— CAPÍTULO DOZE —
O Espelho De Ojesed
O NATAL SE APROXIMAVA.
Certa manhã em meados de Dezembro, Hogwarts acordou coberta com mais de um
metro de neve. O lago congelou e os gêmeos Weasley receberam castigo por terem
enfeitiçado várias bolas de neve fazendo-as seguir Quirrell aonde ele ia e
quicarem na parte de trás do seu turbante. As poucas corujas que conseguiam se
orientar no céu tempestuoso para entregar correspondência tinham de ser
tratadas por Hagrid para recuperar a saúde antes de voltarem a voar.
Todos
mal aguentavam esperar as férias de Natal. E embora a Sala Comunal da
Grifinória e o Salão Principal tivessem grandes fogos nas lareiras, os
corredores varridos por correntes de ar tinham se tornado gélidos e um vento
cortante sacudia as janelas das salas de aulas. As piores eram as aulas do
Prof. Snape nas masmorras, onde a respiração dos alunos virava uma névoa diante
deles e eles procuravam ficar o mais próximo possível dos seus caldeirões.
—
Tenho tanta pena — disse Draco Malfoy, na aula de Poções — Dessas pessoas que
têm que passar o Natal em Hogwarts porque a família não as quer em casa.
Olhou
para Harry ao dizer isso. Crabbe e Goyle miraram Harry, que estava medindo pó
de espinha de peixe-leão, e não lhes deu atenção. Malfoy andava muito mais
desagradável do que de costume desde a partida de Quadribol. Aborrecido porque
Sonserina perdera, tentara fazer as pessoas rirem dizendo que um sapo iria
substituir Harry como apanhador no próximo jogo. Então percebeu que ninguém
achara graça, porque estavam todos muito impressionados com a maneira com que
Harry conseguira se segurar na vassoura corcoveante. Por isso Draco, invejoso e
zangado, voltara a aperrear Harry dizendo que não tinha família como os
outros...
Era
verdade que Harry não ia voltar à Rua dos Alfeneiros para o Natal. A Profª.
McGonagall passara a semana anterior fazendo uma lista dos alunos que iam ficar
em Hogwarts no Natal e Harry assinara seu nome na mesma hora. Não sentia
nenhuma pena de si mesmo, provavelmente aquele seria o melhor Natal que já
tivera. Rony e os irmãos também iam ficar, porque o Sr. e a Sra. Weasley iam à
Romênia visitar Carlinhos.
Quando
deixaram as masmorras ao final da aula de Poções, encontraram um grande tronco
de pinheiro bloqueando o corredor à frente. Dois pés enormes que apareciam por
baixo do tronco e alguém bufando alto, denunciou a todos que Hagrid estava por
trás dele.
— Oi,
Hagrid quer ajuda? — perguntou Rony, metendo a cabeça por entre os ramos.
—
Não, estou bem, obrigado, Rony.
—
Você se importaria de sair do caminho? — ouviu-se a voz arrastada e seca de
Draco atrás deles — Está tentando ganhar uns trocadinhos, Weasley? Vai ver quer
virar guarda-caça quando terminar Hogwarts. A cabana de Hagrid deve parecer um
palácio comparada ao que sua família está acostumada.
Rony
avançou para Draco justamente na hora em que Snape subia as escadas. Rony
agarrou a frente das vestes de Draco.
— Ele
foi provocado, Prof. Snape — explicou Hagrid, deixando aparecer por trás da
árvore a cara peluda — Draco ofendeu a família dele.
—
Seja por que for, brigar é contra o regulamento de Hogwarts, Hagrid — disse
Snape insinuante — Cinco pontos a menos para Grifinória, Weasley, e dê graças a
Deus por não ser mais. Agora, vamos andando, todos vocês.
Draco,
Crabbe e Goyle passaram pela árvore com brutalidade, espalhando folhas para
todo lado com sorrisos nos rostos.
— Eu
pego ele — prometeu Rony, rilhando os dentes as costas de Draco — Um dia
desses, eu pego ele.
—
Odeio os dois — disse Harry — Draco e Snape.
—
Vamos, ânimo, o Natal está aí — disse Hagrid — Vou lhes dizer o que vamos
fazer, venham comigo ver o Salão Principal, está lindo.
Então
os três acompanharam Hagrid e sua árvore até o Salão Principal, onde a Profª.
McGonagall e o Prof. Flitwick estavam trabalhando na decoração para o Natal.
— Ah,
Hagrid, a última árvore, ponha naquele canto ali, por favor.
