— CAPÍTULO DEZ —
O Balaço Errante
DESDE O DESASTROSO
EPISÓDIO com os diabretes, o Prof. Lockhart não trouxera mais seres vivos para
a aula. Em vez disso, lia trechos dos seus livros para os alunos, e, por vezes,
dramatizava algumas passagens mais pitorescas. Em geral ele escolhia Harry para
ajudá-lo nessas dramatizações. Até aquele momento o garoto fora obrigado a
representar um camponês simplório da Transilvânia, de quem Lockhart curara um
feitiço de gagueira, um Iéti com um resfriado na cabeça e um vampiro que se
tornara incapaz de comer outra coisa a não ser alface, depois que Lockhart dera
um jeito nele.
Harry
foi chamado à frente da classe na aula seguinte de Defesa Contra as Artes das
Trevas, desta vez para representar um lobisomem. Se não tivesse uma boa razão
para deixar Lockhart de bom humor, ele teria se recusado.
— Um
belo uivo, Harry, exato, e então, queiram acreditar, eu saltei sobre ele,
assim, joguei-o contra a porta, assim, consegui contê-lo com uma das mãos, com
a outra apontei a varinha para o pescoço dele, e então reuni toda a força que
me restava e lancei o Feitiço Homorfo, muitíssimo complicado, e ele soltou um
gemido de dar pena... vamos, Harry mais alto, bom, o pêlo dele desapareceu, as
presas encurtaram, e ele voltou a virar homem. Simples, mas eficiente, e mais
uma aldeia que se lembrará de mim para sempre como o herói que os salvou do
terror dos ataques de lobisomem.
A
sineta tocou e Lockhart ficou em pé.
—
Dever de casa... compor um poema sobre a minha vitória sobre o lobisomem de
Wagga Wagga! Exemplares autografados de O Meu Eu Mágico para o autor do melhor
trabalho!
Os
alunos começaram a sair.
Harry
voltou ao fundo da sala, onde Rony e Mione esperavam.
—
Prontos? — murmurou Harry.
—
Espere até todos saírem — pediu Mione nervosa — Certo...
Ela
se aproximou da mesa de Lockhart, um papelzinho seguro firmemente na mão, Harry
e Rony logo atrás.
—
Ah... Prof. Lockhart? — gaguejou Mione — Eu queria... retirar este livro da
biblioteca. Só para ter uma idéia geral do assunto — ela estendeu o papelzinho,
a mão ligeiramente trêmula — Mas o problema é que ele é guardado na Seção
Reservada da Biblioteca, então preciso que um professor autorize, tenho certeza
de que o livro me ajudaria a entender o que o senhor diz em Como se Divertir
com Vampiros sobre os venenos de ação retardada...
— Ah,
Como se Divertir com Vampiros!—
exclamou Lockhart apanhando o papelzinho de Hermione e lhe dando um grande
sorriso — Possivelmente é o livro de que mais gosto. Você gostou?
—
Gostei — disse Hermione depressa — Muito esperto o modo com que o senhor
apanhou aquele último, com o coador de chá...
—
Bem, tenho certeza de que ninguém vai se importar que eu dê à melhor aluna do
ano uma ajudinha extra — disse Lockhart calorosamente, e puxou uma enorme pena
de pavão — Bonita, não é? — disse ele, interpretando mal a expressão de
indignação no rosto de Rony — Em geral eu a uso para autografar livros.
Ele
rabiscou uma enorme assinatura cheia de floreios no papel e devolveu-o a
Hermione.
—
Então, Harry — disse Lockhart, enquanto Hermione dobrava o papel com dedos
nervosos e o guardava na mochila — Creio que amanhã é a primeira partida de
Quadribol da temporada. Grifinória contra Sonserina, não é? Ouvi dizer que você
é um jogador muito útil. Eu também fui apanhador. Convidaram-me para tentar a
seleção nacional, mas preferi dedicar minha vida à erradicação das Forças das
Trevas. Ainda assim, se algum dia você achar que precisa de um treino pessoal,
não hesite em me pedir. Fico sempre feliz de passar minha experiência a jogadores
menos capazes...
Harry
fez um barulhinho discreto na garganta e saiu correndo atrás de Rony e
Hermione.
— Eu
não acredito — disse ele quando os três examinaram a assinatura no papel — Ele
nem olhou o nome do livro que queríamos.
— É
porque ele é um panaca desmiolado — disse Rony — Mas quem se importa, temos o
que precisávamos...
— Ele
não é um panaca desmiolado — disse Hermione em voz alta quando se dirigiam
quase correndo à biblioteca.
— Só
porque ele disse que você é a melhor aluna do ano...
