— CAPÍTULO OITO —
A Festa Do Aniversário De Morte
OUTUBRO CHEGOU,
espalhando, pelos jardins, uma friagem úmida que entrava pelo castelo. Madame
Pomfrey, a enfermeira, esteve muito ocupada com uma repentina onda de gripe
entre professores, funcionários e alunos. Sua poção reanimadora fazia efeito
instantâneo, embora deixasse quem a bebia fumegando pelas orelhas durante
muitas horas. Gina Weasley, que andava pálida, foi intimada por Percy a tomar a
poção. A fumaça saindo por baixo dos seus cabelos muito vivos dava a impressão
de que a cabeça inteira estava em chamas.
Gotas
de chuva do tamanho de balas de revólver fustigavam as janelas do castelo
durante dias seguidos, as águas do lago subiram, os canteiros de flores viraram
um rio lamacento, e as abóboras de Hagrid ficaram do tamanho de um barraco. O
entusiasmo de Olívio Wood pelas sessões de treinamento regulares, no entanto,
não esfriou, razão por que Harry pôde ser encontrado, no fim de uma tarde de
Sábado tempestuosa, nas vésperas do Dia das Bruxas, voltando à Torre da
Grifinória, encharcado até os ossos e coberto de lama.
Mesmo
tirando a chuva e o vento, não fora um treino alegre. Fred e Jorge, que tinham
andado espionando o time da Sonserina, tinham visto com os próprios olhos a
velocidade das novas Nimbus 2001. Eles comentaram que o time da Sonserina
parecia sete borrõezinhos cortando o céu com a velocidade de mísseis.
Quando
Harry vinha acabrunhado pelo corredor deserto encontrou alguém que parecia tão
preocupado quanto ele. Nick Quase Sem Cabeça, o fantasma da Torre da
Grifinória, olhava desanimado pela janela, murmurando para si mesmo:
—... não satisfaz os requisitos... pouco
mais de um centímetro, se tanto...
— Oi,
Nick — cumprimentou Harry.
—
Olá, olá — assustou-se ele olhando para os lados.
Usava
um elegante chapéu emplumado sobre a longa cabeleira crespa e uma túnica com
rufos, que escondia o fato do seu pescoço estar quase completamente separado da
cabeça. Nick era transparente como fumaça, e Harry via através dele o céu
escuro e a chuva torrencial lá fora.
—
Você parece preocupado, jovem Potter — disse Nick, dobrando, ao falar, uma
carta transparente e guardando-a no interior do gibão.
—
Você também — disse Harry.
— Ah
— Nick Quase Sem Cabeça fez um aceno com a mão elegante — Uma questão de menor
importância... não é que eu queira realmente entrar... achei que devia me
candidatar, mas pelo visto “não satisfaço as exigências”...
Apesar
do seu tom leve, tinha no rosto uma expressão de muita amargura.
— Mas
a pessoa pensaria, não é — disse ele de repente, tirando mais uma vez a carta
do bolso — Que ter levado quarenta e cinco golpes de machado cego no pescoço
qualificaria alguém a entrar para a Caça Sem Cabeça?
— Ah,
sim — respondeu Harry, que obviamente deveria concordar.
—
Quero dizer, ninguém gostaria mais do que eu que o corte tivesse sido rápido e
limpo, e que minha cabeça tivesse realmente caído, quero dizer, teria me
poupado muita dor e ridículo. No entanto...
Nick
Quase Sem Cabeça abriu a carta com uma sacudidela e leu furioso:
Só podemos aceitar caçadores cujas cabeças tenham se separado dos corpos.
O senhor compreenderá que, do contrário, seria impossível os sócios
participarem das atividades de caça como: Balanço de Cabeça à Cavalo e Pólo de
Cabeça. É com o maior pesar, portanto, que devemos informar-lhe que o senhor
não satisfaz as nossas exigências.
Com os nossos cumprimentos,
Sir Patrício Delaney-Podmore.
