sexta-feira, 20 de abril de 2012

Harry Potter e a Câmara Secreta - Capítulo 8







— CAPÍTULO OITO —
A Festa Do Aniversário De Morte



OUTUBRO CHEGOU, espalhando, pelos jardins, uma friagem úmida que entrava pelo castelo. Madame Pomfrey, a enfermeira, esteve muito ocupada com uma repentina onda de gripe entre professores, funcionários e alunos. Sua poção reanimadora fazia efeito instantâneo, embora deixasse quem a bebia fumegando pelas orelhas durante muitas horas. Gina Weasley, que andava pálida, foi intimada por Percy a tomar a poção. A fumaça saindo por baixo dos seus cabelos muito vivos dava a impressão de que a cabeça inteira estava em chamas.
Gotas de chuva do tamanho de balas de revólver fustigavam as janelas do castelo durante dias seguidos, as águas do lago subiram, os canteiros de flores viraram um rio lamacento, e as abóboras de Hagrid ficaram do tamanho de um barraco. O entusiasmo de Olívio Wood pelas sessões de treinamento regulares, no entanto, não esfriou, razão por que Harry pôde ser encontrado, no fim de uma tarde de Sábado tempestuosa, nas vésperas do Dia das Bruxas, voltando à Torre da Grifinória, encharcado até os ossos e coberto de lama.
Mesmo tirando a chuva e o vento, não fora um treino alegre. Fred e Jorge, que tinham andado espionando o time da Sonserina, tinham visto com os próprios olhos a velocidade das novas Nimbus 2001. Eles comentaram que o time da Sonserina parecia sete borrõezinhos cortando o céu com a velocidade de mísseis.
Quando Harry vinha acabrunhado pelo corredor deserto encontrou alguém que parecia tão preocupado quanto ele. Nick Quase Sem Cabeça, o fantasma da Torre da Grifinória, olhava desanimado pela janela, murmurando para si mesmo:
—... não satisfaz os requisitos... pouco mais de um centímetro, se tanto...
— Oi, Nick — cumprimentou Harry.
— Olá, olá — assustou-se ele olhando para os lados.
Usava um elegante chapéu emplumado sobre a longa cabeleira crespa e uma túnica com rufos, que escondia o fato do seu pescoço estar quase completamente separado da cabeça. Nick era transparente como fumaça, e Harry via através dele o céu escuro e a chuva torrencial lá fora.
— Você parece preocupado, jovem Potter — disse Nick, dobrando, ao falar, uma carta transparente e guardando-a no interior do gibão.
— Você também — disse Harry.
— Ah — Nick Quase Sem Cabeça fez um aceno com a mão elegante — Uma questão de menor importância... não é que eu queira realmente entrar... achei que devia me candidatar, mas pelo visto “não satisfaço as exigências”...
Apesar do seu tom leve, tinha no rosto uma expressão de muita amargura.
— Mas a pessoa pensaria, não é — disse ele de repente, tirando mais uma vez a carta do bolso — Que ter levado quarenta e cinco golpes de machado cego no pescoço qualificaria alguém a entrar para a Caça Sem Cabeça?
— Ah, sim — respondeu Harry, que obviamente deveria concordar.
— Quero dizer, ninguém gostaria mais do que eu que o corte tivesse sido rápido e limpo, e que minha cabeça tivesse realmente caído, quero dizer, teria me poupado muita dor e ridículo. No entanto...
Nick Quase Sem Cabeça abriu a carta com uma sacudidela e leu furioso:

Só podemos aceitar caçadores cujas cabeças tenham se separado dos corpos. O senhor compreenderá que, do contrário, seria impossível os sócios participarem das atividades de caça como: Balanço de Cabeça à Cavalo e Pólo de Cabeça. É com o maior pesar, portanto, que devemos informar-lhe que o senhor não satisfaz as nossas exigências.
Com os nossos cumprimentos,

Sir Patrício Delaney-Podmore.