O
Salão estava espetacular. Festões de azevinho e visco pendurados a toda à volta
das paredes e nada menos que doze enormes árvores de Natal estavam dispostas
pelo salão, umas cintilando com cristais de neve, outras iluminadas por
centenas de velas.
—
Quantos dias ainda faltam até as férias? — perguntou Hagrid.
— Um
— respondeu Hermione — Ah, isso me lembra: Harry, Rony, falta meia hora para o
almoço, devíamos estar na biblioteca.
— Ih,
é mesmo — disse Rony, despregando os olhos do Prof. Flitwick, que fazia sair
bolhas azuis da ponta da varinha e as levava para cima dos galhos da árvore que
acabara de chegar.
—
Biblioteca? — espantou-se Hagrid, acompanhando-os para fora do salão — Na véspera
das férias? Não estão estudando demais?
— Ah,
não estamos estudando — respondeu Harry, animado — Desde que você mencionou o
Nicolau Flamel estamos tentando descobrir quem ele é.
—
Vocês o quê? — Hagrid parecia chocado — Ouçam aqui: já disse a vocês, parem com
isso. Não é da sua conta o que o cachorro está guardando.
— Só
queremos saber quem é Nicolau Flamel, só isso — falou Hermione.
— A
não ser que você queira nos dizer e nos poupar o trabalho? — acrescentou Harry
— Já devemos ter consultado uns cem livros e não o encontramos em lugar nenhum.
Que tal nos dar uma pista? Sei que já li o nome dele em algum lugar.
— Não
digo uma palavra — respondeu Hagrid decidido.
—
Então vamos ter que descobrir sozinhos — disse Rony, e saíram depressa para a
biblioteca, deixando Hagrid desapontado.
Andavam
realmente procurando o nome de Flamel nos livros desde que Hagrid deixara
escapá-lo, porque de que outra maneira iam descobrir o que Snape estava
tentando roubar? O problema é que era muito difícil saber por onde começar, sem
saber o que Flamel poderia ter feito para aparecer em um livro. Não se
encontrava em Grandes Sábios do Século, nem em Nomes Notáveis da Magia do Nosso
Tempo, não era encontrável tampouco em Importantes Descobertas Modernas da Mata
nem em Um Estudo Aos Avanços Recentes Na Magia. E, é claro, havia também o
tamanho da biblioteca em si, dezenas de milhares de livros, milhares de
prateleiras, centenas de corredores estreitos.
Hermione
puxou uma lista de assuntos e títulos que decidira pesquisar enquanto Rony se
dirigiu a uma carreira de livros e começou a tirá-los da prateleira
aleatoriamente. Harry vagou até a Seção Reservada. Vinha pensando há algum
tempo se Flamel não estaria ali. Infelizmente, o estudante precisava de um
bilhete assinado por um professor para consultar qualquer livro reservado e ele
sabia que nenhum jamais lhe daria o bilhete. Eram livros que continham poderosa
magia negra jamais ensinada em Hogwarts e somente lida por alunos mais velhos
que estudavam no curso avançado de Defesa Contra as Artes das Trevas.
— O
que é que você está procurando, menino?
—
Nada — disse Harry.
Madame
Pince, a bibliotecária, apontou-lhe um espanador de penas.
—
Então é melhor sair daqui. Vamos, fora!
Desejando
ter sido um pouco mais rápido em inventar alguma história, Harry saiu da
biblioteca. Ele, Rony e Hermione já tinham concordado que era melhor não
perguntar a Madame Pince onde poderiam encontrar Flamel. Tinham certeza de que
ela saberia informar, mas não podiam arriscar que Snape ouvisse o que andavam
tramando. Harry esperou do lado de fora no corredor para saber se os outros
dois tinham encontrado alguma coisa, mas não alimentava muitas esperanças.
Afinal estavam procurando havia quinze dias, mas como só tinham breves momentos
entre as aulas não era surpresa que não tivessem achado nada. O que realmente
precisavam era de uma longa busca sem Madame Pince bafejar o pescoço deles.
Cinco
minutos depois, Rony e Hermione se reuniram a ele balançando negativamente a
cabeça. E foram almoçar.
—
Vocês vão continuar procurando enquanto eu estiver fora, não vão? — recomendou
Hermione — E me mandem uma coruja se encontrarem alguma coisa.
— E
você poderia perguntar aos seus pais se sabem quem é Flamel — disse Rony — Não
haveria perigo em perguntar a eles.
—
Nenhum perigo, os dois são dentistas.
