— CAPÍTULO SETE —
Sangue Ruim E Vozes Invisíveis
HARRY DEDICOU MUITO
TEMPO, nos dias seguintes, a desaparecer de vista sempre que Gilderoy Lockhart
aparecia andando por um corredor. Mais difícil foi evitar Colin Creevey, que
parecia ter decorado o seu horário. Pelo visto nada dava maior alegria a Colin
do que dizer: “Tudo bem, Harry?” seis
ou sete vezes por dia e ouvir: “Oi,
Colin”, em resposta, por maior irritação que Harry demonstrasse ao dizer
isso.
Edwiges
continuava aborrecida com Harry por causa da desastrada viagem de carro e a
varinha de Rony continuava a funcionar mal, superando os próprios limites na
Sexta-Feira na aula de Feitiços, ao se atirar da mão de Rony e atingir o Prof.
Flitwick bem no meio dos olhos, produzindo um grande furúnculo verde e
latejante no lugar em que bateu. Assim, entre uma coisa e outra, Harry ficou
muito contente ao ver chegar o fim de semana. Ele, Rony e Mione estavam
planejando visitar Hagrid no Sábado de manhã. Harry, porém, foi acordado muito
antes da hora que pretendera pelas sacudidas de Olívio Wood, capitão do time de
Quadribol da Grifinória.
— Que
foi? — perguntou Harry tonto de sono.
—
Prática de Quadribol! — disse Wood — Vamos!
Harry
espiou pela janela apertando os olhos. Havia uma névoa rala cobrindo o céu rosa
e dourado. Agora que acordara, ele não conseguia entender como podia estar
dormindo com a algazarra que os passarinhos faziam.
—
Olívio — disse ele com a voz rouca — O dia ainda está amanhecendo.
—
Exato — respondeu Wood.
Ele
era um sextanista alto e forte e, naquele instante, seus olhos brilhavam de
fanático entusiasmo.
— Faz
parte do nosso novo programa de treinamento. Ande, pegue a vassoura e vamos —
disse Wood animado — Nenhum dos times começou a treinar ainda, vamos ser os
primeiros a dar a partida este ano...
Aos
bocejos e tremores, Harry saiu da cama e tentou encontrar as vestes de
Quadribol.
—
Muito bem — disse Wood — Te encontro no campo daqui a quinze minutos.
Depois
de procurar o uniforme vermelho do time e vestir uma capa para se aquecer,
Harry rabiscou um bilhete para Rony explicando onde fora e desceu a escada em
caracol até a Sala Comunal, a Nimbus 2000
ao ombro. Acabara de chegar ao buraco do retrato quando ouviu um estardalhaço
às suas costas, e Colin Creevey apareceu correndo escada abaixo, a máquina
fotográfica balançando feito louca ao pescoço e alguma coisa segura na mão.
—
Ouvi alguém dizer o seu nome na escada, Harry! Olhe só o que tenho aqui! Mandei
revelar, queria lhe mostrar...
Harry
examinou confuso a foto que Colin sacudia debaixo do seu nariz. Numa foto
preto-e-branco, um Lockhart em movimento puxava com força um braço que Harry
reconhecia como seu. Ficou satisfeito ao ver que o seu eu-fotográfico resistia
bravamente e recusava a se deixar arrastar para dentro da foto. Enquanto Harry
observava, Lockhart desistiu e se largou, ofegante, contra a margem branca da
foto.
—
Você autografa? — perguntou Colin, ansioso.
— Não
— disse Harry sem rodeios, olhando para os lados para verificar se a sala
estava realmente deserta — Desculpe, Colin, estou com pressa, prática de
Quadribol...
E
atravessou o buraco do retrato.
—
Uau! Espere por mim! Nunca vi um jogo de Quadribol antes!
Colin
subiu pelo buraco atrás de Harry.
— Vai
ser bem chato — disse Harry depressa, mas o garoto não lhe deu atenção, seu
rosto iluminava-se de excitação.