Espumando de raiva, Nick Quase Sem Cabeça guardou a carta.
— Pouco mais de um centímetro, se tanto... “de pele...” e um tendão seguram minha cabeça, Harry! A maioria das pessoas acharia que fui decapitado, mas ah, não, não é o bastante para o Sr.-Realmente-Decapitado-Podmore.
Nick Quase Sem Cabeça respirou fundo várias vezes e então disse, num tom muito mais calmo:
— Então... o que é que o está preocupando? Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Não — disse Harry — A não ser que saiba onde podemos arranjar sete Nimbus 2001 de graça para o nosso jogo contra Sonse...
O resto da frase de Harry foi abafado por um miado agudo de alguém junto aos seus calcanhares. Ele olhou e deu com um par de olhos amarelos que mais pareciam globos de luz. Era Madame Nor-r-ra, a gata esquelética e cinzenta que o zelador, Argos Filch, usava como uma espécie de delegada na sua luta incansável contra os estudantes.
— É melhor você sair daqui, Harry — disse Nick depressa — Filch não está de bom humor, pegou a gripe, e uns alunos do terceiro ano sem querer grudaram miolos de sapo pelo teto da masmorra cinco. Ele esteve limpando a manhã inteira e se vir você pingando lama para todo lado...
— Certo — disse Harry se afastando do olhar acusador de Madame Nor-r-ra, mas não foi suficientemente rápido.
Atraído ao local pela força misteriosa que parecia ligá-lo àquela gata nojenta, Argos Filch irrompeu de repente pela tapeçaria à direita de Harry, chiando furioso à procura do infrator. Trazia um lenço de grossa lã escocesa amarrado à cabeça e seu nariz estava estranhamente purpúreo.
— Sujeira! — gritou, os maxilares tremendo, os olhos assustadoramente saltados, apontando a poça de lama que pingava das vestes de Quadribol de Harry — Bagunça e sujeira por toda parte! Para mim, chega, é o que lhe digo. Venha comigo, Potter!
Então Harry acenou um triste adeus a Nick Quase Sem Cabeça e acompanhou Filch ao andar de baixo, duplicando o número de pegadas de lama no assoalho.
Harry nunca estivera no interior da sala de Filch antes: era um lugar que a maioria dos estudantes evitava. O local era encardido e escuro, sem janelas, iluminado por uma única lâmpada de óleo pendurada no teto baixo. Um leve cheiro de peixe frito impregnava a sala. Arquivos de madeira estavam dispostos ao longo das paredes, pelas etiquetas, Harry pôde ver que continham detalhes sobre cada aluno que Filch já castigara. Fred e Jorge Weasley tinham uma gaveta separada. Uma coleção muitíssimo polida de correntes e algemas estava pendurada na parede atrás da mesa de Filch. Era do conhecimento geral que ele estava sempre pedindo a Dumbledore que o deixasse pendurar os alunos no teto pelos tornozelos.
Filch pegou uma pena no tinteiro em cima da mesa e começou a procurar um pergaminho.
— Bosta — resmungou furioso — Bosta frita de dragão... Miolos de sapos... Tripas de ratos... para mim já chega... vou fazer disto um exemplo... onde está o formulário... aqui...
Ele retirou um grande rolo de pergaminho da gaveta da escrivaninha e abriu-o à sua frente, mergulhando a longa pena negra no tinteiro.
— Nome... Harry Potter. Crime...
— Foi só um pouquinho de lama! — exclamou Harry.
— Foi só um pouquinho de lama para você, moleque, mas para mim é mais uma hora de limpeza! — gritou Filch, uma gota nojenta estremecendo na ponta do nariz de bolota — Crime... sujar o castelo... sentença sugerida...
Filch, secando o nariz sempre a pingar, lançou um olhar desagradável a Harry, que esperava prendendo a respiração, a sentença desabar sobre sua cabeça. Mas quando Filch baixou a pena, ouviu-se um forte estampido no teto da sala, que fez a lâmpada a óleo chocalhar.
— PIRRAÇA! — rugiu Filch, atirando a pena no chão num assomo de raiva — Desta vez eu te pego, eu te pego!
E sem nem olhar para Harry, Filch saiu correndo da sala, com Madame Nor-r-ra do lado.
Pirraça era o poltergeist da escola, uma ameaça aérea e sorridente que vivia a provocar desordem e aflição. Harry não gostava muito do Pirraça, mas não pôde deixar de se sentir grato pelo seu senso de oportunidade. Era de esperar, seja o que for que Pirraça tivesse feito (e parecia que desta vez estragara alguma coisa muito importante), desviasse a atenção de Filch de Harry.
Achando que devia provavelmente esperar Filch voltar, Harry afundou em uma cadeira comida por traças ao lado da escrivaninha. Sobre ela só havia uma coisa além do formulário incompleto: um envelope roxo, grande e brilhante com letras prateadas na face. Com uma olhada rápida à porta para ver se Filch já estava voltando, Harry apanhou o envelope e leu:

FEITICEXPRESSO
Um curso de magia por correspondência para principiantes.