Eles
baixaram a voz ao entrar na quietude abafada da Biblioteca.
Madame
Pince, a bibliotecária, era uma mulher magra e irritável que parecia um urubu
subnutrido.
— Pociones Muy Potentes? — repetiu ela
desconfiada, tentando tirar a autorização da mão de Hermione; mas a garota não
deixou.
— Eu
pensei que talvez pudesse guardar a autorização — disse Hermione ofegante.
— Ah,
qual é? — protestou Rony, arrancando a autorização da mão dela e entregando-a a
Madame Pince — Nós lhe arranjamos outro autógrafo. Lockhart assina qualquer
coisa que fique parada tempo suficiente.
Madame
Pince ergueu o papel contra a luz, como se estivesse decidida a descobrir uma
falsificação, mas a autorização passou no teste. Ela desapareceu
silenciosamente entre as estantes altas e voltou vários minutos depois trazendo
um livro grande de aparência mofada.
Hermione
guardou-o cuidadosamente na mochila e os três foram embora, procurando não
andar demasiado rápido nem parecer muito culpados.
Cinco
minutos depois, estavam barricados mais uma vez no banheiro interditado da
Murta Que Geme. Hermione tinha vencido as objeções de Rony lembrando que seria
o último lugar em que alguém sensato iria, e com isso garantiram alguma
privacidade. Murta Que Geme chorava alto no seu boxe, mas eles não lhe
prestavam atenção, nem a fantasma aos garotos.
Hermione
abriu o Pociones Muy Potentes com
cuidado, e os três se debruçaram sobre as páginas manchadas de umidade. Era
claro, ao primeiro olhar, a razão por que o livro pertencia à Seção Reservada.
Algumas das poções produziam efeitos medonhos demais só de se imaginar, e havia
algumas ilustrações muito impressionantes, que incluíam um homem que parecia
ter virado do avesso e uma bruxa com vários pares de braço que saíam da cabeça.
—
Aqui — exclamou, excitada, ao encontrar a página intitulada “A Poção
Polissuco”. Estava decorada com desenhos de pessoas a meio caminho de se
transformarem em outras.
Harry
sinceramente desejou que as expressões de dor intensa em seus rostos fossem
imaginação do artista.
—
Esta é a poção mais complicada que já vi — disse Hermione quando examinavam a
receita — Hemeróbios, sanguessugas, descutainia e sanguinária — murmurou ela,
correndo o dedo pela lista de ingredientes — Bem, esses são bem fáceis, estão
no armário dos alunos, podemos tirar o que precisarmos... ah, olhem só isso, pó
de chifre de bicórnio, não sei onde vamos arranjar isso... pele de ararambóia
picada, essa vai ser uma fria também... e, é claro, um pedacinho da pessoa em
quem quisermos nos transformar.
— Dá
para repetir isso? — pediu Rony ríspido — Que é que você quer dizer com um
pedacinho da pessoa em quem quisermos nos transformar? Não vou tomar nada que
tenha unhas do pé de Crabbe dentro...
Hermione
continuou como se não tivesse ouvido o amigo.
—
Ainda não temos que nos preocupar com isso, porque os pedacinhos só entram no
fim...
Rony
virou-se, sem fala, para Harry, que tinha outra preocupação.
—
Você percebe quanta coisa vamos ter que roubar, Mione? Pele de ararambóia
picada, decididamente não está no armário dos alunos. Que vamos fazer, assaltar
o estoque particular de Snape? Não sei se é uma boa ideia...
Hermione
fechou o livro com força.
—
Bem, se vocês dois vão amarelar, ótimo — seu rosto se malhara de vermelho vivo
e os olhos cintilavam mais do que o normal — Eu não quero desrespeitar o
regulamento, vocês sabem muito bem. Acho que ameaçar gente que nasceu trouxa é
muito mais sério do que preparar uma poção difícil. Mas se vocês não querem
descobrir se é o Draco, eu vou direto à Madame Pince agora mesmo e devolvo o
livro, e...
— Eu
nunca pensei que veria o dia em que você nos convenceria a desrespeitar o
regulamento — disse Rony — Muito bem, nós topamos. Mas unhas dos pés não, está
bem?
— E
quanto tempo vai levar para preparar a poção? — perguntou Harry, de cara feliz,
quando Hermione reabriu o livro.
—
Bom, uma vez que a descutainia tem que ser colhida na lua cheia e os hemeróbios
precisam cozinhar durante vinte e um dias... eu diria que vai levar mais ou
menos um mês para ficar pronta, se conseguirmos todos os ingredientes.