— Você
foi o jogador da casa mais novo em cem anos, não foi, Harry? Não foi? —
perguntou Colin, caminhando ao lado dele — Você deve ser genial. Eu nunca voei.
É fácil? Esta vassoura é sua? É a melhor que existe?
Harry
não sabia como se livrar do coleguinha. Era como ter uma sombra extremamente
tagarela.
— Eu
não entendo bem de Quadribol — disse Colin sem fôlego — É verdade que tem
quatro bolas? E duas ficam voando em volta dos jogadores tentando tirá-los de
cima das vassouras?
— É —
disse Harry a contragosto, conformado em explicar as regras complicadas do
Quadribol — Chamam-se balaços. Há dois batedores em cada time armados de
bastões para rebater os balaços para longe do seu time. Fred e Jorge Weasley
batem pela Grifinória.
— E
para que servem as outras bolas? — perguntou Colin, derrapando dois degraus
porque olhava boquiaberto para Harry.
—
Bem, a goles, a bola vermelha meio grande, é a que faz os gols. Três
apanhadores em cada time atiram a goles um para o outro e tentam metê-la entre
as balizas na extremidade do campo, são três postes compridos com aros na
ponta.
— E a
quarta bola...
—...
É o Pomo de Ouro — disse Harry — E é
muito pequena, muito veloz e difícil de agarrar. Mas é isso que o apanhador tem
que fazer, porque um jogo de Quadribol não termina até o Pomo ser capturado. E
o apanhador que agarra o Pomo para o time ganha cento e cinqüenta pontos a
mais.
— E
você é o apanhador da Grifinória, não é? — perguntou Colin cheio de admiração e
respeito.
— Sou
— respondeu Harry enquanto deixavam o castelo e começavam a atravessar o
gramado encharcado de orvalho — E tem o goleiro também. Ele guarda as balizas.
É isso, em resumo.
Mas
Colin não parou de interrogar Harry o tempo todo, desde o gramado ondulante até
o campo de Quadribol, e Harry só conseguiu se desvencilhar dele quando chegou
aos vestiários; Colin ainda gritou com sua voz fina quando ele se afastava.
— Vou
pegar um bom lugar, Harry! — e correu para as arquibancadas.
Os
outros jogadores do time da Grifinória já estavam no vestiário. Wood era o
único que parecia realmente acordado. Fred e Jorge estavam sentados, os olhos
inchados e os cabelos despenteados, ao lado de uma quartanista, Alicia Spinnet,
que parecia estar cabeceando contra a parede em que se encostara. As outras
artilheiras, suas companheiras, Cátia Bell e Angelina Johnson, bocejavam lado a
lado de frente para eles.
— Até
que enfim, Harry, por que demorou? — perguntou Wood eficiente — Agora, eu
queria ter uma conversinha com vocês antes de irmos para o campo, porque passei
o verão imaginando um programa de treinamento completamente novo, que acho que
vai fazer toda a diferença...
Wood
ergueu um grande diagrama de um campo de Quadribol, em que estavam desenhadas
muitas linhas, setas e cruzes em tinta de cores diversas. Depois, puxou a
varinha, deu uma batidinha no desenho, e as flechas começaram a se deslocar
pelo diagrama como lagartas. Quando Wood deslanchou um discurso sobre as novas
táticas, a cabeça de Fred Weasley despencou no ombro de Alicia Spinnet e ele
começou a roncar.
O
primeiro quadro levou quase vinte minutos para ser explicado, mas havia outro
por baixo daquele, e um terceiro por baixo do segundo. Harry mergulhou num
estupor durante a falação interminável de Wood.
—
Então — disse Wood, finalmente, arrancando Harry de uma irrealizável fantasia
sobre o que estaria comendo no café da manhã, naquele instante, no castelo —
Ficou claro? Alguma pergunta?
—
Tenho uma pergunta, Olívio — disse Jorge, que acordara assustado — Você não
podia ter explicado tudo isso ontem quando a gente estava acordado?
Wood
não gostou.
