— CAPÍTULO DEZESSETE —
O Herdeiro De Slytherin
HARRY SE VIU PARADO NO
FIM de uma câmara muito comprida e mal iluminada. Altas colunas de pedra
entrelaçadas com cobras em relevo sustentavam um teto que se perdia na
escuridão, projetando longas sombras negras na luz estranha e esverdeada que
iluminava o lugar.
O
coração batendo muito depressa, Harry ficou escutando o silêncio hostil. Será
que o basilisco estaria à espreita
num canto sombrio, atrás de uma coluna? E onde estaria Gina? Ele puxou a
varinha e avançou por entre as colunas serpentinas. Cada passo cauteloso ecoava
alto nas paredes sombreadas. Manteve os olhos semicerrados, pronto para
fechá-los depressa ao menor sinal de movimento. As órbitas ocas das cobras de
pedra pareciam segui-lo. Mais de uma vez, com um aperto no estômago, ele pensou
ter surpreendido uma delas se mexendo.
Então,
quando emparelhou com o último par de colunas, uma estátua alta como a própria
Câmara apareceu contra a parede do fundo. Harry teve que esticar o pescoço para
ver o rosto gigantesco lá no alto. Era antigo e simiesco, com uma barba longa e
rala que caía quase até a barra das vestes esvoaçantes de um bruxo de pedra,
onde havia dois pés cinzentos enormes apoiados no chão liso da Câmara. E entre
os pés, de bruços, jazia um pequeno vulto de cabelos flamejantes vestido de
negro.
—
Gina! — murmurou Harry, correndo para ela e se ajoelhando — Gina... não esteja
morta... por favor, não esteja morta... — ele largou a varinha de lado, segurou
Gina pelos ombros e virou-a. Seu rosto estava branco e frio como o mármore, mas
tinha os olhos fechados, portanto não estava petrificada. Então devia estar...
— Gina, por favor, acorde — murmurou Harry desesperado, sacudindo-a.
A
cabeça de Gina balançou desamparada de um lado para o outro.
— Ela
não vai acordar — disse uma voz indulgente.
Harry
se sobressaltou e se virou ainda de joelhos.
Um
garoto alto, de cabelos negros, o observava encostado à coluna mais próxima.
Tinha os contornos estranhamente borrados, como se Harry o estivesse vendo através
de uma janela embaçada. Mas não havia como se enganar...
—
Tom... Tom Riddle?
Riddle
confirmou com a cabeça, sem tirar os olhos do rosto de Harry.
— Que
é que você quer dizer com “ela não vai
acordar”? — perguntou desesperado — Ela não está... não está...?
—
Ainda está viva — disse Riddle — Mas por um fio.
Harry
arregalou os olhos para ele. Tom Riddle estivera em Hogwarts cinqüenta anos
atrás, contudo achava-se ali parado, envolto por uma luz estranha e enevoada,
com os seus exatos dezesseis anos.
— Você
é um fantasma? — perguntou Harry incerto.
— Uma
lembrança — disse Riddle com suavidade — Conservada em um diário durante cinquenta
anos.
E
apontou para o chão perto dos enormes pés da estátua. Caído ali encontrava-se o
pequeno livro preto que Harry encontrara no banheiro da Murta Que Geme. Por um
segundo, ele se perguntou como aquilo chegara ali, mas havia assuntos mais
urgentes a tratar.
—
Você tem que me ajudar, Tom — disse Harry, levantando a cabeça de Gina outra
vez — Temos que tirá-la daqui. Tem um basilisco... não sei onde está, mas pode
chegar a qualquer momento... por favor, me
ajude...
Riddle
não se mexeu.
Harry,
suando, conseguiu levantar metade do corpo de Gina do chão e se curvou para
apanhar de novo sua varinha. Mas a varinha desaparecera.
— Você
viu...
Ele
ergueu a cabeça. Riddle continuava a observá-lo, girava a varinha de Harry
entre os dedos compridos.
—
Obrigado — disse Harry, estendendo a mão para a varinha.
Um
sorriso encrespou os cantos da boca de Riddle. Continuava a encarar Harry, girando
distraidamente a varinha.
—
Escute aqui — disse Harry com urgência, seus joelhos cedendo sob o peso morto
de Gina — Temos que ir embora! Se o basilisco chegar.
— Ele
não virá até ser chamado — disse Riddle calmamente.
Harry
depositou Gina outra vez no chão, incapaz de continuar a sustentá-la.
— Que
quer dizer? Olhe me dê a minha varinha, posso precisar dela...
O
sorriso de Riddle se alargou.
—
Você não vai precisar dela.
Harry
encarou-o.
— Que
é que você quer dizer, não vou...?
