiro, da fama e de sua antiga beleza. Woltz dava essas festas a fim de
facilitar-lhes arranjar amantes, homens com quem dormir uma noite; se eles
tivessem “peito”, poderiam transformar-se em companheiros permanentes de cama
e, assim, estaria aberto o caminho para a ascensão. Como às vezes as reuniões
se degeneravam em brigas ou excessos sexuais que envolviam complicações com a
polícia, Woltz resolveu promover as festas na casa do conselheiro de relações
públicas, que estaria ali firme para ajeitar as coisas, dar “bola” aos homens
da imprensa e da polícia e manter tudo em paz.
Para certos atores
jovens e másculos do estúdio, que ainda não haviam atingido o estrelato ou
papéis de destaque, comparecer às festas das noites de sexta-feira nem sempre
era um dever agradável. Isso se explicava pelo fato de que um novo filme ainda
a ser distribuído seria exibido na festa. Na verdade, isso era a desculpa para
a própria realização da festa. O pessoal dizia: “Vamos ver como está o novo
filme feito assim e assado”. Desse modo, a coisa era apresentada sob um aspecto
profissional.
As estrelas jovens eram proibidas de comparecer a
tais reuniões. Ou antes, eram desencorajadas a comparecer. A maioria
seguia o conselho.
A exibição dos filmes
novos era realizada à meia-noite, e Johnny e Nino chegaram às onze horas. Roy
McElroy revelou-se, à primeira vista, um homem agradável, bem penteado, elegantemente
vestido. Saudou Johnny Fontane com um grito de admiração e alegria.
— Que diabo está você
fazendo aqui — indagou com verdadeiro espanto.
Johnny, apertando-lhe
a mão, respondeu:
— Estou mostrando a
meu primo do interior os lugares pitorescos. Apresento-lhe Nino.
McElroy apertou a mão
de Nino e mediu-o dos pés à cabeça.
— Elas o comerão vivo
— comentou com Johnny, e os conduziu para o pátio dos fundos.
O pátio dos fundos
consistia em uma série de salas enormes, cujas portas de vidro abriam para um
jardim e piscina. Havia quase cem pessoas espalhadas por ali, todas com bebidas
na mão. A iluminação era engenhosamente preparada para realçar o rosto e a pele
das mulheres. Eram as mulheres famosas que Nino vira nas telas dos cinemas
escuros quando era adolescente. Elas tinham desempenhado seu papel nos seus
sonhos eróticos da adolescência. Mas contemplá-las agora, em carne e osso, era
como vê-las com uma maquilagem horrível. Nada podia lhes esconder o cansaço do
espírito e da carne; o tempo destruíra-lhes a
divindade. Embora posassem e se movimentassem com o encanto de que ele ainda se
lembrava, pareciam, agora, frutas de cera. Nino tomou duas doses de
bebida, aproximando-se de uma mesa que tinha uma porção de garrafas. Johnny
acompanhou-o. Beberam juntos, até que por trás deles se ouviu a voz mágica de
Deanna Dunn.
Nino, como milhões de
outros homens, tinha essa voz sempre gravada na mente. Deanna Dunn ganhara dois
prêmios da Academia, trabalhara no filme de maior sucesso de Hollywood. Na
tela, possuía um encanto feminino felino que a tornava irresistível a todos os
homens. Mas as palavras que ela pronunciava jamais tinham sido ouvidas no
cinema.
— Johnny, seu patife,
tive de ir ao psiquiatra novamente, porque você dormiu comigo uma noite. Como é
que você nunca mais voltou, nem por alguns segundos?
Johnny deu-lhe um
beijo na face que ela lhe oferecia.
— Você me deixou
esgotado por um mês — respondeu ele — Quero-lhe apresentar meu primo Nino. Um
belo e forte rapaz italiano. Talvez ele possa acompanhar você.
Deanna Dunn voltou-se
para lançar um olhar frio para Nino.
— Ele gosta de
assistir a pré-estréias?
Johnny deu uma
gargalhada.
— Acho que ele ainda
não teve oportunidade. Por que você não o inicia nisso?