—
Agora, ouçam aqui, vocês todos — disse, amarrando a cara — Nós devíamos ter
ganho a Taça de Quadribol no ano passado. Somos sem favor nenhum o melhor time
da escola. Mas, infelizmente, devido a circunstâncias fora do nosso controle...
Harry
se mexeu cheio de culpa no banco. Estivera inconsciente na Ala Hospitalar no
último jogo do ano anterior, o que significava que a Grifinória tivera um
jogador a menos e sofrera sua pior derrota em trezentos anos. Wood esperou um
instante para recuperar o próprio controle. A última derrota, visivelmente,
continuava a torturá-lo.
—
Então, este ano, vamos treinar mais do que jamais treinamos... muito bem, vamos
colocar as nossas teorias em prática! — gritou Wood, agarrando a vassoura e
saindo do vestiário.
As
pernas dormentes e, ainda bocejando, o time o acompanhou. Tinham passado tanto
tempo no vestiário que o sol já estava todo de fora, embora ainda se vissem
restos de névoa sobre o gramado do estádio.
Quando
Harry entrou em campo, viu Rony e Mione sentados nas arquibancadas.
—
Vocês ainda não acabaram? — gritou Rony surpreso.
— Nem
começamos — respondeu Harry, olhando com inveja a torrada com geléia que Rony e
Mione tinham trazido do Salão — Wood esteve ensinando novas jogadas ao time.
Ele
montou na vassoura, meteu o pé no chão para dar impulso e saiu voando. O ar
frio da manhã bateu em seu rosto, acordando-o com muito mais eficiência do que
a longa conversa de Wood. Era uma sensação maravilhosa estar de volta a um
campo de Quadribol. Harry sobrevoou o estádio a toda velocidade, apostando
corrida com Fred e Jorge.
— Que
clique-clique esquisito é esse? — gritou Fred enquanto faziam uma volta rápida.
Harry
olhou para as arquibancadas. Colin estava sentado em um dos lugares mais altos,
a máquina fotográfica levantada, tirando fotos seguidas, o som estranhamente
ampliado no estádio deserto.
—
Olhe para cá, Harry! Para cá! — gritava se esganiçando.
—
Quem é aquele? — perguntou Fred.
— Não
faço a menor ideia — mentiu Harry dando uma bombeada na vassoura que o levou o
mais longe possível de Colin.
— Que
é que está acontecendo? — perguntou Wood, franzindo a testa, enquanto cortava o
ar em direção a eles — Por que aquele aluninho de primeiro ano está tirando
fotos? Não gosto disto. Pode ser um espião da Sonserina, tentando descobrir o
nosso novo programa de treinamento.
— Ele
é da Grifinória — informou Harry depressa.
— E o
pessoal da Sonserina não precisa de espião, Olívio — acrescentou Jorge.
— Por
que você está dizendo isso? — perguntou Wood irritado.
—
Porque eles vieram pessoalmente — respondeu Jorge apontando.
Vários
alunos de vestes verdes estavam entrando em campo, de vassouras na mão.
— Eu
não acredito! — sibilou Wood indignado — Reservei o campo para hoje! Vamos
cuidar disso.
Wood
mergulhou até o chão, aterrissando em sua raiva, com muito mais força do que
pretendia, e cambaleou um pouco ao desmontar. Harry, Fred e Jorge o
acompanharam.
—
Flint! — berrou Wood para o capitão da Sonserina — Está na hora do nosso
treino! Levantamos especialmente para isso!
—
Pode ir dando o fora!
Marcos
Flint era ainda mais corpulento do que Wood. Tinha uma expressão de trasgo
astucioso quando respondeu:
— Tem
bastante espaço para todos nós, Wood.
Angelina,
Alicia e Katie tinham se aproximado também. Não havia mulheres no time da
Sonserina, para ficarem, ombro a ombro, com ar de desdém, encarando os
jogadores da Grifinória.
— Mas
eu reservei o campo! — disse Wood, praticamente cuspindo de raiva — Eu
reservei!