Uma
vez começadas as férias, Rony e Harry estavam se divertindo à beça para se
lembrar de Flamel. Tinham o dormitório só para eles e a Sala Comunal estava
muito mais vazia do que o normal, por isso podiam usar as poltronas confortáveis
ao pé da lareira. Sentavam-se a toda hora para comer tudo que pudessem espetar
em um garfo de assar: pão, bolinhos, marshmallows e tramavam maneiras de fazer
Draco ser expulso, o que se divertiam em discutir mesmo que não fosse produzir
resultados.
Rony
também começou a ensinar Harry a jogar xadrez de bruxo. Era exatamente igual a
xadrez de trouxa exceto que as peças eram vivas, o que fazia parecer que a
pessoa estava dirigindo tropas em uma batalha. O jogo de Rony era muito velho e
gasto como tudo o mais que possuía, pertencera em tempos a alguém da família,
no caso, ao seu avô. No entanto, a velhice das peças não era um empecilho. Rony
as conhecia tão bem que nunca tinha dificuldade de mandá-las fazer o que ele
queria. Harry jogava com peças que Simas Finnigan lhe emprestara e estas não
confiavam nada nele. Ainda não era um bom jogador e elas não paravam de gritar
conselhos variados, o que o confundia: “Não
me mande para lá, não está vendo o cavalo dele? Mande ele, podemos nos dar ao
luxo de perder ele”.
Na
noite de Natal, Harry foi para a cama pensando com ansiedade na comida e na
diversão do dia seguinte, mas sem esperar nenhum presente.
Quando
acordou cedo na manhã seguinte, porém, a primeira coisa que viu foi uma pequena
pilha de embrulhos ao pé de sua cama.
—
Feliz Natal! — disse Rony sonolento quando Harry pulou da cama e vestiu o
roupão.
—
Para você também — falou Harry — Olhe só isso! Ganhei presentes?
— E o
que é que você esperava, nabos? — respondeu Rony, virando-se para a sua pilha
que era bem maior do que a de Harry.
Harry
apanhou o pacote de cima. Estava embrulhado em papel pardo grosso e trazia
escrito em garranchos: Para Harry, de Hagrid. Dentro havia uma flauta tosca de
madeira. Era óbvio que Hagrid a entalhara pessoalmente. Harry soprou-a, parecia
um pouco com um pio de coruja.
Um
segundo embrulho, muito pequeno, continha um bilhete. “Recebemos sua mensagem e
estamos enviando o seu presente. Tio Válter e Tia Petúnia”. Presa com fita
adesiva na nota havia uma moeda de cinquenta pence.
— Que
simpático! — exclamou Harry.
Rony
ficou fascinado pela moeda de cinquenta pence.
— Que
esquisito! — disse — Que formato! Isso é dinheiro?
—
Pode ficar com ela — disse Harry rindo-se ao ver a satisfação de Rony — Hagrid,
minha tia e meu tio. E quem mandou esses?
—
Acho que sei quem mandou esse — disse Rony, ficando um pouco vermelho e
apontando para um embrulho disforme — Mamãe. Eu disse a ela que você não estava
esperando receber presentes... ah, não... — gemeu — Ela fez para você um suéter
Weasley.
Harry
rasgou o papel e encontrou um suéter tricotado com linha grossa verde-clara e
uma grande caixa de barras de chocolate feito em casa.
—
Todos os anos ela faz para nós um suéter — disse Rony, desembrulhando a dele —
E o meu é sempre cor de tijolo.
— Foi
realmente muita gentileza dela — disse Harry, experimentando as barrinhas de
chocolate, que estavam muito gostosas.
O
presente seguinte também continha doces, uma grande caixa de Sapos de Chocolate
dados por Hermione.
Restava
apenas um embrulho. Harry apanhou-o e apalpou. Era muito leve. Desembrulhou e
uma coisa sedosa e prateada escorregou para o chão onde se acomodou em dobras
refulgentes.
Rony
soltou uma exclamação:
— Já
ouvi falar nisso — disse em voz baixa, deixando cair a caixa de Feijõezinhos de
Todos os Sabores que ganhara de Hermione — Se isso é o que eu penso que é, é
realmente raro e realmente valioso.
— E o
que é?
Harry
apanhou o pano brilhoso e prateado do chão. Tinha uma textura estranha, parecia
tecida com fios de água.
— É
uma Capa da Invisibilidade — disse Rony, com uma expressão de assombro no rosto
— Tenho certeza de que é. Experimente.
Harry
jogou a capa em volta dos ombros e Rony deu um berro.
— É,
sim! Olhe para baixo!
Harry
olhou para os pés, mas eles tinham desaparecido. Correu então para o espelho.