Espumando
de raiva, Nick Quase Sem Cabeça guardou a carta.
—
Pouco mais de um centímetro, se tanto... “de pele...” e um tendão seguram minha
cabeça, Harry! A maioria das pessoas acharia que fui decapitado, mas ah, não,
não é o bastante para o Sr.-Realmente-Decapitado-Podmore.
Nick
Quase Sem Cabeça respirou fundo várias vezes e então disse, num tom muito mais
calmo:
—
Então... o que é que o está preocupando? Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Não
— disse Harry — A não ser que saiba onde podemos arranjar sete Nimbus 2001 de
graça para o nosso jogo contra Sonse...
O
resto da frase de Harry foi abafado por um miado agudo de alguém junto aos seus
calcanhares. Ele olhou e deu com um par de olhos amarelos que mais pareciam
globos de luz. Era Madame Nor-r-ra, a gata esquelética e cinzenta que o
zelador, Argos Filch, usava como uma espécie de delegada na sua luta incansável
contra os estudantes.
— É
melhor você sair daqui, Harry — disse Nick depressa — Filch não está de bom
humor, pegou a gripe, e uns alunos do terceiro ano sem querer grudaram miolos
de sapo pelo teto da masmorra cinco. Ele esteve limpando a manhã inteira e se
vir você pingando lama para todo lado...
—
Certo — disse Harry se afastando do olhar acusador de Madame Nor-r-ra, mas não foi
suficientemente rápido.
Atraído
ao local pela força misteriosa que parecia ligá-lo àquela gata nojenta, Argos
Filch irrompeu de repente pela tapeçaria à direita de Harry, chiando furioso à
procura do infrator. Trazia um lenço de grossa lã escocesa amarrado à cabeça e
seu nariz estava estranhamente purpúreo.
—
Sujeira! — gritou, os maxilares tremendo, os olhos assustadoramente saltados,
apontando a poça de lama que pingava das vestes de Quadribol de Harry — Bagunça
e sujeira por toda parte! Para mim, chega, é o que lhe digo. Venha comigo,
Potter!
Então
Harry acenou um triste adeus a Nick Quase Sem Cabeça e acompanhou Filch ao
andar de baixo, duplicando o número de pegadas de lama no assoalho.
Harry
nunca estivera no interior da sala de Filch antes: era um lugar que a maioria
dos estudantes evitava. O local era encardido e escuro, sem janelas, iluminado
por uma única lâmpada de óleo pendurada no teto baixo. Um leve cheiro de peixe
frito impregnava a sala. Arquivos de madeira estavam dispostos ao longo das paredes,
pelas etiquetas, Harry pôde ver que continham detalhes sobre cada aluno que
Filch já castigara. Fred e Jorge Weasley tinham uma gaveta separada. Uma
coleção muitíssimo polida de correntes e algemas estava pendurada na parede
atrás da mesa de Filch. Era do conhecimento geral que ele estava sempre pedindo
a Dumbledore que o deixasse pendurar os alunos no teto pelos tornozelos.
Filch
pegou uma pena no tinteiro em cima da mesa e começou a procurar um pergaminho.
—
Bosta — resmungou furioso — Bosta frita de dragão... Miolos de sapos... Tripas
de ratos... para mim já chega... vou fazer disto um exemplo... onde está o
formulário... aqui...
Ele
retirou um grande rolo de pergaminho da gaveta da escrivaninha e abriu-o à sua
frente, mergulhando a longa pena negra no tinteiro.
—
Nome... Harry Potter. Crime...
— Foi
só um pouquinho de lama! — exclamou Harry.
— Foi
só um pouquinho de lama para você, moleque, mas para mim é mais uma hora de
limpeza! — gritou Filch, uma gota nojenta estremecendo na ponta do nariz de bolota
— Crime... sujar o castelo...
sentença sugerida...
Filch,
secando o nariz sempre a pingar, lançou um olhar desagradável a Harry, que
esperava prendendo a respiração, a sentença desabar sobre sua cabeça. Mas
quando Filch baixou a pena, ouviu-se um forte estampido no teto da sala, que
fez a lâmpada a óleo chocalhar.