— Um
mês? — exclamou Rony — Até lá, Draco poderia atacar metade dos nascidos trouxas
na escola!
Mas
os olhos de Hermione tornaram a se estreitar perigosamente e ela acrescentou
depressa:
— Mas
é o melhor plano que temos, portanto, vamos tocar para frente a todo vapor!
No
entanto, quando Hermione foi verificar se a barra estava limpa para eles saírem
do banheiro, Rony cochichou para Harry:
—
Daria muito menos trabalho se você simplesmente derrubasse Draco da vassoura
amanhã.
* * *
Harry acordou cedo no
Sábado e continuou deitado por algum tempo, pensando na partida de Quadribol
que se aproximava. Estava nervoso, principalmente quando pensava no que Wood
diria se a Grifinória perdesse, mas também com a ideia de enfrentar um time
montado nas vassouras de corrida mais velozes que o ouro podia comprar. Nunca
tivera tanta vontade de vencer a Sonserina. Depois de passar meia hora deitado
ali com as tripas dando nós, ele se levantou, se vestiu e desceu logo para
tomar café e já encontrou o resto dos jogadores da Grifinória sentados juntos à
mesa comprida e vazia, todos parecendo nervosos e falando muito pouco.
Á
medida que às onze horas se aproximaram, a escola inteira começou a tomar o
caminho do estádio de Quadribol. Fazia um dia mormacento com sinais de trovoada
no ar. Rony e Hermione vieram correndo desejar a Harry boa sorte quando ele ia
entrando no vestiário.
O
time vestiu os uniformes vermelhos da Grifinória e depois se sentou para ouvir
a preleção que Wood sempre fazia antes do jogo.
—
Hoje, Sonserina tem vassouras melhores que nós — começou ele — Não adianta
negar. Mas nós temos jogadores melhores nas nossas vassouras. Treinamos com
maior garra do que eles, estivemos no ar fosse qual fosse o tempo... (“Quem duvida”, murmurou Jorge Weasley, “Não sei o que é estar seco desde Agosto”)...
E vamos fazer com que eles se arrependam do dia em que deixaram aquele
trapaceiro do Draco pagar para entrar no time.
O
peito arfando de emoção, Wood virou-se para Harry.
— Vai
depender de você, Harry, mostrar a eles que um apanhador tem que ter mais do
que um pai rico. Chegue ao Pomo antes de Draco ou morra tentando, porque temos
que vencer hoje, é muito simples.
— Por
isso nada de pressioná-lo, Harry — disse Fred piscando o olho.
Quando
entraram no campo, foram saudados por um vozerio, muitos vivas, porque a
Corvinal e a Lufa-Lufa estavam ansiosas para ver a Sonserina derrotada, mas os
alunos da Sonserina nas arquibancadas vaiaram e assobiaram, também.
Madame
Hooch, a professora de Quadribol, mandou Flint e Wood se apertarem as mãos, o
que eles fizeram, lançando um ao outro olhares ameaçadores e pondo mais força
no aperto que era necessário.
—
Quando eu apitar — disse Madame Hooch — Três... dois... um...
Com
um rugido de incentivo das arquibancadas, os catorze jogadores subiram em
direção ao céu carregado. Harry foi mais alto do que qualquer outro, apertando
os olhos à procura do Pomo.
—
Tudo bem aí, ó Cicatriz? — berrou Draco, passando por baixo dele como se
quisesse mostrar a velocidade de sua vassoura.
Harry
não teve tempo de responder. Naquele mesmo instante, um pesado balaço negro
veio voando a toda em sua direção, ele o evitou por tão pouco que sentiu o
balaço arrepiar seus cabelos ao passar.
—
Esse foi por um triz, Harry! — disse Jorge, emparelhando com ele de bastão na
mão, pronto para rebater o balaço para os lados de um jogador da Sonserina.
Harry
viu Jorge dar uma forte bastonada na direção de Adriano Pucey, mas o balaço
mudou de rumo em pleno ar e tornou a voar direto para Harry.
O
garoto mergulhou depressa para evitá-lo, e Jorge conseguiu atingir o balaço com
força na direção de Draco. Mais uma vez, o balaço voltou como um bumerangue e
disparou contra a cabeça de Harry.
Harry
imprimiu velocidade à vassoura e voou para o outro extremo do campo. Ouvia o
assobio do balaço vindo em seu encalço. Que estava acontecendo? Os balaços
nunca se concentravam em um único jogador; sua função era tentar desmontar o
maior número possível de jogadores...
Fred
Weasley aguardava o balaço no outro extremo. Harry se abaixou quando Fred
rebateu o balaço com toda força, desviando-o de curso.