Intrigado, Harry sacudiu o envelope aberto e puxou o maço de pergaminhos que havia dentro, com inscrições prateadas dizendo:

Você se sente antiquado no mundo da magia moderna? Vê-se inventando desculpas para não executar feitiços simples? Ouve caçoadas por manejar tão mal uma varinha de condão?
Feiticexpresso é um curso inteiramente novo, que garante resultados rápidos e fácil assimilação. Centenas de bruxos e bruxas já se beneficiaram com o método do Feiticexpresso!
Madame Z. Nettles of Topsham nos escreve:
— Eu não tinha memória para guardar encantamentos e minhas poções eram motivo de riso na família! Agora, depois do curso Feiticexpresso, sou o centro das atenções nas festas, e meus amigos me pedem a receita da minha Solução Cintilante!
Bruxo D. J. Prod of Didsbury nos conta:
— Minha mulher costumava caçoar dos meus feitiços pouco eficientes, mas depois de um mês no seu fabuloso Feiticexpresso consegui transformá-la num iaque! Muito obrigado, Feiticexpresso!

Fascinado, Harry correu os dedos pelo resto do conteúdo do envelope. Para que na vida Filch queria um curso Feiticexpresso? Será que isto queria dizer que ele não era um bruxo formado? Harry estava começando a ler a “Lição Um: Como segurar sua Varinha, algumas dicas úteis” quando o ruído de passos arrastados pelo corredor lhe avisara que Filch estava voltando. Harry enfiou o pergaminho de volta no envelope e atirou-o sobre a mesa pouco antes da porta se abrir.
Filch exibia um ar triunfante.
— Aquele armário que desaparece foi muitíssimo valioso! — disse todo alegre à Madame Nor-r-ra — Vamos acabar com o Pirraça desta vez, minha doce...
Seus olhos pousaram em Harry e daí correram para o envelope do Feiticexpresso que, o garoto percebeu tarde demais, fora colocado meio metro mais longe do que estava antes. A cara cerosa de Filch ficou vermelho-tijolo. Harry se preparou para uma maré de fúria. Filch capengou até a escrivaninha, agarrou o envelope e jogou-o dentro de uma gaveta.
— Você... você leu...? — gaguejou.
— Não — mentiu Harry depressa.
Filch torcia as mãos nodosas.
— Se eu sonhar que você leu a minha, minha não, a correspondência de um amigo, seja como for, mas...
Harry olhava fixo para ele, assustado; Filch nunca parecera mais furioso. Seus olhos saltavam, um tique nervoso estremecia sua bochecha mole, e o lenço escocês não melhorava sua aparência.
— Muito bem, pode ir, e não diga uma palavra, não que... mas, se você não leu, vá logo, tenho que fazer o relatório sobre o Pirraça, vá...
Espantado com a sua sorte, Harry saiu correndo da sala e tomou o corredor de volta para o Saguão. Escapar da sala de Filch sem castigo provavelmente era uma espécie de recorde na escola.
— Harry! Harry! Funcionou?
Nick Quase Sem Cabeça saiu deslizando de uma sala de aula. Atrás dele, Harry pôde ver os destroços de um grande armário preto e dourado que parecia ter sido jogado de uma grande altura.
— Convenci Pirraça a largá-lo bem em cima da sala de Filch — disse Nick ansioso — Achei que iria distraí-lo...
— Aquilo foi você? — perguntou Harry, grato — Funcionou sim, eu não peguei nem uma detenção. Obrigado, Nick!
Os dois saíram juntos pelo corredor.
Nick Quase Sem Cabeça, Harry reparou, ainda segurava a carta de recusa de Sir Patrício.
— Eu gostaria de poder fazer alguma coisa sobre a Caça Quase Sem Cabeça — comentou Harry.
Nick Quase Sem Cabeça parou de repente, e Harry passou por dentro dele. Gostaria de não ter feito isso, era como entrar embaixo de um chuveiro gelado.
— Mas tem uma coisa que você pode fazer por mim — disse Nick animado — Harry, seria pedir muito, mas, não, você não iria...
— Aonde?
— Bem, este Dia das Bruxas será o meu qüingentésimo aniversário de morte — disse Nick Quase Sem Cabeça, empertigando-se com o ar solene.
— Ah — exclamou Harry, sem saber se devia fazer cara triste ou alegre com a notícia — Certo.
— Estou dando uma festa em uma das masmorras maiores. Vêm amigos de todo o país. Seria uma honra tão grande se você pudesse comparecer! O Sr. Weasley e a Srta. Granger também seriam muito bem-vindos, é claro, mas você não vai preferir comparecer à festa da escola?
Ele observava Harry cheio de dedos.
— Não — disse Harry depressa — Eu vou...
— Meu caro rapaz! Harry Potter no meu aniversário de morte! E... — hesitou, parecendo agitado — Você acha que seria possível mencionar a Sir Patrício que me acha muito assustador e impressionante?
— Claro... claro.
O rosto de Nick Quase Sem Cabeça se abriu num grande sorriso.