Nino teve de tomar uma
dose dupla de bebida, quando ficou a sós com Deanna Dunn. Tentou manter-se
imperturbável, mas era difícil. Deanna Dunn tinha o nariz arrebitado, as
feições clássicas, de contornos nítidos, de beldade anglo-saxã. E ele a
conhecia tão bem. Ele a vira sozinha num quarto, desesperada, chorando pelo
falecido marido aviador que a deixou com crianças órfãs do pai. Ele a vira
zangada, magoada, humilhada, mas ainda com uma dignidade impressionante, quando
um grosseiro Clark Gable abusou dela, depois deixou-a por uma mulher sensual.
(Deanna Dunn nunca desempenhou o papel de mulher sensual no cinema). Ele a vira
corar com um amor correspondido, contorcendo-se no abraço do homem que ela
adorava, e morrer de uma maneira maravilhosa, pelo menos uma meia dúzia de
vezes. Ele a vira, ouvira e sonhara com ela e, contudo, não estava preparado para a primeira coisa que ela lhe disse,
quando ficaram a sós.
— Jolwny é um dos
poucos homens de colhão dessa cidade — disse ela — O resto são todos uns veados
e débeis mentais, incapazes de trepar com uma mulher nem que se metesse uma
tonelada de hormônios nos seus testículos.
Ela tomou Nino pela
mão e conduziu-o para um canto da sala, longe do movimento e de qualquer
concorrência.
Depois, ainda
friamente encantadora, fez algumas perguntas a respeito dele. Nino começou a
estudá-la interiormente. Percebeu que ela estava desempenhando o papel da
mocinha da alta sociedade que é gentil para o cavalariço ou o motorista mas que
no filme faria perder todo o interesse amoroso (se o papel fosse desempenhado
por Spencer Tracy), ou abandonaria tudo em seu louco desejo por ele (se o papel
fosse desempenhado por Clark Gable). Mas isso não importava. Principiou a
contar-lhe como ele e Johnny tinham crescido juntos em Nova York, como ambos
costumavam cantar em festas de clubes pequenos. Achou-a maravilhosamente atenta
e interessada. Em um momento, perguntou casualmente:
— Você sabe como
Johnny fez esse patife do Jack Woltz dar-lhe o papel?
Nino ficou gelado e
balançou a cabeça. Ela não insistiu.
Chegara a hora de
assistir-se à pré-estréia do novo filme de Woltz. Deanna Dunn conduziu Nino.
Sua mão apertando com firmeza a dele, encaminhou-o para uma sala interna da
mansão que não tinha janelas, e estava mobiliada com cerca de 50 sofás pequenos
para duas pessoas, espalhados e um pouco afastados uns dos outros.
Nino observou uma
pequena mesa ao lado do sofá e, sobre ela, havia um balde com gelo, copos e
garrafas de bebida e uma bandeja de cigarros. Ofereceu um cigarro a Deanna
Dunn, acendeu-o e depois preparou bebida para ambos. Não conversaram. Após
alguns minutos as luzes se apagaram.
Nino esperava algo
inominável. Afinal, sempre ouvira as histórias sobre a depravação em Hollywood.
Não estava bem preparado para o ataque voraz de Deanna Dunn ao seu órgão sexual
sem uma palavra gentil e amável de preparação. Continuou a tomar sua bebida e a
olhar para o filme, sem interesse e sem prestar atenção. Estava emocionado como
nunca; em parte, devido ao fato de que aquela mulher que o estava “servindo” no
escuro tinha sido o objeto de seus sonhos de adolescente.
Contudo, de certo
modo, aquilo era um insulto à sua masculinidade. Assim, quando a mundialmente
famosa Deanna Dunn estava saciada e arrumou a roupa dele Nino friamente
preparou uma nova bebida para ela e acendeu lhe um novo cigarro e disse com a
voz mais descansada que se possa imaginar
— Isso parece ser um
filme muito bom.
Ele a sentiu
empertigar se ao seu lado no sofá. Será que ela estava esperando alguma espécie
de cortesia? Nino encheu o seu copo com a bebida da garrafa que estava ao
alcance de sua mão. O diabo com isso. Ela o tratara como um detestável
prostituto. Por algum motivo Nino agora sentia uma raiva fria de todas essas
mulheres. Olharam o filme por mais quinze minutos. Ele inclinou-se para o lado
contrário ao dela de forma que os seus corpos não se tocavam.