—
Peguei você! — berrou Fred alegremente, mas estava enganado. Como se estivesse
magneticamente atraído para Harry, o balaço saiu atrás dele outra vez, e o
garoto foi forçado a voar a toda velocidade.
Começara
a chover; Harry sentiu grossos pingos de chuva caírem em seu rosto, molhando
seus óculos. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo no jogo até
ouvir Lino Jordan, locutor da partida, dizer: “Sonserina na liderança, sessenta a zero...”. As vassouras superiores
da Sonserina obviamente estavam dando conta do recado, enquanto o balaço
furioso estava fazendo o possível para tirar Harry do ar.
Fred
e Jorge agora voavam tão junto dele, um de cada lado, que Harry não via nada
exceto braços se agitando no ar e não tinha chance de procurar o Pomo, muito
menos de apanhá-lo.
—
Alguém... alterou... esse... balaço... — rosnou Fred, brandindo o bastão com
toda força quando o balaço desfechou um novo ataque contra Harry.
—
Precisamos de tempo — disse Jorge, tentando simultaneamente fazer sinal a Wood
e impedir o balaço de quebrar o nariz de Harry.
Wood
obviamente entendera o sinal.
O
apito de Madame Hooch soou e Harry, Fred e Jorge mergulharam até o chão, ainda
tentando evitar o balaço maluco.
— Que
está acontecendo? — perguntou Wood quando o time da Grifinória se reuniu à sua
volta ao som das vaias da Sonserina — Estamos sendo arrasados. Fred, Jorge,
onde é que vocês estavam quando aquele balaço impediu Angelina de fazer gol?
—
Estávamos seis metros acima dela, impedindo outro balaço de matar Harry, Olívio
— respondeu Jorge aborrecido — Alguém alterou aquele balaço, ele não deixa o
Harry em paz. E não tentou pegar mais ninguém o tempo todo. O pessoal da
Sonserina deve ter feito alguma coisa com ele.
— Mas
os balaços estiveram trancados na sala de Madame Hooch desde o nosso último
treino, e não havia nada errado com eles... — disse Wood, ansioso.
Madame
Hooch veio andando em direção ao grupo. Por cima do ombro Harry viu o time da
Sonserina caçoando e apontando para ele.
—
Escutem — disse Harry ao vê-la chegar cada vez mais perto — Com vocês dois
voando em volta de mim o tempo todo o único jeito de apanhar aquele Pomo é ele
entrar voando na minha manga. Se juntem ao resto do time e deixem que eu cuido
do balaço errante.
— Não
seja burro — disse Fred — Ele vai arrancar sua cabeça.
Wood
olhava de Harry para os Weasley.
—
Olívio, isso é loucura — disse Alicia Spinnet zangada — Você não pode deixar o
Harry enfrentar aquela coisa sozinho. Vamos pedir uma investigação...
— Se
pararmos agora, perderemos a partida! — disse Harry — E não vamos perder para a
Sonserina só por causa de um balaço maluco! Anda, Olívio, diz para eles me
deixarem em paz!
—
Isto é tudo culpa sua — disse Jorge furioso com Wood — “Apanhe o Pomo ou morra
tentando”, que coisa idiota para dizer a ele...
Madame
Hooch se reunira aos jogadores.
—
Estão prontos para recomeçar a partida? — perguntou a Wood.
Wood
olhou para a expressão decidida no rosto de Harry.
—
Muito bem. Fred, Jorge, vocês ouviram o que Harry disse, deixem-no em paz e
deixem que ele cuide do balaço sozinho.
A
chuva caía mais pesada agora.
Ao
apito de Madame Hooch, Harry deu um forte impulso para o alto e ouviu o assobio
que indicava que o balaço vinha atrás dele.
Ganhou
cada vez mais altura; fez loops e subiu, espiralou, ziguezagueou e balançou.
Mesmo ligeiramente tonto, mantinha os olhos bem abertos, a chuva molhando seus
óculos e entrando por suas narinas quando ele voava de barriga para cima,
evitando outro mergulho furioso do balaço. Ele ouvia as risadas do público;
sabia que devia estar parecendo muito idiota, mas o balaço errante era pesado e
não podia mudar de direção tão rápido quanto Harry. O garoto começou a voar
pela orla do estádio como se estivesse em uma montanha-russa, procurando ver as
balizas da Grifinória através da cortina prateada de chuva. Adrian Pucey
tentava ultrapassar Wood...
Um
assobio no ouvido de Harry lhe disse que o balaço deixara de acertá-lo por
pouco outra vez; ele imediatamente deu meia-volta e disparou na direção oposta.