* * *

— Uma festa de aniversário de morte? — disse Hermione muito interessada quando Harry finalmente trocou de roupa e foi-se reunir a ela e a Rony na Sala Comunal — Aposto que não existe muita gente viva que possa dizer que foi a uma festa dessas, vai ser fascinante!
— Por que alguém iria querer comemorar o dia em que morreu? — exclamou Rony, que estava quase terminando o dever de Poções, mal-humorado — Me parece uma coisa mortalmente deprimente...
A chuva continuava a açoitar as janelas, que agora estavam pretas feito tinta, mas dentro da sala tudo parecia claro e alegre. As chamas da lareira iluminavam as inúmeras poltronas fofas onde os alunos estavam sentados lendo, conversando, fazendo o dever de casa ou, no caso de Fred e Jorge Weasley, tentando descobrir o que aconteceria se a pessoa fizesse uma salamandra comer um fogo Filibusteiro. Fred “salvara” o lagarto de couro laranja, que vive no fogo, de uma aula de Trato das Criaturas Mágicas, e ele agora fumegava suavemente em cima de uma mesa rodeada de meninos curiosos.
Harry ia começar a contar a Rony e Mione sobre Filch e o curso Feiticexpresso quando, de repente, a salamandra saiu rodopiando descontrolada pelo ar, soltando fagulhas e estampidos. A visão de Percy berrando de ficar rouco com Fred e Jorge, a exibição espetacular de estrelas cor de tangerina que jorravam da boca da salamandra e sua fuga para a lareira, acompanhada de explosões, afugentaram Filch e o envelope do Feiticexpresso da cabeça de Harry.
Até chegar o Dia das Bruxas, Harry já se arrependera de sua promessa precipitada de ir à festa do aniversário de morte. O resto da escola estava animado com a proximidade da Festa das Bruxas, o Salão Principal fora decorado com os morcegos vivos de sempre, as enormes abóboras de Hagrid tinham sido recortadas para fazer lanternas tão grandes que cabiam três homens dentro, e havia boatos de que Dumbledore contratara uma trupe de esqueletos dançarinos para divertir o pessoal.
— Promessa é dívida — Mione lembrou a Harry com ar de mandona — Você disse que iria ao aniversário de morte.
Então, às sete horas, Harry, Rony e Mione passaram direto pela porta do Salão Principal apinhado de gente, que brilhava convidativo com pratos de ouro e velas, e tomaram o caminho das masmorras.
O corredor que levava à festa de Nick Quase Sem Cabeça tinha sido iluminado, também, com velas em toda a sua extensão, embora o efeito não fosse nada alegre: eram velas longas, finas e pretas, de luz azul, que projetavam uma claridade fantasmagórica mesmo nos rostos de gente viva. A temperatura caía a cada passo que davam. Quando Harry estremeceu e puxou as vestes mais para junto do corpo, ouviu um som que lembrava mil unhas arranhando um imenso quadro-negro.
— Será que isso é música? — cochichou Rony. Eles dobraram um canto e viram Nick Quase Sem Cabeça parado em um portal adornado com reposteiros de veludo negro.
— Meus caros amigos — disse ele pesaroso — Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos... fico tão contente que tenham podido vir...
E tirou o chapéu emplumado fazendo uma reverência e indicando a porta.
Era uma cena incrível. A masmorra continha centenas de pessoas esbranquiçadas e translúcidas, a maioria deslizando por uma pista de dança, valsando ao som medonho de trinta serrotes musicais, tocados por uma orquestra reunida em cima de uma plataforma drapeada de negro. Um lustre no alto projetava uma luz azul meia-noite com outras mil velas negras. A respiração dos garotos se condensava, formando uma névoa à frente deles, parecia que estavam entrando em uma câmara frigorífica.
— Vamos dar uma circulada? — sugeriu Harry, querendo esquentar os pés.