— Não fique assim
bancando o rapazinho aborrecido, você gostou. Você foi até as nuvens.
Nino tomou um gole da
bebida e respondeu na sua maneira espontânea natural.
— É o modo como isso
sempre acontece. Você precisa ver quando estou excitado.
Ela sorriu e
permaneceu quieta durante o resto do filme. Finalmente, terminou a exibição e
se acenderam as luzes. Nino deu uma olhada em volta. Pôde observar que tinha
havido um verdadeiro carnaval no escuro, embora, por estranho que pareça, ele
não tivesse ouvido um ruído sequer. Algumas das damas tinham aquele olhar fixo,
brilhante, de mulheres que acabavam de fazer uma coisa muito boa. Saíram
lentamente da sala de projeção. Deanna Dunn largou-o logo para ir falar com um
homem mais velho que ele. Nino reconheceu-o como um famoso artista de cinema,
mas que só agora, vendo o cara em pessoa, percebeu que o tipo era veado. Tomou
o gole e ficou cismando.
Johnny Fontane
aproximou-se e perguntou:
— Que tal, amigo
velho, divertindo-se muito?
Nino arreganhou os
dentes.
— Não sei. É
diferente. Agora, quando voltar para o meu velho lugarejo, poderei dizer que
Deanna Dunn me possuiu.
— Ela pode fazer
melhor do que isso se convidá-lo a ir à casa dela. Não convidou? — perguntou
Johnny, e deu uma gargalhada.
Nino balançou a
cabeça.
— Fiquei muito
interessado pelo filme — respondeu.
Agora, Johnny não riu.
— Leve a coisa a
sério, garoto — disse ele — Uma mulher como essa pode fazer muito por você.
Você esta acostumado a levar tudo na brincadeira. Homem, às vezes ainda tenho
pesadelos, quando me lembro daquelas donas feias que você gostava de apanhar.
Nino, um tanto bêbado,
brandiu o copo e falou em voz bem alta:
— Sim, elas eram
feias, mas eram mulheres.
Deanna Dunn, postada
no canto, virou a cabeça para olhar para eles. Nino acenou-lhe com o copo,
cumprimentando-a.
Johnny Fontane deu um
suspiro.
— Está bem, você é
apenas um camponês carcamano.
— E não vou mudar —
respondeu Nino com seu sorriso de bêbedo.
Johnny compreendia-o
perfeitamente. Sabia que Nino não estava tão embriagado como parecia. Sabia que
ele estava apenas fingindo, para poder dizer coisas que achava rudes demais
para se dizerem ao seu novo padrone de Hollywood, quando sóbrio. Ele pôs o
braço em volta do pescoço de Nino e disse afetuosamente:
— Você, seu bêbedo
sabido, sabe que tem um contrato rigoroso por um ano e pode dizer e fazer o que
quiser que não posso despedir você.
— Você não pode me
despedir? — perguntou Nino com astúcia de pau d’água.
— Não — respondeu
Johnny.
— Então foda-se —
replicou Nino.
Por um momento, Johnny
ficou surpreso e com raiva. Viu um riso de desprezo no rosto de Nino. Nos
últimos anos ele devia ter ficado mais esperto, ou a sua queda do estrelato
tornou-o mais sensível. Então compreendeu o amigo, por que o seu parceiro de canto
da meninice jamais conseguira êxito, por que ele estava procurando destruir
qualquer oportunidade de êxito agora. Nino estava reagindo contra todas as
possibilidades de êxito, e ele, de alguma forma, se sentia insultado pelo modo
como Nino se estava comportando.
Johnny tomou-o pelo
braço e levou-o para fora da casa. Nino agora mal podia andar. Johnny falava
com ele brandamente:
— Está bem, menino,
você apenas canta para mim, quero ganhar dinheiro com você. Não vou procurar
dirigir a sua vida. Faça o que você quiser. Está bem, paisan? Tudo o que você
tem a fazer é cantar para mim e ganhar dinheiro para mim, agora que não posso
mais cantar. Compreendeu bem, amigo velho?
Nino endireitou-se.
— Vou cantar para
você, Johnny — falou com a voz tão engrolada, que mal se podia entender — Sou
melhor cantor do que você agora. Sempre cantei melhor do que você, sabe disso?