—
Esperei muito tempo por isto, Harry Potter. Por uma chance de vê-lo. De lhe
falar.
—
Olhe — disse Harry perdendo a paciência — Acho que você não está entendendo.
Estamos na Câmara Secreta. Podemos conversar depois...
—
Vamos conversar agora — disse Riddle, ainda sorrindo, e guardando a varinha no
bolso.
Harry
encarou-o. Havia alguma coisa muito estranha acontecendo ali...
—
Como foi que Gina ficou assim? — perguntou com a voz lenta.
—
Bom, essa é uma pergunta interessante — disse Riddle em tom agradável — É uma
história bastante comprida. Suponho que a razão de Gina Weasley estar assim é
porque abriu o coração e contou todos os seus segredos para um estranho
invisível.
— Do
que é que você está falando?
— Do diário. Do meu diário. A pequena Gina anda escrevendo nele há meses, me contou
suas tristes, preocupações e mágoas, como os irmãos implicavam com ela, como
teve que vir para a escola com vestes e livros de segunda mão, como... — os
olhos de Riddle brilharam — Como achava que o bom, o famoso, o importante Harry
Potter jamais iria gostar dela...
Todo
o tempo que falava, os olhos de Riddle não desgrudavam do rosto de Harry. Havia
neles uma expressão quase faminta.
— É
muito chato ter que ouvir os probleminhas bobos de uma garota de onze anos. Mas
fui paciente. Respondi. Fui simpático, gentil. Gina simplesmente me adorou. “Ninguém nunca me compreendeu como você;
Tom... é uma alegria ter este diário para fazer confidências... é como ter um
amigo portátil que se leva para todo lado no bolso...”
Riddle
deu uma risada aguda e fria que não combinava com ele. Fez os cabelos na nuca
de Harry se arrepiarem.
—
Ainda que seja eu a dizer, Harry, sempre fui capaz de encantar as pessoas de
quem precisei. Então Gina me revelou sua alma, e por acaso essa alma era
exatamente o que eu queria... fui ficando cada vez mais forte com a dieta dos
seus medos mais arraigados e segredos mais íntimos. Fiquei poderoso, muito mais
poderoso do que a pequena Srta. Weasley. Suficientemente poderoso para começar
a alimentá-la com alguns dos meus segredos, e começar a instilar nela um pouco
da minha alma...
— Do
que é que você está falando? — perguntou Harry, que sentia boca muito seca.
—
Você ainda não adivinhou, Harry Potter? — disse Riddle baixinho — Gina
Weasley abriu a Câmara Secreta. Ela
estrangulou os galos da escola e escreveu mensagens ameaçadoras nas paredes. Ela açulou a serpente de Slytherin
contra quatro sangues-ruins e a gata daquela aberração do Filch.
— Não
— sussurrou Harry.
— Sim
— confirmou Riddle calmamente — É claro que ela não sabia o que estava fazendo
no inicio. Era muito divertido. Eu gostaria que você tivesse visto as anotações
que a garota fez no diário depois... ficaram muito mais interessantes... “Querido Tom” — recitou ele, observando
a expressão horrorizada de Harry — “Acho
que estou perdendo a memória. Tem penas de galos nas minhas vestes e não sei
como foram parar lá. Querido Tom, não me lembro do que fiz na noite das Bruxas,
mas um gato foi atacado e a frente da minha roupa está suja de tinta. Querido
Tom, Percy me diz o tempo todo que estou pálida e que estou diferente do que
era. Acho que ele suspeita de mim... houve outro ataque hoje e não sei onde é
que eu estava. Tom, que é que eu vou fazer? Acho que estou ficando maluca...
acho que sou a pessoa que está atacando todo mundo, Tom!”
Os punhos
de Harry se fecharam, as unhas se enterraram nas palmas das mãos.
—
Levou muito tempo para a burrinha da Gina parar de confiar no diário —
continuou Riddle — Mas ela finalmente desconfiou e tentou jogá-lo fora. E foi
aí que você entrou, Harry. Você o encontrou e eu não poderia ter me sentido
mais satisfeito. De todas as pessoas
que podiam tê-lo apanhado, foi você, exatamente a pessoa que eu estava mais
ansioso para conhecer...
— E
para que você queria me conhecer? — perguntou Harry.
A
raiva corria pelas veias dele, e precisou de muito esforço para manter a voz
firme.
—
Bem, veja, Gina me contou tudo sobre você, Harry. Toda a sua história fascinante — os olhos de Riddle
percorreram a cicatriz em forma de raio na testa de Harry e sua expressão se
tornou mais voraz — Senti que precisava descobrir mais a seu respeito,
conversar com você, conhecer você, se pudesse. Então, decidi lhe mostrar a
minha famosa captura daquele bobalhão do Hagrid para ganhar sua confiança...