— Ah,
mas tenho um papel aqui assinado pelo Prof. Snape.
Eu, Prof. Snape, dei ao time da Sonserina permissão para praticar hoje no
campo de Quadribol, face á necessidade de treinarem o seu novo apanhador.
—
Vocês têm um novo apanhador? — perguntou Wood, distraído — Onde?
E por
trás dos seis jogadores grandalhões surgiu diante deles um sétimo, menor, com
um sorriso que se irradiava por todo o rosto pálido e fino.
Era
Draco Malfoy.
—
Você não é o filho do Lúcio Malfoy? — perguntou Fred, olhando Draco com ar de
desagrado.
—
Engraçado você mencionar o pai do Draco — disse Flint enquanto o time inteiro
da Sonserina sorria com mais prazer — Deixe eu mostrar a vocês o presente
generoso que ele deu ao time da Sonserina.
Os
sete mostraram as vassouras. Sete cabos polidos, novos em folha, e sete
conjuntos de letras douradas, formando as palavras Nimbus 2001, reluziam sob os narizes dos jogadores da Grifinória,
ao sol do amanhecer.
—
Último modelo. Saiu no mês passado — disse Flint displicente, tirando um grão
de poeira da ponta de sua vassoura com um peteleco — Acho que bate de longe a
série antiga das 2000. Quanto às velhas Cleansweep — e sorriu de modo
desagradável para Fred e Jorge, que seguravam esse tipo de vassoura — Varrem o
placar com elas.
Nenhum
dos jogadores da Grifinória conseguiu pensar em nada para dizer naquele instante.
Draco exibia um sorriso tão grande que seus olhos frios estavam reduzidos a
fendas.
— Ah,
olha ali — disse Flint — Uma invasão de campo.
Rony
e Mione vinham atravessando o gramado para ver o que estava acontecendo.
— Que
é que está havendo? — perguntou Rony a Harry — Por que vocês não estão jogando?
E que é que ele está fazendo aqui?
Olhava
para Draco, reparando nas vestes de Quadribol com as cores da Sonserina que o
garoto usava.
— Sou
o novo apanhador da Sonserina, Weasley — disse Draco, presunçoso — O pessoal
aqui está admirando as vassouras que meu pai comprou para o nosso time.
Rony
olhou, boquiaberto, as sete magníficas vassouras diante dele.
—
Boas, não são? — disse Draco com a voz macia — Mas quem sabe o time da
Grifinória pode levantar um ourinho e comprar vassouras novas, também. Você
podia fazer uma rifa dessas Cleansweep 5, imagino que um museu talvez queira
comprá-las.
O
time da Sonserina dava gargalhadas.
—
Pelo menos ninguém do time da Grifinória teve de pagar para entrar — disse
Mione com aspereza — Entraram por puro talento.
O ar
presunçoso de Draco pareceu oscilar.
—
Ninguém pediu sua opinião, sua sujeitinha de Sangue Ruim. — xingou
ele.
Harry
percebeu na hora que Draco dissera uma coisa realmente ofensiva, porque houve
um tumulto instantâneo em seguida às suas palavras. Flint teve que mergulhar na
frente de Draco para impedir que Fred e Jorge se atirassem contra ele. Alicia
gritou com voz aguda “Como é que você se
atreve!”, e Rony mergulhou a mão nas vestes, puxou a varinha e gritou:
— Você
vai me pagar! — e apontou a varinha, furioso, para a cara e Draco, por baixo do
braço de Flint.
Um
estrondo muito forte ecoou pelo estádio, e um jorro de luz verde saiu da ponta
oposta da varinha de Rony, atingiu-o na barriga e o atirou de costas na grama.
—
Rony! Rony! Você está bem? — gritou Mione.
Rony
abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Em vez disso, ele soltou um
poderoso arroto e várias lesmas caíram de sua boca para o colo. O time da
Sonserina ficou paralisado de tanto rir. Flint, dobrado pela cintura, tentava
se apoiar na vassoura nova. Draco caíra de quatro, dando murros no chão. Os
alunos da Grifinória agrupavam-se em torno de Rony, que não parava de arrotar
lesmas enormes. Ninguém parecia querer tocar nele.