— Cuidado para não atravessar ninguém — recomendou Rony, nervoso, e os três saíram contornando a pista de dança.
Passaram por um grupo de freiras soturnas, um homem vestido de trapos que usava correntes e o Frade Gorducho, um alegre fantasma da Lufa-Lufa, que conversava com um cavalheiro que tinha uma flecha espetada na testa. Harry não se surpreendeu ao ver que os outros fantasmas davam distância ao Barão Sangrento, um fantasma da Sonserina, muito magro, de olhos arregalados e coberto de manchas de sangue prateado.
— Ah, não — exclamou Mione, parando de repente — Dêem meia-volta, dêem meia volta, não quero falar com a Murta Que Geme...
— Quem? — perguntou Harry ao retrocederem.
— Ela assombra um boxe no banheiro das meninas no primeiro andar — disse Mione.
— Ela assombra um boxe?
— É. O boxe esteve quebrado o ano inteiro porque ela não para de ter acessos de raiva e inundar o banheiro. Eu nunca entrei lá sempre que pude evitar, é horrível tentar fazer xixi com ela gemendo do lado...
— Olhem, comida! — exclamou Rony.
Do lado oposto da masmorra havia uma longa mesa, também coberta de veludo negro. Eles se aproximaram pressurosos, mas no instante seguinte pararam de chofre, horrorizados.
O cheiro era bem desagradável. Grandes peixes podres estavam dispostos em belas travessas de prata, bolos carbonizados estavam arrumados em salvas, havia uma grande terrina de picadinho de miúdos de carneiro cheio de vermes, um pedaço de queijo coberto de uma camada de mofo esverdeado e, o orgulho do bufê, um enorme bolo cinzento em forma de sepultura, com os dizeres em glacê de asfalto: SIR NICOLAS DE MIMSY-PORPINGTON FALECIDO EM 31 DE OUTUBRO DE 1492.
Harry observou, espantado, um fantasma imponente se aproximar da mesa, abaixar-se e atravessá-la, a boca aberta de modo a engolir um salmão fedorento.
— O senhor pode provar a comida quando a atravessa? — perguntou-lhe Harry.
— Quase — respondeu o fantasma triste e se afastou.
— Imagino que tenham deixado o peixe apodrecer para acentuar o gosto — disse Mione em tom de quem sabe das coisas, apertando o nariz e se debruçando para examinar o picadinho pútrido.
— Podemos ir andando? Estou me sentindo enjoado — disse Rony.
Nem bem tinham se virado, porém, quando um homenzinho saiu voando de repente de debaixo da mesa e parou no ar diante deles.
— Alô, Pirraça — cumprimentou Harry cauteloso.
Ao contrário dos fantasmas à volta, Pirraça, o poltergeist era o oposto de pálido e transparente. Usava um chapéu de festa laranja-vivo, uma gravata-borboleta giratória e exibia um largo sorriso no rosto largo e maldoso.
— Aperitivos — disse simpático, oferecendo aos garotos uma tigela de amendoins cobertos de fungo.
— Não, muito obrigada — disse Mione.
— Ouvi você falando da coitada da Murta — disse Pirraça, os olhos dançando — Que grosseria com a coitada — ele tomou fôlego e berrou — OI! MURTA!
— Ah, não, Pirraça, não conte a ela o que eu disse, ela vai ficar realmente chateada — cochichou Mione frenética — Não falei por mal, ela não me incomoda, ah, alô, Murta...
O fantasma atarracado de uma moça deslizou até eles. Tinha a cara mais triste que Harry já vira, meio oculta por cabelos escorridos e espessos, e óculos perolados.
— Que foi? — perguntou aborrecida.
— Como vai, Murta? — cumprimentou Mione fingindo animação — Que bom ver você fora do banheiro.
Murta fungou.
— A Srta. Granger estava mesmo falando em você... — disse Pirraça sonsamente ao ouvido da Murta.
— Só estava dizendo... dizendo... como você está bonita esta noite — completou Mione, fechando a cara para Pirraça.
Murta olhou para Mione desconfiada.
— Você está caçoando de mim — disse, lágrimas prateadas marejando rapidamente os seus olhos penetrantes.
