— CAPÍTULO TRÊS —
A Toca
—
Rony! — murmurou Harry, deslizando furtivamente até a janela e abrindo-a de
modo que pudessem conversar através das grades — Rony, como foi que você... que
é...?
O
queixo de Harry caiu quando o impacto do que via o atingiu por inteiro. Rony
estava debruçado na janela traseira de um velho carro turquesa, estacionado no ar. Do banco dianteiro
sorriam, para Harry, Fred e Jorge, os irmãos gêmeos de Rony, mais velhos que
ele.
—
Tudo bem, Harry? — perguntou Jorge.
— Que
é que está acontecendo? — perguntou Rony — Por que é que você não tem
respondido às minhas cartas? Convidei-o a nos visitar umas doze vezes e então
papai chegou em casa e disse que você tinha recebido uma advertência oficial
por usar mágica na frente de trouxas...
— Não
fui eu... e como é que ele soube?
— Ele
trabalha no Ministério. Você sabe que não temos permissão para usar mágica fora
da escola...
—
Olha quem fala — respondeu Harry olhando para o carro que flutuava.
— Ah,
isto não conta — respondeu Rony — É só emprestado. É do papai, não fomos nós
que o enfeitiçamos. Mas fazer mágica na frente desses trouxas com quem você
mora...
— Eu
já disse que não fiz... mas vai levar muito tempo para contar agora. Olha, será
que você pode avisar em Hogwarts? Os Dursley me trancaram e não vão me deixar
voltar e, é claro, não posso sair usando mágica, porque o Ministério vai achar
que é a segunda mágica que faço em três dias, e aí...
—
Pare de falar coisas sem sentido — disse Rony — Viemos levá-lo para casa
conosco.
— Mas
vocês também não podem me tirar usando mágica...
— Não
precisamos — disse Rony, indicando com a cabeça o banco dianteiro do carro e
sorrindo — Você esqueceu quem foi que eu trouxe comigo?
—
Amarre isso nas grades — mandou Fred, atirando a ponta de uma corda para Harry.
— Se
os Dursley acordarem, estou morto — comentou Harry enquanto amarrava a corda
bem firme em volta da grade e Fred acelerava o carro.
— Não
se preocupe — falou Fred — E dê distância.
Harry
recuou para as sombras próximas, a Edwiges, que parecia ter percebido como
aquilo era importante e ficou parada e silenciosa. O carro roncou cada vez mais
alto e, de repente, com um ruído de trituração, as grades foram totalmente
arrancadas da janela, enquanto Fred continuava a subir no ar Harry correu à
janela e viu as grades balançando a pouco mais de um metro do chão. Rony,
ofegante, guindou-as para dentro do carro. Harry escutava ansioso, mas não
vinha o menor ruído do quarto dos Dursley.
Depois
que as grades foram guardadas no banco traseiro do carro, ao lado de Rony, Fred
deu marcha a ré até chegar o mais próximo possível da janela de Harry.
—
Entre — convidou Rony.
— Mas
todo o meu material de Hogwarts... minha varinha... minha vassoura...
—
Onde está?
—
Trancado no armário embaixo da escada, e não posso sair deste quarto...
— Não
tem problema — disse Jorge do banco dianteiro do carro — Saia da frente, Harry.
Fred
e Jorge entraram no quarto de Harry pela janela, feito gatos. A pessoa tinha
que tirar o chapéu para eles, pensava Harry, quando Jorge puxou um grampo do
bolso e começou a arrombar a fechadura.
— Tem
muito bruxo que acha que é uma perda de tempo conhecer macetes de trouxas como
esse — disse Fred — Mas nós achamos que vale a pena aprender essas habilidades,
mesmo que sejam um pouco demoradas.
A
porta fez um dique e se abriu.
—
Então, vamos apanhar o seu malão, e você pega o que precisar do seu quarto e
passa para o Rony — murmurou Jorge.
—
Cuidado com o último degrau, ele range — murmurou Harry para os gêmeos que
desapareceram no corredor escuro.