— Está
treinando para fazer balé, Potter? — berrou Draco quando Harry foi obrigado a
dar uma volta ridícula em pleno ar para evitar o balaço e fugir, o balaço
rastreando-o a pouco mais de um metro; e então, virando-se para olhar Draco
cheio de ódio ele viu...
O
Pomo de Ouro. Pairava poucos centímetros acima da orelha esquerda de Draco, e o
garoto, ocupado em rir-se de Harry, não o vira.
Por
um momento de agonia, Harry imobilizou-se no ar, sem ousar voar na direção de
Draco, com medo de que ele olhasse para cima e visse o pomo.
BAM.
Permanecera
parado um segundo a mais. O balaço finalmente atingi-o, bateu no seu cotovelo e
Harry sentiu o braço rachar. Sem enxergar direito, atordoado pela terrível dor
no braço, escorregou para um lado da vassoura encharcada, um joelho ainda
enganchando-a por baixo, o braço direito pendurado inútil... o balaço retornava
a toda para um segundo ataque, desta vez mirando o seu rosto, Harry desviou-se,
uma idéia alojada com firmeza no cérebro entorpecido: chegar até Draco.
Através
da névoa de chuva e dor, ele mergulhou em direção à cara debochada abaixo dele
e viu os olhos de Draco se arregalarem de medo. O garoto achou que Harry ia
atacá-lo.
— Que
di... — exclamou, inclinando-se para longe de Harry.
Harry
tirou a mão boa da vassoura e tentou agarrar o pomo às cegas; sentiu os dedos
se fecharem sobre a bola fria, mas agora só estava preso à vassoura pelas
pernas, e ouviu-se um urro das arquibancadas quando ele rumou direto para o
chão, tentando por tudo não desmaiar. Ele bateu no chão, levantando lama, e
rolou para o lado para desmontar da vassoura.
Seu
braço estava pendurado num ângulo muito estranho, varado de dor, ele ouviu,
como se fosse à grande distância, muitos assobios e gritos. Focalizou o Pomo
seguro na mão boa.
— Aha
— disse vagamente — Ganhamos.
E
desmaiou. Voltou a si, a chuva batendo no rosto, ainda deitado no campo, com
alguém debruçado sobre ele. Viu um brilho de dentes.
— Ah,
o senhor, não — gemeu.
— Ele
não sabe o que está dizendo — falou Lockhart em voz alta para o ajuntamento de
alunos da Grifinória que cercavam ansiosos os dois — Não se preocupe Harry. Já
vou endireitar o seu braço.
—
Não! — exclamou Harry — Vou ficar com ele assim, obrigado...
O
garoto tentou se sentar, mas a dor foi terrível. Ele ouviu um clique conhecido
ali por perto.
— Não
quero uma foto deste momento, Colin — disse em voz alta.
—
Deite-se, Harry — mandou Lockhart acalmando-o — É um feitiço muito simples que
já usei muitíssimas vezes...
— Por
que não posso simplesmente ir para a Ala Hospitalar? — disse Harry com os
dentes cerrados.
— Ele
devia mesmo, professor — disse um enlameado Wood, que não pôde deixar de sorrir
mesmo com o seu apanhador machucado — Grande captura, Harry, realmente
espetacular, a melhor que já fez, eu diria...
Por
entre a floresta de pernas à sua volta, Harry viu Fred e Jorge Weasley, lutando
para enfiar o balaço errante numa caixa. A bola continuava a resistir
ferozmente.
—
Afastem-se — pediu Lockhart, enrolando as mangas de suas vestes verde-jade.
—
Não... não faça isso... — disse Harry com a voz fraca, mas Lockhart agitava a
varinha e um segundo depois apontou-a diretamente para o braço de Harry.
Uma
sensação estranha e desagradável surgiu no ombro de Harry e se espalhou até a
ponta dos dedos da mão. Era como se o braço estivesse se esvaziando. Ele nem se
atreveu a verificar o que estava acontecendo. Fechara os olhos, virara o rosto
para longe do braço, mas os seus piores temores se confirmaram, as pessoas em
volta exclamaram e Colin Creevey começou a fotografar furiosamente. Seu braço
não doía mais... e nem de longe se parecia com um braço.
— Ah
— disse Lockhart — É, às vezes isso pode acontecer. Mas o importante é que os
ossos não estão mais fraturados. Isto é o que se precisa ter em mente. Então,
Harry, vá, dê uma chegada na Ala Hospitalar, ah, Sr. Weasley, Srta. Granger,
podem acompanhá-lo? E Madame Pomfrey poderá... hum... dar um jeito nisso.