—
Hagrid é meu amigo — disse Harry, a voz trêmula — E foi você que o incriminou,
não foi? Pensei que você tivesse se enganado, mas...
Riddle
deu aquela risada aguda outra vez.
— Foi
a minha palavra contra a de Hagrid, Harry. Bem, você pode imaginar o que
pareceu ao velho Armando Dippet. De um lado, Tom Riddle, pobre, mas brilhante,
órfão, mas muito corajoso, monitor, aluno modelo... do outro lado, o trapalhão
do Hagrid, que vivia se metendo em encrencas, tentava criar filhotes de
lobisomens debaixo da cama, fugia para a Floresta Proibida para brigar com
trasgos... mas admito que até eu mesmo fiquei surpreso que o plano tivesse
funcionado tão bem. Achei que alguém devia perceber que Hagrid não poderia ser
o Herdeiro de Slytherin. Eu gastara cinco anos inteiros para descobrir tudo que
podia sobre a Câmara Secreta e encontrar a entrada... como se Hagrid tivesse
cabeça, ou poder para tanto! Só o professor de Transfiguração, Dumbledore,
pareceu pensar que Hagrid era inocente. E convenceu Dippet a conservar Hagrid
aqui e treiná-lo para guarda-caça. E, acho que ele talvez tivesse adivinhado...
Dumbledore nunca pareceu gostar de mim tanto quanto os outros professores...
—
Aposto que Dumbledore não se deixou enganar por você — disse Harry com os
dentes cerrados.
—
Bem, não há dúvida de que ele ficou me vigiando de maneira incômoda depois que
Hagrid foi expulso — disse Riddle indiferente — Percebi que não seria seguro
tornar a abrir a Câmara enquanto ainda estivesse na escola. Mas não ia
desperdiçar os longos anos que passei procurando por ela. Resolvi deixar aqui
um diário, preservando o meu eu de dezesseis anos em suas páginas, de modo que
um dia, com sorte, eu pudesse conduzir alguém pelas minhas pegadas e terminar a
nobre tarefa de Salazar Slytherin.
—
Bem, você não a terminou — disse Harry em tom de vitória — Desta vez ninguém
morreu, nem mesmo a gata. Dentro de algumas horas a Poção de Mandrágoras estará
pronta e todos que foram petrificados voltarão à normalidade outra vez...
—
Acho que ainda não lhe disse — falou Riddle em voz baixa — Que matar sangues ruins
não me interessa mais. Há muitos meses agora, meu novo alvo tem sido... você.
Harry
encarou-o.
—
Imagine a raiva que tive quando na vez seguinte que alguém abriu o meu diário,
era a Gina que estava me escrevendo e não você. Ela o viu com o diário, sabe, e
entrou em pânico. E se você descobrisse como usá-lo, e eu repetisse todos os
segredos dela para você? E se, o que seria pior, eu contasse a você quem tinha
andado estrangulando os galos? Então a boba da pirralha esperou o seu
dormitório ficar deserto e roubou o diário. Mas eu sabia o que precisava fazer.
Tinha ficado claro para mim que você estava na pista do Herdeiro de Slytherin.
Por tudo que Gina tinha me contado, eu sabia que você não mediria esforços para
solucionar o mistério, principalmente se um dos seus melhores amigos fosse
atacado. E Gina tinha me contado que a escola inteira estava alvoroçada porque
você sabia falar a Língua das Cobras... enfim, fiz Gina escrever o bilhete de
adeus na parede e descer aqui para esperar. Ela resistiu, chorou e ficou muito
chateada. Mas não resta nela muita vida... ela transferiu muita força para o
diário, para mim. O suficiente para eu poder finalmente deixar aquelas
páginas... estive esperando você aparecer desde que chegamos aqui. Sabia que
você viria. Tenho muitas perguntas a lhe fazer, Harry Potter.
— Por
exemplo? — disse Harry com rispidez, os punhos ainda fechados.
— Bem
— disse Riddle, dando um sorriso agradável — Como foi que você, um garoto
magricela, sem nenhum talento mágico excepcional, conseguiu derrotar o maior
bruxo de todos os tempos? Como foi que você escapou apenas com uma cicatriz,
enquanto os poderes do Lord Voldemort foram destruídos?
Surgia
agora em seus olhos vorazes um brilho estranho e avermelhado.
— Que
lhe interessa como escapei? — perguntou Harry lentamente — Voldemort foi depois
do seu tempo...
—
Voldemort — disse Riddle com indulgência — É o meu passado, presente e futuro,
Harry Potter...