Harry
correu pelo quarto reunindo seus pertences e passando-os a Rony pela janela.
Então, foi ajudar Fred e Jorge a carregar o malão para cima.
Harry
ouviu o Tio Válter tossir.
Finalmente,
ofegantes, eles chegaram ao alto da escada e carregaram o malão pelo quarto de
Harry até a janela aberta. Fred pulou a janela de volta ao carro para puxar o
malão com Rony, enquanto Harry e Jorge o empurravam pelo lado de dentro. Pouco
a pouco, o malão deslizou pela janela.
Tio
Válter tossiu outra vez.
—
Mais um pouquinho — arfou Fred, que estava puxando o malão para dentro do carro
— Mais um bom empurrão...
Harry
e Jorge jogaram os ombros contra o malão e ele deslizou da janela para o
assento traseiro do carro.
—
Muito bem, vamos — cochichou Jorge.
Mas
quando Harry subia no parapeito da janela ouviu um guincho alto atrás dele, seguido imediatamente pela voz trovejante
do Tio Válter.
— ESSA CORUJA DESGRAÇADA!
— Eu
esqueci a Edwiges!
Harry
precipitou-se de volta ao quarto na hora em que a luz do corredor se acendeu,
agarrou a gaiola, correu à janela e passou-a a Rony. E estava subindo de volta
na cômoda quando o Tio Válter socou a porta destrancada e ela se escancarou.
Por
uma fração de segundo, o Tio Válter parou emoldurado pelo portal, em seguida
deixou escapar um urro como o de um touro enfurecido e atirou-se contra Harry
prendendo-o pelo tornozelo. Rony, Fred e Jorge agarraram os braços de Harry e o
puxaram com toda a força que tinham.
—
Petúnia! — berrou Tio Válter — Ele está fugindo! ELE ESTÁ FUGINDO!
Mas
os Weasley deram um puxão gigantesco e a perna de Harry se soltou da garra do
Tio Válter, e Harry já estava no carro e batia a porta.
— Pé na
tábua, Fred! — gritou Rony, e o carro disparou de repente em direção à lua.
Harry
não conseguia acreditar: estava livre. Baixou a janela, o ar da noite chicoteou
seus cabelos, e ele virou a cabeça para contemplar os telhados da Rua dos
Alfeneiros que desapareciam ao longe. Tio Válter, Tia Petúnia e Duda estavam
todos debruçados, estupefatos, na janela de Harry.
—
Vejo vocês no próximo verão! — gritou Harry.
Os
Weasley soltaram gargalhadas e Harry se acomodou no banco, sorrindo de orelha a
orelha.
—
Solte a Edwiges — pediu ele a Rony — Ela pode voar atrás do carro. Há séculos
que não tem uma chance de esticar as asas.
Jorge
passou o grampo a Rony e, um momento depois, Edwiges voou feliz pela janela e
ficou deslizando ao lado do carro como um fantasma.
— Então,
qual é a história, Harry? — perguntou Rony impaciente — Que aconteceu?
Harry
contou tudo sobre Dobby, o aviso que dera a Harry e o desastre com o pudim de
violetas. Fez-se um silêncio longo e assombroso quando ele terminou.
—
Muito esquisito — disse Fred finalmente.
—
Decididamente suspeito — concordou Jorge — E ele nem quis lhe dizer quem
estaria tramando tudo isso?
—
Acho que ele não podia — respondeu Harry — Eu lhe contei, todas as vezes que
ele estava quase deixando escapar alguma coisa, começava a bater a cabeça na
parede.
Harry
viu Fred e Jorge se entreolharem.
— O
quê, vocês acham que ele estava mentindo para mim? — perguntou Harry.
— Bom
— respondeu Fred — Vamos colocar a coisa assim...