—
PIRRAÇA! — rugiu Filch, atirando a pena no chão num assomo de raiva — Desta vez
eu te pego, eu te pego!
E sem
nem olhar para Harry, Filch saiu correndo da sala, com Madame Nor-r-ra do lado.
Pirraça
era o poltergeist da escola, uma ameaça aérea e sorridente que vivia a provocar
desordem e aflição. Harry não gostava muito do Pirraça, mas não pôde deixar de
se sentir grato pelo seu senso de oportunidade. Era de esperar, seja o que for
que Pirraça tivesse feito (e parecia que desta vez estragara alguma coisa muito
importante), desviasse a atenção de Filch de Harry.
Achando
que devia provavelmente esperar Filch voltar, Harry afundou em uma cadeira
comida por traças ao lado da escrivaninha. Sobre ela só havia uma coisa além do
formulário incompleto: um envelope roxo, grande e brilhante com letras
prateadas na face. Com uma olhada rápida à porta para ver se Filch já estava
voltando, Harry apanhou o envelope e leu:
FEITICEXPRESSO
Um curso de magia por
correspondência para principiantes.
Intrigado,
Harry sacudiu o envelope aberto e puxou o maço de pergaminhos que havia dentro,
com inscrições prateadas dizendo:
Você se sente antiquado no mundo da magia moderna? Vê-se inventando
desculpas para não executar feitiços simples? Ouve caçoadas por manejar tão mal
uma varinha de condão?
Feiticexpresso é um curso inteiramente novo, que garante resultados
rápidos e fácil assimilação. Centenas de bruxos e bruxas já se beneficiaram com
o método do Feiticexpresso!
Madame Z. Nettles of Topsham nos escreve:
— Eu não tinha memória para guardar encantamentos e minhas poções eram
motivo de riso na família! Agora, depois do curso Feiticexpresso, sou o centro
das atenções nas festas, e meus amigos me pedem a receita da minha Solução
Cintilante!
Bruxo D. J. Prod of Didsbury nos conta:
— Minha mulher costumava caçoar dos meus feitiços pouco eficientes, mas
depois de um mês no seu fabuloso Feiticexpresso consegui transformá-la num
iaque! Muito obrigado, Feiticexpresso!
Fascinado,
Harry correu os dedos pelo resto do conteúdo do envelope. Para que na vida
Filch queria um curso Feiticexpresso? Será que isto queria dizer que ele não
era um bruxo formado? Harry estava começando a ler a “Lição Um: Como segurar
sua Varinha, algumas dicas úteis” quando o ruído de passos arrastados pelo
corredor lhe avisara que Filch estava voltando. Harry enfiou o pergaminho de
volta no envelope e atirou-o sobre a mesa pouco antes da porta se abrir.
Filch
exibia um ar triunfante.
—
Aquele armário que desaparece foi muitíssimo valioso! — disse todo alegre à
Madame Nor-r-ra — Vamos acabar com o Pirraça desta vez, minha doce...
Seus
olhos pousaram em Harry e daí correram para o envelope do Feiticexpresso que, o
garoto percebeu tarde demais, fora colocado meio metro mais longe do que estava
antes. A cara cerosa de Filch ficou vermelho-tijolo. Harry se preparou para uma
maré de fúria. Filch capengou até a escrivaninha, agarrou o envelope e jogou-o
dentro de uma gaveta.
—
Você... você leu...? — gaguejou.
— Não
— mentiu Harry depressa.
Filch
torcia as mãos nodosas.
— Se
eu sonhar que você leu a minha, minha não, a correspondência de um amigo, seja
como for, mas...
Harry
olhava fixo para ele, assustado; Filch nunca parecera mais furioso. Seus olhos
saltavam, um tique nervoso estremecia sua bochecha mole, e o lenço escocês não
melhorava sua aparência.