Enquanto isso, Johnny
pensava: assim era a coisa. Reconhecia que, quando tinha a voz sadia, Nino
simplesmente não era páreo para ele, e nunca o fora naqueles anos em que
cantaram juntos como meninos. Viu Nino esperando uma resposta, ziguezagueando
bêbedo sob o luar da Califórnia.
— Foda-se — disse ele
gentilmente, e os dois riram juntos, como nos velhos tempos em que eram
igualmente jovens.
Quando Johnny Fontane
recebeu a notícia do atentado contra Don Corleone, não só ficou preocupado, mas
também permaneceu em dúvida sobre se o financiamento de seu filme continuava de
pé. Tivera vontade de ir a Nova York apresentar os seus respeitos a seu
Padrinho no hospital, mas aconselharam-no a evitar qualquer publicidade
desfavorável, pois isso seria a última coisa que Don Corleone poderia querer.
Assim ele esperou. Uma semana depois, chegou um mensageiro de Tom Hagen. O
financiamento continuava de pé, apenas para um filme de cada vez.
Entrementes, Johnny
deixou Nino viver a seu próprio modo em Hollywood e na Califórnia, e este
estava indo muito bem com as jovens estrelinhas. As vezes, Johnny o chamava
para saírem juntos à noite, mas nunca o pressionava. Quando conversaram sobre o
atentado contra Don Corleone, Nino disse a Johnny:
— Você sabe, uma vez
pedi a Don Corleone que me conseguisse um emprego em sua organização e ele não
me arranjou. Eu estava cansado de dirigir caminhão e queria fazer muita grana.
Sabe o que ele me respondeu? Falou que todo homem tem apenas um destino e que
meu destino era ser artista. Queria dizer que eu não podia ser um marginal.
Johnny refletiu nisso
demoradamente. O Padrinho deve ser o sujeito mais inteligente do mundo. Sabia
que Nino jamais podia ser um marginal, que logo se complicaria ou seria
assassinado, por causa de suas piadas. E como Don Corleone podia saber que ele
seria artista? Porque, ora bolas, ele imaginava que algum dia eu ajudaria Nino.
E como podia ele imaginar isso? Por que me insinuaria algo e eu procuraria
mostrar a minha gratidão. Naturalmente nunca me pediu que fizesse isso. Apenas
me fez saber que se sentiria feliz se eu o fizesse. Johnny Fontane deu um
suspiro. Agora, o Padrinho estava ferido, em situação difícil, e podia dizer
adeus ao prêmio da Academia, pois Woltz estava trabalhando contra ele e não
havia esperança de receber ajuda do outro lado. Somente Don Corleone tinha os
contatos pessoais que podiam pressioná-lo naquele sentido, e a Família Corleone
tinha outras coisas em que pensar naquele momento. Johnny se oferecera para
ajudar e Hagen respondera-lhe com um lacônico “não”.
Johnny ocupava-se com
o andamento de seu próprio filme. O autor do livro no qual se baseou o filme em
que trabalhara como artista tinha terminado outra novela, e viera à Califórnia
a convite de Johnny, para tratar diretamente do assunto, sem interferência de
agentes ou estúdios. O segundo livro se adaptava perfeitamente ao desejo de
Johnny. Ele não teria de cantar. A novela tinha um enredo picante, muitas
mulheres, sexo e havia um papel que para Johnny logo pareceu ter sido feito sob
medida para Nino. O tipo falava como Nino, agia e até parecia com ele. Era
fantástico! Tudo o que Nino teria de fazer era mover-se ante as câmaras
cinematográficas com a maior naturalidade.
Johnny trabalhava
depressa. Achava que entendia muito mais de produção cinematográfica do que
imaginara. Contratou um produtor executivo, um homem que conhecia o assunto,
mas que tinha dificuldade em encontrar trabalho, porque estava na lista negra.
Johnny não tirou proveito da situação e deu-lhe um bom contrato.
— Espero que você
desse jeito me poupe mais grana — falou ao homem com franqueza.