—
Elfos domésticos têm poderes mágicos próprios, mas em geral não podem usá-los
sem a permissão dos donos. Calculo que o velho Dobby foi mandado para impedir
que você voltasse a Hogwarts. Deve ser a ideia que alguém faz de uma
brincadeira. Você pode imaginar alguém na escola que tenha raiva de você?
—
Claro — disseram Harry e Rony, juntos, na mesma hora.
—
Draco Malfoy — explicou Harry — Ele me odeia.
—
Draco Malfoy? — perguntou Jorge, virando-se — O filho de Lúcio Malfoy?
—
Deve ser, não é um nome muito comum, é? — disse Harry — Por quê?
— Já
ouvi papai falar nele. Era um grande seguidor de Você-Sabe-Quem.
— E
quando Você-Sabe-Quem desapareceu — acrescentou Fred, esticando-se para olhar
para Harry — Lúcio Malfoy voltou dizendo que nunca tivera intenção de fazer
nada. Um monte de bosta... Papai acha que ele fazia parte do círculo intimo de
Você-Sabe-Quem.
Harry
já ouvira esses comentários sobre a família Malfoy antes e não se surpreendeu
nem um pouco. Draco Malfoy fazia Duda Dursley parecer um menino bom, atencioso
e sensível.
— Não
sei se os Malfoy têm um elfo doméstico... — disse Harry.
—
Bom, seja quem for, os donos dele devem ter uma família de bruxos antiga e rica
— disse Fred.
— É,
mamãe sempre desejou que a gente tivesse um elfo doméstico para passar a roupa
— comentou Jorge — Mas só o que temos é um vampiro velho e incompetente no
sótão e gnomos por todo o jardim. Elfos domésticos combinam com grandes casas
senhoriais, castelos e lugares do gênero; você não toparia com um na nossa
casa...
Harry
estava calado. A julgar pelo fato de que Draco Malfoy em geral tinha do bom e
do melhor, a família devia rolar em dinheiro de bruxo. Ele podia até imaginar
Malfoy se pavoneando por uma grande casa senhorial. Mandar o criado da família
impedir Harry de voltar a Hogwarts também parecia bem o tipo de coisa que
Malfoy faria. Ele teria sido tão burro a ponto de levar Dobby a sério?
— Em
todo o caso, fico contente que a gente tenha vindo buscá-lo. Eu estava ficando
realmente preocupado quando você, não respondeu minhas cartas. Primeiro pensei
que tinha sido culpa de Errol...
— Quem
é Errol?
—
Nossa coruja. Ele é velhíssimo. Não seria a primeira vez que desmaia ao fazer
uma entrega. Então tentei pedir o Hermes emprestado...
—
Quem?
— A
coruja que mamãe e papai compraram para Percy quando ele foi nomeado monitor —
explicou Fred do banco da frente.
— Mas
Percy não quis me emprestar. Disse que precisava dele.
—
Percy anda se comportando de forma muito estranha este verão — disse Jorge
franzindo a testa — E tem despachado um bocado de cartas e passado um tempão
trancado no quarto... quero dizer, tem limite o número de vezes que a pessoa
pode querer dar brilho num distintivo de monitor... você está se afastando
demais para oeste, Fred — acrescentou, apontando a bússola no painel do carro.
Fred
corrigiu o rumo girando o volante.
— E
seu pai sabe que você está dirigindo o carro? — perguntou Harry, já adivinhando
a resposta.
— Ah,
não — disse Rony — Ele teve que trabalhar hoje à noite. Com sorte conseguiremos
guardar o carro de volta na garagem antes que mamãe note que saímos com ele.
—
Afinal, que é que seu pai faz no Ministério da Magia?
— Ele
trabalha no departamento mais monótono de todos — disse Rony — O do Controle do
Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas.
— O
quê?
—
Tratam do feitiço lançado em objetos feitos pelos trouxas, sabe, no caso de
acabarem indo parar numa loja ou numa casa de trouxas. Como no ano passado, uma
velha bruxa morreu e o seu serviço de chá foi vendido a uma loja de
antiguidades. Uma mulher trouxa comprou o serviço, levou para casa e tentou
servir chá aos amigos. Foi um pesadelo, papai ficou trabalhando depois do
expediente durante semanas.