—
Muito bem, pode ir, e não diga uma palavra, não que... mas, se você não leu, vá
logo, tenho que fazer o relatório sobre o Pirraça, vá...
Espantado
com a sua sorte, Harry saiu correndo da sala e tomou o corredor de volta para o
Saguão. Escapar da sala de Filch sem castigo provavelmente era uma espécie de
recorde na escola.
—
Harry! Harry! Funcionou?
Nick
Quase Sem Cabeça saiu deslizando de uma sala de aula. Atrás dele, Harry pôde
ver os destroços de um grande armário preto e dourado que parecia ter sido
jogado de uma grande altura.
—
Convenci Pirraça a largá-lo bem em cima da sala de Filch — disse Nick ansioso —
Achei que iria distraí-lo...
—
Aquilo foi você? — perguntou Harry, grato — Funcionou sim, eu não peguei nem
uma detenção. Obrigado, Nick!
Os
dois saíram juntos pelo corredor.
Nick
Quase Sem Cabeça, Harry reparou, ainda segurava a carta de recusa de Sir
Patrício.
— Eu
gostaria de poder fazer alguma coisa sobre a Caça Quase Sem Cabeça — comentou
Harry.
Nick
Quase Sem Cabeça parou de repente, e Harry passou por dentro dele. Gostaria de
não ter feito isso, era como entrar embaixo de um chuveiro gelado.
— Mas
tem uma coisa que você pode fazer por mim — disse Nick animado — Harry, seria
pedir muito, mas, não, você não iria...
—
Aonde?
—
Bem, este Dia das Bruxas será o meu qüingentésimo aniversário de morte — disse
Nick Quase Sem Cabeça, empertigando-se com o ar solene.
— Ah
— exclamou Harry, sem saber se devia fazer cara triste ou alegre com a notícia
— Certo.
—
Estou dando uma festa em uma das masmorras maiores. Vêm amigos de todo o país.
Seria uma honra tão grande se você pudesse comparecer! O Sr. Weasley e a Srta.
Granger também seriam muito bem-vindos, é claro, mas você não vai preferir
comparecer à festa da escola?
Ele
observava Harry cheio de dedos.
— Não
— disse Harry depressa — Eu vou...
— Meu
caro rapaz! Harry Potter no meu aniversário de morte! E... — hesitou, parecendo
agitado — Você acha que seria possível mencionar a Sir Patrício que me acha
muito assustador e impressionante?
—
Claro... claro.
O
rosto de Nick Quase Sem Cabeça se abriu num grande sorriso.
* * *
— Uma
festa de aniversário de morte? — disse Hermione muito interessada quando Harry
finalmente trocou de roupa e foi-se reunir a ela e a Rony na Sala Comunal —
Aposto que não existe muita gente viva que possa dizer que foi a uma festa
dessas, vai ser fascinante!
— Por
que alguém iria querer comemorar o dia em que morreu? — exclamou Rony, que
estava quase terminando o dever de Poções, mal-humorado — Me parece uma coisa
mortalmente deprimente...
A
chuva continuava a açoitar as janelas, que agora estavam pretas feito tinta,
mas dentro da sala tudo parecia claro e alegre. As chamas da lareira iluminavam
as inúmeras poltronas fofas onde os alunos estavam sentados lendo, conversando,
fazendo o dever de casa ou, no caso de Fred e Jorge Weasley, tentando descobrir
o que aconteceria se a pessoa fizesse uma salamandra comer um fogo
Filibusteiro. Fred “salvara” o lagarto de couro laranja, que vive no fogo, de
uma aula de Trato das Criaturas Mágicas, e ele agora fumegava suavemente em
cima de uma mesa rodeada de meninos curiosos.
Harry
ia começar a contar a Rony e Mione sobre Filch e o curso Feiticexpresso quando,
de repente, a salamandra saiu rodopiando descontrolada pelo ar, soltando
fagulhas e estampidos. A visão de Percy berrando de ficar rouco com Fred e
Jorge, a exibição espetacular de estrelas cor de tangerina que jorravam da boca
da salamandra e sua fuga para a lareira, acompanhada de explosões, afugentaram
Filch e o envelope do Feiticexpresso da cabeça de Harry.