E,
tirando a varinha de Harry do bolso, ele escreveu no ar três palavras
cintilantes:
TOM SERVOLO RIDDLE
Em
seguida, agitou a varinha uma vez e as letras do seu nome se rearrumaram:
EIS LORD VOLDEMORT
—
Entendeu? Era um nome que eu já estava usando em Hogwarts, só para os meus
amigos mais íntimos, é claro. Você acha que eu ia usar o nome nojento do meu
pai trouxa para sempre? Eu, em cujas veias corre o sangue do próprio Salazar
Slytherin, pelo lado de minha mãe? Eu, conservar o nome de um trouxa sujo e
comum, que me abandonou mesmo antes de eu nascer, só porque descobriu que minha
mãe era bruxa? Não, Harry, criei para mim um nome novo, um nome que eu sabia
que os bruxos de todo o mundo um dia teriam medo de pronunciar, quando eu me
tornasse o maior bruxo do mundo.
O
cérebro de Harry parecia ter enguiçado. Chocado, ele fixava Riddle, o garoto
órfão que crescera para assassinar seus pais e tantos outros...
Finalmente
forçou-se a falar.
— Não
é — sua voz baixa cheia de ódio.
— Não
é o quê? — perguntou Riddle com rispidez.
— Não
é o maior bruxo do mundo — disse Harry, respirando depressa — Desculpe desapontá-lo,
e tudo o mais, mas o maior bruxo do mundo é Alvo Dumbledore. Todos dizem isso.
Mesmo quando você era poderoso, você não se atreveu a tentar dominar Hogwarts.
Dumbledore viu através de você quando frequentou a escola e ainda o amedronta
hoje, onde quer que você se esconda...
O
sorriso desaparecera da cara de Riddle, substituído por um olhar muito
sinistro.
—
Dumbledore foi afastado do castelo meramente pela minha lembrança — sibilou.
— Ele
não está tão afastado quanto você poderia pensar! — retorquiu Harry. Falava sem
pensar, querendo apavorar Riddle, desejando mais, do que acreditando que o que
dizia fosse verdade...
Riddle
abriu a boca, mas congelou. Ouviram uma música vinda de algum lugar.
Riddle
se virou para percorrer com os olhos a câmara vazia. A música se tornava cada
vez mais alta. Era misteriosa, de dar arrepios, sobrenatural, fez os cabelos de
Harry ficarem em pé e o seu coração parecer inchar até dobrar de tamanho. Então
a música atingiu tal volume que Harry a sentiu vibrar dentro do peito, e chamas
irromperam no alto da coluna mais próxima.
Um
pássaro vermelho do tamanho de um cisne apareceu, cantando aquela música
esquisita para a abóbada do teto. Tinha uma cauda dourada e faiscante, comprida
como a de um pavio e garras douradas e reluzentes que seguravam um embrulho
esfarrapado. Um segundo depois, o pássaro voava direto para Harry. Deixou cair
a seus pés o embrulho que carregava, depois pousou pesadamente em seu ombro.
Quando fechou as asas enormes, Harry ergueu os olhos e viu que tinha um bico
dourado, longo e afiado e olhos redondos e escuros.
O
pássaro parou de cantar. Sentou-se imóvel e cálido junto à bochecha de Harry,
olhando com firmeza para Riddle.
— É
uma fênix... — disse Riddle, encarando-o de volta com um olhar astuto.
—
Fawkes? — sussurrou Harry, e sentiu as garras douradas do pássaro apertarem
gentilmente seu ombro.
— E
isso — disse Riddle, agora examinando o embrulho esfarrapado que Fawkes deixara
cair — Seria o velho Chapéu Seletor...
E
era. Remendado, esfiapado, sujo, o chapéu jazia imóvel aos pés de Harry.
Riddle
começou a rir outra vez. Riu tanto que a Câmara ecoou com o seu riso, como se
dez Riddles estivessem rindo ao mesmo tempo...
—
Isto é o que Dumbledore manda ao seu defensor! Um pássaro canoro e um velho
chapéu! Você se sente cheio de coragem, Harry Potter? Sente-se seguro agora?
Harry
não respondeu. Talvez não entendesse qual era a utilidade de Fawkes ou do
Chapéu Seletor, mas já não estava sozinho e esperou com crescente coragem
Riddle parar de rir.
— Aos
negócios, Harry — falou Riddle, ainda com um largo sorriso — Duas vezes, no seu
passado, ou no meu futuro, nós nos encontramos. E duas vezes não consegui
matá-lo. Como foi que você sobreviveu? Conte-me tudo. Quanto mais tempo falar —
acrescentou brandamente — Mais tempo continuará vivo.