Não deu outra, o espelho refletiu sua imagem, só a cabeça suspensa no ar, o
corpo completamente invisível. Ele cobriu a cabeça e a imagem desapareceu
completamente.
— Tem
um cartão! — disse Rony de repente — Caiu um cartão!
Harry
tirou a capa e apanhou o cartão. Escritas numa caligrafia fina e rebuscada que
ele nunca vira antes estavam as seguintes palavras:
Seu pai deixou isto comigo antes de morrer. Está na hora de devolvê-la
a você. Use-a bem.
Um Natal muito Feliz para você.
Não
havia assinatura. Harry ficou olhando o cartão. Rony admirava a capa.
— Eu
daria qualquer coisa para ter uma dessas. Qualquer coisa... que foi?
—
Nada — Harry estava se sentindo muito estranho. Quem mandara a capa? Será que
pertencera mesmo ao seu pai?
Antes
que pudesse dizer ou pensar qualquer outra coisa, a porta do dormitório se
escancarou e Fred e Jorge Weasley entraram aos pulos. Harry rapidamente deu um
sumiço na capa. Por ora não tinha vontade de compartilhá-la com mais ninguém.
—
Feliz Natal!
— Ei,
olhe só, o Harry ganhou um suéter Weasley também!
Fred
e Jorge estavam usando suéteres azuis, um com um grande F, o outro com um J.
— Mas
o do Harry é melhor do que o nosso — comentou Fred, erguendo o suéter de Harry
— Ela com certeza capricha mais se a pessoa não é da família.
— Por
que você não está usando o seu? — perguntou Jorge — Vamos, vista logo, eles são
ótimos e quentes.
—
Detesto cor de tijolo — lamentou-se Rony, desanimado enquanto vestia o suéter.
—
Pelo menos você não tem uma letra no seu — comentou Jorge — Ela deve pensar que
você não esquece o seu nome. Mas nós não, somos burros, sabemos que nos
chamamos Forge e Jred.
— Que
barulheira é essa?
Percy
Weasley meteu a cabeça para dentro da porta, com um olhar de censura. Era
visível que já desembrulhara metade dos seus presentes porque trazia também um
suéter grosso pendurado no braço, que Fred logo agarrou.
— M
de monitor! Vista logo, Percy, todos estamos usando os nossos, até Harry ganhou
um.
—
Eu... não... quero — disse Percy com a voz embargada, enquanto os gêmeos
forçavam o suéter por sua cabeça, entortando seus óculos.
— E
você hoje não vai se sentar com os monitores — disse Jorge.
—
Natal é uma festa da família.
E os
dois carregaram Percy para fora do quarto, com os braços presos dos lados pelo
suéter.
Harry
nunca tivera em toda a vida um almoço de Natal igual àquele. Cem perus gordos
assados, montanhas de batatas assadas e cozidas, travessas de salsichas,
terrinas de ervilhas passadas na manteiga, molheiras com uva-do-monte em molho
espesso e bem temperado e, a pequenos intervalos sobre a mesa, pilhas de
bombinhas de bruxo. Essas bombinhas fantásticas não se pareciam nada com as
bombinhas fracas dos trouxas que os Dursley em geral compravam, cheias de
brinquedinhos de plástico e chapéus de papel fino. Harry puxou a ponta de uma
bombinha de bruxo com Fred e ela não deu apenas um estalinho, ela explodiu com
o ruído de um canhão e envolveu-os em uma nuvem de fumaça azul, enquanto caiam
de dentro um chapéu de almirante e vários camundongos brancos, vivos.
Na Mesa
Principal, Dumbledore tinha trocado o chapéu de bruxo por um toucado florido e
ria alegremente da piada que o Prof. Flitwick acabara de ler para ele. Pudins
de Natal flamejantes seguiram-se ao peru. Percy quase quebrou os dentes em uma
foice de prata que estava escondida em sua fatia. Harry observava o rosto de
Hagrid ficar cada vez mais vermelho à medida que pedia mais vinho e acabou
beijando a bochecha da Profª. McGonagall, e quase para espanto de Harry, rira e
corara, o chapéu de bruxa enviesado na cabeça.
Quando
Harry finalmente saiu da mesa estava levando uma montanha de brinquedos das
bombinhas, inclusive uma embalagem de balões luminosos e não-explosivos, um kit
para cultivar capixingui, a planta símbolo de Hogwarts, e um jogo de xadrez de
bruxo.
Os
camundongos brancos tinham desaparecido e Harry teve a desagradável sensação de
que eles iam acabar virando jantar de Natal para Madame Nor-r-ra.