Até
chegar o Dia das Bruxas, Harry já se arrependera de sua promessa precipitada de
ir à festa do aniversário de morte. O resto da escola estava animado com a
proximidade da Festa das Bruxas, o Salão Principal fora decorado com os
morcegos vivos de sempre, as enormes abóboras de Hagrid tinham sido recortadas
para fazer lanternas tão grandes que cabiam três homens dentro, e havia boatos
de que Dumbledore contratara uma trupe de esqueletos dançarinos para divertir o
pessoal.
—
Promessa é dívida — Mione lembrou a Harry com ar de mandona — Você disse que
iria ao aniversário de morte.
Então,
às sete horas, Harry, Rony e Mione passaram direto pela porta do Salão
Principal apinhado de gente, que brilhava convidativo com pratos de ouro e
velas, e tomaram o caminho das masmorras.
O
corredor que levava à festa de Nick Quase Sem Cabeça tinha sido iluminado,
também, com velas em toda a sua extensão, embora o efeito não fosse nada
alegre: eram velas longas, finas e pretas, de luz azul, que projetavam uma
claridade fantasmagórica mesmo nos rostos de gente viva. A temperatura caía a
cada passo que davam. Quando Harry estremeceu e puxou as vestes mais para junto
do corpo, ouviu um som que lembrava mil unhas arranhando um imenso
quadro-negro.
—
Será que isso é música? — cochichou Rony. Eles dobraram um canto e viram Nick
Quase Sem Cabeça parado em um portal adornado com reposteiros de veludo negro.
—
Meus caros amigos — disse ele pesaroso — Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos...
fico tão contente que tenham podido vir...
E
tirou o chapéu emplumado fazendo uma reverência e indicando a porta.
Era
uma cena incrível. A masmorra continha centenas de pessoas esbranquiçadas e
translúcidas, a maioria deslizando por uma pista de dança, valsando ao som
medonho de trinta serrotes musicais, tocados por uma orquestra reunida em cima
de uma plataforma drapeada de negro. Um lustre no alto projetava uma luz azul
meia-noite com outras mil velas negras. A respiração dos garotos se condensava,
formando uma névoa à frente deles, parecia que estavam entrando em uma câmara
frigorífica.
—
Vamos dar uma circulada? — sugeriu Harry, querendo esquentar os pés.
—
Cuidado para não atravessar ninguém — recomendou Rony, nervoso, e os três
saíram contornando a pista de dança.
Passaram
por um grupo de freiras soturnas, um homem vestido de trapos que usava
correntes e o Frade Gorducho, um alegre fantasma da Lufa-Lufa, que conversava
com um cavalheiro que tinha uma flecha espetada na testa. Harry não se
surpreendeu ao ver que os outros fantasmas davam distância ao Barão Sangrento,
um fantasma da Sonserina, muito magro, de olhos arregalados e coberto de
manchas de sangue prateado.
— Ah,
não — exclamou Mione, parando de repente — Dêem meia-volta, dêem meia volta,
não quero falar com a Murta Que Geme...
—
Quem? — perguntou Harry ao retrocederem.
— Ela
assombra um boxe no banheiro das meninas no primeiro andar — disse Mione.
— Ela
assombra um boxe?
— É.
O boxe esteve quebrado o ano inteiro porque ela não para de ter acessos de
raiva e inundar o banheiro. Eu nunca entrei lá sempre que pude evitar, é
horrível tentar fazer xixi com ela gemendo do lado...
—
Olhem, comida! — exclamou Rony.
Do
lado oposto da masmorra havia uma longa mesa, também coberta de veludo negro.
Eles se aproximaram pressurosos, mas no instante seguinte pararam de chofre,
horrorizados.