— Que
aconteceu?
— O
bule de chá endoidou e espirrou chá fervendo para todo lado, e um homem foi
parar no hospital com as pinças de açúcar presas no nariz. Papai quase ficou
louco, só existe ele e um velho bruxo chamado Perkins no escritório, e os dois
tiveram que usar feitiços para apagar lembranças e outros tipos de recursos
para abafar o caso...
— É,
papai é doido por tudo que os trouxas produzem; nosso barraco de ferramentas é
cheio de coisas de trouxas. Ele desmonta um objeto, enfeitiça e torna a
montá-lo. Se ele revistasse a nossa casa teria que se dar ordem de prisão.
Mamãe fica danada.
—
Aquela é a estrada principal — disse Jorge, espiando para baixo pelo pára-brisa
— Estaremos lá em dez minutos... antes assim, já está clareando...
Uma
ligeira claridade rosada tornava-se visível na linha do horizonte a leste. Fred
fez o carro baixar um pouco, e Harry viu uma colcha de retalhos feita de campos
e arvoredos.
—
Moramos um pouquinho fora da cidade — disse Jorge — Ottery St. Catchpole...
O
carro voador continuava a descer. A auréola escarlate do sol agora brilhava por
entre as árvores.
—
Pousamos! — exclamou Fred quando, com um ligeiro solavanco, eles tocaram o
chão.
Tinham
pousado ao lado de garagem desmantelada num pequeno quintal, e Harry olhou pela
primeira vez para a casa de Rony. Parecia ter sido no passado um grande
chiqueiro de pedra, que foram acrescentando cômodos aqui e ali até ela atingir
os andares e era tão torta que parecia ser sustentada por mágica (o que, Harry lembrou a si mesmo, era
provável). Quatro ou cinco chaminés estavam encarrapitadas no alto do teto
vermelho. Em um letreiro torto enfiado no chão, próximo à entrada, lia-se A
TOCA. Em volta da porta de entrada encontrava-se uma variedade de botas de
borracha e um caldeirão muito enferrujado.
Várias
galinhas castanhas e gordas ciscavam pelo quintal.
— Não
é muita coisa — disse Rony.
— É
maravilhosa — comentou Harry feliz, pensando na Rua dos Alfeneiros.
Eles
desembarcaram do carro.
—
Agora vamos subir muito quietinhos — recomendou Fred — E esperar mamãe nos
chamar para tomar o café da manhã. Então Rony, você desce correndo e diz: “Mamãe, olhe só quem apareceu durante a
noite!” e ela vai ficar contente de ver o Harry e ninguém vai precisar
saber que saímos voando no carro.
—
Certo — concordou Rony — Vamos Harry, eu durmo no... no alto...
O
rosto de Rony ganhou um tom verde esquisito, seus olhos se fixaram na casa.
Os
outros três se viraram.
A
Sra. Weasley vinha atravessando o quintal, espantando galinhas, e para uma
senhora baixa, gorducha, de rosto bondoso, era incrível como estava parecendo
um tigre de dentes de sabre.
—
Ah!— exclamou Fred.
—
Essa não! — exclamou Jorge.
A
Sra. Weasley parou diante deles, as mãos nos quadris, olhando de uma cara
culpada para a outra. Vestia um avental florido com uma varinha saindo pela
borda do bolso.
—
Muito bem — disse ela.
— Bom
dia, mamãe — disse Jorge, no que ele audivelmente pensou que era uma voz
lampeira e cativante.
—
Vocês fazem ideia da preocupação que tive? — perguntou a Sra. Weasley num
sussurro letal.
—
Desculpe, mamãe, mas sabe, tínhamos que...
Os
três filhos da Sra. Weasley eram mais altos do que ela, mas encolheram à medida
que a raiva da mãe ia desabando sobre eles.