Harry
e os Weasley passaram uma tarde muito alegre ocupados em uma furiosa guerra de
bolas de neve. Depois, frios, molhados e ofegantes, voltaram para junto da
lareira na Sala Comunal da Grifinória, onde Harry estreou o seu novo jogo de
xadrez perdendo espetacularmente para Rony. Suspeitou que não teria levado uma
surra tão grande se Percy não tivesse tentado ajudá-lo tanto.
Depois
de lancharem sanduíches de peru, bolinhos, gelatina e bolo de frutas, todos se
sentiram demasiado fartos e sonolentos para fazer outra coisa senão sentar e
assistir a Percy correr atrás de Fred e Jorge por toda a Torre da Grifinória porque
eles tinham furtado seu crachá de monitor.
Fora
o melhor Natal da vida de Harry. No entanto, no fundinho da cabeça alguma coisa
o incomodara o dia inteiro. Somente quando finalmente se deitou é que teve
tempo para pensar nela: a capa invisível e a pessoa que a mandara. Rony, cheio
de peru e bolo e sem nenhum mistério para perturbá-lo, caiu no sono assim que
puxou as cortinas de sua cama de dossel. Harry debruçou-se pela borda da cama e
puxou a capa que escondera ali.
Do
seu pai... aquilo fora do seu pai. Ele deixou o tecido escorregar pelas mãos,
mais macio do que seda, leve como o ar.
“Use-a
bem”, dissera o cartão.
Tinha
de experimentá-la agora. E saiu da cama e se enrolou na capa. Olhando para as
pernas, viu apenas o luar e as sombras.
Era
uma sensação muito engraçada.
“Use-a bem”.
De
repente, Harry se sentiu completamente acordado. Toda a Hogwarts se abria para
ele com esta capa. Sentiu-se tomado de excitação em pé ali na escuridão
silenciosa. Podia ir a qualquer lugar com a capa, qualquer lugar, e Filch
jamais saberia. Rony resmungou adormecido. Será que Harry devia acordá-lo?
Alguma coisa o deteve, a capa era do seu pai, sentiu que desta vez, a primeira,
queria usá-la sozinho. E saiu sorrateiro do dormitório, desceu as escadas,
atravessou a Sala Comunal e passou pelo buraco do retrato.
—
Quem está aí? — perguntou esganiçada a Mulher Gorda.
Harry
não respondeu. Saiu depressa pelo corredor. Onde deveria ir? Parou, o coração
acelerado, e pensou. E então lhe ocorreu. A Seção Reservada na biblioteca.
Poderia ler o tempo que quisesse, o tempo que precisasse para descobrir quem
era Flamel. Foi, então, puxando a capa para bem junto do corpo ao andar.
A
biblioteca estava escura como breu e muito estranha. Harry acendeu uma luz para
enxergar o caminho entre as fileiras de livros. A lâmpada parecia que estava
flutuando no ar, e embora Harry sentisse que seu braço a sustentava, aquela
visão lhe deu arrepios.
A
Seção Reservada era bem no fundo da biblioteca. Saltando com cautela a corda
que separava esses livros do resto da biblioteca, ele ergueu a lâmpada para ler
os títulos. Eles não lhe informavam muita coisa. Suas letras descascadas e
esmaecidas formavam dizeres em línguas que Harry não entendia. Alguns sequer
tinham titulo. Um livro tinha uma mancha escura que fazia lembrar horrivelmente
de sangre.
Os pelos
na nuca de Harry ficaram em pé. Talvez fosse imaginação dele, talvez não, mas
achou que ouvia um sussurro inaudível vindo dos livros, como se eles soubessem
que havia alguém ali que não deveria estar.
Precisava
começar por alguma parte. Pousando com cuidado a lâmpada no chão, ele procurou
na prateleira mais baixa um livro que parecesse interessante. Um grande volume
preto e prata chamou sua atenção. Puxou-o com esforço, porque era muito pesado,
e equilibrando-o nos joelhos, deixou-o abrir ao acaso.
Um
grito agudo de coalhar o sangue cortou o silêncio, o livro estava gritando!
Harry fechou-o depressa, mas o grito não parou, uma nota alta, continua, de
furar os tímpanos. Ele tropeçou para trás e derrubou a lâmpada, que se apagou
na mesma hora. Em pânico, ouviu passos que vinham pelo corredor do lado de fora
enfiando o livro gritador de qualquer jeito no lugar, ele correu para valer.