O
cheiro era bem desagradável. Grandes peixes podres estavam dispostos em belas
travessas de prata, bolos carbonizados estavam arrumados em salvas, havia uma
grande terrina de picadinho de miúdos de carneiro cheio de vermes, um pedaço de
queijo coberto de uma camada de mofo esverdeado e, o orgulho do bufê, um enorme
bolo cinzento em forma de sepultura, com os dizeres em glacê de asfalto: SIR
NICOLAS DE MIMSY-PORPINGTON FALECIDO EM 31 DE OUTUBRO DE 1492.
Harry
observou, espantado, um fantasma imponente se aproximar da mesa, abaixar-se e
atravessá-la, a boca aberta de modo a engolir um salmão fedorento.
— O
senhor pode provar a comida quando a atravessa? — perguntou-lhe Harry.
—
Quase — respondeu o fantasma triste e se afastou.
—
Imagino que tenham deixado o peixe apodrecer para acentuar o gosto — disse
Mione em tom de quem sabe das coisas, apertando o nariz e se debruçando para
examinar o picadinho pútrido.
—
Podemos ir andando? Estou me sentindo enjoado — disse Rony.
Nem
bem tinham se virado, porém, quando um homenzinho saiu voando de repente de
debaixo da mesa e parou no ar diante deles.
—
Alô, Pirraça — cumprimentou Harry cauteloso.
Ao
contrário dos fantasmas à volta, Pirraça, o poltergeist era o oposto de pálido
e transparente. Usava um chapéu de festa laranja-vivo, uma gravata-borboleta
giratória e exibia um largo sorriso no rosto largo e maldoso.
—
Aperitivos — disse simpático, oferecendo aos garotos uma tigela de amendoins
cobertos de fungo.
—
Não, muito obrigada — disse Mione.
—
Ouvi você falando da coitada da Murta — disse Pirraça, os olhos dançando — Que
grosseria com a coitada — ele tomou fôlego e berrou — OI! MURTA!
— Ah,
não, Pirraça, não conte a ela o que eu disse, ela vai ficar realmente chateada
— cochichou Mione frenética — Não falei por mal, ela não me incomoda, ah, alô,
Murta...
O
fantasma atarracado de uma moça deslizou até eles. Tinha a cara mais triste que
Harry já vira, meio oculta por cabelos escorridos e espessos, e óculos
perolados.
— Que
foi? — perguntou aborrecida.
—
Como vai, Murta? — cumprimentou Mione fingindo animação — Que bom ver você fora
do banheiro.
Murta
fungou.
— A
Srta. Granger estava mesmo falando em você... — disse Pirraça sonsamente ao
ouvido da Murta.
— Só
estava dizendo... dizendo... como você está bonita esta noite — completou
Mione, fechando a cara para Pirraça.
Murta
olhou para Mione desconfiada.
—
Você está caçoando de mim — disse, lágrimas prateadas marejando rapidamente os
seus olhos penetrantes.
—
Não, sério, eu não acabei de falar como a Murta está bonita? — falou Mione,
cutucando dolorosamente Harry e Rony nas costelas.
— Ah,
claro...
—
Falou...
— Não
mintam para mim — exclamou Murta, as lágrimas agora escorrendo livremente pelo
rosto, enquanto Pirraça, feliz, dava risadinhas por cima do ombro dela — Vocês
acham que não sei como as pessoas me chamam pelas costas? Murta Gorda! Murta
Feiosa! Murta infeliz, chorona, apática!
—
Você esqueceu de espinhenta — sibilou Pirraça ao ouvido dela.
A
Murta Que Geme prorrompeu em soluços aflitos e fugiu da masmorra. Pirraça
disparou atrás dela, jogando amendoins mofados e gritando:
—
Espinhenta! Espinhenta!
— Ah,
meu Deus! — lamentou-se Hermione.
Nick
Quase Sem Cabeça agora deslizava por entre os convidados em direção aos
garotos.
—
Estão se divertindo?
— Ah,
claro — mentiram.