— As
camas vazias! Nenhum bilhete! O carro desaparecido... podia ter batido... louca
de preocupação... vocês se importaram?... nunca em minha vida... esperem até
seu pai voltar, nunca tivemos problemas assim com o Gui nem com o Carlinhos nem
com o Percy...
— O
Percy perfeito — resmungou Fred.
—
VOCÊS PODIAM SE MIRAR NO EXEMPLO DO PERCY! — berrou a Sra. Weasley, metendo o
dedo no peito de Fred — Vocês podiam ter morrido, podiam ter sido vistos,
podiam ter feito seu pai perder o emprego...
Parecia
que o sermão estava durando horas. A Sra. Weasley ficou rouca de tanto gritar
até se virar para Harry, que recuou.
—
Estou muito contente em vê-lo, Harry, querido — disse ela — Entre, venha tomar
café.
Deu
meia-volta e entrou em casa, e Harry, depois de lançar um olhar nervoso a Rony,
que acenou com a cabeça animando-o, acompanhou-a.
A
cozinha era pequena e um tanto apertada. Havia ao centro uma mesa de madeira
muito escovada e cadeiras, e Harry se sentou na beirada de uma, espiando à sua
volta.
Nunca
estivera numa casa de bruxos antes. O relógio na parede em frente só tinha um
ponteiro e nenhum número. Havia escritas em torno do mostrador coisas assim,
Hora de fazer chá, Hora de dar comida ás galinhas e Você está atrasado.
Havia
livros arrumados em fileiras triplas sobre o console da lareira, livros com
títulos do gênero “Enfeitice o seu
Próprio Queijo”, “O Feitiço no Forno” e “Festas
de um Minuto, um Encantamento!”. E, a não ser que os ouvidos de Harry o
enganassem, o velho rádio ao lado da pia acabara de anunciar que o próximo
programa era “Hora de Encantos, com a
popular cantora bruxa, Celestina Warbeck”.
A
Sra. Weasley batia pratos e panelas, preparando o café da manhã um pouco a
esmo, lançando olhares feios aos filhos, enquanto atirava salsichas na
frigideira. De vez em quando resmungava coisas como “não sei o que estavam pensando” e “eu nunca teria acreditado”.
— Não
estou culpando você, querido — ela tranquilizou Harry, servindo oito ou nove
salsichas no prato dele — Arthur e eu estivemos preocupados com você, também.
Ainda na outra noite estávamos falando que iríamos buscá-lo pessoalmente se
você não escrevesse a Rony até sexta-feira. Mas francamente — ela agora
acrescentava três ovos fritos às salsichas — Atravessar metade do país em um
carro ilegal, vocês podiam ter sido vistos...
Ela
acenou a varinha displicentemente em direção dos pratos na pia, que começaram a
se lavar, entrechocando-se de leve ao fundo.
—
Estava nublado, mamãe! — exclamou Fred.
—
Você fique de boca fechada enquanto come! — ralhou a Sra. Weasley.
—
Estavam matando ele de fome, mamãe! — disse Jorge.
— E
você! — disse a Sra. Weasley, mas foi com uma expressão ligeiramente mais
branda que ela começou a cortar e passar manteiga no pão para Harry.
Naquele
momento surgiu uma distração sob a forma de uma figura pequena, de cabelos
vermelhos, que vestia uma longa camisola, e apareceu na cozinha, deu um
gritinho e saiu correndo outra vez.
—
Gina — disse Rony baixinho para Harry — Minha irmã. Andou falando em você o
verão inteiro.
— É,
ela vai querer o seu autógrafo, Harry — disse Fred com um sorriso, mas viu que
a mãe o olhava e baixou o rosto para o prato, calando-se.
Nada
mais foi dito até os quatro pratos ficarem limpos, o que levou um tempo
surpreendentemente breve.
—
Putz, estou cansado — bocejou Fred, pousando finalmente a faca e o garfo — Acho
que vou me deitar e...