Passou por Filch quase a porta. Os olhos claros e arregalados de Filch
atravessaram-no, Harry escorregou por debaixo dos seus braços estendidos e saiu
desabalado pelo corredor, os gritos do livro ainda ecoando em seus ouvidos.
Parou
subitamente diante de uma alta armadura. Estivera tão ocupado em fugir da
biblioteca que não prestara atenção onde estava indo. Talvez porque estivesse
escuro, ele sequer reconheceu onde se encontrava. Havia uma armadura perto das
cozinhas, ele sabia, mas ele devia estar uns cinco andares acima.
— O
senhor me pediu para eu vir direto ao senhor, professor, se alguém estivesse
perambulando durante a noite e alguém esteve na biblioteca, na Seção Reservada.
Harry
sentiu o sangue se esvair do seu rosto. Onde quer que estivesse, Filch devia
conhecer um atalho, porque sua voz baixa e untuosa estava se aproximando, e para
seu horror, foi Snape quem respondeu:
— A
Seção Reservada? Bom, eles não podem estar longe, vamos apanhá-los.
Harry
ficou imóvel no lugar em que estava quando Filch e Snape viraram o canto do
corredor à frente. Eles não podiam vê-lo, é claro, mas era um corredor estreito
e se chegassem mais perto esbarrariam nele, a capa não o impedia de ser sólido.
Recuou
o mais silenciosamente que pôde. Havia uma porta entreaberta à sua esquerda.
Era sua única esperança. Esgueirou-se por ela, prendendo a respiração, tentando
não empurrá-la e, para seu alívio, conseguiu entrar no aposento sem que
percebessem nada. Eles passaram direto e Harry apoiou-se na parede, respirando
profundamente, ouvindo os passos dos dois morrerem a distância. Fora por pouco,
por um triz. Passaram-se alguns segundos até ele reparar em alguma coisa no
aposento em que se escondera.
Parecia
uma sala de aula fechada. Os vultos escuros das mesas e cadeiras se amontoavam
contra as paredes e havia uma cesta de papéis virada, mas escorada na parede à
sua frente havia uma coisa que não parecia pertencer ao lugar, alguma coisa que
parecia que alguém acabara de pôr ali para tirá-la do caminho.
Era
um magnífico espelho, da altura do teto, com uma moldura de talha dourada,
aprumado sobre dois pés em garra. Havia uma inscrição entalhada no alto: “Oãça
rocu esme Ojesed osamo tso rueso ortso moãn[1]”.
[1] De trás para frente: “Não Mostro O Seu Rosto, Mas O Desejo Em Seu Coração”.
Já
livre do pânico, agora que não ouvia sinal de Filch e Snape, Harry aproximou-se
do espelho querendo mostrar-se sem ver nenhuma imagem como antes. Adiantou-se
para o espelho. Teve de levar as mãos à boca para não gritar. Virou-se. Seu
coração batia com muito mais fúria do que quando o livro gritara, porque não
vira somente a própria imagem no espelho, mas a de uma verdadeira multidão por
trás dele.
Mas o
quarto estava vazio. Respirando muito depressa, ele se virou lentamente para o
espelho. Lá estava ele, refletido, parecendo branco e assustado, e lá estavam,
refletidos às suas costas, pelo menos outras dez pessoas, Harry espiou por cima
do ombro, mas continuava a não haver ninguém mais. Ou será que eram todos
invisíveis também? Será que estava de fato em um aposento cheio de gente
invisível e o truque desse espelho é que ele refletia tudo, invisível ou não?
Olhou
para o espelho outra vez.
Uma
mulher parada logo atrás de sua imagem sorria e lhe acenava. Ele esticou a mão
e sentiu o ar atrás dele. Se ela estivesse realmente ali, ele a tocaria, pois
suas imagens estavam muito próximas, mas ele pegou apenas ar, ela e os outros
só existiam no espelho. Era uma mulher muito bonita. Tinha cabelos acaju e os
olhos... “os olhos são iguaizinhos aos meus”, Harry pensou, acercando-se um
pouco mais do espelho. “Verde-vivo... exatamente do mesmo formato”...
Mas
então reparou que ela estava chorando, sorrindo, mas chorando ao mesmo tempo. O
homem alto, magro, de cabelos negros, parado ao lado dela abraçou-a. Usava
óculos e seu cabelo era muito rebelde. Espetava na parte de trás, como o de
Harry.
Harry
estava tão perto do espelho agora que seu nariz quase encostava em sua imagem.
—
Mamãe? — murmurou — Papai?