Ficou surpreso, quando
o produtor executivo veio dizer-lhe que o representante do sindicato estava
exigindo uma “gratificação” de cinqüenta mil dólares. Havia uma série de
problemas a respeito de extraordinários e contratos de pessoal, de forma que os
cinqüenta mil dólares seriam bem gastos. Johnny perguntou-se se o produtor
executivo o estava pressionando e arrematou:
— Mande o cara do
sindicato falar comigo.
O cara do sindicato
era Billy Goff. Johnny disse a ele:
— Pensei que esse
negócio do sindicato era arranjado pelos amigos. Disseram-me para não me
preocupar com isso, de modo algum.
Goff perguntou:
— Quem lhe disse isso?
— Você sabe muito bem
— respondeu Johnny — Não revelarei o nome dele, mas quando esse indivíduo me
diz uma coisa acredito piamente.
— As coisas estão
mudadas — retrucou Goff — Seu amigo está em situação difícil e a palavra dele
não tem mais valor aqui na Califórnia.
Johnny deu de ombros.
— Venha falar comigo
daqui a alguns dias. Está bem?
Goff sorriu.
— Perfeitamente,
Johnny. Mas telefonar para Nova York não vai lhe ajudar coisa alguma.
Telefonar para Nova
York na verdade ajudou. Johnny falou com Hagen em seu escritório. Hagen
disse-lhe rudemente para não pagar.
— Seu Padrinho vai
ficar danado da vida, se você pagar um níquel a esse salafrário — falou ele a
Johnny — Isso fará Don Corleone perder prestígio e, no momento, ele não pode
admitir tal coisa.
— Posso falar com Don
Corleone? — perguntou Johnny — Você fala com ele? Preciso rodar o filme.
— Ninguém pode falar
com Don Corleone no momento — disse Hagen — Ele está muito doente. Vou dizer a
Sonny para arranjar a coisa. Po rém, a decisão deve basear-se nisso. Não pague
um níquel a esse espertalhão safado. Se houver alguma mudança, avisa-lo-ei.
Aborrecido, Johnny
desligou o telefone. Uma complicação com o sindicato poderia aumentar uma
fortuna no custo da produção do filme e prejudicar o trabalho de modo geral.
Por um momento, pensou em passar os cinqüenta mil dólares para Goff, na
surdina. Afinal, Don Corleone dizer-lhe alguma coisa e Hagen dar-lhe ordens
eram duas coisas diferentes. Contudo, resolveu esperar alguns dias.
Com a espera, ele
poupou cinqüenta mil dólares. Duas noites depois, Goff foi encontrado morto a
tiros em sua casa, em Glendale. Não se falou mais em complicação com o
sindicato. Johnny ficou um tanto abalado com o assassinato. Era a primeira vez
que o comprido braço de Don Corleone dava um golpe mortal tão perto dele.
A medida que as
semanas passavam e ele se ocupava cada vez mais com a preparação do roteiro,
com a escolha do elenco do filme e com os detalhes da produção Johnny Fontane
se esquecia de sua voz, de que não podia cantar. Contudo, quando surgiu a lista
de nomes ao prêmio da Academia e viu o seu entre os candidatos, ficou
deprimido, porque não o escolheram para cantar uma das melodias indicadas para
o Oscar na cerimônia que seria televisada para toda a nação. Todavia,
conformou-se e continuou trabalhando. Não tinha esperança de ganhar o prêmio da
Academia, agora que seu Padrinho não era mais capaz de exercer pressão, mas ser
indicado como candidato já era alguma coisa.
O disco de canções
italianas que ele e Nino gravaram estava sendo vendido muito mais do que
qualquer outra coisa que ele tinha gravado ultimamente, apesar de reconhecer
que o sucesso era mais de Nino do que seu. Resignou-se então à idéia de que
jamais seria capaz de cantar novamente como profissional.
Uma vez por semana,
jantava com Ginny e as meninas. Não importava quão complicadas estivessem as
coisas, ele nunca faltava a esse dever, embora não dormisse com Ginny.