— Não
vai, não — retrucou a Sra. Weasley — A culpa foi sua se ficou a noite toda
acordado. Você vai desgnomizar o jardim para mim; eles estão ficando
completamente rebeldes outra vez.
— Ah,
mamãe...
— E
vocês dois — disse ela, olhando feio para Rony e Fred — Você pode ir se deitar,
querido — acrescentou dirigindo-se a Harry — Você não pediu a eles para voarem
naquele carro infernal.
Mas
Harry, que se sentia completamente acordado, disse depressa:
— Vou
ajudar o Rony. Nunca vi fazer uma desgnomização...
— É
muito gentil de sua parte, querido, mas é trabalho monótono — disse a Sra.
Weasley — Agora vamos ver o que Lockhart tem a dizer sobre o assunto.
Ela
puxou um livro pesado de cima do console.
Jorge
gemeu.
—
Mamãe, nós sabemos como desgnomizar um jardim.
Harry
espiou a capa do livro da Sra. Weasley. Escritas na capa em arabescos dourados
havia as palavras Guia de Pragas Domésticas de Gilderoy Lockhart. Havia na capa
uma grande foto de um bruxo bonitão de cabelos louros ondulados e olhos azuis
muito vivos. Como sempre no mundo dos bruxos, a foto se mexia; o bruxo, que
Harry supunha que fosse o tal Gilderoy Lockhart, não parava de piscar, muito
animado, para todos.
— Ah,
ele é um assombro — disse a mãe — Conhece bem as pragas domésticas. É um livro
maravilhoso...
—
Mamãe tem um xodó por ele — disse Fred num sussurro muito audível.
— Não
seja ridículo Fred — retorquiu a Sra. Weasley, o rosto muito corado — Está bem,
se vocês acham que sabem mais do que Lockhart, podem ir fazer o trabalho, mas
tenho pena de vocês se tiver sobrado um único gnomo naquele jardim quando eu
sair para inspecioná-lo.
Aos
bocejos e resmungos, os Weasley saíram se arrastando, com Harry em sua cola. O
jardim era grande e, aos olhos de Harry, exatamente como um jardim devia ser.
Os Dursley não teriam gostado: havia muito mato e a grama precisava ser
aparada, mas havia árvores nodosas a toda volta dos muros, plantas que Harry
nunca vira saindo de cada canteiro e um grande tanque de águas verdosas cheio
de sapos.
— Os
trouxas também têm gnomos de jardim, sabe — Harry contou a Rony quando cruzavam
o gramado.
—
Sei, já vi aquelas coisas que eles acham que são gnomos — disse Rony, com o
corpo dobrado e a cabeça enfiada num pé de peônias — Como papais noéis
baixinhos e gordinhos segurando varas de pescar...
Ouviram
um ruído de alguém se debatendo violentamente, o pé de peônia estremeceu e Rony
se levantou.
—
Isto é um gnomo — disse sério.
— Tire as mãos de cima de mim! Tire as mãos de
cima de mim! — guinchou o gnomo.
Decerto
não parecia nada com um Papai Noel. Era pequeno, a pele parecia um couro, a
cabeçorra cheia de calombos e careca, igualzinha a uma batata. Rony segurou-o à
distância enquanto o gnomo o chutava com os pezinhos calosos; o garoto o
agarrou pelos tornozelos e o virou de cabeça para baixo.
—
Isto é o que a gente tem que fazer — explicou.
E
ergueu o gnomo acima da cabeça (“Tire as
mãos de mim!”) e começou rodá-lo em grandes círculos como se fosse laçar um
boi. Ao ver a cara de espanto de Harry, Rony acrescentou:
—
Isto não machuca, você só precisa deixá-los bem tontos para não poderem
encontrar o caminho de volta para as tocas de gnomos.
Ele
soltou os tornozelos do gnomo que voou uns seis metros para o alto e caiu com
um baque surdo no campo do outro lado da sebe.
—
Lamentável — exclamou Fred — Aposto que posso atirar o meu bem além daquele
toco de árvore.