Eles
apenas olharam para ele, sorrindo, e lentamente Harry olhou para os rostos das
outras pessoas no espelho e viu outros pares de olhos verdes iguais aos seus,
outros narizes como o seu, até mesmo um velhote que parecia ter os mesmos
joelhos ossudos que ele. Harry estava olhando para sua família, pela primeira
vez na vida. Os Potter sorriram e acenaram para Harry e ele retribuiu o olhar
carente, as mãos comprimindo o espelho como se esperasse entrar por dentro dele
e alcançá-los. Sentiu uma dor muito forte no peito, em que se misturavam a
alegria e uma terrível tristeza.
Quanto
tempo esteve parado ali, ele não sabia. As imagens não esmaeceram e ele
continuou mirando-as até que um ruído distante o trouxe de volta ao presente.
Não podia ficar ali, tinha de encontrar o caminho de volta para a cama. Com
esforço, desviou os olhos do rosto de sua mãe, sussurrando “Eu volto” e saiu
depressa do aposento.
* * *
—
Você podia ter me acordado — falou Rony, aborrecido.
—
Você pode vir hoje à noite. Vou voltar, quero lhe mostrar o espelho.
— Eu
gostaria de ver sua mãe e seu pai — disse Rony, animado.
— E
eu quero ver toda a sua família, todos os Weasley, você vai poder me mostrar os
seus outros irmãos e todo o mundo.
—
Você pode vê-los a qualquer hora. E só vir à minha casa neste verão. Em todo o
caso, talvez o espelho só mostre gente morta. Mas é uma pena você não ter
achado o Flamel. Coma um pouco de bacon ou outra coisa qualquer, por que é que
você não está comendo nada?
Harry
não conseguia comer. Vira os pais e iria vê-los de novo à noite. Quase se
esquecera de Flamel, já não lhe parecia tão importante. Quem ligava para o que
o cachorro de três cabeças estava guardando? Quem ligava realmente que Snape
fosse roubar a coisa?
—
Você está bem? — perguntou Rony — Está com uma cara tão estranha.
O que
Harry mais temia era não conseguir encontrar o aposento do espelho outra vez.
Com Rony coberto pela capa também, eles tiveram de andar muito mais devagar na
noite seguinte. Tentaram refazer o caminho de Harry ao sair da biblioteca,
andando a esmo pelos corredores escuros durante quase uma hora.
—
Estou falando — disse Rony — Vamos esquecer tudo e voltar.
—
Não! — sibilou Harry — Sei que é em algum lugar por aqui.
Passaram
pelo fantasma de uma bruxa alta que deslizava na direção oposta, mas não viram
mais ninguém. Na hora em que Rony começou a reclamar que seus pés estavam
dormentes de frio, Harry identificou a armadura.
— É
aqui... logo aqui... é.
Eles
empurraram a porta. Harry deixou cair a capa dos ombros e correu para o
espelho.
Lá
estavam eles. Sua mãe e seu pai sorriam ao vê-lo.
—
Está vendo? — Harry cochichou.
— Não
consigo ver nada.
—
Olhe! Olhe eles todos... ali, montes deles...
— Só
consigo ver você.
—
Olhe direito, vamos, fique aqui onde eu estou.
Harry
deu um passo para o lado, mas com Rony diante do espelho, não conseguiu mais
ver sua família, apenas Rony como seu pijama de lã escocesa.
Rony,
porém, estava mirando a própria imagem, petrificado.
—
Olhe só para mim! — exclamou.
—
Você está vendo toda a sua família à sua volta?
—
Não, estou sozinho, mas estou diferente... pareço mais velho, e sou chefe dos
monitores.
— O
quê?
—
Estou... estou usando um crachá igual ao do Gui... e estou segurando a Taça das
Casas e a Taça de Quadribol, sou capitão do time de Quadribol também!
Rony
despregou os olhos dessa visão magnífica para olhar excitado para Harry.
—
Você acha que esse espelho mostra o futuro?
—
Como pode mostrar? A minha família está toda morta. Deixe-me dar outra espiada.
—
Você teve o espelho só para você a noite passada, me deixa olhar mais um pouco.
—
Você só está segurando a Taça de Quadribol, que interesse tem isso? Eu quero
ver os meus pais.
— Não
me empurre...
Um
ruído repentino do lado de fora no corredor pôs fim à discussão dos dois. Não tinham
se dado conta do como estavam falando alto.
—
Depressa!
Rony
atirou a capa de volta para cobri-los na hora que os olhos luminosos de Madame
Nor-r-ra apareceram à porta.
Rony
e Harry ficaram imóveis, ambos pensando a mesma coisa, será que a capa fazia
efeito para os gatos? Passado um tempo que pareceu uma eternidade, ela se virou
e foi embora.