Quando
Harry se levantou, sentiu-se estranhamente inclinado para um lado. Tomando
fôlego, olhou para baixo, para o braço direito. O que ele viu quase o fez
desmaiar de novo. Pela manga das vestes saía uma coisa que lembrava uma grossa
luva de borracha cor de pele. Ele tentou mexer os dedos. Nada aconteceu.
Lockhart
não emendara os ossos de Harry. Ele os removera.
Madame
Pomfrey não ficou nada satisfeita.
—
Você deveria ter vindo me procurar diretamente! — dizia furiosa, erguendo a
lamentável sobra do que fora, meia hora antes, um braço útil — Posso emendar
ossos num segundo, mas fazê-los crescer outra vez...
— A
senhora vai conseguir, não é? — perguntou Harry desesperado.
—
Claro que vou, mas vai ser doloroso — disse Madame Pomfrey sombriamente,
atirando um pijama para Harry — Você vai ter que passar a noite...
Hermione
esperava do outro lado da cortina que fora fechada em torno da cama de Harry,
enquanto Rony o ajudava a vestir o pijama. Levou algum tempo para enfiar na
manga o braço mole e sem ossos.
—
Como é que você consegue defender o Lockhart agora, Hermione, hein? — Rony
perguntou através da cortina enquanto puxava os dedos inertes de Harry pelo
punho da manga — Se Harry quisesse ser desossado ele teria pedido.
—
Qualquer um pode se enganar — respondeu Hermione — E não está doendo mais, está
Harry?
— Não
— disse Harry, entrando na cama — Mas também não faz mais nada.
Quando
ele se deitou, o braço balançou molemente.
Hermione
e Madame Pomfrey deram a volta à cortina.
Madame
Pomfrey vinha segurando um garrafão de alguma coisa rotulada Esquelesce.
—
Você vai enfrentar uma noite difícil — disse, servindo um copo grande de boca
larga e fumegante e entregando-o a Harry — Fazer ossos crescerem de novo é uma
coisa complicada. E tomar Esquelesce,
também.
O
liquido queimou a boca e a garganta de Harry e desceu, fazendo-o tossir e
cuspir.
Ainda
lamentando os esportes perigosos e os professores ineptos, Madame Pomfrey se
retirou, deixando Rony e Hermione ajudarem Harry a engolir um pouco de água.
— Mas
ganhamos — disse Rony, um grande sorriso se abrindo no rosto — Foi uma captura
e tanto a que você fez. A cara do Malfoy... ele parecia que ia matar alguém...
— Eu
queria saber como foi que ele alterou aquele balaço — disse Hermione
sombriamente.
—
Podemos acrescentar mais esta à lista de perguntas que vamos fazer a ele quando
tomarmos a Poção Polissuco — disse Harry deixando-se afundar nos travesseiros —
Espero que tenha um gosto melhor do que esta coisa...
— Com
pedacinhos de alunos da Sonserina dentro? Você deve estar brincando — disse
Rony.
A
porta do hospital se escancarou naquele momento. Imundos e encharcados, os
demais jogadores da Grifinória chegaram para ver Harry.
—
Incrível aquele voo, Harry — disse Jorge — Acabei de ver Marcos Flint berrando
com Draco. Estava falando alguma coisa sobre ter o Pomo sobre a cabeça e nem
notar. Draco não parecia muito feliz.
Os
jogadores tinham trazido bolos, doces e garrafas de suco de abóbora que
arrumaram em volta da cama de Harry e davam início ao que prometia ser uma
festança, quando Madame Pomfrey apareceu como um tufão, gritando:
—
Esse menino precisa de descanso, precisa fazer crescer trinta e três ossos! Fora! FORA!
E
Harry foi deixado sozinho, sem nada para distraí-lo da dor horrível no braço
inerte.
* * *
Muitas horas depois,
Harry acordou de repente numa escuridão de breu e deu um ligeiro ganido de dor:
o braço agora parecia cheio de grandes lascas. Por um segundo ele pensou que
fora isso que o acordara. Então, com um choque de terror, percebeu que alguém
estava passando uma esponja em sua testa.
—
Fora daqui! — gritou ele alto e em seguida — Dobby!
Os
olhos arregalados, parecendo bolas de tênis, do elfo doméstico espiavam Harry
na escuridão. Uma lágrima solitária escorria pelo seu nariz longo e fino.
—
Harry Potter voltou para a escola — murmurou ele infeliz — Dobby avisou e
tornou a avisar Harry Potter. Ah, meu senhor, por que não prestou atenção em Dobby?
Por que Harry Potter não voltou para casa quando perdeu o trem?