Harry
aprendeu depressa a não sentir muita pena dos gnomos. Resolveu simplesmente
deixar cair por cima da sebe o primeiro que pegou, mas o gnomo, pressentindo
fraqueza, enterrou os dentes afiados como navalhas no seu dedo, e Harry teve
muito trabalho para sacudi-lo longe, até que...
—
Uau, Harry, esse deve ter caído a uns quinze metros...
O ar
não tardou a ficar coalhado de gnomos voadores.
—
Está vendo, eles não são muito inteligentes — disse Jorge, agarrando cinco ou
seis gnomos de uma vez — Na hora que descobrem que está havendo uma
desgnomização, aparecem correndo para dar uma espiada. Era de se esperar que já
tivessem aprendido a ficar quietos.
Logo
os gnomos atirados no campo começaram a se afastar em uma linha descontínua, os
ombrinhos curvados.
—
Eles vão voltar — disse Rony enquanto observavam os gnomos desaparecerem na
sebe do outro lado do campo — Eles adoram isso aqui... Papai é muito mole com
eles, acha que são engraçados...
Naquele
instante, a porta de entrada bateu.
— Ele
voltou! — disse Jorge — Papai está em casa!
Os
garotos atravessaram correndo o jardim e entraram em casa.
O Sr.
Weasley estava largado numa cadeira da cozinha, sem óculos e de olhos fechados.
Era um homem magro, começando a ficar careca, mas o pouco cabelo que tinha era
ruivo como o dos filhos. Usava vestes verdes e longas, que estavam empoeiradas
e amarrotadas da viagem.
— Que
noite! — murmurou, tateando à procura do bule de chá enquanto todos se sentaram
à sua volta — Nove batidas[1].
Nove! E o velho Mundungo Fletcher ainda tentou me lançar um feitiço quando eu
estava de costas...
[1] Batidas, nesse caso, são batidas policiais que o Ministério executa para descobrir infratores. Algumas vezes agem por meio de denúncias, outras pelos detectores de magia do Ministério que verificam a existência das ocorrências.
O Sr.
Weasley tomou um longo gole de chá e suspirou.
—
Encontrou alguma coisa, papai? — perguntou Fred ansioso.
— Só
encontrei umas chaves para portas que encolhem e uma chaleira que morde —
bocejou o Sr. Weasley — Houve umas ocorrências feias, mas não foram no meu
departamento. Mortlake foi levado para interrogatório sobre umas doninhas muito
esquisitas, mas isto foi com a Comissão de Feitiços Experimentais, graças a
Deus...
— Mas
por que alguém ia se dar o trabalho de fazer chaves que encolhem? — perguntou
Jorge.
— Só
para aborrecer os trouxas — suspirou o Sr. Weasley — Vendem a eles uma chave
que encolhe até desaparecer, de modo que nunca conseguem encontrá-la quando
precisam...é claro que é muito difícil processar alguém porque nenhum trouxa
vai admitir que a chave dele não pára de encolher, insistem que vivem a perdê-las.
Deus os abençoe, eles vão a extremos para fingir que magia não existe, mesmo
que esteja no nariz deles... mas as coisas que o nosso pessoal anda
enfeitiçando, vocês não iriam acreditar...
—
COMO CARROS, POR EXEMPLO?
A
Sra. Weasley aparecera, empunhando um longo atiçador como uma espada. Os olhos
do Sr. Weasley se arregalaram. Ele olhou com cara de culpa para a mulher.
—
Carros, Molly, querida?
— É
Arthur, carros — disse a Sra. Weasley, os olhos faiscando — Imagine só um bruxo
comprar um carro velho e enferrujado e dizer à mulher que só quer desmontá-lo
para ver como funciona, quando na realidade o enfeitiçou para fazê-lo voar.
O Sr.
Weasley piscou os olhos.