—
Isto é perigoso. Ela pode ter ido buscar o Filch, aposto que nos ouviu. Vamos.
E
Rony puxou Harry pata fora do quarto.
* * *
A
neve ainda não derretera na manhã seguinte.
—
Quer jogar xadrez, Harry? — convidou Rony.
—
Não.
— Por
que não descemos para visitar Hagrid?
—
Não... vai você...
— Sei
o que é que você está pensando, Harry, naquele espelho. Não volte lá hoje à
noite.
— Por
que não?
— Não
sei, estou com uma intuição ruim, e de qualquer forma você já escapou por um
triz muitas vezes, demais. Filch, Snape e Madame Nor-r-ra estão andando por lá.
E daí se eles não conseguem ver você? E se esbarrarem em você? E se você
derrubar alguma coisa?
—
Você está falando igual a Hermione.
—
Estou falando sério. Harry, não vai não.
Mas
Harry só tinha um pensamento na cabeça, voltar para frente do espelho, e Rony
não ia detê-lo.
Naquela
terceira noite ele encontrou o caminho ainda mais rapidamente do que nas vezes
anteriores. Andava tão depressa que sabia que estava fazendo mais barulho do
que seria sensato, mas não encontrou ninguém. E lá estavam sua mãe e seu pai
sorrindo de novo para ele, e um dos seus avós acenava feliz com a cabeça. Harry
se abaixou para sentar no chão diante do espelho. Não havia nada que pudesse
impedi-lo de ficar ali a noite inteira com a família. Nada. A não ser...
—
Então, outra vez aqui, Harry?
Harry
sentiu como se suas tripas tivessem congelado. Olhou para trás. Sentado em uma
das mesas junto à parede estava ninguém menos que Alvo Dumbledore. Harry devia
ter passado direto por ele, tão desesperado estava para chegar ao espelho, que
nem reparara.
—
Eu... eu não vi o senhor.
— É
estranho como você pode ficar míope quando está invisível — disse Dumbledore, e
Harry sentiu alívio ao ver que ele sorria — Então — continuou Dumbledore,
escorregando da cadeira até o chão para se sentar ao lado de Harry — Você, como
centenas antes de você, descobriu os prazeres do Espelho de Ojesed.
— Eu
não sabia que se chamava assim, professor.
— Mas
espero que a essa altura você já tenha percebido o que ele faz?
—
Bom... me mostra a minha família...
— E
mostrou o seu amigo Rony como chefe dos monitores.
—
Como é que o senhor soube?
— Eu
não preciso de uma capa para me tornar invisível — disse Dumbledore com
brandura — Agora, você é capaz de concluir o que é que o Espelho de Ojesed
mostra a nós todos?
Harry
sacudiu negativamente a cabeça.
—
Deixe-me explicar. O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed
como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é. Isso
o ajuda a pensar?
Harry
pensou. Então respondeu lentamente:
— Ele
nos mostra o que desejamos... seja o que for que desejemos...
— Sim
e não — disse Dumbledore — Mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais
íntimo, mais desesperado de nossos corações. Você, que nunca conheceu sua
família, a vê de pé a sua volta. Ronald Weasley, que sempre teve os irmãos a
lhe fazerem sombra, vê-se sozinho, melhor que todos os irmãos. Porém, o espelho
não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam
diante dele, fascinados pelo que viam, ou enlouqueceram sem saber se o que o
espelho mostrava era real ou sequer possível. O espelho vai ser levado para uma
nova casa amanhã, Harry, e peço que você não volte a procurá-lo. Se algum dia o
encontrar, estará preparado. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver,
lembre-se. E agora, por que você não põe essa capa admirável outra vez e vai
dormir?
Harry
se levantou.
—
Senhor... Prof. Dumbledore? Posso lhe perguntar uma coisa?
—
Obviamente você acabou de me perguntar — sorriu Dumbledore — Mas pode me
perguntar mais uma coisa.
— O
que é que o senhor vê quando se olha no espelho?
— Eu?
Eu me vejo segurando um par de grossas meias de lã.
Harry
arregalou os olhos.
— As
meias nunca são suficientes. Mais um Natal chegou e passou e não ganhei nem um
par. As pessoas insistem em me dar livros.
Foi
somente quando estava de volta à cama que ocorreu a Harry que talvez Dumbledore
não tivesse dito a verdade. Mas, pensou, enquanto empurrava Perebas para longe
do seu travesseiro, fizera uma pergunta muito pessoal.
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