— É
melhor levarmos o Rony para a casa de Hagrid, é mais perto — disse Harry a
Mione, que concordou cheia de coragem, e os dois levantaram o amigo pelos
braços.
— Que
aconteceu, Harry? Que aconteceu? Ele está doente? Mas você pode curá-lo, não
pode? — Colin descera correndo das arquibancadas e agora dançava em volta dos
meninos que saíam de campo.
Rony
deu um enorme suspiro e mais lesmas rolaram pelo seu peito.
—
Aaah — exclamou Colin, fascinado, erguendo a máquina fotográfica — Pode manter
ele parado, Harry?
— Sai
da frente, Colin! — disse Harry com raiva. Ele e Mione carregaram Rony para
fora do estádio e atravessaram os jardins em direção à orla da floresta.
—
Estamos quase lá, Rony — disse Mione quando a cabana do guarda-caça tornou-se
visível — Você vai ficar bom num instante, estamos quase chegando...
Estavam
a uns cinco metros da casa de Hagrid quando a porta de entrada se abriu, mas
não foi Hagrid que apareceu. Gilderoy Lockhart, hoje com vestes lilás clarinho,
vinha saindo.
—
Depressa, aqui atrás — sibilou Harry, arrastando Rony para trás de uma moita
próxima.
Mione
seguiu-o, um tanto relutante.
— É
muito simples se você sabe o que está fazendo! — Lockhart dizia em voz alta a
Hagrid — Se precisar de ajuda, você sabe onde estou! Vou-lhe dar uma cópia do
meu livro. Estou surpreso que ainda não o tenha comprado: vou autografar um
exemplar hoje à noite e mandar para você. Bom, adeus.
E
saiu em direção ao castelo.
Harry
esperou até Lockhart desaparecer de vista, então puxou Rony da moita até a
porta de Hagrid. Bateram apressados. Hagrid abriu na mesma hora, parecendo
muito rabugento, mas seu rosto se iluminou quando viu quem era.
—
Estive pensando quando é que vocês viriam me ver, entrem, entrem, achei que
podia ser o Prof. Lockhart outra vez...
Harry
e Mione ajudaram Rony a entrar na cabana sala e quarto, que tinha uma cama
enorme em um canto, uma lareira com um fogo vivo no outro.
Hagrid
não pareceu perturbado com o problema das lesmas de Rony, que Harry explicou em
poucas palavras enquanto baixava o amigo em uma cadeira.
—
Melhor para fora do que para dentro — disse Hagrid animado, baixando com ruído
uma grande bacia de cobre na frente do menino — Ponha todas para fora, Rony.
—
Acho que não há nada a fazer exceto esperar que a coisa passe — disse Mione
ansiosa, observando Rony se debruçar na bacia — É um feitiço difícil de fazer
em condições ideais, ainda mais com uma varinha quebrada...
Hagrid
ocupou-se pela cabana preparando chá para os meninos. Seu cão de caçar javalis,
Canino, fazia festas a Harry, sujando-o todo.
— Que
é que Lockhart queria com você, Hagrid? — perguntou Harry, coçando as orelhas
de Canino.
—
Estava me dando conselhos para manter um poço livre de algas — rosnou Hagrid,
tirando um galo meio depenado de cima da mesa bem esfregada e pousando nela o
bule de chá — Como se eu não soubesse. E ainda fez farol sobre um espírito
agourento que ele espantou. Se uma única palavra do que disse for verdade eu
como a minha chaleira.
Não
era hábito de Hagrid criticar professores de Hogwarts, e Harry olhou-o
surpreso. Mione, porém, disse num tom mais alto do que de costume:
—
Acho que você está sendo injusto. É óbvio que o Prof. Dumbledore achou que ele
era o melhor candidato para a vaga...