— Não, sério, eu não acabei de falar como a Murta está bonita? — falou Mione, cutucando dolorosamente Harry e Rony nas costelas.
— Ah, claro...
— Falou...
— Não mintam para mim — exclamou Murta, as lágrimas agora escorrendo livremente pelo rosto, enquanto Pirraça, feliz, dava risadinhas por cima do ombro dela — Vocês acham que não sei como as pessoas me chamam pelas costas? Murta Gorda! Murta Feiosa! Murta infeliz, chorona, apática!
— Você esqueceu de espinhenta — sibilou Pirraça ao ouvido dela.
A Murta Que Geme prorrompeu em soluços aflitos e fugiu da masmorra. Pirraça disparou atrás dela, jogando amendoins mofados e gritando:
— Espinhenta! Espinhenta!
— Ah, meu Deus! — lamentou-se Hermione.
Nick Quase Sem Cabeça agora deslizava por entre os convidados em direção aos garotos.
— Estão se divertindo?
— Ah, claro — mentiram.
— Um número de convidados bem grande — disse Nick Quase Sem Cabeça, orgulhoso — A rainha viúva veio lá de Kent... está quase na hora do meu discurso, é melhor eu ir avisar a orquestra...
A orquestra, porém, parou de tocar naquele exato instante. E, todas as pessoas na masmorra se calaram, olhando para os lados excitadas, ao ouvirem uma trompa de caça.
— Ah, lá vamos nós — disse Nick Quase Sem Cabeça amargurado.
Pelas paredes da masmorra irromperam doze cavalos fantasmas, cada um montado por um cavaleiro sem cabeça. Os convidados aplaudiram calorosamente.
Harry começou a aplaudir, também, mas parou depressa ao ver a cara de Nick.
Os cavalos galoparam até o meio da pista de dança e pararam, levantando e baixando as patas dianteiras. A frente da cavalgada havia um fantasma corpulento que segurava a cabeça sob o braço, posição de onde ele tocava a trompa.
O fantasma apeou, levantou a cabeça no ar de modo que pudesse ver as pessoas (todos riram) e se dirigiu a Nick Quase Sem Cabeça, recolocando a cabeça sobre o pescoço.
— Nick! — rugiu — Como vai? A cabeça ainda pendurada?
Ele soltou uma gargalhada cordial e deu uma palmadinha no ombro de Nick Quase Sem Cabeça.
— Seja bem-vindo, Patrício — disse Nick secamente.
— Gente viva! — exclamou Sir Patrício, vendo Harry, Rony e Mione, e dando um grande pulo fingindo espanto, de modo que sua cabeça tornou a cair (os convidados gargalharam).
— Muito engraçado — disse Nick Quase Sem Cabeça com ferocidade.
— Não liguem para o Nick! — gritou a cabeça de Sir Patrício lá do chão — Ainda está aborrecido porque não o deixamos se associar à Caçada! Mas quero dizer... olhem só para ele...
— Acho — disse Harry depressa, a um olhar significativo de Nick — Nick é muito... assustador e...
— Ha! — gritou a cabeça de Sir Patrício — Aposto como ele lhe pediu para dizer isso!
— Se todos pudessem me dar atenção, está na hora do meu discurso! — avisou Nick Quase Sem Cabeça em voz alta, caminhando com firmeza até o pódio e tomando posição sob a luz de um refletor azul-gelo — Meus saudosos cavalheiros, damas e senhores, tenho o grande pesar...
Mas ninguém ouviu muito mais do que isso.
Sir Patrício e os Caçadores Sem Cabeça começaram uma partida de hóquei de cabeça e as pessoas foram se virando para assistir. Nick Quase Sem Cabeça tentou em vão reconquistar sua platéia, mas desistiu quando a cabeça de Sir Patrício passou navegando por ele em meio aos berros de vivas.
Harry, por esta altura, estava sentindo muito frio, para não falar na fome.
— Não dá para agüentar muito mais que isso — murmurou Rony, os dentes batendo, quando a orquestra tornou a entrar em ação, e os fantasmas voltaram à pista de dança.
— Vamos — concordou Harry.
Os três saíram em direção à porta, acenando com a cabeça e sorrindo para todos que olhavam, e um minuto depois estavam andando depressa pelo corredor cheio de velas.