— Um
número de convidados bem grande — disse Nick Quase Sem Cabeça, orgulhoso — A
rainha viúva veio lá de Kent... está quase na hora do meu discurso, é melhor eu
ir avisar a orquestra...
A
orquestra, porém, parou de tocar naquele exato instante. E, todas as pessoas na
masmorra se calaram, olhando para os lados excitadas, ao ouvirem uma trompa de
caça.
— Ah,
lá vamos nós — disse Nick Quase Sem Cabeça amargurado.
Pelas
paredes da masmorra irromperam doze cavalos fantasmas, cada um montado por um
cavaleiro sem cabeça. Os convidados aplaudiram calorosamente.
Harry
começou a aplaudir, também, mas parou depressa ao ver a cara de Nick.
Os
cavalos galoparam até o meio da pista de dança e pararam, levantando e baixando
as patas dianteiras. A frente da cavalgada havia um fantasma corpulento que
segurava a cabeça sob o braço, posição de onde ele tocava a trompa.
O
fantasma apeou, levantou a cabeça no ar de modo que pudesse ver as pessoas
(todos riram) e se dirigiu a Nick Quase Sem Cabeça, recolocando a cabeça sobre
o pescoço.
—
Nick! — rugiu — Como vai? A cabeça ainda pendurada?
Ele
soltou uma gargalhada cordial e deu uma palmadinha no ombro de Nick Quase Sem
Cabeça.
—
Seja bem-vindo, Patrício — disse Nick secamente.
—
Gente viva! — exclamou Sir Patrício, vendo Harry, Rony e Mione, e dando um
grande pulo fingindo espanto, de modo que sua cabeça tornou a cair (os
convidados gargalharam).
—
Muito engraçado — disse Nick Quase Sem Cabeça com ferocidade.
— Não
liguem para o Nick! — gritou a cabeça de Sir Patrício lá do chão — Ainda está
aborrecido porque não o deixamos se associar à Caçada! Mas quero dizer... olhem
só para ele...
—
Acho — disse Harry depressa, a um olhar significativo de Nick — Nick é muito...
assustador e...
— Ha!
— gritou a cabeça de Sir Patrício — Aposto como ele lhe pediu para dizer isso!
— Se
todos pudessem me dar atenção, está na hora do meu discurso! — avisou Nick
Quase Sem Cabeça em voz alta, caminhando com firmeza até o pódio e tomando
posição sob a luz de um refletor azul-gelo — Meus saudosos cavalheiros, damas e
senhores, tenho o grande pesar...
Mas
ninguém ouviu muito mais do que isso.
Sir
Patrício e os Caçadores Sem Cabeça começaram uma partida de hóquei de cabeça e
as pessoas foram se virando para assistir. Nick Quase Sem Cabeça tentou em vão
reconquistar sua platéia, mas desistiu quando a cabeça de Sir Patrício passou
navegando por ele em meio aos berros de vivas.
Harry,
por esta altura, estava sentindo muito frio, para não falar na fome.
— Não
dá para agüentar muito mais que isso — murmurou Rony, os dentes batendo, quando
a orquestra tornou a entrar em ação, e os fantasmas voltaram à pista de dança.
—
Vamos — concordou Harry.
Os
três saíram em direção à porta, acenando com a cabeça e sorrindo para todos que
olhavam, e um minuto depois estavam andando depressa pelo corredor cheio de
velas.
* * *
—
Talvez o pudim ainda não tenha acabado — disse Rony esperançoso, seguindo à
frente em direção à escada do Saguão de Entrada.
E
então Harry ouviu:
“Rasgar...
romper... matar...”
Era a
mesma voz, a mesma voz gélida e assassina que ouvira na sala de Lockhart. Ele
parou quase tropeçando, apoiando-se na parede de pedra, escutando com toda a
atenção, olhando para os lados, apertando os olhos para ver nos dois sentidos
do corredor mal iluminado.
—
Harry, que é que você...?
— É
aquela voz de novo, fiquem quietos um minuto...