Harry
começou a pensar depressa, avaliando suas chances. Riddle tinha a varinha. Ele,
Harry, tinha Fawkes e o Chapéu Seletor, nenhum dos quais adiantaria muito em um
duelo. A situação parecia ruim, não havia dúvida... mas quanto mais tempo
Riddle ficasse ali, mais depressa a vida de Gina se esgotava... entrementes,
Harry reparou de repente que os contornos de Riddle estavam ficando mais
nítidos, mais sólidos... se tinha que haver uma luta entre ele e Riddle, quanto
mais cedo melhor.
—
Ninguém sabe por que você perdeu seus poderes ao me atacar — disse Harry
abruptamente — Nem mesmo eu sei. Mas sei por que você não pôde me matar. Foi
porque minha mãe morreu para me salvar. Minha mãe trouxa e comum — acrescentou,
sacudindo-se de raiva reprimida — Ela impediu você de me matar. E eu vi o seu
eu verdadeiro. Vi no ano passado. Você está uma ruína. Mal se mantém vivo. Foi
isso que você ganhou com todo o seu poder. Você vive escondido. Você é feio,
você é nojento...
O
rosto de Riddle se contorceu. Então ele deu um horrível sorriso amarelo.
—
Então, sua mãe morreu para salvar você. É, isso é um contrafeitiço poderoso.
Estou entendendo agora... afinal de contas você não tem nada especial. Há uma
estranha semelhança entre nós. Até você deve ter notado. Nós dois somos
mestiços, órfãos, criados por trouxas. Provavelmente, desde o grande Slytherin,
somos os dois falantes da Língua das Cobras a frequentar Hogwarts. E até nos
parecemos fisicamente... mas no final, foi um simples acaso que salvou você de
mim. Era só o que eu queria saber.
Harry
esperou tenso que Riddle erguesse a varinha. Mas o sorriso enviesado de Riddle
voltou a se alargar.
—
Agora, Harry, vou lhe dar uma liçãozinha. Vamos medir os poderes do Lord
Voldemort, Herdeiro de Slytherin, com os do famoso Harry Potter, e as melhores
armas que Dumbledore pôde lhe dar...
Ele
lançou um olhar divertido a Fawkes e ao Chapéu Seletor, em seguida se afastou.
Harry,
o medo se espalhando pelas pernas dormentes, observou Riddle parar entre as
altas colunas e olhar para o rosto de pedra de Slytherin, muito acima dele na
obscuridade.
Riddle
abriu bem a boca e sibilou, mas Harry entendeu o que ele estava dizendo:
—
Fale comigo, Slytherin, o Maior dos Quatro de Hogwarts.
Harry
se virou para olhar a estátua, Fawkes balançava em seu ombro.
O
gigantesco rosto de pedra de Slytherin se mexeu. Aterrorizado, Harry viu sua
boca abrir, cada vez mais, e formar um enorme buraco negro. E alguma coisa
estava se mexendo dentro da boca da estátua. Alguma coisa começava a escorregar
para fora de suas profundezas.
Harry
recuou até bater na escura parede da Câmara e, ao fechar os olhos com força,
sentiu a asa de Fawkes roçar sua bochecha quando o pássaro levantou voo. Harry
queria gritar “Não me deixe!”, mas
que chance tinha uma fênix contra o rei das serpentes?
Algo
descomunal bateu no piso de pedra da Câmara. Harry sentiu-o trepidar, ele sabia
o que estava acontecendo, sentia, podia quase ver a cobra gigantesca se
desenrolar para fora da boca de Slytherin. Então ouviu a voz sibilante de
Riddle:
—
Mate ele.
O
basilisco estava vindo em sua direção, ele ouviu aquele corpo gigantesco
deslizar pesadamente pelo chão empoeirado.
Com
os olhos ainda fechados, Harry começou a correr as cegas para os lados, as mãos
estendidas à frente, tateando o caminho, Voldemort dava risadas... Harry
tropeçou. Caiu com força no chão e sentiu gosto de sangue, a cobra estava a uma
pequena distância, ele a ouviu se aproximar...
Logo
acima dele houve um som alto, explosivo e aquoso e então alguma coisa pesada bateu
em Harry com tanto ímpeto que o esmagou contra a parede. Esperando ter o corpo
atravessado por presas ele ouviu mais sibilos raivosos, alguma coisa irrompendo
por entre os pilares... ele não agüentou, abriu os olhos o suficiente para
espreitar o que estava acontecendo.
A
enorme cobra, de um verde luzidio e venenoso, grossa como um tronco de
carvalho, erguia-se no ar e sua enorme cabeça chanfrada balançava bêbeda entre
as colunas. Trêmulo e pronto a fechar os olhos se a cobra se virasse, Harry viu
o que distraíra a cobra. Fawkes sobrevoava sua cabeça e o basilisco tentava
abocanhá-la, furioso, com as presas finas como sabres...