Harry
se ergueu, apoiando-se nos travesseiros e empurrou para longe a esponja de
Dobby.
— Que
é que você está fazendo aqui? — perguntou — E como sabe que perdi o trem?
O
lábio de Dobby tremeu, e Harry foi assaltado por uma repentina suspeita.
— Foi
você! — disse lentamente — Você impediu a barreira de nos deixar passar!
— Com
certeza, meu senhor — Dobby confirmou vigorosamente com a cabeça, as orelhas
abanando — Dobby se escondeu e esperou Harry Potter e selou o portão, e Dobby
teve que passar as mãos a ferro depois — mostrou a Harry os dez dedos compridos
enfaixados — Mas Dobby não se importou, meu senhor, porque pensou que Harry
Potter estava seguro, e Dobby nunca sonhou que Harry Potter fosse chegar a
escola por outro meio!
O
elfo se balançava para frente e para trás, sacudindo a cabeça feia.
—
Dobby ficou tão chocado quando soube que Harry Potter tinha voltado a Hogwarts
que deixou o jantar do seu dono queimar! Dobby nunca foi tão açoitado, meu
senhor...
Harry
afundou de volta nos travesseiros.
—
Você quase fez com que Rony e eu fôssemos expulsos — disse furioso — É melhor
desaparecer antes que os meus ossos voltem, Dobby, ou eu ainda estrangulo você.
Dobby
deu um leve sorriso.
—
Dobby está acostumado com ameaças de morte, meu senhor. Em casa, Dobby as
recebe cinco vezes por dia.
O
elfo assoou o nariz numa ponta da fronha imunda que usava, parecendo tão
patético, que Harry sentiu a raiva se esvair contra a sua vontade.
— Por
que você usa isso, Dobby? — perguntou curioso.
—
Isso, meu senhor? — disse Dobby, puxando a fronha — Isto é a marca de
escravidão do elfo doméstico, meu senhor. Dobby só pode ser libertado se seus
donos o presentearem com roupas, meu senhor. A família toma cuidado para não
passar a Dobby nem mesmo uma meia, meu senhor, se não ele fica livre para
deixar a casa para sempre.
Dobby
enxugou os olhos saltados e disse de repente:
—
Harry Potter precisa ir para casa! Dobby achou que o balaço dele seria
suficiente para fazer...
— O
seu balaço? — disse Harry, a raiva tornando a subir-lhe a cabeça — Que é que
você quer dizer com o seu balaço? Você fez aquele balaço tentar me matar?
— Não
matar, meu senhor, nunca matá-lo! — disse Dobby, chocado — Dobby quer salvar a
vida de Harry Potter! Melhor mandá-lo para casa, seriamente machucado, do que
ficar aqui, meu senhor! Dobby só queria que Harry Potter se machucasse o
bastante para ser mandado para casa!
— Só
isso? — exclamou Harry furioso — Suponho que você não vai me contar por que queria
me mandar para casa aos pedaços?
— Ah,
se ao menos Harry Potter soubesse! — gemeu Dobby, mais lágrimas escorrendo pela
fronha esfarrapada — Se ele soubesse o que significa para nós, para os
humildes, para os escravizados, para nos escória do mundo mágico! Dobby se
lembra de como era quando Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado estava no auge dos seus
poderes, meu senhor! Nós, elfos domésticos, éramos tratados como vermes, meu
senhor! É claro que Dobby ainda é tratado assim, meu senhor — admitiu,
enxugando o rosto na fronha — Mas em geral, meu senhor, a vida melhorou para
gente como eu desde que o senhor venceu Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Harry
Potter sobreviveu, e o poder do Lorde das Trevas foi subjugado, e raiou uma
nova alvorada, meu senhor, e Harry Potter brilhou como um farol de esperança
para todos nós que achávamos que os dias de trevas nunca terminariam, meu
senhor... e agora, em Hogwarts, coisas terríveis vão acontecer, talvez já
estejam acontecendo, e Dobby não pode deixar Harry Potter ficar aqui, agora que
a história vai se repetir, agora que a Câmara Secreta foi reaberta...
Dobby
congelou, tomado de horror, e agarrou a jarra de água de Harry sobre a mesa de
cabeceira e quebrou-a na própria cabeça, desaparecendo de vista. Um segundo
depois, tornou a subir na cama, vesgo, murmurando:
—
Dobby ruim, Dobby muito ruim.
—
Então há uma Câmara Secreta! — sussurrou Harry — E... você está me dizendo que
ela já foi aberta antes? Me conte, Dobby? — ele agarrou o elfo pelo pulso
ossudo quando viu a mão dele tornar a se aproximar devagarinho da jarra de água
— Mas eu não nasci trouxa, como posso estar ameaçado pela Câmara?