“Tanta
fome... tanto tempo...”
—
Ouçam! — disse Harry com urgência, e Rony e Mione pararam, observando-o.
“Matar...
hora de matar...”
A voz
foi ficando mais fraca.
Harry
tinha certeza de que estava se afastando... se afastando para o alto. Uma
mistura de medo e excitação se apoderou dele ao fixar o olhar no teto escuro:
como é que ela podia estar se afastando para o alto? Seria um fantasma, para
quem tetos de pedra não faziam diferença?
— Por
aqui — gritou ele e começou a subir correndo as escadas para o Saguão.
Não
adiantava querer ouvir nada ali, o vozerio na festa do Salão Principal ecoava
pelo Saguão. Harry subiu correndo a escadaria de mármore até o primeiro andar,
com Rony e Mione nos seus calcanhares.
—
Harry, que é que estamos...
—
PSIU!
Harry
apurou os ouvidos.
Longe,
vinda do andar de cima, cada vez mais fraca, ele ouviu a voz:
“...
Sinto cheiro de sangue... SINTO CHEIRO DE SANGUE!”
Sentiu
um aperto no estômago...
— Vai
matar alguém! — gritou ele, e sem dar atenção aos rostos perplexos de Rony e
Mione, subiu correndo o lance seguinte de escada, três degraus de cada vez,
tentando escutar apesar do barulho que seus passos faziam...
Harry
precipitou-se pelo segundo andar, Rony e Mione ofegantes atrás dele, e não
parou até entrar no último corredor deserto.
—
Harry, do que é que você estava falando? — perguntou Rony, enxugando o suor do
rosto — Eu não ouvi nada...
Mas
Mione soltou uma súbita exclamação, apontando para o corredor.
—
Olhem!
Alguma
coisa brilhava na parede em frente. Eles se aproximaram devagarinho, apertando
os olhos para ver na penumbra. Alguém tinha pintado palavras de uns trinta
centímetros na parede entre as duas janelas, que refulgiam à luz das chamas das
tochas.
A CÂMARA SECRETA FOI ABERTA.
INIMIGOS DO HERDEIRO CUIDADO.
— Que
coisa é aquela, pendurada ali embaixo? — perguntou Rony, com um ligeiro tremor
na voz.
Ao se
aproximarem, Harry quase escorregou... havia uma grande poça de água no chão.
Rony e Mione o seguraram, e continuaram a avançar devagar até a mensagem, os
olhos fixos na sombra escura embaixo. Os três logo perceberam o que era e deram
um salto para trás espalhando água.
Madame
Nor-r-ra, a gata do zelador, estava pendurada pelo rabo em um suporte de tocha.
Estava dura como um pau, os olhos arregalados e fixos.
Durante
alguns segundos eles não se mexeram.
Então
Rony falou:
—
Vamos dar o fora daqui.
—
Será que não devíamos tentar ajudar... — começou a dizer Harry, sem jeito.
—
Confie em mim — disse Rony — Não podemos ser encontrados aqui.
Mas
era tarde demais.
Um
ronco, como o de um trovão distante, informou-lhes que a festa terminara
naquele instante. De cada ponta do corredor onde estavam, ouviram o barulho de
centenas de pés que subiam as escadas, e a conversa alta e alegre de gente bem
alimentada. No instante seguinte os alunos entravam aos encontrões pelos dois
lados do corredor. A conversa, o bulício, o barulho morreu de repente quando os
garotos que vinham à frente viram o gato pendurado.
Harry,
Rony e Mione estavam sozinhos no meio do corredor e os estudantes que se
empurravam para ver a cena macabra se calaram.
Então
alguém gritou em meio ao silêncio.
—
Inimigos do herdeiro, cuidado! Vocês vão ser os próximos, sangues ruins!
Era
Draco Malfoy.
Ele
abrira caminho até a frente dos alunos, seus olhos frios muito intensos, seu
rosto, em geral pálido, corara, e ele ria diante do gato pendurado imóvel.
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