— Ele
era o único candidato — disse Hagrid, oferecendo-lhes um prato de quadradinhos
de chocolate, enquanto Rony tossia e vomitava na bacia — E quero dizer o único
mesmo. Está ficando muito difícil encontrar alguém para ensinar Defesa Contra
as Artes das Trevas. As pessoas não andam muito animadas para assumir esta
função. Estão começando a achar que esta enfeitiçada. Ultimamente ninguém
demorou muito nela. Agora me contem — disse Hagrid, indicando Rony com a cabeça
— Quem é que ele estava tentando enfeitiçar?
—
Malfoy chamou Mione de alguma coisa, deve ter sido muito ruim porque ele ficou
furioso.
— Foi
ruim — disse Rony, rouco, erguendo-se, lívido e suado, até a superfície da mesa
— Malfoy chamou Mione de Sangue Ruim, Hagrid...
Rony
tornou a sumir debaixo da mesa e um novo jorro de lesmas caiu.
Hagrid
pareceu indignado.
— Ele
não fez isso!
— Fez
sim — confirmou Mione — Mas eu não sei o que significa. Percebi que era uma
grosseria muito grande, é claro...
— É
praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer — ofegou Rony, voltando
— Sangue Ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem
pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se acham
melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam de Sangue Puro —
ele deu um pequeno arroto, e uma única lesma caiu em sua mão estendida. Ele a
atirou à bacia e continuou — Quero dizer, nós sabemos que isso não faz a menor
diferença. Olha só o Neville Longbottom, ele tem Sangue Puro e sequer consegue
pôr um caldeirão em pé do lado certo.
— E
ainda não inventaram um feitiço que a nossa Mione não saiba fazer — disse
Hagrid orgulhoso, fazendo Mione ficar púrpura de tão corada.
— É
uma coisa revoltante chamar alguém de... — começou Rony, enxugando a testa
suada com a mão trêmula — Sangue sujo, sabe. Sangue comum. É ridículo. A
maioria dos bruxos hoje em dia é mestiça. Se não tivéssemos casado com trouxas
teríamos desaparecido da Terra.
Ele
teve uma ânsia de vômito e tornou a desaparecer de vista.
—
Bem, não posso censurá-lo por querer enfeitiçar Draco — disse Hagrid alto para
encobrir o barulho das lesmas que caíam na bacia — Mas talvez tenha sido bom a
sua varinha ter errado. Acho que Lúcio Malfoy viria na mesma hora à escola se
você tivesse enfeitiçado o filho dele. Pelo menos você não se meteu em apuros.
Harry
teria gostado de lembrar que o apuro não podia ser pior do que ter lesmas
saindo da boca, mas não pôde; os quadradinhos de chocolate de Hagrid tinham
grudado seus maxilares.
—
Harry — disse Hagrid abruptamente como se tivesse lhe ocorrido um pensamento
repentino — Tenho uma reclamação sobre você. Ouvi falar que andou distribuindo
fotos autografadas. Como é que não ganhei nenhuma?
Furioso,
Harry desgrudou os dentes.
— Não
andei distribuindo fotos autografadas — disse alterado — Se Lockhart continua a
espalhar este boato...
Mas,
então, ele viu que Hagrid estava rindo.
— Só
estou brincando — disse, dando palmadinhas amigáveis nas costas de Harry,
fazendo-o enfiar a cara na mesa — Eu sabia que não tinha dado. Eu disse a
Lockhart que você não precisava fazer isso. Você é mais famoso do que ele sem
fazer a menor força.
—
Aposto como ele não gostou disso — comentou Harry erguendo a cabeça e
esfregando o queixo.
—
Acho que não — respondeu Hagrid, com os olhos cintilando — E então falei que
nunca tinha lido um livro dele e ele resolveu ir embora. Quadradinhos de
chocolate, Rony? — acrescentou, ao ver Rony reaparecer.
—
Não, obrigado — disse o menino, fraco — É melhor não.
—
Venham ver o que andei plantando — convidou Hagrid quando Harry e Mione
terminaram de beber o chá.