— Ah,
meu senhor, não pergunte mais nada ao pobre Dobby — gaguejou o elfo, os olhos
enormes na escuridão — Feitos tenebrosos estão sendo tramados em Hogwarts, mas
Harry Potter não deve estar aqui quando acontecerem, vá para casa, Harry
Potter, vá para casa. Harry Potter não deve se meter nisso, meu senhor, é
perigoso demais...
—
Quem é, Dobby? — perguntou Harry, mantendo o pulso de Dobby preso para impedi-lo
de bater outra vez na cabeça com o jarro de água — Quem abriu a Câmara? Quem a
abriu da outra vez?
—
Dobby não pode, meu senhor, Dobby não pode, Dobby não deve falar! — guinchou o
elfo — Vá para casa, Harry Potter, vá para casa!
— Eu
não vou a lugar nenhum! — respondeu Harry com ferocidade — Uma das minhas
melhores amigas nasceu trouxa, ela será a primeira da lista se a Câmara
realmente foi aberta...
—
Harry Potter arrisca a própria vida pelos amigos! — gemeu Dobby numa espécie de
êxtase de infelicidade — Tão nobre! Tão valente! Mas ele precisa se salvar,
deve, Harry Potter, não deve...
Dobby
de repente congelou, suas orelhas de morcego estremeceram. Harry ouviu, também.
Havia ruído de passos no corredor.
—
Dobby tem que ir! — suspirou o elfo, aterrorizado.
Houve
um estalo alto, e o punho de Harry subitamente não estava segurando mais nada.
Ele tornou a afundar na cama, os olhos fixos no portal escuro da Ala Hospitalar
enquanto os passos se aproximavam.
No
momento seguinte, Dumbledore entrou de costas no dormitório, usando uma longa
camisola de lã e uma touca de dormir. Carregava uma extremidade de alguma coisa
que parecia uma estátua.
A
Profª. McGonagall apareceu um segundo depois, carregando os pés. Juntos, eles
depositaram a carga sobre uma cama.
—
Chame Madame Pomfrey — sussurrou Dumbledore, e a Profª. McGonagall desapareceu
rapidamente de vista, passando pelos pés da cama de Harry.
O
garoto ficou deitado muito quieto, fingindo que dormia. Ouviu vozes urgentes e
então a Profª. McGonagall reapareceu, seguida de perto por Madame Pomfrey, que
vestia um casaquinho por cima da camisola. Ele ouviu alguém inspirar com força.
— Que
aconteceu? — cochichou Madame Pomfrey para Dumbledore, debruçando-se sobre a
estátua na cama.
—
Mais um ataque — respondeu Dumbledore — Minerva encontrou-o na escada.
—
Havia um cacho de uvas ao lado dele — disse a professora — Achamos que ele
estava tentando chegar aqui escondido para visitar Potter.
O
estômago de Harry deu um tremendo salto. Lenta e cuidadosamente, ele se ergueu
alguns centímetros para poder ver a estátua na cama. Um raio de luar iluminava
o rosto de expressão fixa.
Era
Colin Creevey. Seus olhos estavam arregalados e, as mãos, erguidas diante dele,
segurando a máquina fotográfica.
—
Petrificado? — sussurrou Madame Pomfrey.
—
Está — respondeu a Profª. McGonagall — Mas estremeço de pensar... se Alvo não
estivesse descendo para tomar um chocolate quente... quem sabe o que poderia...
Os
três contemplaram Colin.
Então
Dumbledore se curvou e tirou a máquina fotográfica das mãos rígidas do menino.
—
Você acha que ele conseguiu bater uma foto do atacante? — perguntou a
professora, ansiosa.
Dumbledore
não respondeu. Abriu a máquina.
— Meu
Deus! — exclamou Madame Pomfrey.
Um
jato de vapor saiu sibilando da máquina. Harry, a três camas de distância,
sentiu o cheiro acre do plástico queimado.
—
Derretidas — disse Madame Pomfrey pensativa — Todas derretidas...
— O
que significa isto, Alvo? — perguntou pressurosa a Profª. McGonagall.
—
Significa que de fato a Câmara Secreta foi reaberta.
Madame
Pomfrey levou a mão à boca.
McGonagall
arregalou os olhos para Dumbledore.
—
Mas, Alvo... com certeza... quem?
— A
pergunta não é quem — disse Dumbledore, com os olhos postos em Colin — A
pergunta é, como...
E
pelo que Harry pôde ver do rosto sombreado da Profª. McGonagall, ela não
entendia muito mais que ele.
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