—
Bom, querida, acho que você vai descobrir que ele estava agindo dentro da lei
quando fez isso, mesmo que... ah... tivesse agido melhor se, hum, se tivesse
contado a verdade à mulher... há um furo na lei, você vai descobrir... desde
que ele não tivesse intenção de voar no carro, o fato de que o carro poderá
voar não...
—
Arthur Weasley, você providenciou para que houvesse um furo nessa lei quando a
escreveu! — gritou a Sra. Weasley — Só para você poder continuar a se distrair
com aquela lixaria dos trouxas no seu barraco! E para sua informação, Harry
chegou hoje de manhã naquele carro que você não tinha intenção de fazer voar!
—
Harry? — exclamou o Sr. Weasley sem entender — Que Harry?
Ele
olhou à volta, viu Harry e deu um salto.
—
Deus do céu, é Harry Potter? Muito prazer em conhecê-lo. Rony tem falado tanto
em...
— Os
seus filhos foram naquele carro até a casa de Harry e voltaram de lá ontem á
noite!— gritou a Sra. Weasley — Que é que você me diz disso, hein?
—
Vocês fizeram mesmo isso? — perguntou o Sr. Weasley, ansioso — E o carro voou
bem? Eu... eu quero dizer — gaguejou, enquanto voavam faíscas dos olhos da Sra.
Weasley — Que... isso foi muito errado, meninos... muito errado mesmo...
—
Vamos deixar eles discutirem — Rony sussurrou para Harry quando a Sra. Weasley
inchou como um sapo-boi — Vamos, vou lhe mostrar o meu quarto.
Os
dois saíram discretamente da cozinha e seguiram por um corredor estreito até
uma escada irregular, que subia em ziguezague pela casa. No terceiro patamar,
havia uma porta entreaberta. Harry vislumbrou dois grandes olhos castanhos e
vivos que o espiavam antes da porta fechar com um clique.
—
Gina — explicou Rony — Você não sabe como é estranho ela estar tão tímida.
Normalmente ela nunca para de falar...
Eles
subiram mais dois lances e chegaram a uma porta com a tinta descascada e uma
pequena placa onde se lia “Quarto do Ronald”.
Harry
entrou, a cabeça quase tocando no teto inclinado, e piscou os olhos. Era como
entrar num forno. Quase tudo no quarto de Rony era de um tom violentamente
laranja: a colcha da cama, as paredes e até o teto. Então Harry percebeu que
Rony tinha coberto praticamente cada centímetro do papel de parede gasto com
pôsteres dos mesmos sete bruxos e bruxas, todos usando vestes laranja vivo,
segurando vassouras e acenando com animação.
— O
seu time de Quadribol? — perguntou Harry.
— O
Chudley Cannons — disse Rony, apontando para a colcha laranja, que exibia um
brasão com dois enormes O pretos e uma bala de canhão em movimento — Nono lugar
na divisão.
Os
livros escolares de feitiçaria que pertenciam a Rony estavam empilhados de
qualquer jeito num canto, junto com um monte de histórias em quadrinhos que
pareciam conter a mesma tira, As Aventuras de Martin Miggs, o Trouxa Pirado.
A
varinha de condão de Rony estava em cima de um aquário cheio de ovas de rã, no
peitoril da janela, ao lado do seu rato cinzento e gordo, o Perebas, que tirava
um cochilo numa nesga de sol.
Harry
pulou por cima de um baralho de cartas auto embaralhantes que estava no chão e
espiou pela janelinha. No campo, lá embaixo, ele viu uma turma de gnomos que
voltavam sorrateiros, um a um, pela cerca dos Weasley. Depois virou-se para
olhar Rony, que o observava quase nervoso, como se esperasse ouvir sua opinião.
— É
meio pequeno — disse Rony depressa — Nada como aquele quarto que você tinha na
casa dos trouxas. E estou bem debaixo do vampiro no sótão, sempre batendo nos
canos e gemendo...
Mas
Harry, com um grande sorriso, disse:
—
Esta é a melhor casa que já visitei.
As
orelhas de Rony ficaram vermelhas.
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