Na
pequena horta nos fundos da casa havia uma dúzia das maiores abóboras que Harry
já vira. Cada uma tinha o tamanho de um pedregulho.
—
Estão crescendo bem, não acha? — perguntou Hagrid alegre — Para a Festa das
Bruxas... até lá já devem estar bem grandes.
— Que
é que você está pondo na terra? — perguntou Harry.
Hagrid
espiou por cima do ombro para ver se estavam sozinhos.
—
Bom, tenho dado, sabe, uma ajudinha...
Harry
reparou no guarda-chuva florido de Hagrid encostado na parede dos fundos da
cabana. Harry sempre tivera razões para acreditar até aquele momento que aquele
guarda-chuva não era bem o que parecia. Na verdade, tinha a forte impressão de
que a velha varinha escolar de Hagrid se escondia dentro dele. O guarda-caça
fora expulso de Hogwarts no terceiro ano, mas Harry nunca descobrira a razão.
Era só mencionar o assunto, e ele pigarreava alto e se tornava misteriosamente
surdo até que se mudasse de assunto.
— Um
feitiço de engorda? — perguntou Mione, num tom de quem se diverte e desaprova —
Bem, você fez um bom trabalho.
— Foi
o que a sua irmãzinha disse — comentou Hagrid, fazendo sinal a Rony
—Encontrei-a ainda ontem.
Hagrid
olhou de esguelha para Harry, a barba mexendo.
— Ela
me disse que estava só dando uma olhada pelos jardins, mas eu calculo que
estava na esperança de encontrar alguém na minha casa — e piscou para Harry —
Se alguém me perguntasse, ela é uma que não recusaria uma foto...
— Ah,
cala a boca — disse Harry.
Rony
deu uma risada abafada e o chão ficou cheio de lesmas.
—
Cuidado! — rugiu Hagrid, puxando Rony para longe das suas preciosas abóboras.
Era
quase hora do almoço e como Harry só comera uns quadradinhos de chocolate desde
o amanhecer, estava doido para voltar à escola e almoçar. Eles se despediram de
Hagrid e regressaram ao castelo. Rony tossia de vez em quando, mas só vomitou
duas lesminhas. Mal tinham entrado no saguão quando ouviram uma voz.
— Aí
estão vocês, Potter, Weasley.
A
Profª. McGonagall veio em direção a eles, com a cara séria.
—
Vocês dois vão cumprir suas detenções hoje à noite.
— O
que nós faremos, professora? — perguntou Rony, contendo, nervoso, um arroto.
—
Você vai polir as pratas na sala de troféus com o Sr. Filch. E nada de magia,
Weasley, no muque.
Rony
engoliu em seco. Argos Filch, o zelador, era detestado por todos os alunos da
escola.
— E
você, Potter, vai ajudar o Prof. Lockhart a responder as cartas dos fãs.
— Ah,
não... professora, não posso ir também para a sala de troféus? — perguntou
Harry desesperado.
— É
claro que não — respondeu ela, erguendo as sobrancelhas — O Prof. Lockhart fez
questão de que fosse você. Oito horas em ponto, os dois.
Harry
e Rony entraram curvados no Salão Principal, no pior estado de ânimo possível,
Hermione atrás deles, com aquela expressão
Bom-Vocês-Desobedeceram-O-Regulamento. Harry nem apreciou o empadão tanto
quanto pretendera. Os dois, ele e Rony, acharam que tinham se dado muito mal.
—
Filch vai me prender lá a noite inteira — disse Rony, com a voz deprimida —
Nada de magia! Deve ter umas cem taças naquela sala. Não entendo nada de
limpeza de trouxas.
— Eu
trocaria com você numa boa — disse Harry num tom calmo — Treinei um bocado com
os Dursley. Responder as cartas dos fãs de Lockhart... ele vai ser um
pesadelo...
* * *
À tarde de Sábado pareceu
se evaporar no que pareceu um segundo, já eram cinco para as oito, e Harry já
ia se arrastando pelo corredor do segundo andar em direção à sala de Lockhart.