Fawkes
mergulhou. Seu longo bico dourado desapareceu de vista e uma chuva repentina de
sangue escuro salpicou o chão. O rabo da cobra chicoteou, errando Harry por
pouco e, antes que o garoto pudesse fechar os olhos, ela se virou, o garoto
olhou direto para a sua cara e viu que os olhos, os dois olhos bulbosos e
amarelos, tinham sido furados pela fênix; o sangue escorria no chão e a cobra
espumava de dor.
—
NÃO! — Harry ouviu Riddle gritar — DEIXE O PÁSSARO! DEIXE O PÁSSARO! O GAROTO
ESTÁ ATRÁS DE VOCÊ! VOCÊ AINDA PODE FAREJÁ-LO! MATE-O!
A
cobra cega balançou, confusa, ainda letal. Fawkes descrevia círculos em volta
de sua cabeça, cantando aquela música estranha, atacando aqui e ali o nariz
escamoso da cobra, enquanto o sangue jorrava dos seus olhos destruídos.
— Me
ajudem, me ajudem — murmurou Harry — Alguém, qualquer um...
O
rabo da cobra voltou a chicotear o chão. Harry se abaixou. Uma coisa macia
bateu em seu rosto. O basilisco varrera o Chapéu Seletor para os braços de
Harry. O garoto agarrou-o. Era só o que lhe restava, sua única chance. Enfiou-o
na cabeça e se atirou ao comprido no chão quando o rabo do basilisco tornou a
golpear passando por cima dele.
“Me ajudem, me ajudem”, pensou Harry, os
olhos bem fechados sob o chapéu, “Por
favor me ajudem...”
Nenhuma
voz lhe respondeu.
Em
lugar disso, o chapéu encolheu, como se uma mão invisível o apertasse com
força. Uma coisa dura e pesada bateu na cabeça de Harry com força, deixando-o
quase desacordado. Com estrelas piscando diante dos seus olhos, ele agarrou a
ponta do chapéu com firmeza para tirá-lo e sentiu uma coisa comprida e dura em
seu interior.
Uma
refulgente espada de prata aparecera
dentro do chapéu, o punho cravejado de rubis rutilantes do tamanho de ovos.
—
MATE O GAROTO! DEIXE O PÁSSARO! O GAROTO ESTÁ A TRÁS DE VOCÊ! FAREJE, FAREJE!
Harry
estava de pé, pronto. A cabeça do basilisco foi baixando, o corpo se
enroscando, batendo nas colunas ao se torcer para atacá-lo de frente. Harry viu
o corpo imenso, as órbitas ensanguentadas, a boca escancarada, grande
suficiente para engoli-lo inteiro, cheia de dentes compridos como a sua espada,
pontiagudos, faiscantes, venenosos...
A
cobra atacou às cegas... Harry evitou-a e bateu na parede da Câmara. Ela atacou
de novo, e sua língua bifurcada golpeou o lado de Harry. Ele ergueu a espada
com as duas mãos... o basilisco tornou a atacar, e desta vez na direção
certa... Harry pôs todo o seu peso na espada e enfiou-o até a bainha no céu da
boca da cobra...
Mas
quando o sangue quente encharcou os braços de Harry, ele sentiu uma dor
excruciante logo acima do cotovelo. Uma presa comprida e venenosa estava se
enterrando cada vez mais fundo em seu braço e se partiu quando o basilisco
tombou para o lado e caiu, estrebuchando no chão.
Harry
escorregou pela parede. Agarrou a presa que espalhava veneno pelo seu corpo e
arrancou-a do braço. Mas percebeu que era tarde demais. Uma dor terrível se
irradiava do ferimento de modo lento e contínuo.
Na
hora em que deixou cair a presa e viu o próprio sangue empapar suas vestes, sua
visão se embaçou. A Câmara se dissolveu num rodamoinho de cores opacas. Uma
nesga de vermelho passou por ele, e Harry ouviu unhas baterem ao seu lado
suavemente.
—
Fawkes — disse com a voz engrolada — Você foi fantástico, Fawkes... — ele
sentiu o pássaro deitar a bela cabeça no lugar em que a presa da serpente o
furara. Ouviu ecoarem passos e depois uma sombra escura passar à sua frente.
—
Você está morto, Harry Potter — disse a voz de Riddle do alto — Morto. Até o
pássaro de Dumbledore sabe disso. Você está vendo o que ele está fazendo,
Potter? Está chorando.
Harry
piscou os olhos. A cabeça de Fawkes entrava e saía de foco. Lágrimas grossas e
peroladas escorriam por suas penas de cetim.
— Vou
me sentar aqui e apreciar você morrer, Harry Potter. Pode demorar à vontade.