Entrementes, sua segunda mulher conseguira o divórcio no México, e, assim,
estava solteiro novamente. Era estranho que não estivesse tão “seco” para
apanhar aquelas estrelinhas que cairiam facilmente na sua conversa. Ele estava
muito esnobe. Ficara magoado, porque qualquer daquelas estrelas jovens que
ainda estavam no apogeu jamais lhe dera a mínima bola. Mas era bom trabalhar
com afinco. Quase toda noite ele ia para casa sozinho, punha seus velhos discos
na vitrola, tomava a sua bebidazinha e cantarolava um pouco. Ele tinha sido
bom, muito bom mesmo. E não compreendera como tinha sido bom. Mesmo sem levar
em conta a sua voz excepcional, que poderia ter acontecido a qualquer um, ele
era bom. Fora um verdadeiro artista e nunca soube quanto gostava disso.
Estragara a voz com bebida, fumo e mulheres, justamente quando veio a compreender
quanto isso valia.
Às vezes, Nino vinha
tomar um trago e escutava os discos em sua companhia, e Johnny dizia-lhe
desdenhosamente:
— Você, seu carcamano safado, jamais cantou assim
em sua vida.
E Nino lhe respondia
com aquele riso curioso e encantador e balançava a cabeça dizendo:
— Não, e jamais
cantarei — pronunciando as palavras com uma voz complacente, como se
adivinhasse o que Johnny estava pensando.
Finalmente, uma semana
antes de rodar o novo filme, chegou a noite da outorga do prêmio da Academia.
Johnny convidou Nino para acompanhá-lo, mas Nino recusou. Johnny suplicou:
— Companheiro, nunca
lhe pedi um favor, certo? Faça-me um favor esta noite e venha comigo. Você é o
único sujeito que vai sentir, realmente, se eu não ganhar.
Por um momento, Nino
ficou espantado. Depois respondeu:
— Perfeitamente, meu
velho, irei com você — fez uma pausa e acrescentou — Se você não ganhar,
esqueça o assunto. Fique tão embriagado o quanto você puder, que tomarei conta
de você. Diabo, eu mesmo nem vou beber esta noite. Que tal, só por ser
companheiro?
— Homem — respondeu
Johnny Fontane — É ser mesmo muito companheiro.
Na hora de ir para a
cerimônia da Academia, Nino manteve a sua promessa. Compareceu à casa de Johnny
completamente sóbrio, e os dois partiram juntos para o local da apresentação.
Nino ignorava por que Johnny não convidara nenhuma de suas ex-garotas ou
ex-esposas para o jantar daquela noite. Especialmente Ginny. Será que pensava
que ela não torceria por ele? Nino desejaria tomar apenas um trago, parecia que
ia ter uma noite horrivelmente longa.
Nino Valenti achou
toda a cerimônia da concessão do prêmio da Academia muito chata, até que foi
anunciado o vencedor do melhor artista masculino. Quando ouviu as palavras “Johnny Fontane”, deu um pulo para cima e
começou a aplaudir. Johnny estendeu a mão e Nino apertou-a. Sabia que o seu
companheiro precisava do contato humano, de alguém em quem confiasse, e Nino
sentia uma enorme tristeza pelo fato de Johnny não ter ninguém melhor do que
ele para partilhar esse momento de glória.
O que se seguiu foi um
verdadeiro pesadelo. O filme de Jack Woltz arrebatou todos os prêmios
importantes e, assim, a festa do estúdio estava cheia de gente de jornal e de
todos os futuros malandros do sexo masculino e feminino. Nino manteve a sua
promessa de conservar-se sóbrio, e procurou vigiar Johnny. Mas as mulheres da
festa insistiam em puxar Johnny Fontane para os quartos a fim de bater um papo
e Johnny ficava cada vez mais bêbedo.
Entrementes, a mulher
que ganhara o prêmio de melhor atriz estava sofrendo o mesmo destino, mas
estava gostando mais disso e aproveitando mais a situação. Nino a rejeitou, o
único homem da festa a fazer isso.
Finalmente, alguém
teve uma grande idéia. O acasalamento público dos dois vencedores, para que todos
os presentes à festa assistissem ao espetáculo. A atriz foi desnudada e as
outras mulheres começavam já a tirar a roupa de Johnny Fontane. Foi então que
Nino, a única pessoa sóbria ali, agarrou o semivestido Johnny e jogou-o sobre o
ombro, abrindo caminho para sair da casa e levá-lo para o carro. Enquanto
dirigia o carro para a casa de Johnny, Nino pensou que, se aquilo era sucesso,
ele jamais o desejaria na vida.
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Frase Curiosa: "Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère
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