Cerrou os dentes e bateu na porta. A porta se escancarou na mesma hora.
Lockhart
sorria para ele.
— Ah,
aqui temos o bagunceiro! — exclamou — Entre, Harry.
Rebrilhando
nas paredes, à luz das muitas velas, havia uma quantidade de fotografias
emolduradas de Lockhart. Havia até algumas autografadas. Outra grande pilha
aguardava sobre a mesa.
—
Você pode endereçar os envelopes! — disse Lockhart a Harry como se isso fosse
um prêmio — O primeiro vai para Gladys Gudgeon, que Deus a abençoe, uma grande
fã minha...
Os
minutos se arrastaram. Harry deixou a voz de Lockhart passar por ele,
respondendo ocasionalmente “Hum” e “Certo” e “Sim”. Vez por outra, ele captava uma frase do tipo “A fama é uma amiga infiel, Harry” ou “A celebridade é o que ela faz, lembre-se
disto”.
As
velas foram se consumindo, fazendo a luz dançar sobre os muitos rostos de
Lockhart que o observavam. Harry estendeu a mão dolorida para o que lhe pareceu
ser o milésimo envelope, e escreveu o endereço de Verônica Smethley. Deve estar
quase na hora de sair, pensou Harry infeliz, Por favor, tomara que esteja quase
na hora...
Então
ele ouviu uma coisa... uma coisa muito diferente do ruído das velas que
espirravam já no finzinho e a tagarelice de Lockhart sobre os fãs. Foi uma voz,
uma voz de congelar o tutano dos ossos, uma voz venenosa e gélida de tirar o
fôlego.
—
Venha... venha para mim... me deixe rasgá-lo... me deixe rompê-lo... me deixe
matá-lo...
Harry
deu um enorme pulo e, com isso, fez aparecer um enorme borrão na Rua de
Verônica Smethley.
—
Que! — exclamou em voz alta.
— Eu
sei! — disse Lockhart — Seis meses inteiros encabeçando a lista dos livros mais
vendidos! Bati todos os recordes!
— Não
— disse Harry assustado — Essa voz!
—
Perdão? — disse Lockhart, parecendo intrigado — Que voz?
—
Aquela, a voz que disse... o senhor não ouviu?
Lockhart
estava olhando para Harry muito surpreso.
— Do
que é que você está falando, Harry? Talvez você esteja ficando com sono? Nossa,
olhe só a hora! Estamos aqui há quase quatro horas! Eu nunca teria acreditado,
o tempo voou, não acha?
Harry
não respondeu. Apurava os ouvidos para captar novamente a voz, mas não havia
som algum exceto Lockhart a lhe dizer que não devia esperar uma moleza como aquela
todas as vezes que pegasse uma detenção. Sentindo-se atordoado, Harry foi-se
embora.
Era
tão tarde que a Sala Comunal da Grifinória estava quase vazia. Harry subiu
direto ao dormitório. Rony ainda não voltara. Harry vestiu o pijama, meteu-se
na cama e esperou. Meia hora depois, Rony apareceu, aconchegando o braço
direito e trazendo um forte cheiro de liquido de polimento para o quarto
escuro.
— Os
meus músculos estão em cãibra — gemeu, afundando-se na cama — Catorze vezes ele
me fez dar brilho naquela Taça de Quadribol antes de ficar satisfeito. E tive
mais um acesso de lesmas em cima de um Prêmio Especial por Serviços Prestados à
Escola. Levou séculos para retirar as lesmas... como foi com o Lockhart?
Em
voz baixa para não acordar Neville, Dino e Simas, Harry contou a Rony
exatamente o que ouvira.
— E
Lockhart disse que não estava ouvindo nada? — perguntou Rony. Harry podia até
vê-lo franzindo a testa ao luar — Você acha que ele estava mentindo? Mas não
entendo, mesmo alguém invisível teria tido que abrir a porta.
— Eu
sei — disse Harry, recostando-se na cama de colunas e fixando o olhar no dossel
— Eu também não entendo.
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