Não tenho pressa.
Harry
se sentiu sonolento. Tudo à sua volta parecia estar girando.
—
Assim termina o famoso Harry Potter — disse a voz distante de Riddle — Sozinho
na Câmara Secreta, abandonado pelos amigos, finalmente derrotado pelo Lorde das
Trevas que ele tão insensatamente desafiou. Você vai voltar para a sua querida
mãe de sangue-ruim em breve, Harry... ela comprou para você mais doze anos de
vida... mas Lord Voldemort acabou por vencê-lo, como você sabia que ele
faria...
Se isto for morrer, pensou Harry, Não é tão mau assim. Até mesmo a dor
abandonou-o aos poucos... Mas será que isto era morrer?
Em
vez de escurecer a Câmara parecia estar voltando a entrar em foco. Harry fez um
pequeno movimento com a cabeça e lá estava Fawkes, ainda descansando a cabeça
em seu braço. Uma pocinha de lágrimas peroladas brilhava em torno do ferimento,
só que não havia ferimento...
—
Afaste-se dele, pássaro — disse a voz de Riddle inesperadamente — Afaste-se
dele, eu falei, afaste-se...
Harry
levantou a cabeça. Riddle estava apontando a varinha de Harry para Fawkes,
ouviu-se um estampido como o de um revólver e Fawkes levantou voo outra vez num
redemoinho dourado e vermelho.
—
Lágrimas de fênix... — disse Riddle baixinho, olhando o braço de Harry — É
claro... poderes curativos... me esqueci... — ele olhou para o rosto de Harry —
Mas não faz diferença. Na realidade, prefiro assim. Só você e eu, Harry
Potter... você e eu...
E
ergueu a varinha.
Então
num farfalhar de penas, Fawkes sobrevoou os dois e uma coisa caiu no colo de
Harry... o diário.
Por
uma fração de segundo, Harry e Riddle, a varinha ainda erguida, olharam para o
diário. Então, sem pensar, sem raciocinar, como se tivesse pretendido fazer
isso o tempo todo, Harry agarrou a presa do basilisco no chão ao lado dele e enterrou-a direto no centro do livro.
Ouviu-se um grito longo e cortante. Um rio de tinta jorrou do diário, escorreu
pelas mãos de Harry, inundou o chão. Riddle estrebuchava e se contorcia,
gritando e se debatendo e então...
Desapareceu.
A
varinha de Harry caiu no chão com estrépito e em seguida fez-se silêncio.
Silêncio, exceto pelo pinga-pinga da tinta que ainda escorria do diário. O
veneno do basilisco abrira a fogo um buraco no livro.
O
corpo inteiro tremendo, Harry se levantou. Sua cabeça rodava como se tivesse
acabado de viajar quilômetros com o Pó de Flu. Lentamente, recolheu a varinha e
o Chapéu Seletor e, com um violento puxão, retirou a espada faiscante do céu da
boca do basilisco.
Então
chegou aos seus ouvidos um gemido fraco lá do fundo da Câmara. Gina estava se
mexendo. Enquanto Harry corria para a garota, ela se sentou. Seus olhos
espantados ziguezaguearam do enorme vulto do basilisco morto para Harry, com as
vestes encharcadas de sangue, e daí para o diário em sua mão. Ela inspirou
profundamente, estremecendo, e as lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto.
—
Harry, ah, Harry, eu tentei lhe contar no café, mas não pude contar na frente
do Percy... fui eu, Harry... mas... j-juro que não tive intenção... Riddle me
obrigou, ele me levou até lá... e... como foi que você matou aquele... aquela
coisa? Onde está Riddle? A última coisa que me lembro é dele saindo do diário.
—
Tudo bem — disse Harry, levantando o diário e mostrando à Gina o furo feito
pela presa — O Riddle acabou. Olhe! Ele e o basilisco. Anda Gina, vamos dar o
fora daqui!
— Vou
ser expulsa! — choramingou Gina enquanto Harry a ajudava, desajeitado, a ficar
em pé — Sonhei em vir para Hogwarts desde que G-Gui veio e ag-gora vou ter que
sair e... q-que-que papai e mamãe vão dizer?
Fawkes
estava à espera deles, sobrevoando a entrada da Câmara. Harry incitava Gina a
avançar; os dois saltaram por cima das voltas inertes do basilisco morto,
atravessando a penumbra cheia de ecos e voltaram ao túnel. Harry ouviu as
portas de pedra se fecharem às suas costas com um silvo fraco.
Depois
de caminharem alguns minutos pelo túnel escuro, Harry ouviu o som distante de
pedras que se deslocavam lentamente.
—
Rony! — berrou, se apressando — Gina está bem! Está comigo!