* * *

— Talvez o pudim ainda não tenha acabado — disse Rony esperançoso, seguindo à frente em direção à escada do Saguão de Entrada.
E então Harry ouviu:
“Rasgar... romper... matar...”
Era a mesma voz, a mesma voz gélida e assassina que ouvira na sala de Lockhart. Ele parou quase tropeçando, apoiando-se na parede de pedra, escutando com toda a atenção, olhando para os lados, apertando os olhos para ver nos dois sentidos do corredor mal iluminado.
— Harry, que é que você...?
— É aquela voz de novo, fiquem quietos um minuto...
“Tanta fome... tanto tempo...”
— Ouçam! — disse Harry com urgência, e Rony e Mione pararam, observando-o.
“Matar... hora de matar...”
A voz foi ficando mais fraca.
Harry tinha certeza de que estava se afastando... se afastando para o alto. Uma mistura de medo e excitação se apoderou dele ao fixar o olhar no teto escuro: como é que ela podia estar se afastando para o alto? Seria um fantasma, para quem tetos de pedra não faziam diferença?
— Por aqui — gritou ele e começou a subir correndo as escadas para o Saguão.
Não adiantava querer ouvir nada ali, o vozerio na festa do Salão Principal ecoava pelo Saguão. Harry subiu correndo a escadaria de mármore até o primeiro andar, com Rony e Mione nos seus calcanhares.
— Harry, que é que estamos...
— PSIU!
Harry apurou os ouvidos.
Longe, vinda do andar de cima, cada vez mais fraca, ele ouviu a voz:
“... Sinto cheiro de sangue... SINTO CHEIRO DE SANGUE!”
Sentiu um aperto no estômago...
— Vai matar alguém! — gritou ele, e sem dar atenção aos rostos perplexos de Rony e Mione, subiu correndo o lance seguinte de escada, três degraus de cada vez, tentando escutar apesar do barulho que seus passos faziam...
Harry precipitou-se pelo segundo andar, Rony e Mione ofegantes atrás dele, e não parou até entrar no último corredor deserto.
— Harry, do que é que você estava falando? — perguntou Rony, enxugando o suor do rosto — Eu não ouvi nada...
Mas Mione soltou uma súbita exclamação, apontando para o corredor.
— Olhem!
Alguma coisa brilhava na parede em frente. Eles se aproximaram devagarinho, apertando os olhos para ver na penumbra. Alguém tinha pintado palavras de uns trinta centímetros na parede entre as duas janelas, que refulgiam à luz das chamas das tochas.

A CÂMARA SECRETA FOI ABERTA.
INIMIGOS DO HERDEIRO CUIDADO.

— Que coisa é aquela, pendurada ali embaixo? — perguntou Rony, com um ligeiro tremor na voz.
Ao se aproximarem, Harry quase escorregou... havia uma grande poça de água no chão. Rony e Mione o seguraram, e continuaram a avançar devagar até a mensagem, os olhos fixos na sombra escura embaixo. Os três logo perceberam o que era e deram um salto para trás espalhando água.
Madame Nor-r-ra, a gata do zelador, estava pendurada pelo rabo em um suporte de tocha. Estava dura como um pau, os olhos arregalados e fixos.
Durante alguns segundos eles não se mexeram.
Então Rony falou:
— Vamos dar o fora daqui.
— Será que não devíamos tentar ajudar... — começou a dizer Harry, sem jeito.
— Confie em mim — disse Rony — Não podemos ser encontrados aqui.
Mas era tarde demais.
Um ronco, como o de um trovão distante, informou-lhes que a festa terminara naquele instante. De cada ponta do corredor onde estavam, ouviram o barulho de centenas de pés que subiam as escadas, e a conversa alta e alegre de gente bem alimentada. No instante seguinte os alunos entravam aos encontrões pelos dois lados do corredor. A conversa, o bulício, o barulho morreu de repente quando os garotos que vinham à frente viram o gato pendurado.
Harry, Rony e Mione estavam sozinhos no meio do corredor e os estudantes que se empurravam para ver a cena macabra se calaram.
Então alguém gritou em meio ao silêncio.
— Inimigos do herdeiro, cuidado! Vocês vão ser os próximos, sangues ruins!
Era Draco Malfoy.
Ele abrira caminho até a frente dos alunos, seus olhos frios muito intensos, seu rosto, em geral pálido, corara, e ele ria diante do gato pendurado imóvel.








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