Ouviram
Rony soltar um viva sufocado e, ao virarem a curva seguinte, divisaram a sua
carinha ansiosa espiando por uma brecha de bom tamanho, que ele conseguira
abrir entre as pedras desmoronadas.
—
Gina!— Rony enfiou um braço pelo buraco para puxá-la primeiro — Você está viva!
Não acredito! Que aconteceu! Como... que... de onde veio o pássaro?
Fawkes
mergulhou no buraco atrás de Gina.
— É
do Dumbledore — respondeu Harry, espremendo-se para passar.
—
Onde arranjou uma espada? — disse Rony, boquiabrindo-se ao ver a arma na mão de
Harry.
—
Explico quando sairmos daqui — disse Harry com um olhar de esguelha para Gina,
que agora chorava mais do que antes.
—
Mas...
—
Mais tarde — disse Harry concisamente.
Não
achou uma boa idéia naquele momento contar a Rony quem andara abrindo a Câmara,
pelo menos não na frente de Gina.
—
Onde anda Lockhart?
— Lá
atrás — disse Rony, ainda com uma expressão intrigada, mas indicando com a
cabeça o túnel na direção do cano de entrada — Está bem ruinzinho. Venha ver.
Guiados
por Fawkes, cujas penas vermelhas produziam uma luminosidade dourada no escuro,
eles caminharam de volta à boca do cano.
Gilderoy
Lockhart estava sentado, cantarolando tranqüilamente para si mesmo.
— A
memória dele desapareceu — disse Rony — O Feitiço da Memória saiu pela culatra.
Atingiu ele em vez de nós. Ele não tem a menor idéia de quem é, onde está ou de
quem somos. Eu o mandei vir esperar aqui. É um perigo para ele mesmo.
Lockhart
mirou os garotos, bem-humorado.
— Alô
— disse ele — Lugar esquisito, esse, não acham? Vocês moram aqui?
— Não
— respondeu Rony, erguendo as sobrancelhas para Harry.
Harry
se abaixou e espiou para dentro do cano longo e escuro.
—
Você já pensou como é que vamos subir por isso para voltar? — perguntou a Rony.
Rony
sacudiu a cabeça, mas Fawkes, a fênix, passara por Harry e agora esvoaçava à
sua frente, seus olhos de contas brilhando no escuro. Ela acenava com as
compridas penas douradas da cauda. Harry olhou-a hesitante.
—
Parece que ela quer que você a agarre... — disse Rony, com um olhar perplexo —
Mas você é pesado demais para um pássaro arrastá-lo por ali...
—
Fawkes não é um pássaro comum — Harry se virou depressa para os outros — Temos
que nos segurar uns nos outros. Gina, agarre a mão de Rony. Prof. Lockhart...
— Ele
está se referindo ao senhor — disse Rony rispidamente a Lockhart.
—
Segure a outra mão de Gina...
Harry
prendeu a espada e o Chapéu Seletor no cinto, Rony segurou as costas das vestes
de Harry e este esticou a mão e agarrou a cauda estranhamente quente de Fawkes.
Uma leveza extraordinária pareceu se espalhar por todo o seu corpo e, no
segundo seguinte, o grupo voava pelo cano em meio a um farfalhar de asas. Harry
ouviu Lockhart, pendurado atrás dele, exclamar: “Espantoso! Espantoso! Isso parece mágica!”. O ar frio fustigava
os cabelos de Harry e, antes que ele tivesse enjoado da viagem, ela terminou.
Os
quatro bateram no chão molhado do banheiro da Murta Que Geme, e enquanto
Lockhart endireitava o chapéu, a pia que escondera o cano voltou a se encaixar
suavemente no lugar.
Murta
arregalou os olhos para Harry.
—
Você está vivo! — exclamou desconcertada.
— Não
precisa parecer tão desapontada — disse o garoto, sério, limpando os salpicos de
sangue e o limo dos óculos.
— Ah,
bem... andei pensando... se você tivesse morrido, seria bem-vindo a dividir o
meu boxe — disse Murta, com o rosto tingindo-se de prateado.
—
Arre! — exclamou Rony ao saírem do banheiro para o corredor escuro e deserto — Harry!
Acho que Murta está gostando de você! Gina, você ganhou uma concorrente!
Mas
as lágrimas continuavam a escorrer silenciosamente pelo rosto de Gina.
—
Onde agora? — perguntou Rony, lançando um olhar ansioso a Gina.
Harry
apontou.
Fawkes
tomou a frente, refulgindo ouro pelo corredor. Eles o seguiram e momentos
depois se encontravam à porta da sala da Profª. McGonagall.
Harry
bateu e empurrou a porta, abrindo-a.
______________________________